outubro 26, 2006

COMEÇA O DESFILE DE PERSONAGENS DA GLOBONEWS: PAUL McCARTNEY, O PROMOTOR DO TRIBUNAL DE NUREMBERG, O QUINTO BEATLE, CHICO BUARQUE, YOKO ONO, PRINCESA DIANA, PAULO FRANCIS

Se eu pudesse, reuniria numa sala os personagens que cruzaram o meu caminho quando eu estava na rua a serviço da Globonews – primeiro,em Londres; depois, no Brasil. Juntos, eles fariam a festa de qualquer repórter.

Num canto, estaria um ídolo dos meus remotos tempos de adolescência, um certo Paul McCartney. Ao lado, o Quinto Beatle – o super-produtor George Martin. Adiante, circunspecto, estaria um personagem histórico, Hartley Shawcross, o promotor britânico encarregado de acusar os carrascos nazistas no Tribunal de Nuremberg, no final da Segunda Guerra Mundial. Nesta sala imaginária, mas povoada de personagens reais, haveria lugar para um ídolo jornalístico, Paulo Francis.

O time se completaria com a Princesa Diana. É óbvio que dois excelentes entrevistados teriam assento garantido nesta galeria: os historiadores Paul Johnson e David Starkey, sempre dispostos a rechear suas declarações com pérolas politicamente incorretas. Ah, num canto, discreto, arredio, Chico Buarque de Hollanda dedilharia suas pérolas lítero-musicais. Por fim, a viúva mais famosa do mundo, Yoko Ono, perguntaria se estava tudo pronto para o início da entrevista.

DIANA: UM IMENSO TAPETE DE ROSAS
PARA A PRINCESA MORTA

Azar: quando a notícia de que a Princesa Diana tinha morrido num acidente de carro em Paris chegou à Inglaterra, na madrugada de um domingo de 1997, eu estava no sétimo sono. Pior: estava de folga. Desastre: nem em casa eu estava!. Tinha viajado para um fim de semana em Blackpool. Quando acordei, no domingo, cedo, para não perder a hora do café do manhã, liguei a TV. Quase caio para trás quando vi a notícia estampada numa tarja, no pé do vídeo: “Diana morta em acidente em Paris”. Todas as emissoras tinham suspendido a programação normal. Lá embaixo, no salão de café, vi gente chorando enquanto ouvia, paralisada, as notícias vindas de Paris. Comoção nacional.

Quando liguei para casa, pude ouvir, na secretária eletrônica, recados razoavelmente desesperados deixados na madrugada do sábado por editores da Globonews à procura do correspondente de férias...Assim que liguei para a redação do Rio, fui imediatamente “plugado” para o ar. Pude dar as primeiras impressões sobre a tragédia.

De volta a Londres, fiz, para o Jornal das Dez, uma reportagem apressada diante do Palácio de Buckingham. A cena era comovente: as calçadas diante do Palácio estavam literalmente tomadas por centenas, milhares de buquês de rosas. A Inglaterra nunca tinha visto uma demonstração tão ostensiva de luto coletivo. .

Mas nada se comparava às cenas que aconteceriam no sábado seguinte, dia do enterro de Diana.
Parece que estou vendo tudo de novo:

Não há outro pensamento possível: fico ruminando sobre o absurdo da vida ao ver o caixão passar a dois passos de onde estou, numa alameda nas proximidades do Palácio de Buckingham, numa manhã de setembro. Dias atrás, a Princesa Diana, linda, ilustrava a capa de uma revista numa foto deslumbrante em preto e branco. Agora, a Princesa é um corpo – invisível – desfilando diante de uma multidão de súditos em estado de choque. Crianças pregam nas árvores folhas de papel com mensagens e desenhos que a Princesa jamais verá.

Os príncipes William e Harry caminham em companhia do pai, o Príncipe Charles, herdeiro direto do trono, logo atrás do caixão. De vez em quando, o Príncipe Charles faz movimentos quase imperceptíveis com a cabeça, como se agradecesse a presença da multidão. Cabisbaixos, seus dois filhos não tiram os olhos do chão.
A multidão não emite um ruído sequer. Só se ouvem dois ruídos. Um é o som do trote dos cavalos que transportam a carruagem fúnebre. O outro é o badalo compassado do sino da Catedral de Westminster. Com intervalos regulares, o sino enche a manhã de um som solene, triste, trágico.

A visão da multidão em silêncio, o som compassado do trote dos cavalos e o toque estranhamente assustador do sino da Catedral dão à cena ares de uma tragédia shakespeariana.
Perto dali, uma cena inacreditável: um bêbado trajando luto pronuncia palavras incompreensíveis diante da estátua de Charles Chaplin, na Leicester Square.

São onze da manhã. A conversa do bêbado com Carlitos completa a sucessão de cenas absurdas naquele setembro inesquecível.

Que segredos o bêbado terá confiado ao Vagabundo?

O HISTORIADOR POLITICAMENTE INCORRETO DIZ QUE A PRINCESA MORREU UMA “MORTE AMERICANA”: DENTRO DE UM CARRRO, A TODA VELOCIDADE, PERSEGUIDA POR FOTÓGRAFOS

Enterrada a Princesa, tive a chance de entrevistar, em regime de emergência, um historiador brilhante, para o programa “Milênio”. Chamava-se David Starkey. É um dos maiores especialistas na história da realeza britânica. Fez uma biografia de Henrique VIII, o rei que mandava matar as mulheres.
Durante a semana que se passou entre o acidente em Paris e o enterro da Princesa, David Starkey brilhou nas tevês britânicas ao analisar o impacto da tragédia sobre a opinião pública. O que diferenciava Starkey do exército de especialistas que desfilavam pelas vídeos das TVs, pelas páginas dos jornais e pelas ondas dos rádios era a originalidade de suas observações.
Terminou encontrando tempo para nos receber – a mim e ao cinegrafista Paulo Pimentel - em casa. Deu um show de verve, ironia e erudição. Comportou-se como um aristocrata chocado com demonstrações de “vulgaridade” registradas durante as homenagens à Princesa.
Os telespectadores do “Milênio”, assim como nós, devem ter ficado deliciosamente chocados com a metralhadora giratória do historiador. Starkey ficou indignado – por exemplo – com o fato de Elton John, um cantor pop, ter sido convocado para cantar na Catedral de Westminster nos funerais das Princesa. Logo ali, na Catedral, tida como “Casa de Deus, Casa dos Reis”....
O historiador via no convite a Elton John uma concessão intolerável ao mau gosto popularesco. Num toque final de ironia, ele disse que Elton John cantando na Catedral é um ato de mau gosto tanto quanto seria ver Luciano Pavarotti soltando seus trinados no funeral da Princesa. A única diferença é que a careca de Luciano Pavarotti é visível. Já Elton John – notou Starkey – trata de esconder a calvície com uma peruca indecente.
O melhor comentário do historiador irritado foi sobre o cenário da morte da Princesa. Starkey disse que, ao fazer concessões ao circo da fama, a Princesa já tinha deixado há tempos de encarnar as virtudes da “realeza britânica”. Diana estava, nas palavras do historiador, levando uma vida “americana”. Ao morrer a bordo de um automóvel, a toda velocidade, perseguida por fotógrafos numa madrugada de Paris, ela morreu uma “morte americana”.
Brilhante.

O PRODUTOR DOS BEATLES FAZ UM
CAMPEONATO ENTRE LENNON E McCARTNEY


Meninos, eu vi: todos estes personagens – e um punhado de outros – foram importunados pelo locutor vos fala, em nome da Globonews. O encontro londrino com George Martin, produtor de todos os discos dos Beatles, rendeu dois programas “Milênio”, em 1998. Anos depois, eu estava numa loja de discos em Ipanema quando fui abordado efusivamente por um beatlemaníaco confesso que fez festa para mim, pelo simples motivo de que eu tinha conhecido George Martin. “Não é possível! Você esteve com George Martin!”, dizia. O fanatismo pelos Beatles tem razões que a própria Beatlemania desconhece.

O homem que produziu todos os discos dos Beatles nos recebeu numa situação que é a ideal para quem pensa em obter uma entrevista razoavelmente reveladora: sem pressa, sem ser importunado por assessores, sem hora marcada para acabar, ele gravou, diante da câmera do cinegrafista Paulo Pimentel, um depoimento autobiográfico sobre os bastidores da convivência com os “Quatro Rapazes de Liverpool”. A gravação foi feita numa igreja convertida em estúdio.

O super-produtor disse que adotava uma tática quase maquiavélica para garantir o altíssimo nível da produção da dupla Lennon-McCartney: estimulava uma espécie de campeonato de criatividade entre os dois. Um tentava superar o outro. O resultado é o que todos conhecem. Martin descreveu, comovido, o último encontro que teve com John Lennon – um jantar na casa do ex-beatle em Nova Iorque, no célebre Edifício Dakota. Lá pelas tantas, o ex-beatle fez uma confissão extravagante a George Martin: disse que queria, simplesmente, regravar tudo o que já tinha gravado, com novos arranjos. O depoimento do produtor dos Beatles à Globonews foi um dos mais completos que ele gravou. O Centro de Documentação da Rede Globo guardará para sempre esta pequena pérola da memória beatleniana.

LÁ VEM ELE - “O MAIS IMPORTANTE COMPOSITOR
POPULAR DO SÉCULO XX”

O ex-beatle Paul McCartney, apontado pelo vetusto Daily Telegraph como “o mais importante compositor de música popular do século vinte”, vai dar uma coletiva no Royal Albert Hall, numa manhã gelada, em Londres, para falar sobre a peça clássica que estava lançando em disco.
Faço plantão numa das entradas do Royal Albert Hall, na vã esperança de arrancar, para o Jornal das Dez, uma declaração do meu ídolo ( repórter não deve, em hipótese alguma, fazer papel de tiete, mas, enquanto esperava a chegada de Sir McCartney, eu não tinha como não me lembrar dos tempos em que passava horas, horas e horas ouvindo o lp Abbey Road em meu quarto de adolescente no bairro de Nossa Senhora do Rosário da Torre, Recife, Pernambuco).
Faço uma combinação com o cinegrafista Luís Demétrio. Em vez de nos dirigirmos ao auditório que servirá de palco para a coletiva, ficaremos do lado de fora, próximos à entrada principal do Royal Albert Hall. Quem sabe, num golpe de sorte, não conseguimos uma declaração exclusiva do homem.
Fãs capazes de qualquer sacrifício descobrem, não se sabe como, que Paul desembarcará ali dentro de instantes. Lá estão elas, indiferentes ao frio de rachar, num canto da calçada, à espreita. De repente, noto que um magrelo vestido de preto começa a falar discretamente num walkie-talkie. Faço um sinal para o cinegrafista. A celebridade deve estar chegando. Um carrão preto, com vidros indevassáveis, se aproxima lentamente da entrada do prédio. Quando notam, as fãs se agitam. O carro pára. Quem desce do banco dianteiro?

Só podia ser: Sir Paul McCartney, recém-condecorado pela Rainha. O canto dos olhos exibe pés-de-galinha. O tom da pele, pálido, sugere que o rosto passou por uma maquiagem – quem sabe, para esconder as rugas. A cor das cabelos não deixa dúvidas: uma tintura passou por ali. A idade manda lembranças. Mas - de calça jeans e camisa de mangas dobradas – o eterno Beatle parece, na medida do possível, jovial.
Avanço em direção à presa, com o microfone em punho. Fãs soltam gritos. Os brutamontes – popularmente conhecidos como seguranças – entram em ação para afastar todo e qualquer intruso – eu, inclusive. Revejo a cena. Paul acena para a turba. A única declaração que consigo captar é um monossílado – “Hi!” – versão inglesa para “Olá!”. Paul se limita a fazer um “V” de vitória com os dedos.
Em questão de segundos, ele desaparece dentro do prédio, cercado de seguranças por todos os lados. É uma luta inglória: enfrentar um daqueles brutamontes corresponde a desafiar Mike Tyson para um duelo, no meio da rua, numa manhã de inverno. Faltam-me proteínas para tanto.

Lá dentro, na coletiva, Paul aponta aleatoriamente para um ou outro jornalista – que, bafejado pela sorte, pode balbuciar uma pergunta. Supercelebridade é assim. O dedo indicador do beatle me desconhece solenemente. Fica para a próxima.

Paul McCartney faz uma confissão interessante: diz que, por três vezes, tentou aprender a ler e a escrever partituras musicais – quando criança, aos dezesseis e aos vinte e um anos de idade. Não conseguiu. “A ignorância funcionou como uma bênção, porque, no meu caso, terminou tornando simples o ato de compor”.
Além das declarações que o astro fez na coletiva, volto para a redação com a entrevista mais sucinta das tantas que tive a chance de tentar.
“Olá.”
Ainda assim, a reportagem foi feita para o Jornal das Dez.
Jornalista pode tudo. Só não pode voltar para a redação de mãos abanando – principalmente depois de ter visto um ex-Beatle ali, ao vivo e a cores, a um metro de distância.

UM PERSONAGEM HISTÓRICO DÁ UMA LIÇÃO SOBRE A BANALIDADE DO MAL: OS MONSTROS PARECEM GENTE COMUM

Os personagens vão desfilando:
Tive a – rara – sensação de estar diante da História quando cheguei à casa de campo onde vivia o promotor britânico do Tribunal de Nuremberg, o já nonagenário Hartley Shawcross. A entrevista foi ao ar no “Milênio”. Era um homenzarrão. Coube a ele a tarefa de comandar a acusação contra os carrascos nazistas que comandaram o extermínio de milhões de seres humanos.
Diante da câmera do cinegrafista Sérgio Gilz, o promotor me faz uma confissão marcante: disse que, ao encarar os criminosos, ficou impressionado não com a frieza de um ou outro mas com a aparência de absoluta normalidade que os carrascos nazistas exibiam. Lá pelas tantas, o promotor faz uma comparação: disse que, se um de nós entrasse num ônibus em que estivessem os carrascos nazistas, nem se daria ao trabalho de olhar para eles. Porque eles seriam confundidos com pessoas absolutamente comuns.
É a chamada “banalidade do mal” – confirmada, ali, por um homem que olhou nos olhos dos monstros.

A VIÚVA MAIS FAMOSA DO MUNDO SOLTA UM SUSPIRO DE DESALENTO


Por falar nos Quatro Rapazes de Liverpool: tive a chance de gravar uma entrevista Yoko Ono, a viúva de Lennon, para o programa “Milênio”. Como acontece com entrevistas com super-celebridades, havia restrições: um assessor pediu que não se perguntasse sobre John Lennon. A viúva só falaria sobre a exposição de arte que faria em Brasília. Quando toquei no assunto Lennon, no final da entrevista, Yoko Ono pousou a mão sobre minha coxa, disse “você agora entrou num assunto vasto” e prometeu que, “em outra oportunidade”, falaria sobre o ex-Beatle. É uma maneira delicada de dizer : “never more”.

Yoko cumpre com perfeição o script : trata o entrevistador pelo primeiro nome, durante a gravação, para demonstrar uma falsa intimidade. Não deixa de ser um gesto simpático. Um assessor deve ter soprado nos ouvidos de Yoko, minutos antes da gravação, o meu nome- que é algo esquisito....
Mas ela se saiu bem na gravação: pronunciou as sete letras com a correção possível de quem não sabe uma palavra em português.

O assessor (que também é namorado da viúva mais famosa do mundo) controla o tempo da entrevista. Encerrada a gravação, não resisto à tentação de pedir um autógrafo, para meus arquivos implacáveis. A única foto que encontrei mostra Yoko e John diante do Dakota – o prédio em que o ex-beatle foi assassinado na noite do dia 8 de dezembro de 1980. Quando vê a foto, Yoko suspira, baixinho, algo como “God...” (“Deus...”). Termina assinando. Por um instante, involuntariamente, devo ter trazido uma péssima lembrança à superviúva.
Sorry about that.


O POETA CHICO BUARQUE ENXERGA “UMA LUZ
REPENTINA INEXPLICÁVEL”: É A INSPIRAÇÃO

Um gigante da MPB, frequentemente encontrável nas ruas da zona sul do Rio, mas extremamente refratário a contatos com repórteres, gravou, em 1998, uma entrevista que foi ao ar, na íntegra, no “Milênio”: tive ali a prova de que a célebre timidez de Chico Buarque de Holanda não passa de uma lenda criada para protegê-lo do eventual assédio de perguntadores indesejados, como o locutor que vos fala. Chico Buarque nunca esteve cem por cento à vontade diante de jornalistas. Deve ter suas razões. Mas, quando quer, fala solto, conta histórias, ri diante da câmera. Disse, por exemplo, que, quando viajava pela África, declarava, a sério, que tinha sido reserva do craque Sócrates na seleção brasileira que encantou o mundo na Copa de 1982. O problema é que nenhum africano engoliu a mentira. O poeta que não gosta de jornalista fez uma bela comparação entre o ato de compor e o ato de jogar futebol :

GMN : Você diz que o futebol tem momentos de improviso e genialidade que nenhum artista consegue repetir. Mas em alguma de duas músicas você teve o sentimento de improviso que você só encontra no futebol ?
Chico Buarque : “É possível encontrar algo semelhante ao futebol no jazz, na música instrumental. Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador.De qualquer forma,há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente,vem uma idéia. Você se pergunta : de onde veio ? É o que acontece com o futebol : é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável”.

GMN : Que música ou que verso despertou em você,na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible ?
Chico Buarque : “Você vai trabalhando,trabalhando,trabalhando em cada música,até que há um “clique” : aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz” .É como se fosse algo que viesse de fora”.
Participar de um canal de notícias a cabo deu um novo fôlego à minha acidentada relação com a TV – eu que venho da imprensa escrita. Mas posso dizer que minha primeira participação na Globonews me deixou uma lembrança razoavelmente traumática.

O COMEÇO: UM AUDIOTAPE INTERMINÁVEL

A Globonews, como se sabe, entrou no ar na noite de 15 de outubro de 1996. Tive o (duvidoso) privilégio de ter participado da primeira manhã de transmissões normais do telejornal “Em Cima da Hora” – no dia 16 de outubro. Eu estava em Londres. Ficou acertado que eu enviaria diariamente, por telefone, notícias para a Globonews. Os despachos telefônicos são chamados de “audiotapes”, no jargão jornalístico. Pois bem: o meu primeiro audiotape para a Globonews foi sobre um menino brasileiro que tinha virado notícia na Inglaterra. Craque no golfe, ele forçou a mudança no regulamento interno de um campeonato britânico – que não admitia a participação de estrangeiros.

Por que chamo de “duvidoso” o privilégio de ter participado da manhã inaugural do “Em Cima da Hora”? Vou logo esclarecendo que a culpa foi minha, não da Globonews: animado com a história, terminei me estendendo além do esperado na descrição da saga do menino. O audiotape ficou grande. Para dizer a verdade: ficou enorme. Vou ser cem por cento sincero: ficou interminável.

Devo confessar diante deste tribunal que fazer narração não é,nunca foi, minha mais elogiável habilidade jornalística. Minha narração, na melhor das hipóteses, “dá para o gasto”. Assim, o melhor seria não me estender além do necessário. Mas me estendi. A culpa foi minha, repito. De qualquer maneira, guardo com carinho o íntimo orgulho de ter dado uma pequeníssima contribuição como um dos “pioneiros” da Globonews – ainda que com um audiotape interminável.

Tentei corrigir a duração dos audiotapes nos dias, semanas e meses seguintes.

Tomara que tenha conseguido.

Se um dia me sobrarem engenho e arte, eu bem que poderia preencher páginas e páginas com as lembranças que ficaram e as declarações que colhi. Enquanto não chega este dia, vou alinhavando anarquicamente minhas memórias da Globonews. É o que faço agora. As cenas vão desfilando na memória...


A ENTREVISTA QUE PAULO FRANCIS DEVERIA TER FEITO – MAS NÃO TEVE TEMPO DE FAZER

Os petardos disparados por Starkey eram comparáveis aos de outro historiador também brilhante e tão “politicamente incorreto” quanto ele: Paul Johnson, um dos mais polêmicos intelectuais britânicos. É um homem que se orgulha de jamais, em toda a vida, ter visto ou concerto de rock – ou assistido a um jogo de futebol.
A primeira entrevista que fiz para o “Milênio”, poucos meses depois da inauguração da Globonews, foi com ele.
A entrevista com Paul Johnson teve um significado especialíssimo para mim por um motivo que permaneceu nos bastidores: meses antes, durante a última conversa que tivemos, no escritório da TV Globo em Londres, eu tinha sugerido a Paulo Francis que fizesse uma entrevista com Paul Johnson para a Globonews.
Francis estava indo com alguma regularidade a Londres para entrevistar escritores e intelectuais, para o programa “Milênio”. Tinha entrevistado o escritor Martin Amis. Voltou contente: disse que tinha em casa noventa por cento dos livros que vira nas estantes da casa de Amis. Brincou: estava certo de que havia uma conspiração internacional de intelectuais – que liam os mesmos livros.
Ao repassar uma lista de possíveis entrevistados, eu disse a Francis que ele e Paul Johnson tinham pontos em comum: os dois tinham passado pela esquerda na juventude mas terminaram assumindo uma posição conservadora na maturidade. Francis – que, obviamente, conhecia a trajetória de Paul Johnson – aceitou a sugestão. Toparia entrevistar Johnson. Imaginei que belo diálogo não sairia de um encontro dos dois.
Poucos meses depois, recebi, em Londres, a notícia da morte repentina de Francis – um choque que, para dizer a verdade, reverbera até hoje. Eu tinha, com Paulo Francis, uma relação de discípulo para guru. Durou dez anos. Ninguém precisava concordar com o que ele dizia. Mas a herança deixada pelo texto de Francis não deve nem pode ser menosprezada. O texto de Paulo Francis dava prazer a quem lia. Ponto. Era o que bastava. Todo jornalista que consegue tal feito deve acender uma vela a São Gutemberg, em agradecimento.
Por um desses desígnios imprevisíveis, coube a mim a tarefa de finalmente fazer a entrevista que eu sonhara para Paulo Francis. Obviamente, eu sabia que era cem por cento impossível substituir Francis como entrevistador. Mas fazer a entrevista que originalmente tinha sido imaginada para ele foi a melhor maneira que encontrei de homenageá-lo.
Paul Johnson nos brindou, no “Milênio”, com uma coleção de tiradas ferinas. Como estas:
GMN : Quanto o senhor pagaria por um quadro de Picasso? Por que o senhor é tão rigoroso na hora de julgar mestres da arte moderna, como Picasso e Cézanne?
Paul Johnson : “A arte precisa ter um propósito moral. Acontece que nunca pude detectar qualquer propósito moral claro na obra de Picasso. Era um homem perverso e imoral. Não vejo,em nenhuma de suas obras,um esforço para mostrar a arte com um propósito moral.Tal esforço é a essência do grande artista. Então,desconsidero Picasso completamente”.
GMN : A obra mais famosa de Picasso, "Guernica", é uma denúncia contra a violência do totalitarismo. Por que é,então,que o senhor diz que não havia nenhum sentido moral na obra de Picasso?
Paul Johnson : “Porque Picasso não lutava contra o totalitarismo ! Picasso não era comunista : era stalinista ! . Ficou do lado da União Soviética totalitária,durante quase toda a vida. É um escândalo ! Não acreditava na liberdade, exceto para si próprio”.

A LEMBRANÇA DE PAULO FRANCIS: O PONTO FINAL PODE VIR NO MEIO DA FRASE
A última vez que vi Francis, no escritório da TV Globo, foi numa sexta-feira de tarde. Um dia depois, eu teria uma surpresa.
Sábado à tarde numa livraria em Piccadilly Circus, no centro de Londres. Folheio ao acaso livros na seção de obras clássicas de uma livraria. De repente, um tapa nas costas me assusta. Viro-me. Ei-lo: Paulo Francis. Sorridente, diz que ficou satisfeito em me ver ali, porque eu estava na única “seção que presta”: a dos clássicos.
Fico pensando que fui salvo pelo gongo. Por puro acaso, estava na seção dos clássicos, entre gigantes da literatura universal. Minutos antes, estava folheando livros ilustrados sobre futebol – obras de peso intelectual zero.

Devo ter dado a Francis a impressão – errônea – de que era um freqüentador habitual da seção das obras-primas de todos os tempos. Como o equívoco era a meu favor, não me animei a corrigi-lo.
Um dia antes, Francis tinha repassado comigo uma possível lista de entrevistas que ele poderia fazer para a Globonews. Já tinha gravado uma com Martin Amis. Agora, faria com a escritora de romances policiais P. D. James. Animado, citei vários nomes de escritores acessíveis. Por que não Paul Johnson? Que tal J. G. Ballard – que tinha publicado há pouco um livro de ensaios? Diante deste nome, reagiu com moderação.
Ao notar meu entusiasmo na escalação de possíveis entrevistados (eu não dizia, mas, na verdade, estava saboreando ali a chance de discutir pautas com um dos meus ídolos jornalísticos), Francis fez o seguinte comentário, típico de um velho lobo certamente desiludido com o Estado Geral das Coisas:

– Você viu aquele filme ”Seven”? Você se lembra do que o personagem de Morgan Freeman diz no final do filme? Depois de citar uma frase de Ernest Hemingway – “O mundo é um belo lugar para viver; vale a pena lutar por ele” – Morgan Freeman diz o seguinte: “Concordo com a segunda parte”. Pelo jeito, você parece que concorda também....
Aquele foi o último encontro com Francis, o autoproclamado “lobo hidrófobo”.
A última frase que ele escreveu, no último livro que publicou (Trinta Anos Esta Noite), foi tristemente profética:
– “Nos esforçamos, contra a corrente, que nos traz incessantemente para o passado. Vemos a luz verde, o futuro orgiástico, que ano a ano reflui, sempre elusivo, sempre ao nosso alcance, intangível, até que no meio de uma frase nos dêem um ponto final...”
Enquanto o ponto final não vem, resta fazer o que jornalistas razoavelmente abelhudos fazem: tentar arrancar uma frase do ídolo de adolescência, como Paul McCartney; provocar historiadores politicamente incorretos como David Starkey ; homenagear silenciosamente um guru da profissão,como Paulo Francis; ouvir a palavra de um personagem histórico, como o promotor britânico do Tribunal de Nuremberg ou testemunhar cenas inesquecíveis, como a carruagem carregando o corpo da Princesa Diana sob o silêncio absoluto da multidão e o badalo compassado dos sinos.
Não é muito. Mas é tudo, para quem sempre se esforçou para cultivar o ensinamento de um mestre do Jornalismo, o grande repórter Joel Silveira:
- Nada mais triste do que ver um repórter sentado numa redação a olhar para o teclado, disponível e sem assunto, quando os assuntos, todos eles, estão lá fora enchendo as ruas.
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(*) Geneton Moraes Neto foi correspondente da Globonews em Londres de 1996 a 1998. Fez entrevistas para o programa “Milênio” entre 1997 a 2001.













Posted by geneton at outubro 26, 2006 04:12 PM
   
   
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