julho 18, 2014

JOÃO UBALDO RIBEIRO

'ESTOU TRABALHANDO NOS LIVROS DESDE QUE NASCI. EU SÓ SEI ESCREVER'

GMN: Você compraria um livro usado de um político?
João Ubaldo Ribeiro:
Querer transformar os políticos numa casta de pessoas especialmente boas ou especialmente ruins é uma bobagem. Os políticos são parte de nossa sociedade. Não é político nem motorista de táxi nem médico nem nada: somos nós. Como sociedade, somos nós que produzimos esses políticos, esses motoristas de táxi, esses médicos, esses advogados - e esses escritores.

GMN: O Brasil é um país que vive uma crise crônica de identidade. Escrever livros como Viva o Povo Brasileiro é uma maneira exorcizar esses crise?
João Ubaldo:
Você já coloca uma premissa sobre crise de identidade. Acontece que não acho que o Brasil viva uma crise de identidade permanente. Não sei se vive. Mas não penso nessas questões. Quando uma pessoa escreve algo que repercute, há sempre o impulso natural de enquadrar a obra em categorias pré-fabricadas ou pré-moldadas. Mas a realidade é que as coisas não acontecem assim. Não escrevi pensando em identidade nacional nem em coisa nenhuma. Escrevi - simplesmente. Não sei o que é. Viva o Povo Brasileiro não é uma tentativa de entender o Brasil. O que fiz foi escrever um livro. Eu poderia mentir a você abundantemente sobre o que resultou - a partir do que os outros escreveram e pensaram. Mas Viva o Povo Brasileiro é só um romance.

GMN: Você pode viver exclusivamente de literatura. Acabou a fase romântica dos escritores que escreviam "por amor"?
João Ubaldo:
Escrever por amor provavelmente todo mundo sempre escreverá. Não é um problema de amor - a não ser no sentido cósmico da palavra. Dá para viver de literatura. Depende do tipo de expectativa de vida que você tem. Se você é uma pessoa que não tem grandes exigências e não é "transeira", então dá. Vivo decentemente com minha família. Agora, estou escrevendo um livro chamado "O Sorriso do Lagarto". É um romance. Só vou saber como vai ser depois de acabar. Há dois meses trabalho neste livro - mas não sou um burocrata. Os livros se trabalham o tempo todo. Em termos mercadológicos, eu diria que estou trabalhando há dois meses - Mas a verdade é que estou trabalhando nos livros desde que nasci.

GMN: Você tem a imagem de um escritor que vive feliz num ambiente paradisíaco. É a encarnação do baiano bem-humorado e contente. Mas, nos seus livros, você termina transmitindo uma imagem dilacerada e dolorida do povo brasileiro. Você admite que há um choque entre estes dois João Ubaldo?
João Ubaldo:
É invenção! Sou escritor. Você pode extrapolar a partir daí milhões de coisas. Pode achar que sou um privilegiado, um iluminado, um maldito ou qualquer outra expressão que se possa arrolar para designar quem faz um livro. Mas não penso em nada assim - Nem sou mais feliz do que ninguém, a não ser pelo fato de que, por ser uma pessoa sadia, sou mais feliz do que os que não são sadios....Tenho o que comer. Sou mais feliz do que os que não têm o que comer. Mas o fato de morar em Itaparica e andar sem camisa não quer dizer coisa nenhuma. Qualquer um poderia viver assim - se não houvesse tanto tipo de problema.

GMN: O que é que mais envergonha o escritor João Ubaldo Ribeiro no Brasil?
João Ubaldo:
A vergonha é tão circunstancial...Pode-se ficar envergonhado com o time do Vasco da Gama ou com os tipos de políticos que existem. Não se trata de uma questão de vergonha, mas de aspiração a uma condição condigna para todo mundo. Ficar falando "o que mais me envergonha no Brasil" é me colocar numa posição superior a tudo o que acontece quando, na verdade, sou um brasileiro como todos nós outros. Não posso ficar numa posição olímpica e arrogante.

GMN: De qualquer maneira, o ambiente cultural e literário do Rio e de São Paulo não lhe faz falta...
João Ubaldo:
Não. Mas não é que eu esteja dizendo: "Eu estou fugindo!". De vez em quando, eu até sinto falta de conversar com as pessoas. Não tenho uma posição monástica. Não estou vivendo em Itaparica para me isolar. Não tenho raiva desse "ambiente corrupto" ou qualquer outra coisa que pudesse dizer. Não é uma revolta. Não é nada: é apenas uma maneira de viver.

GMN: O que significa exatamente para, para você, a figura de Jorge Amado? A figura onipresente de Jorge Amado na Bahia já foi, em algum momento, algo opressivo para você, como escritor?
João Ubaldo:
Jorge Amado é um grande escritor brasileiro, uma figura importantíssima na nossa história. Por acaso, é baiano, meu amigo, meu compadre. Temos envolvimento emocional. Somos amigos. Nossas famílias são amigas. Nunca foi figura opressiva coisa nenhuma! Quanto a comparações, as pessoas ficam vendo as coisas como se tudo fosse um campeonato de futebol: quem é o melhor jogador, quem é o melhor não sei o quê. É tudo maluquice. Não tem nada a ver com nada!.

GMN: Um personagem de "Terra em Transe" diz que a poesia e a política são demais para um homem só. A política e a literatura são demais para um homem só?
João Ubaldo:
Há os que são capazes de cumprir carreiras simultâneas. Podem ser políticos e literatos. Mas não sei fazer as duas coisas simultaneamente. Só sei fazer o que estou fazendo, o que não impede outras pessoas de administrarem seus talentos de várias formas.

GMN: Qual foi o maior desafio que você enfrentou ao fazer a tradução de Viva o Povo Brasileiro para o inglês? A intimidade com o texto criou algum tipo de embaraço?
João Ubaldo:
Pelo contrário: a intimidade até facilita. O texto já existia em português. E você não pode tentar reescrever ao traduzir. É um fenômeno especial. Penso que este tipo de problema - o próprio autor fazer a tradução - deveria ser discutido em um seminário e não num mero depoimento. É uma questão complicada, porque envolve vários tipos de problemas. O fato de o próprio autor traduzir o livro e a convivência do autor-tradutor com as duas línguas com que ele lida são uma coisa complicada. Não é simples.

GMN: O que é que levou você, então, a enfrentar o tarefa da tradução? A falta de confiança nos tradutores americanos?
João Ubaldo:
Eu já tinha feito a tradução de Sargento Getúlio. Era o meu primeiro livro fora. Fiquei preocupado com a tradução, porque seria difícil fazê-la com americanos que não conhecessem aquela linguagem semi-dialetal. Fiz a tradução, portanto, porque Sargento Getúlio era o meu primeiro livro lançado fora do Brasil. Eu estava tão ansioso que saísse uma coisa boa que me ofereci para fazer a tradução depois que ficou constatado que os tradutores que foram arranjados nos Estados Unidos não tinham condições. Demorei um ano meio traduzindo Viva o Povo Brasileiro. Para escrever o livro, demorei um ano e dois meses. Escrever demorou menos tempo!.

GMN: O João Ubaldo Ribeiro mestre em Ciência Polìtica e Administração Pública pela Southern University of California já se decepcionou com a Nova República ou mantém a esperança?
João Ubaldo:
Temos de manter a esperança. Se não mantivermos, temos de morrer no dia seguinte. Tenho um desalento grave com o Brasil de hoje e com tudo o que acontece. Mas tenho de manter a esperança. Caso contrário, tenho de desistir. A esperança de que alguma coisa aconteça é, talvez, um dado irracional da conduta humana - mas indispensável para que a vida se mantenha.

GMN: O "desalento grave" que você acaba de confessar se manifesta no que você produz?
João Ubaldo:
Uma das coisas mais chatas, quando se trabalha num ramo como este em que trabalho, é você, além de escrever, ter de explicar. Não sei explicar o que escrevi. Você escreve. Quem lê acha o que quer. Se o livro é bom, eu posso ser ruim. Meu livro é meu livro - e não tem nada a ver comigo. Podiam nem me conhecer; eu poderia nunca dar entrevistas. Mas livro existe. É uma entidade em si.

GMN: Que reivindicação você faz à Constituinte em relação a problemas ligados à atividade do escritor no Brasil?
João Ubaldo:
A Constituinte deve ser o arcabouço básico de princípios. Não acredito, então, que a Constituinte deva resolver - como se pensa no Brasil - questões como o tamanho do bigode, quantas relações sexuais se devem ter por semana e como deve se tratar uma pessoa negra, coreana ou japonesa.

GMN: O intelectual deve querer falar em nome do povo?
João Ubaldo:
A pergunta é mal colocada, porque ninguém fala em nome de ninguém. Todas essas coisas envolvem uma opção filosófica e ideológica. Você pode ser um escritor de um grande vezo populista e achar que dá voz ao povo - e, no entanto, este pode ser um gesto de uma profunda megalomania. Ou não. Você pode achar também que o escritor e o artista é aquele que transmite as aspirações. Mas estas são questões secundárias. Quem se preocupa em produzir uma obra artística não fica pensando nestas questões - que só surgem depois, a posteriori, portanto.

GMN: Você faz questão de dizer que não parte de nenhum projeto preconcebido antes de fazer um livro...
João Ubaldo:
Não parto!.

GMN: E se recusa a teorizar sobre a obra depois de produzida...
João Ubaldo:
Sim, porque não é o meu caso. Eu só sei escrever.

(Entrevista gravada em novembro de 1987)

Posted by geneton at julho 18, 2014 12:12 AM
   
   
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