outubro 04, 2013

RAFAEL BELAUSTEGUI

PAI DE TRÊS DESAPARECIDOS POLÍTICOS COMOVE PLATEIA, DIZ QUE JAMAIS PERDOARÁ MILITARES MAS LANÇA O DEBATE: SE “FORÇAS INSURGENTES” TIVESSEM TRIUNFADO, “ESTARÍAMOS DOMINADOS POR MILÍCIAS”, “EMPOBRECIDOS” E “ESTAGNADOS”

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Rafael Belaustegui, pai de três desaparecidos políticos: passagem rápida e comovente pelo Brasil ( Foto: Geneton Moraes Neto)

Onde estão as legiões de ouvintes que deveriam estar aqui e agora para escutar a palavra do homem que é um grande símbolo das vítimas da ditadura militar argentina? Onde estão os militantes para gritar “nunca mais, nunca mais, nunca mais”? Onde estão os neo-rebeldes para bradar “presente!”, enquanto alguém pronunciaria os nomes de Martin, José e Valéria? Onde estão os repórteres com seus blocos de anotações implacáveis, suas perguntas impertinentes e aquela sede por boas histórias? Onde estão todos? “Estão todos dormindo”, diria o poeta. Ou, quem sabe, estão todos mergulhados na estupenda banalidade de um começo de noite de quinta-feira na cidade do Rio de Janeiro, ocupados com a tarefa prioritária de tocar suas vidas. Ah, tocar a vida, tocar o barco, tocar pra frente.

A vida segue assim – mas pequenos grandes acontecimentos podem quebrar a cadeia da banalidade.

Por exemplo: um homem de barba branca por fazer caminha anônimo pelos corredores do Shopping Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, em meio à indiferença de casais que passam apressados para não perder a sessão do cinema, crianças que arrastam as mães para as lanchonetes, jovens que contemplam vitrines recheadas de tênis, fregueses que lotam lojas que vendem celulares. Uma bengala o ajuda na caminhada. Dentro da Livraria da Travessa, ele busca apoio no corrimão enquanto vence os degraus rumo ao acanhado auditório do primeiro andar. Carrega consigo uma pasta plástica esverdeada, em que guarda um texto recheado de emendas e palavras grifadas.

Se soubessem quem este homem é, alguns dos passantes certamente teriam a curiosidade de abordá-lo, porque ele é um personagem extraordinário. Quem sabe, um dos casais que correm para o cinema ou uma das mães que se aboletam no balcão da lanchonete ou um dos jovens que contemplam vitrines ou um dos fregueses que testam celulares teria o ímpeto de ouvi-lo. Mas não, ninguém lhe dirige a palavra. Rafael Belaustegui passa despercebido.

Já o punhado de frequentadores que se instalou no auditório para ouvi-lo, numa sessão da Quinzena de Literatura Latino-americana, sabe quem é aquele homem: o argentino Rafael Belaustegui viveu um drama indizível. É pai de três desaparecidos políticos: Martin, José, Valéria. O primeiro a sumir foi Martin, no dia 26 de julho de 1976, quando completava vinte anos de idade. Valéria – de 24 anos – desapareceu no dia 13 de maio de 1977. Duas semanas depois, no dia 30, foi a vez de José. Os três militavam na clandestinidade contra a ditadura militar instalada em 1976 na Argentina. Valéria estava grávida. Rafael jamais soube o que aconteceu com o neto: pode ter nascido na prisão, pode ter morrido junto com a mãe. A namorada de Martin – nora de Rafael, portanto – também estava grávida quando sumiu. Não se sabe que destino teve o bebê. Além dos três filhos, Rafael perdeu dois netos também, além das noras e do genro. O horror, o horror, o horror, diria aquele personagem de O Coração das Trevas. Uma cena novelesca aconteceu em meio ao massacre: quando foi presa, grávida, Valéria, filha de Rafael, tinha um bebê de um ano e dois meses. O bebê foi levado também. Dias depois, foi deixado numa rua. Trazia um aviso, manuscrito: “Sou filha de Valéria Belaustegui”. Criada pelos avós paternos, Tânia, a neta que escapou da morte, teve, recentemente, filhos gêmeos. Vive nos Estados Unidos.

Rafael viajou de Buenos Aires ao Rio porque acha que falar do desaparecimento dos filhos é uma “missão”. Tive a chance de entrevistá-lo em Buenos Aires, para a Globonews, em 2010. Vivi, na entrevista, uma cena que me comoveu profundamente. Terminada a gravação, Rafael me chamou para uma dependência do apartamento, para que eu visse “os filhos”. Falava como se os três estivessem ali, vivos. Dentro do quarto, ele apontou para a parede: lá estava uma foto ampliada de Valéria, José, Martin e a mãe dos três, Matilde – que morreria, doente, tempos depois. Os filhos eram um retrato na parede. Quando o programa foi ao ar, ele me enviou uma mensagem igualmente comovente: disse que o testemunho que ele me deu na gravação ficaria como “herança” para seus filhos. Sim, Rafael voltaria a ser pai depois da tripla tragédia.

Teve três outros filhos, num segundo casamento. Por uma coincidência inacreditável, os nascimentos seguiram a mesma sequência dos nascimentos dos filhos desaparecidos: uma menina e, em seguida, dois meninos. Detalhe: o intervalo entre os nascimentos dos três filhos do segundo casamento foi igual ao intervalo entre os nascimentos dos três primeiros. Rafael se apressa a dizer que não é místico, mas deixa reticências quando fala da extraordinária coincidência: era como se, por algum capricho inexplicável, a vida lhe desse a chance de começar tudo de novo, depois do mergulho nas profundezas do abismo mais escuro.

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Os três filhos de Rafael e a mulher, Matilde: foto tirada dias antes do primeiro desaparecimento.

Quando Benjamin Magalhães, organizador da Quinzena, me perguntou se eu teria um nome a sugerir, pensei imediatamente na figura deste argentino que, já octogenário, quer falar de Martin, José e Valéria não para espalhar comoção, mas para tocar a consciência de quem o ouve.

Quem perdeu a passagem de Rafael Belaustegui pelo pequeno auditório da Livraria da Travessa deixou de viver um momento memorável. Não há outra maneira de descrever o encontro: a emoção estava “à flor da pele”. ( Repórter deve deixar transparecer a emoção? Em situações normais, talvez não. Mas confesso que hoje, pela primeira vez, não consegui completar uma frase ao falar da saga deste argentino. O nó na garganta foi maior. Aconteceu.)

Como se não bastasse, Rafael acrescentou, à emoção, uma declaração que pode provocar polêmica: disse que é hora de reconhecer que, se as forças insurgentes tivessem tomado o poder nos anos setenta, certamente não implantariam regimes democráticos. Mas, antes que algum ouvinte apressado imagine que ele esteja querendo relativizar a culpa dos militares, Rafael se apressa a dizer que o “terrorismo de Estado” é um “inadmissível” crime de “lesa-humanidade”.

Quem se deu ao trabalho de ir ouvir o pai dos três desaparecidos não se arrependeu ( uma equipe da Globonews foi a única que esteve no auditório, pouco antes do debate, com a repórter Maria Paula Carvalho, a serviço do Jornal das Dez. O outro repórter presente estava a serviço da própria curiosidade: Lúcio de Castro. Pelo que deu para ver, that´s all . Uma dúvida – quiçá razoável – agitava minhas florestas anteriores: e se ali, em vez do pai de três desaparecidos – que se aboletou de Buenos Aires para o Rio unica e exclusivamente para este encontro com brasileiros – estivesse uma daquelas peruas siliconadas que se expõem em realities shows? Com toda certeza, haveria fotógrafos amontoados, algazarra, explosão de flashs. Assim caminha a humanidade).

Perguntado, Rafael Belaustegui jamais se nega a dar detalhes.

O horror começa assim: com um telefonema às duas da manhã

Dirá, por exemplo, que estava no Brasil quando recebeu um telefonema da primeira mulher, Matilde, às duas horas da manhã, com a notícia do primeiro desaparecimento: “Aconteceu uma coisa terrível – disse ela. Levaram Martin!”. Jamais imaginaria que dos outros desaparecimentos se seguiriam.

Contará o incrível encontro que teve com um dos integrantes da junta militar argentina, o almirante Emilio Massera, já depois do fim da ditadura, cena digna de um roteiro cinematográfico. Por um acaso absoluto, os dois estavam no mesmo avião. Rafael sentou ao lado do almirante. Disse que era pai de três desaparecidos. O almirante mentiu: garantiu ao pai que os filhos estavam bem guardados em algum lugar. Rafael iria receber notícias. Não recebeu jamais. Quando sumiram, os filhos de Rafael estavam ligados ao Exército Revolucionário do Povo ( ERP ).

(em outro momento, Rafael provocará reações de espanto na plateia ao narrar a desfaçatez do militar que, irônico, disse a ele que havia filhos de militares que também tinham desaparecido: um sumiu esquiando, outro num acidente etc.etc.)

O pai de três desaparecidos vai a um restaurante em Buenos Aires na esperança de encontrar o neto que nunca viu

Descreverá a cena que viveu recentemente: recebeu a informação de que o maitre de um restaurante em Buenos Aires era o neto nascido na prisão. Correu ao restaurante. Olhou para o rosto do maitre. Viu as feições da filha – Valéria. Chegou a falar com a mãe do maitre, mas ela não quis levar adiante a conversa. Rafael desistiu. Imaginou que, se insistisse, poderia criar um drama em outra família. Vai passar o resto dos seus dias alimentando a dúvida: aquele rapaz é ou não o neto que ele queria tanto conhecer?

Pronunciará uma definição marcante sobre a tragédia dos desaparecidos: “Desaparecer é matar a morte. E matar a morte é voltar a ter vida. Os meninos, assim, estarão sempre vivos – na memória e na eternidade“. Rafael conseguiu a proeza de extrair do horror absoluto um clarão de luz: quem desaparece mata a morte! Eis aí a única saída possível para conviver com o que aconteceu.

Responderá que jamais poderá perdoar os autores do sequestro e desaparecimento dos filhos, porque estes são crimes de lesa-humanidade, “imprescritíveis” e “atemporais”. O tempo, neste caso, não revogará o horror.

Por fim, puxará da pasta o texto que digitou um texto. Tocará num ponto polêmico: dirá que hoje, tanto tempo depois, “defende a pluralidade dos relatos, porque creio que também nas forças que se insurgiram houve maldades”.

Eis quatro pontos que o pai dos três desaparecidos usou para estimular o debate sobre os erros cometidos também pelos que combateram o horror:

“As Forças Armadas usurpadoras decidiram eliminar todo o pensamento de esquerda – matando a todos os esquerdistas”

1.
“O terrorismo de Estado é inadmissível. Seus crimes são de lesa-humanidade e, portanto, transnacionais e imprescritíveis. Cometeu-se um genocídio na Argentina. O que as Forças Armadas usurpadoras do poder fizeram foi mais do que combater os violentos: decidiram eliminar todo o pensamento de esquerda matando a todos os esquerdistas. Queriam, pela morte, fazer desaparecer estas ideias. Mas um presidente argentino do século XIX, Domingo Faustino Sarmiento, tornou célebre esta máxima: as idéias não se matam”.

2.
“É hora de deixar a memória do passado a cargo da investigação histórica e começar a pensar no que fazer. É hora de uma pensamento crítico que traga idéias e projetos para a superação das ideologias que deixaram de ter vigência. O que é hoje a esquerda? O que é hoje a direita? Lênin uma vez perguntou: o que fazer? Já havia questionado o que chamou de infantilismo da esquerda, os extremismos que não levavam a uma melhoria das condições das classes marginalizadas da sociedade(…) “.

3.
“Poderíamos perguntar o que teria acontecido se as forças que se insurgiram tivessem triunfado nos países de nossa região. Teríamos o cerco das potências ocidentais? Estaríamos dominados por milícias civis uniformizadas, empobrecidos e estagnados economicamente? Creio que sim. Não era no que acreditava em minha juventude. Isto, para meus filhos, soaria como uma heresia, como também para jovens utópicos de hoje”.

4.
“A geração dos anos setenta, marcada pelo golpe de 24 de março de 1976, acreditou ser possível instaurar uma ordem definitivamente justa. Em nome desta crença, matou e morreu. Morreu muito mais do que matou. Estou citando a socióloga Cláudia Hilb, renomada pesquisadora argentina: diz que hoje se pode fazer uma reflexão sobre a responsabilidade da esquerda dos anos setenta no advento do horror. Pode-se equiparar a responsabilidade dos militares com a dos militantes? Não. A violência política dos militantes ocorreu sob a forma de assassinatos seletivos ou de atentados ( menos seletivos ), muito poucos. Não se pode equiparar às formas de violência que ocorreram nos campos de concentração, as loucuras, as mortes, o rapto de bebês e o ato de embarcar prisoneiros em aviões e jogá-los vivos no rio da Prata. Os trinta mil desaparecidos deixaram um vazio. Eram o melhor desta geração perdida”.

Termina a sessão da Quinzena Latino-americana. O ator Carlos Vereza levanta-se do lugar que ocupava na primeira fila para beijar a mão de Rafael.
O pai de Valéria, José e Martin posa para fotos. A pequena plateia se retira. Acompanhado de duas cicerones da Livraria da Travessa, Rafael caminha novamente pelos corredores. Cruza com funcionários de lojas que estão apressados porque querem ir embora. O expediente acabou – para Rafael e para eles. Amanhã, os funcionários começam tudo de novo. Rafael também – porque jamais dará por encerrada a missão de manter viva a memória de Valéria, José e Martin. Que importa o tamanho das plateias? Pode chegar o dia em que os auditórios de Rafael estarão desertos. Pode chegar, sim. Os terráqueos, certamente, estarão ocupados com outras tarefas, sem tempo de ouvir relatos sobre desaparecidos. Não é absurdo imaginar. Quando esse dia chegar, quem sabe, Rafael estará fazendo o que me disse que espera fazer: “Vou estar em algum lugar do Uruguai, certamente em Punta del Este, em companhia de um amigo – um cachorro. Bastará um perro. Não vivem dizendo que ele é o melhor amigo do homem?”.

Posted by geneton at outubro 4, 2013 02:40 AM
   
   
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