junho 24, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE

UM DEPOIMENTO PESSOAL DO JORNALISTA QUE COMANDAVA REDAÇÕES: EVANDRO CARLOS DE ANDRADE (OU : “QUAL O SENTIDO DA VIDA ? OS FILHOS. PONTO FINAL”)

Tive a chance de gravar uma extensa entrevista com um jornalista que se notabilizou como comandante de redações: Evandro Carlos de Andrade. Não me lembro de ter feito tantas perguntas a um só entrevistado. A entrevista se estendeu por vinte horas, divididas em dez sessões de duas horas cada. O homem tinha histórias a contar sobre Getúlio Vargas, JK, Jânio Quadros, João Goulart, Castelo Branco, o regime militar, os bastidores da política e do jornalismo ( Evandro testemunhou, como jornalista iniciante, a revolução provocada pelo Diário Carioca, o jornal que trouxe para o Brasil as modernas técnicas jornalísticas americanas . Atuou durante anos como repórter político em Brasília. Chefiou a redação do jornal O Globo entre 1972 e 1995. Depois, comandou por seis anos o jornalismo da TV Globo ). Meses depois de encerrada a maratona de gravações, Evandro Carlos de Andrade morreu, aos sessenta e nove anos de idade, no dia 26 de junho de 2001. Faz exatamente dez anos, portanto.

O Dossiê Geral publica, nestes próximos dias, trechos do depoimento.

Tenho três “dívidas” graves com a memória do jornalismo. Tomara que me sobre tempo para pagá-las: quero “botar no papel” as gravações que fiz com três pesos pesados - Joel Silveira (com quem convivi durante vinte anos, na privilegiada condição de aprendiz daquele que era considerado o maior repórter brasileiro), Paulo Francis (o “lobo hidrófobo” que deu uma contribuição nem sempre reconhecida à evolução da prosa jornalística brasileira) e Evandro Carlos de Andrade.

Eis um bom passatempo para um repórter: bem ou mal, tentar produzir memória. É uma das (poucas) coisas realmente úteis que um jornalista pode fazer. Não tenho planos de escrever teses ou divagações sobre o jornalismo. A longa entrevista com Evandro Carlos de Andrade um dia será publicada porque deixá-la no fundo da gaveta, à espera do mofo e das traças, seria um crime de lesa-memória. Poderá servir, quem sabe, como matéria-prima para os que se ocupam da história da imprensa num período conturbado da vida brasileira. Já disseram que cabe ao jornalismo fazer o primeiro rascunho da história. Voilá.

A quase totalidade do depoimento se concentra no jornalismo e na política. Mas um trecho que trata de uma experiência pessoal vivida por Evandro Carlos de Andrade sempre me vem à memória. O motivo: depois de passar horas e horas falando sobre grandes acontecimentos, presidentes, pompas, poderes, dramas, glórias, fracassos e planaltos, ele chegava a uma conclusão surpreendentemente singela : “O sentido da vida são os filhos”.

Eis um trecho do livro que um dia será concluído:

O início da carreira coincide com um acontecimento de natureza íntima que Evandro considera “doloroso” : a perda da fé religiosa. Sem saber, Evandro experimentava, na prática,um sentimento que o filósofo Bertrand Russel já tinha descrito em tese. Num texto escrito em 1932, Russel constatava : para um jovem que teve formação religiosa ,a perda da fé pode ser uma fonte permanente de infelicidade. Já quem nunca teve de fé não sofre tanto :

- A crença em Deus e no outro mundo torna possível atravessar a vida com menos coragem estóica do que a necessária aos céticos. Muitos e muitos jovens perdem a fé nesses dogmas numa idade em que o desespero é fácil e têm então de enfrentar uma infelicidade muito mais intensa do que a que se abate sobre aqueles que não tiveram uma criação religiosa – diria Russel, um intelectual que considerava as religiões perniciosas porque todas se baseiam no temor humano – “medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte”.

Evandro descreve assim o abalo que sofreu justamente quando começava a exercer o jornalismo como profissão :

-“A descrença se instalou em mim. Quando fui escalado pelo jornal para fazer a cobertura do Congresso Eucarístico Internacional, em 1955, eu me lembro de ter feito a Dom Hélder Câmara um desafio para que ele restabelecesse a minha fé. Porque a perda da fé é a maior perda que alguém pode ter. Quando alguém se torna materialista, renuncia a toda metafísica. Passa a descrer totalmente em outra vida, o que é um tremendo empobrecimento. Repito : é a pior perda. Mas, quem começa a pensar começa também a destruir dogmas. Nada atrapalha tanto a fé quanto os dogmas religiosos. Um dia, dogmas como a ascensão de Jesus Cristo ou a assunção da Virgem começam a incomodar, porque são de uma impossibilidade absoluta. Tornam-se absurdos. É impossível alguém ascender aos céus fisicamente. Não há o menor cabimento. Quando alguém é obrigado a crer em dogmas como esses, começa a se sentir incomodado. A partir daí,o que é que se faz ? Passa-se a reler e a rever toda a História. Porque a vida é uma coletânea de histórias. Quando se começa a raciocinar -em termos lógicos- sobre as histórias que fundamentam as religiões, vê-se que todas elas podem ser revistas de uma maneira objetiva – jornalística, até. Todos os dogmas caem. A perda da fé é um sentimento que afeta –e muito – a vida de quem o experimenta. Passei por esta experiência quando estava começando no jornalismo. Vivi uma transição. Comecei a ler, a alimentar dúvidas. Vim de uma família extremamente católica e praticante. Minha mãe foi à missa até morrer. Eu ia à missa quase todo dia, às cinco horas da manhã, com a minha avó, na Igreja de Santo Afonso. A perda da fé não estava ligada a um eventual rompimento com a família. Porque eu não via na minha família nenhum fator negativo. Mas era, sim, uma família fechada e preconceituosa. Chegava a ser anti-semita. Passei a ter, depois, um sentimento oposto a esse anti-semitismo, não como represália ou como vingança contra a família, mas como conseqüência do fato de que, quando se descobre que se foi enganado na infância, passa-se a buscar o outro lado. Há quem veja a perda da fé como uma conquista. Eu vejo como o que ela realmente é : uma perda. Por quê ? Porque a perda da fé estreita o universo;reduz o sentido da vida `a terra;cria o sentimento de que tudo é uma vivência material que se encerra totalmente com a morte. Arthur Dapieve desenvolveu , numa crônica publicada no Globo, um raciocínio que achei brilhante : “Já estivemos mortos antes de termos nascido, eu não me lembro de nada, você também não, é tudo”. Ou seja : todos nós estivemos mortos por milhões e milhões de anos. Nossa existência é brevíssima. Somente o DNA permanece. Quem crê na existência de vida eterna pode nem dar um sentido lógico a essa fé, mas encontra um consolo enorme”.

“O que move os artistas e os criadores é o impulso, o desejo de permanecer. Toda manifestação artística traz um ardor,uma necessidade de exprimir o conflito do autor com o real. Desse choque, nasce o gênio – que não se conforma com o que é real no mundo. A essência da arte é essa. Eu – pelo contrário - me conformo até bastante. Não estou em conflito. Não estou brigando com minha pobre existência. A perenidade que vejo é a biológica. Fiz uma vez uma especulação. Um primo distante meu, Juliano Macedo Soares, estudou a ascendência de minha família. Lá estavam todos os ascendentes diretos da minha mãe – até o século XVI. Eu poderia até estender a pesquisa, no Livro do Tombo, em Lisboa. Fiz a regressão para deixar para meus filhos e netos. Somente até o século XVI, uma família – a minha – tem cinqüenta mil ascendentes diretos ! Se a multiplicação continuar a ser feita, onde é que o cálculo vai parar ? Dá bilhões !. Vai englobar a população da terra. O mais remoto negro da África equatorial, o mais distante esquimó, os chineses, os aborígenes, todos estão lá “.

“Não cheguei a procurar uma base filosófica para a perda da minha fé. Mas bastava que se olhasse para o progresso da ciência – que destruía dogmas e ia tornando absurdas crenças desenvolvidas pelo catolicismo, a religião em que fui criado. Não acredito que a perda da fé aflija tanto a quem cresceu como fiel de outras religiões que não se vêem obrigadas a acreditar em coisas que hoje são tolas, como a ascensão de Cristo ou a assunção das Virgem. São tolices” .

“Quem perde a fé, como eu, pode até ganhar racionalidade. Mas é uma racionalidade que vai se fechar comigo. Quando eu morrer, adeus. Não tenho nenhuma ilusão quanto ao que virá depois. O que sei com certeza é que a minha permanência já foi transmitida aos meus filhos e netos. Os genes é que ligam todos os homens – uns aos outros. É o que digo há anos em casa. Basta fazer a projeção matemática de nossa ascendência. Quem fizer essa conta – relativamente simples – verá que , ao fim desses vinte séculos da era cristã, terá um número de ascendentes que correspondente à população da Terra ! Em resumo : cada um de nós descende de todos. É ridículo, então, falar de raças entre os homens. Somos impregnados de todas as raças . O que muda é a proporção de cada uma em cada um de nós. É claro que a hereditariedade imediata atua como uma força presente. Mas tudo, toda a história da terra pode ser lida no nosso DNA. É aí que se manifesta nossa perenidade. Quem se reproduz para continuar não é a espécie humana. É o gene. Então, o gene é que tem de continuar. Como ele continua ? Através dos descendentes”.

“Tenho seis filhos: cinco do primeiro casamento – Lúcia, Patrícia, Márcia, Guilherme e Bruno – e um do segundo – Leonardo. Quero dizer o seguinte : qual é o sentido da vida ? Os filhos. Ponto final ”.

Posted by geneton at junho 24, 2011 11:55 AM
   
   
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