março 02, 2011

A CENA QUE DEMOROU 79 ANOS PARA ACONTECER SÓ DUROU QUARENTA SEGUNDOS, NUMA MANHÃ DE VERÃO EM MOSCOU (OU: O DIA EM QUE UM MUNDO DESABOU, NÃO COM UM ESTRONDO, MAS COM UM SILÊNCIO ENIGMÁTICO)

Mikail Gorbachev completa oitenta anos de idade neste início de março de 2011. Faz parte da história do Século XX. Eis um relato do dia em que este repórter teve a chance (rara!) de ver a História acontecendo : pela primeira vez, a Rússia fazia uma eleição direta para eleger um presidente. Numa cena que, em outras épocas, seria catalogada como absurda e improvável, um ex-líder da União Soviética disputava uma eleição direta. O ano era 1996. Vi a última cena da glasnost (a abertura política) acontecer a, literalmente, um passo de onde eu estava: o momento em que Gorbachev entrou na cabine para votar. O que vi e ouvi (*) :

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Mikail Gorbachev: Dia D em Moscou (ao lado, o locutor-que-vos-fala)

Chega o grande dia. Moscou assiste a uma cena jornalisticamente improvável . As pesquisas apontam como campeões de votos o comunista arrependido Boris Yeltsin e o comunista renitente Gennady Ziuganov. Mas para onde correm os repórteres ? Que Yeltsin que nada. Que Ziuganov que nada. Todos querem testemunhar um pequeno gesto que carrega um imenso peso simbólico : o instante em que o último líder da já extinta União Soviética – Mikail Gorbatchev – se encaminhará para a cabine de votação. Quando Gorbachev depositar o voto na urna, um longo, tumultuado e surpreendente processo estará concluído.

Meninos, eu vi. Mikhail Gorbachev, o estadista que provavelmente será lembrado daqui a cem anos por ter iniciado a abertura da cortina de ferro comunista para a democracia, foi personagem de uma cena histórica no início da tarde de um domingo, um dia de céu azul em Moscou : era exatamente meio-dia e quarenta e nove minutos quando Gorbachev, candidato a presidente, caminhou em direção a uma urna eletrônica instalada numa sala do primeiro andar do Instituto de Química e Física da Academia de Ciências da Rússia, num bairro chamado Colina dos Rouxinóis.

A cena que demorou setenta e nove anos para acontecer durou apenas quarenta e cinco segundos - tempo que Mikail Gorbachev precisou para cumprir o ritual do voto na cabine. Quem estava naquela sala do Instituto de Química testemunhou uma cena inédita : jamais um líder máximo da União Soviética participou de uma eleição direta. Nenhum dos antecessores de Gorbatchev no comando do hoje extinto império soviético (Lenin, Stalin, Kruschev, Brejnev, Andropov e Tchernenko) encarou o teste das urnas.

Sobriamente vestido, com um paletó escuro e uma camisa azul-clara, acompanhado pela mulher, Raisa Gorbachev, o homem que chamou a atenção do mundo para a glasnost exibia um sorriso protocolar de candidato quando chegou ao Instituto de Física e Química. Antes de depositar o voto na urna, posou para os fotógrafos, com ar confiante de quem espera um milagre — mas, no íntimo, certamente sabia que eleição não se ganha com milagre, mas com voto. A campanha se encerrara. Já não haveria tempo para operar o milagre da multiplicação dos votos.

Todos os levantamentos indicavam que os votos de Gorbachev eram extremamente escassos na Rússia pós-soviética. Ficam em torno de um por cento – um vexame eleitoral. Admirado no exterior como estadista, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, eleito pela revista Time como “o homem da década”, Mikhail Gorbachev virou sinônimo de candidato impopular. A maioria do eleitorado joga sobre os ombros de Gorbachev a culpa pelo colapso da União Soviética e pela condução de reformas econômicas que afundaram o país numa crise.

A História pode ser impopular, como agora, mas atrai todas as atenções. Quando finalmente entra na sala de votação, Gorbachev – um dirigente que quebrou a tradição de carrancas no Kremlin – exibe um ar sisudo. Deixou lá fora o sorriso protocolar. Não há traços daquele rosto jovial que, para espanto dos seguranças , sorria para fãs nas ruas de Nova Iorque durante uma visita aos Estados Unidos, como se fosse um improvável popstar.

O Gorbachev que agora caminha rumo à cabine de votação é outro homem. Era como se, por um instante, o peso do iminente naufrágio eleitoral fosse maior do que a certeza de que um ciclo histórico se fechava ali. Ou como se o último capítulo de uma saga prenunciasse novos dramas. A ex-primeira-dama acompanha, discreta, a caminhada de Gorbachev em direção à cabine. O ex-homem-forte da URSS traz um fotógrafo à tiracolo – aparentemente,encarregado de registrar para a posteridade os passos públicos do chefe,como se já não houvesse uma miríade de objetivas apontadas para o homem.

O alvoroço é inevitável. Cinegrafistas e fotógrafos levantam a voz. Raísa assiste a tudo, impassível. Já perdeu a conta de quantas vezes assistiu ao ritual selvagem de fotógrafos e cinegrafistas disputando espaço físico em busca de um bom ângulo. Gorbachev deposita o voto na urna em câmera lenta, para não frustrar os caçadores de imagens. Ao fundo,com uma folha de papel na mão esquerda, Raísa Gorbachev testemunha a cena ao lado do fotógrafo particular do homem.

Sou um intruso em meio aos fotógrafos. Por ter chegado ao lugar da votação com duas horas de antecedência, me transformo em posseiro de um posto de observação privilegiado : instalo-me a dois passos da cabine de votação com minha máquina fotográfica e meu gravador (quem sabe se, num acesso de generosidade,o homem não brindaria tantos repórteres impertinentes com uma declaração histórica ?).

Aos poucos, cinegrafistas, fotógrafos e repórteres vão ocupando cada centímetro quadrado disponível da sala. Ganho uma recompensa : fotógrafo improvisado, tenho a chance de captar uma imagem histórica – o exato instante em que,pela primeira vez na História, um ex-dirigente máximo da União Soviética vota numa eleição direta. É o último gesto da glasnost – o surpreendente e acidentado processo de abertura política.

Quando Gorbachev sai da sala, é abordado por repórteres que disputam no grito o privilégio de uma declaração. Mas ele parece não querer perturbar os trabalhos da seção eleitoral. Faz de conta que não ouve as perguntas feitas em inglês. Perdida em meio ao alvoroço dos jornalistas internacionais,há uma pequena troupe de jornalistas brasileiros – formada por Francisco Câmpera (livre-atirador disposto a cavar notícias na Moscou),Cláudia Varejão (enviada especial do serviço brasileiro da BBC de Londres),Gustavo Moraes(tradutor onipresente) e pelo locutor-que-vos fala.

Diz a lenda que Gorbachev é perfeitamente capaz de responder a perguntas em inglês,mas faz questão absoluta de falar russo quando responde a indagações de forasteiros. Pergunto – em inglês – quem ele vai apoiar no segundo turno. Gorbachev pede, com um gesto, um tradutor. Já do lado de fora do prédio da Escola de Química, diante de uma grossa coluna branca, Gorbachev finalmente faz uma parada estratégica para atender aos jornalistas, sob o sol forte do verão moscovita, ao lado de seguranças que dirigem olhares inquisidores a quem se aproxima da estrela máxima. Raísa Gorbachev abre uma sombrinha para se proteger do sol.

Em meio ao tumulto formado pelo empurra-empurra de fotógrafos, repórteres, cinegrafistas e seguranças, consigo me aproximar do homem. Pergunto se ele vai ficar na oposição de qualquer maneira, qualquer que seja o vencedor da eleição — Boris Yeltsin ou o comunista Zyuganov. Sempre falando em russo, Gorbachev dá uma resposta de candidato: “Se eu passar para o segundo turno, vou ganhar, sem dúvida nenhuma. Por que é então que a gente vai falar de oposição agora? Isso fica para depois!”.

Adiante, deixa de lado o papel de candidato para reassumir as funções de estadista:

– A realização destas eleições significa que já obtive uma vitória !. Porque fui eu que propus as eleições neste país.

Os repórteres seriam brindados com frases épicas, apropriadas para a ocasião. O homem que mudou o curso da história do século XX enfrentava com estoicismo a iminência de um naufrágio eleitoral :

- A primeira vitória eu já obtive: é a realização das eleições. Uma batalha só é considerada perdida quando o próprio comandante renuncia a ela.

– Nada pode me humilhar - nem as pesquisas, nem o poder. Nenhuma força pode humilhar um homem se ele se sente confiante, mantém a dignidade e a defende. Vocês têm diante de si um homem assim.

A muralha de cinegrafistas,fotógrafos e repórteres impede que Gorbachev avance. O homem que, naquele instante, simbolicamente dava por encerrada a revolução da glanost faz uma nova pausa na caminhada para falar aos jornalistas. Eis as palavras que Gorbatchev diz àquele punhado de jornalistas russos e estrangeiros,transformados em “testemunhas oculares da História” .Meu velho gravador guarda para a posteridade a voz firme do último líder soviético :

- “As reformas feitas na Rússia (sob o governo de Yeltsin) visam aos interesses de uma minoria. Minha Fundação acredita que sejam dez a doze por cento da população. Todas as outras faixas tiveram perdas. Cinqüenta por cento estão na linha de pobreza – ou abaixo. O meu programa quer desenvolver reformas para a maioria. Se não for assim, não superaremos o abismo profundo. Temos que fazer tudo para que, por meio de uma nova política e reformas, a população sinta que alguma coisa mudará. Mas o ponto principal é pôr em ordem o poder, com urgência. Sem isso não podemos fazer nada, nem desenvolver as reformas para a maioria dos russos”.

Se perdesse a eleição – o que acabaria acontecendo – quem Gorbatchev gostaria de ver no poder ?

– “De todos os pretendentes, não vejo nenhum que nesta época difícil fosse capaz de solucionar a situação sem aprofundar as divisões na Rússia. Aqueles que estão hoje no Governo já passaram por tudo : pelo sangue e pelas reformas cínicas. Não posso confiar. Durante muito tempo, estudei a situação do Partido Comunista da Rússia. Observei o grupo de Ziuganov. Pergunto : o PCR, a exemplo dos partidos da Europa Oriental e Central que já passaram por renovação, pode assumir esta responsabilidade? Para mim, essa é uma questão importante. A resposta interessa não a apenas à Rússia,mas a mim, pessoalmente”.

“O poeta Tiutchev tem razão : a Rússia não pode ser medida com uma só medida”.

“Tive poucos recursos – menos do que todos os outros candidatos. Mas vejo que as pessoas querem mudanças”.

Adiante,Gorbatchev dá uma resposta bem humorada sobre que candidato ele apoiaria no segundo turno :

– “Depende do demônio que lá estiver”.

- “Boris Nikolaievitch Yeltsin não perdeu a cabeça. Enquanto o presidente defendia as eleições presidenciais, assessores aconselhavam : “Não, Boris Nikolaievitch ! Para que realizar eleições ? Vamos sentar e dividir a mala !” . Viu só que democratas ? Ainda assim, levou o país até as eleições. Trabalhou como um Presidente deve”.

Termina a entrevista improvisada. Os repórteres se dispersam. Cinegrafistas recolhem suas câmeras. Fotógrafos e repórteres voltam aos carros de reportagem . Insisto em seguir – a uma pequena distância – os passos de Gorbatchev. Quero testemunhar até o fim a aparição pública do homem que mudou a História do século XX.

Tenho, então, a chance de assistir a uma cena comovente. Livre do assédio dos repórteres, Gorbatchev começa a caminhar – cabisbaixo - por uma alameda em direção a um portão de ferro. Quando cruzar o portão de ferro, sumirá de vista. O homem que já comandou uma superpotência vive, ali, naquela pequena caminhada, um momento de intensa solidão. Parece entregue a pensamentos insondáveis.

Depois de percorrer uns trinta metros, ele apressa o passo, separa-se da comitiva. Permanece cabisbaixo. Um observador rigoroso flagraria ali,nas feições de Gorbatchev, aquela “dor atônita dirigida contra todo o ordenamento das coisas” que o dom Fabrizio de “O Leopardo “ notou no olhar de um coelho abatido. Aproximo-me o máximo que posso, com minha máquina fotográfica. É tudo o que posso fazer. Registro o momento. As feições de Gorbatchev exibem um ar grave.

O dia é de festa ,a Rússia vai se lembrar dessas eleições, mas, ali, naquela alameda, o homem que,em última instância, tornou possível a reviravolta vive um momento de melancolia. Em que ele estaria pensando, enquanto caminhava, silente, com o olhar voltado para o chão ? Àquela altura, que diferença faria saber ? A História já tinha mudado de rumo, independentemente do que Gorbatchev poderia pensar.

Quem sabe, num momento fugaz de abatimento, ele poderia ter a tentação repetir o que disse no dia em que a União Soviética deixou formalmente de existir, no final de dezembro de 1991. Exausto, Gorbatchev teve tempo responder, no fim de noite no Kremlin, a uma pergunta do repórter Ted Koppel, enviado especial da rede de tevê americana ABC : “o que é que se passa na alma do senhor agora ?”

-“Respondo com a parábola de um rei que encarregou os sábios de descobrirem qual é o segredo da sabedoria. Depois de passarem a vida viajando e de redigir quarenta volumes, os sábios finalmente trazem a resposta para o Rei. Mas o Rei estava morrendo. Para não perder tempo, eles resumiram tudo em apenas uma frase : “O homem nasce, sofre e morre”. (Andrei S. Gratchev,assessor e porta-voz de Gorbatchev,registrou a cena no livro “L’Histoire Vraie de La Fin De L’Urss” – “A História Real do Fim da União Soviética”) .

Ao votar na primeira eleição presidencial na Rússia pós-soviética, Gorbatchev pingou um ponto final numa saga que se iniciou quando ele pronunciou pela primeira vez a palavra “glasnost” (abertura política) à sombra das muralhas do Kremlin.

Um mundo desabava ali – não com um estrondo nem com um suspiro , como poderia imaginar o poeta, mas com um silêncio enigmático.

(*)Texto publicado no livro “DOSSIÊ MOSCOU”

Posted by geneton at março 2, 2011 12:11 PM
   
   
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