julho 03, 2014

HORA DE MANDAR FLORES PARA OS NÁUFRAGOS DE 1950

Uma canção anarquista italiana pede que se mandem flores para os rebeldes que fracassaram. Os jogadores que falharam também merecem flores. Por que não?

A história do futebol é feita de gloriosos tropeços. É hora – então - de mandar flores - tardias – aos personagens do mais espetacular naufrágio já registrado na história do futebol brasileiro: a derrota do Brasil para o Uruguai, na decisão da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã.

Por que os náufragos de 50 merecem flores? Porque – justiça se faça – aqueles jogadores deram ao futebol brasileiro o primeiro título internacional de importância: o vice-campeonato mundial. Bem que merecem uma anistia ampla, geral e irrestrita.

A derrota diante do Uruguai foi tão traumática que poucos se dão ao trabalho de notar que, ali, o Brasil começou a despontar como “potência futebolística”. Mas o que aconteceu? Em vez de serem reconhecidos, os jogadores foram crucificados.


Tive a chance de entrevistar os onze jogadores brasileiros que entraram em campo, no Maracanã, para a festa que não houve. Havia uma mágoa generalizada: os jogadores lamentavam que, aqui no Brasil, o título de vice-campeão “não vale nada”.

O estigma da derrota de 1950 os acompanhou até a morte. Mas nunca é tarde para mandar flores para os rebeldes que falharam – ou para os náufragos que erraram. ( É claro que erraram: os jogadores, confessadamente, entraram em campo achando que iriam golear o Uruguai. O “excesso de otimismo” foi fatal. Mas não mereciam carregar a cruz que carregaram pelas décadas seguintes ).

NUNCA MAIS, NUNCA MAIS

O naufrágio brasileiro de 16 de julho de 1950 ganhou o status de mito porque é um daqueles acontecimentos que jamais se repetirão.

Jamais o Brasil jogará pelo empate numa decisão de Copa do Mundo ( as regras mudaram: naquele tempo, quatro países disputavam um quadrangular final. O Uruguai tinha vencido a Suécia – 3 a 2 – e empatado, no sufoco, com a Espanha – 2 a 2. Tinha, portanto, um ponto a menos que o Brasil – que vinha de dois passeios históricos: 7 a 1 sobre a Suécia e 6 a 1 sobre a Espanha. Por “artes do destino”, a tabela previu Brasil x Uruguai como última partida ). Jogar pelo empate numa decisão de Copa? Nunca mais, nunca mais.

Jamais o Brasil jogará novamente diante de 200 mil torcedores. Os estádios, desde então, encolheram ( o público pagante de Brasil x Uruguai foi de 173.850. Calcula-se que os não-pagantes levaram o total a cerca de 200 mil. É uma marca extraordinária: nada menos de 10 % da população do Rio de Janeiro na época, estimada em 2 milhões e 300 mil pelo censo de 1950). Quando é que 10% da população de uma grande cidade brasileira irão a um estádio para assistir a um jogo de futebol? É fisicamente impossível. Nunca mais, nunca mais.

O que parecia impossível, naquele domingo de julho, era uma derrota brasileira. Como para mostrar que não se contentaria com um mero empate, o Brasil fez um a zero, logo no primeiro minuto do segundo tempo: gol de Friaça. A taça estava na mão. Só uma catástrofe impediria a festa. Mas o impossível aconteceu: o Uruguai fez 2 a 1, gols de Schiaffino – aos 25 minutos – e Ghiggia, aos 34, naquela arrancada inesquecível que alvejou o sonho brasileiro de glória com um tiro seco e certeiro.

Como bem lembrou o jogador Juvenal, o Brasil, ali, foi campeão do mundo três vezes: quando o placar estava zero a zero, quando estava um a zero para Brasil e quando estava um a um. Três chances imperdíveis! Mas, não. Brasil, campeão do mundo de 1950? Never more, never more - diria o corvo do poema de Edgar Allan Poe.

BRASIL : A TERRA DA REINVENÇÃO

Pelas décadas seguintes, 1950 virou sinônimo de maldição para o Brasil. Aquela decisão deixou de ser um acontecimento meramente esportivo. Terminou produzindo ressonâncias históricas, sociológicas, psicológicas, antropológicas.

O Brasil x Uruguai deixou de ser um jogo. Virou uma lenda. Por quê? Pode-se arriscar uma explicação.

O Brasil – país periférico, agrário, subdesenvolvido - tinha, ali, uma grande chance de mostrar que poderia ser o melhor do mundo num esporte que já apaixonava o planeta. Mas veio o Uruguai, vizinho pequeno e incômodo, para acabar com a festa. Era como se a ambição de grandeza fosse desmentida, no último momento, por um acontecimento inesperado – algo que se repetiria em outros momentos de nossa história ( guardadas as proporções, quem não se lembra da noite de 14 de março de 1985? Tancredo Neves, o primeiro presidente civil depois de duas décadas de poder verde-oliva, vai parar no hospital, trêmulo de febre, horas antes de tomar posse. Só subiria a rampa do Palácio do Planalto morto. E o que dizer da saga de Ayrton Senna – naufragando na curva Tamburello a caminho do título de tetracampeão de Fórmula-Um ? ).

O Brasil teria também, em 1950, a chance de celebrar um traço fascinante do caráter brasileiro: a capacidade de reinventar o que foi trazido de fora. O futebol não é uma invenção brasileira: os ingleses é que o trouxeram para os gramados tropicais. Mas o Brasil teve a capacidade de reinventá-lo – a ponto de “futebol brasileiro” virar uma instituição reconhecida em todo o planeta como sinônimo de “futebol arte” ( aquilo que os europeus chamam de “beautiful game”). A chance se perdeu. ( Igualmente, o Brasil não inventou a música popular – mas foi capaz de produzir um “som brasileiro” que corre mundo ).

O ÚLTIMO GRANDE ACONTECIMENTO DA ERA PRÉ-TV: A IMAGINAÇÃO OCUPA O LUGAR DOS FATOS

O Brasil x Uruguai ganhou status de lenda, também, porque foi pobremente documentado em imagens. Poucos atentam para um fato importante: a Copa de 1950 foi o último grande acontecimento brasileiro antes da chegada a televisão ao país ( a TV Tupi foi inaugurada no dia 18 de setembro de 1950, dois meses e dois dias depois da final Brasil x Uruguai ).

Se aquela partida tivesse sido disputada na era da TV, não sobraria espaço para qualquer dúvida: as imagens documentariam tudo. Basta ver o que acontece nas transmissões de hoje. Mas o que ficou do drama de 1950? Imagens fragmentadas. Não há um registro da partida inteira. Sem as imagens, entram em campo a lenda e a imaginação. O fato dá lugar à fábula.

Como disse Paulo Perdigão, um dos espectadores de 1950 e autor de Anatomia de uma Derrota, o Brasil x Uruguai de 1950 “é um mito fabuloso que se conserva e se agiganta na imaginação popular”.

Talvez esteja aí um dos motivos do fascínio exercido pela Copa de 50: o Brasil x Uruguai não é uma história fechada, lacrada, indiscutível. É um mito que vai passando de uma geração a outra de brasileiros, como símbolo do que o esporte pode ter de mais fascinante e mais dramático: a capacidade de repetir o que a vida pode ter de inesperado, imprevisível, incontrolável.

O Brasil x Uruguai de 1950 parece revelar dois traços do comportamento brasileiro. Um: a imensa dificuldade de aceitar uma derrota. Dois: a extraordinária capacidade de superar um trauma ( depois do naufrágio, como se sabe, vieram cinco títulos mundiais. Não por acaso, os fantasmas de 1950 sempre voltam ao noticiário em época de Copa de Mundo ).

É hora de entregar – simbolicamente – flores para os náufragos do Maracanã: a seleção brasileira que disputou a Copa de 50.

Minha expedição em busca dos onze jogadores brasileiros produziu dois resultados: o livro “DOSSIÊ 50” - agora relançado, em papel, pela Editora Maquinária e, em edição digital, pela E-Galáxia - e um documentário, produzido pela Globonews: “Dossiê 50: Comício a Favor dos Náufragos”. O livro traz todos os depoimentos na íntegra, sem cortes.

Hoje, “estão todos dormindo”, como diria o poeta Manoel Bandeira. Os jogadores de 1950 não viveram para ver o Brasil tentar novamente conquistar, em casa, um título mundial.

Se eles estivessem aqui, bem que o repórter poderia procurá-los de novo. Iria encontrar o goleiro Barbosa, como encontrei, numa roda de amigos numa loja de instrumentos de pesca, numa tarde suburbana em Ramos, Rio de Janeiro:

“A vida tem dessas coisas: o atacante perde dez, vinte gols, mas, se faz um gol numa vitória de 1 a 0, é considerado herói. Já o goleiro, coitado, faz defesas durante 89 minutos, mas, se leva um gol no último minuto, é tido como o carrasco. É assim a vida da gente ( ....) A derrota pesou, porque o título de campeão do mundo pela Seleção Brasileira é o único que consegui na minha carreira. A maior lição que um homem pode tirar de uma derrota é usar os ensinamentos que ela traz, como a necessidade de ser humilde e a capacidade de reagir para procurar uma vitória maior. Cheguei a uma conclusão depois daquela Copa: a humildade é uma das coisas mais sublimes. Minha vida mudou depois de 50. Eu me julgava um sujeito prepotente. Depois, cheguei à realidade: vi que somos o que somos – nada mais! (...) A única coisa que me magoou foi o sujeito não respeitar o meu título de vice-campeão do mundo”.

O zagueiro Augusto – que, como capitão do time, ergueria a taça de campeão do mundo se o Brasil tivesse vencido – recordaria, em casa, na Tijuca:
“Várias vezes sonhei com aquele jogo contra o Uruguai. O placar era sempre diferente, no sonho. A gente ganhava, eu levantava a taça. Quantas vezes eu sonhei....(...) A derrota que ficou foi a de 50. Fui chamado de traidor! Aliás, todos nós: “traidores da pátria” ! Isso saiu nos jornais! Tive essa mágoa da imprensa. Não merecíamos ser tratados desse jeito. Éramos ídolos até a véspera do jogo”.


Juvenal diria, numa mesa de bar, em Salvador:
“A agitação para a final começou já na concentração. Políticos apareciam para tirar foto: um queria ser presidente, outro queria ser governador, outro queria ser vereador...Quando a política se mete no meio, acaba com o futebol. Porque no Brasil só existem três coisas: carnaval, política e futebol.(...) Eu me sentia um soldado defendendo o país. Não é só numa guerra que se defende o país: é nas disputas esportivas também. Perder aquele jogo contra o Uruguai foi como perder uma guerra”.

Bauer constataria, em São Paulo:
“O que aconteceu em 1950 foi o seguinte: nós, os jogadores, fomos envolvidos pela euforia geral durante aqueles três dias – sexta, sábado e domingo. O Brasil já era campeão. O problema, então, foi esse ( ...) Dizem que Bigode levou um tapa. É mentira! Coitado de Bigode, não pode estar numa roda de amigos, porque logo dizem: “Levou – ou não levou – um tapa na cara...”. Ora, se Obdúlio Varela, capitão do Uruguai, desse um tapa na cara de Bigode, no Maracanã, o jogo não terminaria! O time brasileiro iria, todo, para cima de Obdulio Varela!”.

Num apartamento na Lapa, no Rio de Janeiro, o “príncipe” Danilo falaria do assédio:
“Durante toda a semana, estivemos com vários políticos, porque era época de eleições. A gente tirava fotos, conversava com eles. Mas nunca vi uma dessas fotos que nós tiramos, nunca vi ninguém fazer propaganda eleitoral com elas. Depois do jogo contra o Uruguai, devem ter rasgado e jogado fora as fotografias (...) Depois de tudo, quando consegui chegar em casa, foi um problema descer do carro. Quando saltei, parecia que tinha chegado o presidente da República. Vaias, vaias. Era eu. Tive de sair do Rio”.

O lateral Bigode sofreu duplamente com a derrota. Primeiro, foi crucificado porque não interrompeu o avanço do ponta Ghiggia com a bola, no lance do gol. Depois, porque teria levado um tapa de Obdulio Varela, capitão do Uruguai – uma humilhação extra para o Brasil. Mas o tapa parece ser uma calúnia - que Bigode repelia com ardor sempre que se tocava no assunto. Não há imagens para tirar a dúvida. Mas, como bem lembrou Bauer, é improvável que o capitão uruguaio tivesse a ousadia de estapear um jogador brasileiro, numa final de Copa, no Maracanã. Bigode diria:
“Não houve agressão nenhuma de Obdulio Varela! A injustiça maior foi esta, contra mim. Eu sinto até hoje. É uma covardia o que fizeram. Uns dizem que Obdulio Varela cuspiu. Outros, que foi um tapa e eu não reagi. Não houve reação porque não houve agressão! O que aconteceu foi que Obdulio Varela deu um tapinha em mim, pelas costas, para pedir calma. Veio me dizer: “Muchacho, calma!” (...). De uma vez por todas: Obdulio Varela deu um tapinha aqui no meu pescoço para pedir calma. E eu estava olhando para o juiz – para ver se ele iria me expulsar, depois de uma entrada que eu tinha dado num uruguaio. Tentaram me jogar na sarjeta, mas não deixei”.


O ponta-direita Friaça realizou o sonho de todo brasileiro: fazer um gol no Maracanã superlotado, numa decisão de Copa do Mundo. Diria, em Porciúncula, no interior do Rio:
“O trauma da derrota foi enorme. Vim para o Vasco. Fiquei, em companhia de outros jogadores, andando de noite, em volta do campo, ali na pista. O assunto era um só: como é que a gente foi perder? Só me lembro que a gente subiu para o dormitório. Eram umas onze da noite. Tirei a roupa e me deitei. Não me lembro de nada do que aconteceu depois. Quando dei por mim, por incrível que pareça, eu estava em Teresópolis. Só sabia que estava debaixo de uma jaqueira. Não sei como é que saí com meu carro da concentração”.

Zizinho, apontado pela crônica da época como supercraque, chamaria atenção para o papel dos jornalistas:
“A imprensa também cooperou com aquele clima todo de carnaval antecipado. Afinal, quem montou a foto do “Brasil, campeão do mundo” no dia da partida contra o Uruguai foi um jornal. Aliás, a relação com a imprensa mudou nas Copas seguintes. Antes, um jornalista chegava à concentração para fazer uma matéria para o jornal que teria de ficar pronto daqui a pouco. A gente tinha de acordar para fazer a matéria!(...) Houve uma invasão na concentração em São Januário, na véspera do jogo. Não houve concentração para o jogo contra o Uruguai. Não mesmo! Cansei de assinar autógrafos como “Brasil, campeão do mundo”. São Januário estava lotado de gente. Aquilo não era uma concentração: era uma batalha de confetes! (...) Depois, o general Mendes de Morais, prefeito da cidade, jogou essa história em cima da gente: “Dei o estádio a vocês. Agora, quero de vocês o campeonato!” ( as palavras exatas do prefeito são estas: “Cumpri minha promessa construindo este estádio. Agora, façam o seu dever – ganhando a Copa do Mundo”)...Tive vontade de abandonar o futebol depois da Copa do Mundo. Quando ia dormir, tinha um pesadelo. Pensava que o jogo não tinha começado”.


Ademir entrou para a história como o maior artilheiro do Brasil numa Copa do Mundo: nove gols em seis jogos, marca até hoje não superada. Fui encontrá-lo no apartamento em que vivia, em Copacabana. Uma estante exibia troféus que recebeu do Uruguai:
“A Seleção de 50 foi injustiçada. Porque segundo lugar para o Brasil não serve. Quando um amigo me apresenta ao filho, diz: “Ademir – o que jogou na Copa de 50. Sempre dizem: é aquele que perdeu para o Uruguai, no Maracanã ( ...) Tive uma oportunidade de fazer um gol no final. Se sai o gol ali, o Brasil seria campeão. Eu iria me candidatar a deputado, hoje seria ministro de Estado...”.

Jair Rosa Pinto estava na Tijuca, cercado de crianças de uma escolinha de futebol:
“Meu único pensamento, no vestiário, era: “Perdemos a Copa do Mundo!” . Nessa hora, não se olha nem para o companheiro. Porque ele estava chorando. A gente nem pensa na torcida – porque você é que vai receber o diploma de campeão do mundo- não é o torcedor. Você pensa: “Duzentas mil pessoas! E perdemos o campeonato do mundo! “. É difícil. Então, você atravessa aquele túnel, chega ao vestiário, tira a roupa e começa a chorar”.

O ponta-esquerda Chico remoía as lições deixadas por aquele domingo que parecia não ter terminado nunca:
“Tínhamos como certa a Copa do Mundo. Depois da derrota, passamos a ver tudo de outra maneira. Fomos obrigados a aprender o que é o amargor de uma derrota. O maior orgulho de um jogador de futebol é fazer parte do escrete brasileiro – principalmente porque se trata de defender a pátria. Não pude dar a ela o título, mas tenho orgulho de ser vice-campeão. Dei alguma coisa de mim para que, depois, o Brasil fosse campeão”.

Tanto tempo depois, é hora de depositar, em algum recanto do Maracanã, flores imaginárias em homenagem aos que perderam a batalha de 50 mas, por todos os motivos, merecem uma anistia – ainda que tardia.

Posted by geneton at julho 3, 2014 06:32 PM
   
   
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