junho 05, 2008

BERT KEIZER, O MÉDICO QUE MATA ( SE O PACIENTE PEDIR PARA MORRER)

Relato de um encontro com um personagem fascinante: o médico-filósofo que tenta salvar vidas mas , a pedido dos pacientes, pode também ajudá-los a morrer

CENA 1.EXTERIOR DIA. AMSTERDÃ, HOLANDA

O Dr.Morte anda por uma rua chamada Vondelstraat, no centro de Amsterdã, numa bicicleta de aros cor de prata. Veste um casaco de couro preto. Os cabelos, embranquecidos pelos cinqüenta e nove anos, estão ralos. Os óculos de aros finos ampliam um olhar inquisidor. O céu encoberto por nuvens escuras dá à paisagem um toque apropriadamente melancólico.

Depois de prender a bicicleta a um poste com uma corrente, numa atitude que revela uma precaução exagerada, o Dr. Morte caminha para o encontro marcado com o entrevistador.

CENA 2. FLASH BACK: O AVISO DA CIGANA

Pausa para uma digressão: a visão da bicicleta de aros cor de prata evoca a lembrança da única consulta que fiz a uma cigana, a serviço de uma edição especial do Almanaque Fantástico, em 2005. A Cigana Esmeralda disse que eu tomasse todo cuidado antes de viajar em carros prateados, porque as cartas do baralho que ele manuseava diante de meus olhos descrentes revelavam que havia risco de um grave acidente. Problemas no freio. Mas ela nada disse sobre bicicletas de aro prateado circulando sob o céu de chumbo de Amsterdã. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres, sopra-me com uma voz claudicante: “Vá em frente! Sinal verde para a entrevista”

CENA 3. PEQUENA INTERVENÇÃO DO NARRADOR

É bom prestar toda atenção ao que este homem diz. Porque o que ele diz tem tudo a ver com o destino de cem por cento dos seres humanos: a morte. Não é recomendável fazer de conta que o assunto não é fascinante. Porque é. Não adianta chamar o assunto de “mórbido”, “deprimente”, “lastimoso”, “incômodo”, “desagradável”. É bobagem recorrer a este velho arsenal de adjetivos, porque eles, no fim das contas, servem apenas como desculpa para que não se encare um fato irrevogável: um dia, o planeta seguirá existindo sem nossa presença.

“Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a idéia morte faz que com tudo passe a valer a pena. E torna tudo impossível, também. É, portanto, um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas!”, ele diria, durante nossa entrevista. “Não, eu não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”.

CENA 4. O PERSONAGEM PRINCIPAL ENTRA EM CENA

Hora das apresentações. O homem se chama Bert Keizer. É um caso raro de médico que é filósofo. Ou filósofo que é médico. Formou-se em Filosofia na Inglaterra. Em seguida, decidiu estudar medicina, na Holanda, no início dos anos setenta. Formado, passou uma temporada no Quênia. Desde o início dos anos oitenta trabalha com pacientes terminais.

Pai de um casal de filhos, Bert Keizer pratica eutanásia, quando um paciente terminal lhe pede. Ou seja: ajuda o paciente a morrer. O debate jamais terminará: um médico – o profissional encarregado de zelar a todo custo pela vida – deve ou não apressar a morte de um paciente? Deve, sim, se médico e paciente estiverem na Holanda. Keizer faz um cálculo aproximado: já deve ter tratado de cerca de 1.500 pacientes terminais. Destes, 25 optaram pela eutanásia. Pediram – e receberam – ajuda do médico para que morressem logo.

A bem da verdade, é injusto chamar Keizer de “Doutor Morte”. O médico-filósofo pratica, sim, eutanásia, a pedido de pacientes, mas é incapaz de pronunciar uma palavra de simpatia à morte. Prefere, sempre, oferecer consolação e alívio a quem vê o apagão final se aproximar.

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CENA 5: DE COMO O MÉDICO SE TORNOU UM SUCESSO EDITORIAL

Durante anos, Keizer fez anotações sobre a morte. Nunca publicara nada. Um dia, resolveu reunir as anotações num livro, publicado por uma pequena editora holandesa. Sucesso imediato. O texto do médico-filósofo é envolvente, inspirado. Não resvala jamais na pieguice. Uma grande editora inglesa se interessou pela aventura literária do médico, uma espécie de Drauzio Varella holandês. O livro “Dancing With Mister D” (“Dançando com a Sra. Morte”) fez sucesso na Inglaterra. Boa notícia: vai ser publicado no Brasil pela Editora Globo

Neste momento, o narrador passa a palavra para o médico-filósofo. O que ele diz nos ajuda a falar sobre o indizível, a entender o incompreensível.

CENA 6. O NARRADOR SAI DE CENA. CLOSE DO MÉDICO – QUE FALA OLHANDO PARA A CÂMERA

“ Nem sempre é possível salvar vidas. Uma das coisas que devemos lembrar é que a porcentagem de pessoas que morrem é de cem por cento! Todo mundo vai morrer um dia. A medicina tenta nos afastar da morte. Mas não funciona. Porque todos nós temos de morrer.

Uma das razões por que entrei na Medicina foi a vontade de procurar formas de diminuir o sofrimento alheio. Ao insistir, por exemplo, em lançar mão de recursos tradicionais, a Medicina pode até aumentar o sofrimento de quem se aproxima da morte. Mas o médico pode diminuir o sofrimento se tiver a coragem de encarar o fato de que aquela pessoa vai morrer. Assim, ele poderá transformar este processo em algo suportável”.



“O que ocorre na eutanásia é que você dá ao paciente um comprimido para dormir. Barbitúricos . Você não dá em forma de comprimido. Dá em forma de pó, dissolvido em glicerina e álcool. É uma poção, um drinque. Metade de uma xícara de café. Você dá. O paciente bebe. Em um, dois minutos, minuto, adormece. Não morre: adormece. Você, médico, faz uma promessa ao paciente: se ele, depois de adormecer, não tiver morrido depois de cerca de quarenta e cinco minutos, você dará uma pequena injeção letal, uma substância que se usa em cirurgias. Mas o paciente sabe que, quando tomar o comprimido dissolvido, morrerá. Se o paciente não puder engolir, você dará uma injeção, para administrar os barbitúricos. Também neste caso, os pacientes,primeiro, adormecem. Depois, morrem durante o sono. Parece terrível, mas não é uma maneira ruim de morrer.

É cair no sono na melhor das companhias”

CENA NUM QUARTO DE HOSPITAL: O MÉDICO ESPERA PELO SUSPIRO FINAL DA MULHER QUE TINHA PEDIDO PARA MORRER. MAS ELA DIZ: “AINDA ESTOU PENSANDO....”


“Aconteceu uma vez com uma senhora que tinha tomado esta poção de barbitúricos. Eu e a filha desta mulher estávamos em pé, ao lado da cama, à espera do momento em que ela adormecesse e, em seguida, morresse. A mulher sentiu esse silêncio, notou nossa expectativa de que ela perdesse a consciência. Neste momento, ela nos disse: “Ainda estou pensando....”, o que foi, realmente, engraçado. Mas sei que ela tinha a sensação de estar deslizando rumo a um abismo. Mas o que ela disse trouxe alívio para aquele momento.

EUTANÁSIA SÓ EXISTE QUANDO O PACIENTE, CONSCIENTE, PEDE PARA MORRER. QUALQUER OUTRO CASO NÃO É EUTANÁSIA: É MEDICINA PALIATIVA


“Aqui, no meu país, a eutanásia é definida como “suicídio assistido por um médico”. Ou seja: o médico dá a você uma overdose, em caso de sofrimento insuportável sem qualquer perspectiva de recuperação. O médico pode, ao invés de dar a dose a você, administrá-la ele mesmo, se você pedir. Isso é que é eutanásia.

Mas as pessoas têm idéias confusas sobre a eutanásia, porque pensam que é o que ocorre quando, ao tratar de um paciente terminal, que entrou mais ou menos em coma, o médico dá a ele uma dose extra de morfina, para que ele morra um pouco mais rápido. Isso não é eutanásia! Isso é tratar de um paciente terminal. Para nós, o pedido feito pelo próprio paciente para que se pratique a eutanásia é fundamental.
Para que haja eutanásia, é preciso que alguém, em plena consciência, peça para morrer. Somente nestes casos, a eutanásia é possível. Em todos os outros casos, fala-se de medicina paliativa. Ou seja : o bom tratamento de um
paciente terminal”.

UM INSTANTE DE DÚVIDA: DEVERIA OU NÃO TER AJUDADO UM HOMEM “COM RAIVA DA VIDA” A MORRER ?


“Em me lembro de um caso de eutanásia que me deixou intrigado...Um homem me fez ajudá-lo a se suicidar. Era um doente terminal de câncer de pulmão. Ia morrer. Mas ele fez aquilo com raiva. Estava com raiva dos médicos que o trataram, porque ele pensou que seria curado. Mas os médicos não o curaral. O homem ficou, então, furioso. Nesta raiva, ele contou com minha ajuda para se “vingar” da vida. Hoje, acho que é errado, não é um ato equilibrado de um homem sábio, mas um ato raivoso de um homem ferido. Não me sinto bem com relação a este caso”.

O MEDO ÍNTIMO DO MÉDICO QUE MATA: MORRER NAS MÃOS DE UM MÉDICO INÁBIL

“Tenho medo da extinção, sim. Isso me preocupa. Mas,biologicamente, sei que não existe escolha. Tenho também medo de morrer nas mãos de um médico que não saiba como cuidar de mim. Ou seja: um médico que continue tirando raios-x, em vez de me consolar e me dar analgésicos.

Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a morte faz com que tudo valha a pena. E torna tudo impossível. É um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas”.


SÓ HÁ DUAS MANEIRAS DE PENSAR NA MORTE. UMA É BOBA. A OUTRA É ESTÚPIDA

“Há duas maneiras de pensar na morte. Você pode pensar na morte o tempo todo, o que é uma bobagem. Também pode não pensar nunca, o que é igualmente estúpido. É difícil encontrar um meio termo. Há quem diga que perco tempo demais me preocupando com a morte. Mas, quando a gente envelhece, estatisticamente passa a ficar mais próximo da morte do que quando tínhamos quinze anos, por exemplo. Não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”

NÃO SE PODE OLHAR DIRETAMENTE PARA O SOL. NEM PARA A MORTE: “A GENTE NÃO PODE ENCARAR O NADA”


“Penso em La Rochefoucauld – que disse: “Não se pode olhar diretamente para o sol - ou para a morte”. É verdade: a gente não pode encarar o Nada, assim como não pode treinar os olhos para encarar o brilho do sol. Não se pode olhar para o Nada. É um abismo. Nem os que estão se aproximando da morte olham para ela! Pelo contrário. Preferem olhar para os que estão próximos e dizer: “Obrigado”, “aproveite”, “você é inesquecível”.

A morte é, portanto, uma daquelas condições que não podemos imaginar. Podemos, por exemplo, olhar para a noite passada. Ali, estávamos “mortos”. Porque estar dormindo sem sonhar é como estar morto. É o que todo mundo faz toda noite. Não é nada de grandioso. Mas o medo de uma situação irrecuperável – o “não-ser” – é uma das piores coisas sobre as quais temos de pensar. Porque não podemos imaginar o universo sem nós. A gente pensa: se morremos, todo o universo morre. É inimaginável que as coisas continuem depois”


A GRANDE SÁIDA É IMAGINAR: “DURANTE MILHÕES DE ANOS NÃO ÉRAMOS NASCIDOS. ISSO NUNCA FOI UM PROBLEMA PARA NÓS!”


“A vida não é perfeita. O que acho que serve de consolo é o fato de que podemos olhar para a morte com alguma distância, com clareza. Não se pode viver sem ilusões. Mas deve-se ter o menor número possível de ilusões. A tarefa de se livrar das ilusões é a Filosofia. Buscar a clareza na vida é uma atitude que nos ajuda a combater o pessimismo. A filosofia é uma maneira de criar clareza sobre nossas confusões.
É impossível contemplar o nada, o não-ser. Mas devemos pensar nos milhões de anos em que não éramos nascidos. O fato de não termos existido antes não é um problema para nenhum de nós. Qualquer criança pode entender!
É algo que não incomoda a ninguém. Mas aí nós nascemos, vivemos por sessenta anos – por exemplo - e morremos. Por milhões de anos adiante, estaremos mortos. O fato de não termos existindo antes não é um problema, mas o fato de que estaremos mortos por milhões de anos adiante nos incomoda! É engraçado este incômodo, porque não faz sentido. Creio que este incômodo acontece porque, neste caso, estamos falando de nossa própria morte, algo que não podemos imaginar. Não podemos nos imaginar não estando aqui!

Mas, antes de nascer, você esteve morto por milhões de anos. Isso não foi nada difícil. Ou foi ? Claro que não”.


Posted by geneton at junho 5, 2008 01:55 PM
   
   
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