julho 03, 2006

NORMAN MAILER DECRETA O FIM DE UMA ERA

NOVA IORQUE - Acabou. O fim de uma época em que os escritores tinham uma voz ativa na sociedade foi decretada por um porta-voz insuspeito: um grande escritor. Nome: Norman Mailer. Sem qualquer alegria, ele constata que, hoje, um americano médio, “razoavelmente inteligente”, não seria capaz de citar o nome de três bons escritores contemporâneos.
Adeus, meninos.
E agora?
Agora, vale a pena ouvir a palavra de Mr. Mailer.




Eis o homem: o Grande Rebelde das Letras Americanas, o velho porta-voz das insurreições, o Eterno Dissidente, o “último ícone da literatura americana do Século XX” caminha apoiado por duas bengalas. Os cabelos, desalinhados, clamam por um pente. Traja uma camisa laranja de mangas compridas. Uma jaqueta protege-o dos rigores do inverno.

Primeira constatação: a longevidade – definitivamente - não vem de graça: o tempo cobra, ao Norman Mailer de 83 anos, o pedágio imposto aos octogenários que ousam desafiar a passagem dos séculos (quando Mailer nasceu, no último dia de janeiro de 1923, em Long Branch, New Jersey, a Primeira guerra Mundial tinha acabado havia apenas cinco anos. Os horrores do delírio hitlerista, a viagem do homem rumo às estrelas, o rosto estilhaçado de John Kennedy em Dallas, a aventura americana no Vietnam, a rebelião dos jovens dos anos sessenta, todos estes temas que um dia ocupariam a pena do Mailer escritor ainda demorariam décadas para acontecer: eram apenas uma possibilidade escondida nas cartas de alguma cigana).

Quando fala, o Grande Rebelde pontua as frases com um pigarro renitente. Quando ouve, fixa os olhos limpidamente azuis no movimento dos lábios do interlocutor – um esforço para captar, no ar, as palavras que a quase surdez o impede de ouvir. “Eu estou ficando surdo a cada minuto” – confessa, sem esforço para disfarçar a ruína auditiva. “Estou ficando velho. Já não terei tanto tempo” – diria, pouco depois. “Desculpe o pigarro. O motorista me disse outro dia, sobre minha voz: “Você soa como Richard Nixon no fim da vida...”.

Que ninguém se iluda com a aparente autocomiseração. O octogenário Norman Mailer provará já,já, que não lhe falta fôlego para disparar petardos verbais em todas as direções.

( o Grande Rebelde me brindaria esta noite com uma confidência feita ao pé do ouvido – um pequeno prêmio concedido à minha impertinência. Assediado por fãs que pediam um autógrafo em exemplares do recém-lançado “The Big Empty”, o livro que reúne seus diálogos políticos com o filho John Buffalo , Mailer comete ali e aqui pequenas indelicadezas, facilmente perdoáveis quando se contam as décadas que já acumula sobre os ombros. Um leitor estende-lhe um bilhete. Mailer nem olha para o pedaço de papel: “Não posso ler. Não posso”. Quando outro fã dispara flashs a dois palmos de seus olhos, resmunga: “Gente de minha idade não pode encarar flash….”. O desconforto diante do espoucar dos flashs parece legítimo. Diante do assédio ao nosso personagem, recorro a um caso extremo de concisão. Pergunto a Norman Mailer se ele poderia se definir em uma só palavra – e escrevê-la na folha de rosto do meu exemplar. Não, não pode. Pega a esferográfica vagabunda para me presentear com um autógrafo, escrito em letra firme e legível. O assédio faz Mailer me confidenciar o que pensa dessas aparições: “São brutais, rudes e desconfortáveis”. Guardo o desabafo em meu gravador).

É inevitável: uma sensação de “fim de uma era” percorre a espinha dorsal de quem testemunha a aparição do Grande Rebelde das Letras neste início de noite gelado, no prédio que serve de sede à New York Society for Ethical Culture, no número 2 da rua 64, Nova Iorque.

Eis ali o escritor que, no auge dos anos sessenta, agitava os manifestantes que bradavam diante do Pentágono contra o envolvimento americano na Guerra do Vietnam. Hoje, apoiado por bengalas e aparelhos para surdez, emite impropérios contra o Presidente George Walker Bush para platéias não tão numerosas.

Os manifestantes que antes lotavam as alamedas de Washington hoje se resumem a duas centenas de almas que enfrentam o frio do inverno nova-iorquino para ouvir, em tom reverente, a pregação anti-establishment do Velho Rebelde

O que terá acontecido? Onde estão as hordas de ouvintes? O próprio Mailer dá o diagnóstico : “Já não somos uma cultura literária. Somos uma cultura televisiva. Os escritores já não são tão importantes quanto antes. É o que digo, sem nenhum prazer”.

Onde estão as equipes de TV da CBS, NBC, ABC, que não aparecem para documentar a pregação do Velho Lobo? A única equipe de TV presente é a de um canal francês.

O repórter cede à tentação de anotar um paralelo cruel : é como se a inevitável decadência física de Mailer tivesse acompanhado a não tão inevitável perda de importância da figura do escritor numa sociedade dominada pelas imagens.

As caixas de som espalham os acordes de canções militantes cometidas pelo John Lennon pós-Beatles, como “Power to the People”. Depois, a platéia é embalada pelos versos de Lennon em “Mother”, a canção que mereceria o Grande Prêmio Internacional de Concisão porque consegue resumir em duas frases tomos e tomos de tratados psicanalíticos: “Mother, don´t go/ Daddy, come home”: Mãe, não vá embora/Pai, venha para casa”.

Lá fora, uma solitária militante - que parece saída de uma passeata contra a Guerra do Vietnam - distribui panfletos anti-Bush. O alvo agora é a intervenção americana no Iraque.

Quem enfrentou a neve das ruas pelo privilégio de ouvir a pregação do Grande Rebelde teve a sensação de que o sacrifício foi recompensado.

A vitória da “cultura televisiva” sobre a “cultura literária” não é o único tema que ocupa as atenções de Mailer neste começo de século. A “lenda literária” (é assim que o jornal Village Voice se refere a ele) oferece aos ouvintes idéias originais sobre, por exemplo, a ligação que existe entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia. Dá uma explicação quase psicanalítica sobre o medo do terrorismo. Cria uma tese controversa sobre a influência que os intervalos comerciais das TVs exercem sobre a capacidade de concentração dos telespectadores. Dá o que falar. Faz provocações. Não escorrega no ramerrame da obviedade. Cumpre o papel que reservou para si desde que subiu ao palco literário: é um escritor que não se conforma em apenas escrever. Quer intervir. Intervém. A torrente verbal de Mailer incendeia a imaginação dos ouvintes. A ele, pois.

A CRUELDADE DO TERRORISMO:
A MORTE SEM AVISO PRÉVIO

Em vez de discursar sobre o óbvio desconforto que a ameaça de ataques terroristas espalhou sobre a sociedade americana, Mailer detecta um efeito pessoal provocado pela onda de medo:

- Detesto terrorismo porque uma das minhas idéias religiosas favoritas é a de que nós devemos estar preparados para a morte. Ser morto sem aviso é um ultraje à alma. Uma das piores coisas sobre o 11 de setembro é que ninguém estava preparado para um ataque daquele. Preparar-se para a morte é importante. Acredito que há alguma coisa depois da morte. O terrorismo é particularmente horrível porque estilhaça a noção de que você deve estar preparado para morrer.

“A DEMOCRACIA DEPENDE DA BELEZA DA LINGUAGEM. GEORGE BUSH É UM ORADOR ABOMINÁVEL”


O Monumento Mailer estabelece uma surpreendente ligação entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia. Vale a pena ouví-lo:

- “Acontece que a democracia é a mais delicada forma de governo. A mais delicada! Por esse motivo, demorou tanto a ocorrer na História. A democracia depende de que a linguagem do povo se torne mais rica e mais elevada ao longo das décadas e dos séculos. Depende de criatividade, substância, boas instituições e alto desenvolvimento. George Bush é uma força que age negativamente sobre estes valores, porque ele reduz a linguagem. É um orador abominável”.

-“ Quero insistir neste ponto: a democracia depende da beleza da linguagem. Depende do aperfeiçoamento – e não da deterioração da língua. Os Estados Unidos eram maravilhosos nos tempos de Franklin Roosevelt, porque ele falava tão bem. O pouco que pudemos ter de John Kennedy nos deu uma mostra de que ele, um homem inteligente, queria elevar o nível da inteligência na política e na América.
Democracias são delicadas. Digo: o inglês só não sofreu um colapso e só não se partiu em pedaços ao longo das turbulências do Século XX porque um dia existiu William Shakespeare. Sem James Joyce, a Irlanda seria bem menos. Faço essas constatações não por ser um semi-talentoso novelista, mas porque a linguagem é imensamente importante. Bush destrói a linguagem quando abre a boca. Em nome do terror, Bush cometeu crimes contra a integridade e a reputação do Estado. É o pior Presidente dos meus oitenta e três anos de vida. Isso significa um bocado, porque vivi sob Ronald Reagan”.


O SÉCULO XXI FAZ UMA EXIGÊNCIA: TEMOS DE CONVIVER COM UMA DOSE DE ANGÚSTIA E INCERTEZA

O guerreiro Mailer avisa aos ingênuos que não há com escapar de dois sentimentos que se espalharam pelo planeta depois de assentada a poeira do desabamento do World Trade Center:

- “Uma das exigências do novo Século é que nós temos de conviver com uma dose de angústia e incerteza. O Onze de Setembro derrubou os dois mais reluzentes monolitos da economia americana, as Torres Gêmeas. Além de tudo, as Torres falavam da fálica hegemonia americana sobre o mundo. A dona-de-casa típica ficou desolada diante da assustadora possibilidade de que alguém pode trabalhar durante anos para formar uma família- e perder tudo em uma hora”.

A quem interessar possa, Mailer vai logo se declarando um “conservador de esquerda” - uma classificação que, admite, nem sempre é aceita por mentes habituadas a simplificações ideológicas:

- “Pelo lado conservador, há instituições e valores que não devem ser desmentidos com um piada. Metade da população mundial se enquadra na vida familiar. Se você não se enquadra, não ridicularize. Porque família é, sob vários aspectos, uma forma de arte”.

OS COMERCIAIS DE TV DESTRÓEM O PODER DE CONCENTRAÇÃO, PORQUE INTERROMPEM A NARRATIVA DE DEZ EM DEZ MINUTOS

Mailer articula uma tese original sobre a televisão. Diz que a geração nascida e criada diante da luz azulada dos monitores de TV tem dificuldade de acompanhar
raciocínios mais elaborados, porque toda história que a TV conta é interrompida de dez em dez minutos por comerciais:

- Quando liam, as crianças de antigamente desenvolviam o poder de concentração, pelo prazer da narrativa. Em outras palavras: elas podiam seguir um narrativa por horas. É quase como exercitar músculos: só que exercitavam a mente. Hoje, o equivalente a essas crianças espertas vêem na TV narrativas que são interrompidas a a cada sete ou dez minutos por anúncios comerciais. Isso impede a continuação da narrativa. As crianças, então, ficam habituadas à idéia de que não são capazes de seguir nada que dure mais do que sete ou dez minutos. Perdem o poder de concentração. Acontece com todos: se alguém se interessa por um programa, logo vem um comercial para afetar a concentração e a capacidade de pensar mais profundamente sobre o assunto.


UMA CONFISSÃO PESSOAL: O GRANDE DISSIDENTE AMERICANO TENTA ENXERGAR LUZ DEPOIS DA MORTE

Por fim, o Grande Rebelde causaria uma nova surpresa, ao pronunciar uma profissão de fé na reencarnação:

- Eu acredito em reencarnação, porque acredito que Deus é o criador. Para mim, a idéia de que Deus existe faz mais sentido do que a idéia de que Deus não existe. A reencarnação é um dos instrumentos profundos que Deus usa para tornar melhores suas criaturas. Quando você morre, acredito que você é julgado, não para ir ao inferno ou ao céu, uma idéia que nunca fez sentido para mim. O que faz sentido é a idéia de que você renasce. Há, espera-se, uma certa sabedoria na escolha feita no renascimento. Neste momento, você é punido pelos pecados que cometeu ou é recompensado pelo que conquistou na vida. Ou seja: a vida tem um sentido, para Deus e para você, na maneira com que você renasce. Você é premiado ou punido depois da morte.


O Grande Rebelde agarra-se à ilusão do renascimento. É como se erguesse a bandeira branca e fizesse um aceno para o invisível, o incompreensível e o improvável. Os ouvintes consomem em silêncio reverente a inesperada profissão de fé de Mailer numa vida além da morte. É como se o homem de 83 anos olhasse para o fundo do despenhadeiro – e, finalmente, depois de tantos embates, tantas protestos, tantos prêmios, tanta glória, pudesse enxergar com clareza o que antevira numa passagem de “Os Exércitos da Noite”:

“...Pois temos de ir até o final da estrada e alcançar aquele mistério onde a coragem, a morte e o sonho de amor nos prometem que poderemos, enfim, dormir”.

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(*) PUBLICADO NA EDIÇÃO DE JUNHO DA REVISTA "CONTINENTE MULTICULTURAL"




Posted by geneton at julho 3, 2006 10:58 PM
   
   
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