junho 09, 2007

RITA LEE

A SENHORA JONES CHAMA CHICO BUARQUE PARA A MÚSICA


O autor desta oitiva, brasileiro, jornalista, estabelecido profissionalmente na redação do Fantástico, na rua Von Martius, 22, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, declara, a quem interessar possa, que, no início de uma noite de quinta-feira, interrogou longamente, no estúdio 2 da Rede Globo de Televisão,na rua Dr. Chucre Zaidan, 46, no bairro de Vila Cordeiro, em São Paulo, a sra. Rita Lee Jones, brasileira, paulistana, cantora e compositora, mãe de três filhos homens e avó de uma criança chamada Isabela.

O estúdio em que foi feita a gravação estava inativo: é usado, no período das manhãs, pela apresentadora Ana Maria Braga. Enquanto aguardava a chegada da sra. Jones, a equipe não resistiu à curiosidade de inspecionar o esconderijo utilizado todas as manhãs pelo assistente da sra. Braga, o famoso Louro José – que, lastimavelmente, não se encontrava ali naquele início de noite.


Satisfeita a curiosidade a respeito do sr.José, a equipe passou a aguardar a chegada da entrevistada, o que ocorreu em questão de minutos. O pequeno atraso – perfeitamente tolerável, para os padrões tupiniquins - pode ser creditado ao fato de que a sra. Jones passou, antes, por um camarim, para retocar a maquiagem, reforçar o batom e revisar o penteado, cuidados compreensíveis numa profissional dos palcos.

A sra. Jones usava óculos de lentes azuis. Trajava uma blusa colorida de mangas compridas, com motivos cor de rosa, calça jeans e tênis. É como se uma fotografia dos anos sessenta de repente ganhasse cor, verve e movimento. Os cabelos tinham sido tingidos de cor vermelha, acentuada pela luz levemente âmbar, emitida por um dos refletores. Parecia à vontade, o que viria a se comprovar durante a gravação.

Enquanto o cinegrafista Bartolomeu Clemente e o técnico Pedrinho Tonelada ajustavam o equipamento para o início da entrevista, a sra. Jones fez dois pequenos comentários. Ao explicar por que estava usando o polegar para inspecionar a cutícula dos outros dedos da mão, declarou, em tom de brincadeira, que estava praticando o que chamou de “antropofagia”: comia a própria carne.

Em seguida, confessou que tem convivido nos últimos meses com um problema incômodo – o da insônia, um inconveniente que a persegue desde que resolveu suspender o uso de drogas, no início do ano de 2006. Disse que há dias em que só adormece às dez da manhã. O autor do interrogatório não disse, mas pensou: “Dos males, o menor. Boa sorte, sra.Jones”.

A essa altura, a sra. Jones perguntou ao autor do interrogatório se ele também tinha problemas de insônia. A resposta foi negativa. Mas, para não soar evasivo ou monossilábico, o perguntador comentou que a sra. Jones poderia usar as noites de insônia para cumprir tarefas criativas,tal como fazem tantos escritores confessadamente insones. Diante da sugestão, a sra. Jones retrucou: tocar guitarra todo dia às quatro da manhã não é tão fácil quanto parece.

O autor do interrogatório notou uma particularidade: a sra.Jones só irá completar sessenta anos de idade no dia 31 de dezembro de 2007. Mas, desde já, numa atitude que confronta a postura normalmente adotada por mulheres famosas, ela faz questão de se declarar sexagenária. É um exemplar raríssimo de mulher que aumenta a própria idade.

A sra. Jones comenta rapidamente sobre o trabalho de um fã, Henrique Bartsch - que, depois de trocar uma infinidade de e-mails com ela, terminou escrevendo o livro “Rita Lee Mora ao Lado/uma Biografia Alucinada da Rainha do Rock”. Quem estiver à procura de histórias indiscretas – ou meramente picantes – encontrará, na biografia, um repertório razoável, descrito na primeira pessoa pela própria sra. Jones : em e-mails de tom confessional, ela conta que flagrou um casal de astros da Jovem Guarda dedicado a um embate carnal, em cima de uma mesa, nos bastidores de um teatro. Diz que levou uma cantada do futuro campeão das pistas, Emérson Fittipaldi. Namorou com Jorge Ben. Viu os Beatles na Abbey Road, em Londres. Cortou o cabo de som que serviria a Edu Lobo, num show, em vingança contra a militância anti-rock do compositor. Em “Arrombou a Festa”, música que fez grande sucesso, copiou deslavadamente as opiniões de Raul Seixas sobre colegas da MPB. Passou dez dias trancada num apart-hotel com o papa da Bossa Nova, João Gilberto, às voltas com música, fumaça e sexo. Já foi ameaçada por traficantes armados ao subir um morro em companhia de Cazuza, para comprar droga. Teve um caso fortuito com o namorado de Elis Regina, César Camargo Mariano, durante a gravação de um especial para a TV. Ouviu do Rolling Stone Charlie Watts a sentença: “Não acredito nos Rolling Stones”. Já foi arrastada para um banheiro por Eric Clapton, numa festa na casa de um executivo de uma gravadora, no Rio.


Iniciado o interrogatório formal, a sra. Jones praticou os seguintes gestos: A) fez revelações sinceras sobre o fim daquela que é considerada a melhor banda de rock já surgida nesta República, os Mutantes; B) declarou – surpreendentemente – que só abandonara o uso de drogas no início de 2006; C) lançou um novo grito de guerra contra quem promove rodeios- segundo ela, um intolerável ritual de imposição de maus tratos a animais, o que seria um “péssimo exemplo para as crianças” ( o autor do interrogatório notou que, depois que se tornou avó da menina Isabela, a sra. Jones passou a citar crianças nas respostas ); d) criticou a atitude de artistas que usam um suposto engajamento político para comover o público, como seria o caso do irlandês Paul Hewson, conhecido internacionalmente pelo nome artístico de Bono Vox; E) deixou no ar uma inédita proposta de parceria com o sr. Francisco Buarque de Holanda; F) disse que morria de inveja de outro colega de profissão, o sr. Caetano Emanoel Viana Teles Veloso.

As declarações da sra. Jones foram integralmente gravadas. O que se lerá a seguir é uma suma do que se perguntou e do que se respondeu:


“ODEIO ACADEMIA E SHOPPING CENTER”


Interrogador: Você já declarou que odeia academia, salão de beleza e vitamina. Por quê? É medo de ser confundida com uma perua?

Sra. Jones: “Meu bem,eu realmente odeio academia e shopping center. Pago para não sair de casa. Minha vida se resume a antes e depois do computador. Sempre fui meio pão-dura. Nunca gastei muito. O que eu iria fazer nesses lugares? Eu mesma pinto o meu cabelinho e cuido de minha pele. Creme eu esqueço de passar. Mas dá para passar no pão, porque existem cremes deliciosos. Provo muito.

Há maneiras de envelhecer: ou você segue o caminho das peruas ou o caminho das feiticeiras. O grande inimigo das peruas – que perseguem a fonte da juventude – é o tempo. Já as feiticeiras contam com o tempo como o maior aliado.

Mas gosto de perua. São engraçadas as peruas “siliconadas” e “botocadas”. Também gosto das feiticeiras, com aquela coisa mais serena.

Não consigo – até hoje - deixar o meu cabelo grisalho. Com sessenta anos, tenho cabelos grisalhos. Já os meus pentelhos são grisalhos! Já estão grisalhos, mas não pinto”.


“EM VEZ DE “SEXO, DROGAS E ROCK-AND-ROLL”,EU ESTOU MAIS PARA “NEXO, IOGA E BOSSA-NOVA”

INTERROGADOR : O que vem em primeiro lugar na vida da Rita Lee quase sessentona : sexo, drogas, rock and roll, ou nenhum dos três?

SRA. JONES : “Em vez de sexo drogas e rock-and- roll, eu estaria mais para nexo, ioga e bossa-nova. Tenho neta agora, meu amor.Eu estou louca pela minha neta de nove meses! Já haviam me avisado que ser avó é muito mais legal do que ser mãe. É mesmo!”.


INTERROGADOR : Você diz que os rodeios são “um vergonhoso lixo cultural americano trazido ao Brasil por pura macaquice”. Os peões são, segundo você, “uma corja de sanguinários, profissionais da crueldade, que maltratam animais”. Você espera ganhar essa briga contra os rodeios?

SRA. JONES : “É uma indústria que ganha muito dinheiro em cima do sofrimento dos bichos. Odeio rodeio! Se o espaço daquela arena maravilhosa fosse aproveitado para atletas, circos, feiras, concursos de bunda, marchinhas e carnaval,o público continuaria indo. Usar bicho é péssimo exemplo para as crianças! Porque rodeios tratam bichos como se fossem objetos de uso pessoal. Não é assim: os bichos são companheiros de jornada. A gente não vai chegar às estrelas enquanto não respeitar todas as formas de vida.


A preocupação com animais tenho desde pequenininha. Vou continuar tendo. Faz parte de mim mesmo. Se fosse para escolher, eu faria passeatas e me deitaria na frente de arenas.

Já me deitei na frente da Embaixada da Espanha quando eles, uma época, queria trazer as touradas para cá. Falei: “Tragam Miró , tragam Almodóvar, tragam Picasso, mas trazer o lixo cultural que não nos pertence?”

Se o peão de boiadeiro foi promovido a “atleta”, o que é que vou falar para Ronaldinho Gaúcho e para Pelé? O meu “peão de boiadeiro” era Jeca Tatu. Hoje,é um John Wayne que, vestido de cowboy, rouba a festa junina, típica da gente!

Dizem-me assim: “...Mas você faz rock- que também é coisa de gringo.” Ora, futebol e rock-and-roll são coisas de gringo, que chegaram aqui e ganharam o trejeito brasileiro. Vocês – dos rodeios – não! Vocês estão copiando John Wayne- que só matava índio no cinema! É um péssimo exemplo!
Tiraram o espírito “Jeca Tatu” do peão que tratava dos bichos. Transformaram os peões em torturadores de animais, na frente das crianças. É duro, porque quem defende os animais é logo amaldiçoado com o estigma de “louco” e “desocupado”. Mas todos deveriam se preocupar com as crianças. Que exemplo é esse? Que barbaridade é essa?”.

INTERROGADOR: Que ídolo decepcionou você quando visto de perto?

SRA. JONES: “Quando me apresentaram a David Bowie, a quem sempre imitei muito, eu esperava que ele fosse mais alto do que eu. Não era. Isso é decepção?”.


INTERROGADOR: De quem você sente uma inveja inconfessável?

SRA.JONES: “A minha inveja é confessável. Fiquei espantadíssima quando Caetano Veloso disse que tinha inveja de mim. Porque eu é que tenho muita inveja de Caetano, há muito tempo, desde que eu o conheci. Aquela voz,aquele jeito de falar e de tocar, as letras...Invejoso que inveja outro invejoso tem cem anos de inspiração. Confesso : “Caetano, morro de inveja de você....”

“EU ESTAVA IMITANDO UMA CANTORA NO PALCO – E DEBOCHANDO.E ELA NA PLATÉIA! PODERIAM AO MENOS TER ME AVISADO!”


INTERROGADOR: Qual foi a última maldade que você fez?

SRA. JONES: “A última maldade que fiz para mim não é bem uma maldade. Era um filme que continuava no repeteco, até janeiro de 2006, quando fui para um hospício e decidi parar realmente com drogas. Porque droga era uma história antiga: você vai parar no hospital, acham que é suicídio. Mas não é suicídio, nunca foi: era overdose mesmo! Eu fazia limpeza, saía bonitinha, “paz e amor” . Depois que minha neta nasceu - e me vi nesse repeteco de filme -, achei tão careta esse rancinho que falei: “Quer saber? Não quero, chega, não quero!” (faz voz de desdém). Eu estou considerando que a caretice pode ser a maior loucura de todas!

Quanto a maldades com os outros: eu estava imitando uma cantora no palco e debochando. E ela estava na platéia! Que “micão”! Poderiam ao menos ter me avisado! Terrível. É esquisito até hoje. Ajoelho e peço perdão....”

( a sra. Jones prefere não citar publicamente o nome da cantora de quem se arrepende de ter debochado, mas o interrogador apurou, com cem por cento de certeza, que o alvo era Fafá de Belém).


INTERROGADOR : Que causa faria você liderar uma passeata hoje?

SRA.JONES: “Liderar passeata? Não gosto muito de artista que carrega plataformas ideológicas. Por exemplo: aquela coisa de Bono Vox ficar com discursinho de salvar o mundo é marketing. Botar terçinho no microfone...Não venha com esse discursinho”.


INTERROGADOR: Com que parceiro você gostaria de ter escrito uma música mas não teve a chance?

SRA. JONES: “Eu e Chico Buarque somos eramos de turmas diferentes. Chico se expressa muito bem no feminino. Eu gostaria de brincar com “aquellos ojos verdes” (cantando). Juro que eu não vou paquerar! Sou uma mulher casada! Não é assim. É ver no que é que vai dar. São tribos diferentes: Chico é MPB, tem um lado de literatura e uma importância política, porque dá opinião. Eu sou uma alienada total disso. Quem sabe se não dá uma boa “liga” ? Gostaria de tentar! E outro de quem gosto também é Chorão - do Charlie Brown Jr. Gostaria de brincar com ele também”.



“OS MUTANTES PERDERAM O DEBOCHE”


INTERROGADOR: Para efeito de registro: você pediu para sair dos Mutantes ou foi demitida do grupo?

SRA. JONES: “Fui expulsa. Tínhamos uma comunidade na Cantareira. Cheguei um dia, para ensaiar, com meu jipinho. O que encontrei na sala de ensaio foi um clima de “enterro”. E o comunicado: “Nós vamos seguir a linha progressiva, tipo Yes e Emerson, Lake and Palmer. Você não tem o virtuosismo para instrumentos.... Então, vai ficar fora.”

A facada no coração da Virgem Maria....(aqui,a sra. Jones passa a se referir a si própria na terceira pessoa): Ela segurou a pose e disse: “Legal.” Pegou os instrumentinhos e foi embora no jipe.

Mas, na primeira esquina, eu desabei (a sra. Jones volta a falar na primeira pessoa, faz voz de choro para ilustrar o que sentiu ao receber a notícia de que, a partir daquele dia, estaria fora dos Mutantes) Doeu muito, doeu muito. Chorei tanto, xinguei tanto...

Eis-me aqui, hoje: acho que foi um presente dos deuses ter sido expulsa dos Mutantes. Porque, modestamente falando, depois que saí, eles perderam o tempero. Os Mutantes eram o deboche, eram tropicalistas. A gente estava no meio do Caetano, Gil e Tom Zé, ali, aprendendo o Brasil de Chacrinha e Carmen Miranda, tudo aquilo que me foi oferecido, toda aquela riqueza. Sou filha de gringo! ( o pai da sra. Jones é americano). Os Mutantes perderam o deboche para copiar gringo e fazer música progressiva...”.


“EU PAGO O MEU GERIATRA, MAS NÃO FAÇO “REVIVAL””

INTERROGADOR: Você já disse que seus ex-companheiros dos Mutantes parecem hoje velhinhos em busca de dinheiro para pagar o geriatra...

SRA JONES: “....Desculpe interromper, mas é que desconfio de revivals. Sempre desconfiei! Porque uma coisa é você fazer um trabalho novo a partir de um gancho do passado. Não é assim que acontece: o revival é um bando de velhinhos espertos ,sim, tentando descolar grana para pagar geriatra! Eu pago o meu geriatra, mas não faço revival. Não vou fazer revival de Mutantes, mas nem a pau,a não ser com uma boa grana....”

INTERROGADOR: Você já calculou, então, quando é que vai procurar o geriatra para uma primeira consulta?

SRA.JONES : “Estou gostando muito de envelhecer. Sou capricorniana.Dizem que capricorniano nasce velho e vai rejuvenescendo com o tempo. Já digo “sessenta anos”. Mas vou fazer cinquenta nove. Acontece que cinquenta e nove é velho. O sessenta já zera tudo - e é mais chique. Então, meus geriatras: aguardem-me! Vou botar fogo nesse asilo! Um grupo do meu tempo se chamava “Os Velhinhos Transviados”. Eu era criança quando eles iam a um programa da TV Tupi, chamado “Almoço com as Estrelas”. Com meus oitentinha e noventinha, vou tascar fogo no asilo - e recuperar os velhinhos com suingue...”.

“TENHO CONSCIÊNCIA DE QUE ABRIMOS ESTRADAS E AVENIDAS – E A MOÇADA DESFILA POR ELAS”

INTERROGADOR : Você já reclamou duramente de um crítico que atacou os artistas que surgiram nos anos 60 e hoje estariam decadentes. Se uma candidata à roqueira lhe procurasse hoje e pedisse um conselho, você se sentiria ofendida?


SRA.JONES : “Por que me ofenderia? Tenho consciência de que abrimos estradas e avenidas - e a moçada desfila por elas. Um crítico disse que um trator deveria passar por cima de mim...Fino, não? Nossa vingança é assim: os críticos passam.

Em meus tempos de jovem, o ditadinho que corria em São Paulo era : “Para fazer rock-and-roll é preciso ter culhão!”. Eu não entendia bem aquilo! Falei: “Faço rock com meus ovários, com meu útero, querido!”

É um ditado que já não vale. Porque a gente vê meninas que são “band leaders”, compositoras, cantoras e instrumentistas. O único conselho que eu daria é: façam música!
Adoro fazer. A inspiração vem da alma. Não marca hora. É uma muito solitária. Ainda que se faça a dois, é uma única solidão. Duvido que um dia eu vá falar: “Ah,Não vou mais compor.”

Duvido!”.


Posted by geneton at junho 9, 2007 05:46 PM
   
   
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