março 29, 2004

JOSÉ SARAMAGO

O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA DIZ QUE VAI MORRER SEM ENCONTRAR A RESPOSTA PARA A PERGUNTA "SIMPLES" QUE O ATORMENTA



Um dos primeiros mandamentos do Manual de Boas Maneiras Jornalísticas diz que repórter que se preza não deve escrever na primeira pessoa. Por que não ? Peço licença aos Guardiões da Profissão para cometer um pequena confidência,na primeira pessoa do singular : sempre alimentei o desejo de entrevistar um Prêmio Nobel de Literatura.

Se eu vasculhasse minhas florestas interiores em busca de uma explicação razoável para esta pequena obsessão,certamente voltaria da expedição de mãos vazias. Não encontro nenhuma justificativa para o desejo de entrevistar um Nobel ,além da óbvia curiosidade jornalística. Quem sabe, o que me movia era a curiosidade de ouvir a palavra desse espécime raro : um intelectual milionário.Afinal,a conta bancária dos felizardos agraciados pelo Prêmio Nobel recebe uma injeção substancial – algo em torno de um milhão de dólares.Mas este é um motivo inconfessável, além de tolo : não há notícia de nenhum Nobel de Literatura que,depois embolsar a grana, tenha de repente se transformado num desses novos- ricos semi-analfabetos que povoam as páginas de revistas como a Caras com seus sorrisos de mil dentes,pele bronzeada pelo ócio da Côte D’Azur e prataria cuidadosamente exposta na sala de estar para as lentes dos fotógrafos. É gente que juraria de pés juntos que Ezra Pound é nome de creme de beleza. Para felicidade geral da Literatura,a Academia Sueca não provocou,até agora,nenhuma transmutação dessa espécie.

De qualquer maneira, lancei-me ao mar,em busca de um Nobel (milionário) que pudesse ditar belas sentenças ao meu velho e alquebrado gravador. Minhas duas primeiras tentativas,no entanto, resultaram em clamoroso fracasso. (os dois fracassos foram prontamente mantidos em sigilo,como faz todo repórter que se preza.Assim caminha a Humanidade).

Primeiro alvo de minha caçada : Saul Bellow,o canadense de ar entediado que conquistou uma vaga no primeiro time da literatura americana com livros como Herzog e O Legado de Humboldt . Uma voz afável – como convém a uma secretária encarregada de erguer muros de proteção entre uma celebridade e o resto do mortais – sugeriu que o pedido de entrevista fosse feito por escrito.Cumpri o pequeno ritual. Fiz a primeira tentativa através de uma carta enviada ao escritório que Bellow - Prêmio Nobel de Literatura de 1976 – mantinha num certo Commitee on Social Thought,na Universidade de Chicago. Além de incensado pela crítica ,Bellow volta e meia se mete em polêmicas com seus pares,o que soava como garantia de boas declarações. Mas Mister Bellow disse não.Deve ter descartado com um muxoxo o pedido de entrevista feito por um vago repórter de um país remoto chamado Brasil. Quem leu “Os Eleitos”, livro que Tom Wolfe,desafeto de Bellow,escreveu sobre os pioneiros da corrida espacial deve se lembrar da cena em que emissários da Nasa,como se fossem corvos bem-vestidos e delicados,batem na porta das viúvas de astronautas acidentados para dar a elas a notícia fatal.Os corvos sempre agiam em dupla.

Sem saber,o carteiro,emissário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos,ECT,fez dupla com a secretária de Saul Bellow no papel de corvos encarregados de soterrar meu projeto de entrevista. Uma escreveu; o outro entregou. Uma disse : mata !.O outro : esfola ! .A secretária concebeu uma desculpa de poucas linhas (“O senhor Bellow me pediu que eu respondesse a carta que você lhe enviou. Infelizmente,ele não poderá conceder a entrevista que você solicitou. Eu espero que você entenda que as demandas feitas a ele são numerosas.Além de tudo,o senhor Bellow precisa de tempo para executar seus próprios trabalhos.Por favor,aceite as desculpas do senhor Bellow.Receba os melhores votos”).

Em outras palavras,a mensagem dizia,como o corvo de Edgar Alan Poe : entrevista com Mister Bellow? Never more,never more. Restou-me grunhir um “thank you,miss Janis Freedman”- é este o nome da megera.

O corvo voltaria a roçar a porta do minha casa,travestido de carteiro da ECT,com um envelope branco de bordas vermelhas nas mãos.Remetente : a secretária de outro Nobel de Literatura,o russo naturalizado americano Joseph Brodsky. O nome de Brodsky tinha despertado minha atenção desde que um resenhista entusiasmado escrevera
que os leitores poderiam fazer uma experiência : quem abrisse aleatoriamente o livro de ensaios “Menos De Um”,publicado por Brodsky nos anos oitenta, poderia ter a certeza de que aprenderia algo de útil,não importa a página escolhida. Mister Brodsky dispensou delicadamente a convocação que lhe fiz para que reverenciasse meu gravador Sony portátil. Uma vez,ele escreveu : “Em matéria de fracassos,a tentativa de recordar o passado equivale à pretensão de entender o sentido da existência.As duas coisas nos fazem sentir como um bebê que segura uma bola de basquete : ela escorrega constantemente das mãos”. Quem sabe, conceder a milésima entrevista sobre a infância passada na União Soviética poderia soar, aos ouvidos de Mister Brodsky, como um exercício inútil ,comparável ao esforço de um bebê para manter nas mãos a tal bola de basquete – elusiva ,escorregadia,”incapturável”,como o o passado. A assistente do Prêmio Nobel,a megera número dois,uma certa Ann Kjellberg,respondeu-me que o homem estava viajando,pelo exterior. Assim que fosse possível ,ela levaria a ele o pedido de entrevista. Mas um espesso silêncio desabou sobre a linha direta que,por um curtíssimo espaço de tempo,mantive com o escritório de Mr.Brodsky por carta e por telefone.

Demorou,mas fisguei um peixe da família dos Nobel,quem diria,na beira da piscina de um hotel de luxo. Acomodado no hotel pela editora,o português José Saramago tinha acabado de gravar uma entrevista no quarto para uma tevê educativa. Lá vem o homem. Traja um paletó protocolar. Trata os que o abordam com cortesia profissional. Quando fala,fica olhando para algum ponto misterioso na toalha da mesa. Não fita os olhos do interlocutor o tempo todo.

O espírito de porco que quiser irritar o Prêmio Nobel de Literatura (e comunista de carteirinha) José Saramago já sabe o que fazer : basta chamar o homem de "dinossauro político em vias de extinção" . Quando ouve a insinuação político-zoológica,o cordato Saramago imprime um tom incisivo à resposta. Diz que,um dia,no futuro,quem quiser entender o que se passou no mundo talvez tenha de revirar os ossos dos dinossauros políticos, assim como os arqueólogos reviram os ossos dos dinossauros de verdade,em busca de indícios que expliquem o que aconteceu no planeta.

Bela resposta. Minha tática de agente provocador funcionou : quando se sente confrontado,o dinossauro Saramago reage com um punhado de frases afiadas,o que não deve ser difícil para quem se notabilizou como exímio esgrimista das palavras.

Quando se dirigia para a mesa onde se faria a entrevista, o Prêmio Nobel de literatura passou cem por cento desapercebido pela piscina do hotel. De bermudas,o músico brasileiro Sérgio Mendes sorvia uma xícara de café expresso à beira da piscina. Alheio ao mundo exterior, nem nota quando Saramago passa.Os cabelos de Sérgio Mendes,excepcionalmente negros graças à eficiência de uma boa tintura,com certeza seriam mais capazes de chamar a atenção de um eventual observador de paisagens capilares do que os já escassos fios de Saramago - cem por cento grisalhos.Para alívio de Mendes,nenhum membro da Tribo dos Observadores Capilares,essa confraria excêntrica, trafegou naquele fim de tarde à beira da piscina.Mas eles existem.

Desde que o Prêmio Nobel o transformou em notícia no mundo todo, Saramago se tornou refém da própria fama - uma sensação nem sempre agradável para quem passou a vida se dedicando ao solitário ofício de escrever. Antes de começar a entrevista,confessa que de vez em quando gostaria de ficar invisível quando sai às ruas – um desejo que,lastimavelmente,os cientistas ainda não puderam atender.

Atenção,arqueólogos literários e políticos : é assim que um dinossauro fala.

1
GMN : Qual é o maior incômodo que um Prêmio Nobel enfrenta,além do fato de ser sempre importunado por jornalistas,como o senhor agora ?
Saramago : “Eu poderia responder que o outro maior incômodo é ser importunado por fotógrafos,por exemplo.Mas não.Incômodo não há nenhum.O que acontece é que se perde a invisibilidade depois que se ganha o Prêmio.É o pior.Evidentemente que é agradável ser reconhecido na rua e em qualquer parte,no aeroporto ou no restaurante.É agradável ver um leitor se aproximar para nos dizer uma palavra amável sobre o que leu.Em todo caso,não é que eu preferisse voltar ao anonimato,mas não há dúvida de que há momentos em que eu gostaria de me tornar invisível.Só não quero ser ingrato.Todos me tratam com tanto carinho e tanta atenção que qualquer palavra minha nesse sentido poderia parecer de algum modo uma ingratidão.Não é.Apenas que vez em quando sinto a necessidade de recolher-me à minha própria privacidade – que,enfim,já se perdeu”.

2
GMN : O senhor é até hoje filiado ao Partido Comunista Português.Não tem medo de ser visto como um animal político em vias de extinção ?
Saramago : “Há muitas coisas em vias de extinção que deveriam preocupá-lo mais : profissões que se acabam,culturas que desaparecem,línguas que perdem sentido porque já não têm ninguém que as fale,um planeta que estamos destruindo.Deixemos lá os dinossauros políticos.Porque acontece uma coisa curiosa : é preciso ter cuidado com a expressão “dinossauro político”. Pode chegar o momento em que,tal como acontece com os dinossauros autênticos,os estudiosos andem à procura dos ossos dos dinossauros políticos,para tentar reconstituí-los tal como eles teriam sido.Talvez um dia se venha a necessitar dos ossos dos dinossauros políticos que nós somos para que se entenda o que acontecia no mundo”.

3
GMN : O senhor tem uma visão essencialmente pessimista diante do mundo.O pessimismo é bom para a literatura ?
Saramago : “O pessimista não é bom nem mau para a literatura,mas não tenho uma visão pessimista do mundo.Ao contrário : o mundo é que está como está.Num momento como esse,pareceria,a mim,um pouco surpreendente que alguém se atrevesse a ser um otimista.Quem,diante do espetáculo oferecido pelo mundo em que vivemos,veja razões para ser otimista,é uma pessoa que ou não percebe aquilo que se passa ou então faz de conta que não entende.O melhor,então,é deixarmos de falar em otimistas e pessimistas.Os fatos são os fatos.Não há otimismo ou pessimismo que faça com o que um fato deixe de ser um fato.A interpretação do fato é que pode variar.Mas o fato continua lá.Penso que os fatos desse mundo,dessa vida,desse planeta,dessa sociedade humana,são fatos suficientemente sérios e graves.Temos de enfrentá-los não para divagar sobre o otimismo e o pessimismo com que poderíamos considerá-los mas para pelo menos compreendê-los e,se possível,tentar resolvê-los”

4
GMN : Mas há dois fatos que são aparentemente indiscutíveis no mundo de hoje.Primeiro : o fato “otimista” de que nunca tantas pessoas em todo o mundo viveram tão bem e tiveram acesso a tanta riqueza.O fato “pessimista” é que nunca foi tão grande a diferença entre pobres e ricos.Diante desse quadro,o senhor não tiraria nenhum motivo para enxergar o futuro com algum otimismo ?
Saramago : “Não.Se a parte negativa não existisse,então eu diria : uma vez que nunca houve tanta gente vivendo tão bem,pode-se presumir que,no futuro,haja ainda mais gente que vai viver igualmente bem.Mas,como você mesmo acaba de dizer,nunca foi tão grande a diferença entre os que têm e os que não têm.Tudo indica que a diferença vai ampliar-se.Não vem se reduzindo.
É evidente que há mais pessoas que estão vivendo bem.Mas também há mais pessoas vivendo mal.Como a população da terra vem se multiplicando, pode-se dizer que,se alguma parte vai se integrar à minoria que vive bem ou razoavelmente bem,muito mais gente vai se incorporar à parcela dos que vivem mal.Além de tudo,não se deve esquecer que há uma tendência para a pauperização das classes médias.Há uma parte mínima da classe média que ascende,passa para o outro grupo.Mas há uma parte da classe média que vai se aproximando cada vez mais da parte desfavorecida.Volto a dizer que não há pessimismo nem otimismo.Repito : os fatos são os fatos. Noto também que o problema já não é ter ou não ter.O problema – não menos importante – é saber ou não saber.É cada vez maior o número de pessoas que não sabem.Ou sabem mal aquilo que julgam saber.É cada vez menor o grupo de pessoas que detém todo o conhecimento – e de certa forma usa-o para levar o mundo para onde o mundo vai”.

5
GMN : Se o senhor fosse fazer hoje o papel do escrivão Pero Vaz Caminha,quinhentos anos depois,qual seria a primeira frase que escreveria sobre o Brasil ?
Saramago : “Depende do lugar onde eu desembarcasse.Se eu desembarcasse em Copacabana,quando se arrebentaram os esgotos nas praias no Rio de Janeiro,eu diria ao rei Dom Manuel que aqui não poderia viver ninguém,porque o lugar cheira mal.Imagine se,pelo contrário,eu desembarcasse numa praia limpa,coberta não de índias despidas,mas de lindas moças quase despidas. Eu diria que aqui é um sítio para viver,uma terra linda.Se,no entanto,eu começasse a encontrar as favelas,eu diria : “Mas o que é que se passa aqui ? Eu julgava que os índios viviam de outra maneira !”.

6
GMN : Usa-se no Brasil a expressão “comunista de carteirinha”. O senhor anda com a carteirinha do Partido Comunista Português ?
Saramago : “Não ando com ela.Tenho cartões e carteirinhas de várias e várias instituições com quem mantenho relações.Não ando com as carteirinhas de todos.Mas pago a minha cota ao PC”.

7
GMN : O dirigente comunista Álvaro Cunhal entregou ao senhor uma carta que não deveria ser aberta.Que segredo essa esse ?

Saramago :”Álvaro Cunhal na verdade escreveu uma carta que nunca li,porque a carta só me seria entregue se ele não tivesse sobrevivido a uma intervenção cirúrgica a que foi submetido na União Soviética.O que sei,pelo que me foi dito,é que ele escreveu algumas cartas que seriam entregues a vários destinatários se ele não tivesse sobrevivido.De qualquer forma,não é o Terceiro Segredo de Fátima : ele próprio me comunicou,depois,ter dito,na carta,que esperava que eu nunca saísse do Partido Comunista Português.Não saí.Não sairei.Em todo caso,a carta nunca me foi entregue”.

8

GMN : Independentemente do apelo que seria feito nessa carta,jamais passou por sua cabeça a idéia de largar o Partido Comunista ?
Saramago : “Não tenciono efetivamente –para usar a expressão que você usou – “largar” o Partido Comunista,a não ser que ele me largue .Quero dizer : se amanhã o Partido se transformar em outra coisa,como aconteceu com a maioria dos partidos comunistas europeus,posso não reconhecer o Partido a que aderi.Nesse caso,é possível que eu saia.Mas espero que não aconteça”.
9
GMN : O senhor já disse que o Brasil é um país de luzes e sombras.Aos olhos do mais famoso escritor português de hoje,qual é a grande luz e qual é a grande sombra que o Brasil projeta ?
Saramago : “Uma pergunta dessas não é fácil de responder.Países de luzes e sombras de uma maneira ou de outra todos o são.O que digo em relação ao Brasil é que o país poderia ser,por suas riquezas naturais e pelas características do seu povo, um país em que as luzes predominassem.Não digo que as sombras é que predominam.O que quero dizer é que as sombras poderiam ser menores e menos graves”.

10
GMN : O senhor ainda se sente “como uma Miss Universo”,com a agenda atolada de compromissos depois do Prêmio Nobel ?
Saramago :”Fiquei com a sensação de que
as agendas de uma Miss Universo e a de um escritor premiado eram bastante parecidas.Mas hoje posso dizer que não se parecem em nada.As obrigações e responsabilidades de uma Miss Universo duram um ano.
Haverá,então,outra Miss Universo,não só com a coroa na cabeça,mas também com o dever de fazer tudo aquilo que a predecessora fez.Mas,no meu caso – eu,que,não sei se feliz ou infelizmente, não pareço em nada com a Miss Universo - essas obrigações não cessaram pelo fato de em 1999 Gunter Grass ter ganho o Prêmio Nobel.
Diga-se que o Prêmio Nobel não impõe rigorosamente nenhuma obrigação. O sujeito chega lá,recebe o Prêmio e vai para casa. Depende da vontade do escritor o uso que ele fará do tempo – o emprego que fará de suas possibilidades de comunicação,se vai continuar a escrever,se vai ter contatos com os leitores.
Como o Prêmio Nobel foi atribuído a um escritor de língua portuguesa,é claro que minhas obrigações e responsabilidades se multiplicaram.Eu entendi que deveria assumi-las”.

11
GMN : Por que os escritores brasileiros são tão ausentes de Portugal e os escritores de Portugal tão ausentes do Brasil ?
Saramago : “Pode-se pensar,por exemplo,que leitores de um país não dêem atenção suficiente àquilo que se publica no outro. Pode-se pensar que os temas que tratam os escritores de um país não interessam aos leitores de outro.Mas também se pode pensar que não há um trabalho de fundo para aproximar os dois.É certo que os escritores portugueses vêm aqui.É certo que os escritores brasileiros vão a Portugal.Mas há algo que se passa que não sei explicar. Temos de pensar no seguinte : o leitor também tem suas razões para preferir ou não preferir.Quero crer,no entanto,que seria bom se houvesse um trabalho mais contínuo de ajuda à edição – evidentemente,é preciso ver até que ponto tal ajuda é economicamente viável.O que é lamentável é que seja assim.Eu sou uma exceção.Eu próprio me pergunto por quê.Não sou capaz de dar uma explicação.
Talvez o que se devesse fazer seria perguntar aos leitores : por que não os interessa a literatura portuguesa ? Por que não os interessa a literatura brasileira ? Como é que poderiam se interessar ? Por que os interessa um determinado autor – e não outro ? Fernando Pessoa é muito lido no Brasil.Cem anos depois,Eça de Queiroz também o é.Já Machado de Assis não é tão lido em Portugal como Eça de Queiroz é no Brasil. Faça-se um inquérito para que se chegue a alguma conclusão”.

12
GMN : O primeiro escritor brasileiro com quem o senhor teve contato deixou alguma influência em sua formação ?

Saramago : “Não posso jurar,porque foi há muitos e muitos anos.Mas o primeiro pode ter sido Raul Pompéia,com esse livro extraordinário que é “O Ateneu”. Você me pergunta se ficou alguma influência da leitura.Claro que não,porque eu era muito novo.Ainda não pegava essas coisas.O resto foi a aprendizagem.Uso essa palavra propositadamente,porque o que houve comigo foi a aprendizagem de uma literatura escrita em minha própria língua,mas criada e imaginada em outro lugar - o Brasil -,com tudo o que para mim representou a descoberta não só dessa literatura,mas também das realidades sociais e culturais que estavam por trás dos livros”.

13
GMN : Por que é que o Prêmio Nobel de Literatura não gosta de falar de literatura ?
Saramago : “...Mas eu nunca disse que não gosto de falar de literatura ! O que disse foi que cada vez menos me interessa falar no assunto.Não é que não goste.Se é meu trabalho,como é que eu não iria gostar ?
Quando se publica um livro,ou por qualquer outro motivo,ligado ou não ligado a mim,falo de literatura,evidentemente.O que acontece é que considero que os problemas do mundo não se esgotam na literatura.São tão graves e tão importantes que,se tenho a oportunidade,até quando trato de literatura trato de abordá-los.Isso não é dizer que não gosto de falar de literatura”.

14
GMN : Uma crítica publicada numa revista brasileira sobre o livro “A Caverna” diz que “a literatura refinada de Saramago dessa vez dá lugar a um sermão”.O senhor acha que a denúncia das mazelas do mundo pode eventualmente comprometer a qualidade literária ?
Saramago : “Tenho que dizer que nunca comento qualquer crítica.É um princípio meu.Eu escrevo o que entendo.O crítico escreve o que entende.
Comentários meus sobre uma crítica ninguém encontrará,em toda a minha vida”.

15
GMN : Uma velha pergunta : o senhor escreve para fugir da morte ?
Saramago : “Não,porque ninguém foge da morte.É uma ilusão.O que pode acontecer é pensarmos – e devo ter pensado – que se escreve porque não se quer morrer.Parte-se do princípio de que a obra vai ficar,não se sabe por quanto tempo.
Hoje não sou tão ambicioso.Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas”.

16
GMN : A que escritor brasileiro vivo ou morto o senhor concederia o Prêmio Nobel de Literatura ?
Saramago : “A um vivo e a dois mortos.Não me importaria nada dar a eles o Prêmio,se eu fosse membro da Academia Sueca.O vivo é Jorge Amado.Os que já não estão vivos são Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.Sem nenhuma dúvida,eu,membro da Academia Sueca,atribuiria o Prêmio a qualquer um dos três.Não foi assim que aconteceu”.

17
GMN :O senhor escreveu,no livro “A Caverna”,que as frases de efeito são “uma praga maligna”.Qual é a sua frase de efeito predileta ?
Saramago :”Tento evitar,o mais que posso,as frases de efeito.Mas nem sempre consigo fugir à tentação de escrever uma.Só espero é que,se elas são só frases de efeito,as pessoas que as leiam ou as ouvem não as tomem demasiado a sério”.

18
GMN : Se o senhor fosse definir o Brasil numa só palavra,que palavra o senhor usaria ?
Saramago : “Como é que se pode definir numa só palavra ? Se pudesse usar nem que fossem duas palavras,talvez eu conseguisse.Dê-me três palavras...”.

19
GMN : Quais seriam,então,as três palavras ?

Saramago : “Eu definiria assim o Brasil : “Quando se decidem ?”.

20
GMN : Quase aos oitenta anos,qual é a grande pergunta que o escritor José Saramago não conseguiu responder até hoje ?
Saramago : “A pergunta que não consigo responder é muito simples :para quê ? Para que tudo isso ? Vou morrer sem encontrar a resposta.Creio que ninguém nunca encontrou”.

(2001)


Posted by geneton at março 29, 2004 12:30 PM
   
   
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