agosto 24, 2010

SÉRGIO BRITTO

O DIA EM QUE O GÊNIO ORSON WELLES FOI PERSONAGEM DE UMA CENA DE SEXO NUM BAILE DE CARNAVAL NO TEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO ( E OUTRAS CONFISSÕES, REVELAÇÕES E HISTÓRIAS APIMENTADAS DO ATOR SÉRGIO BRITTO)

O ator Sérgio Britto não perdoa : fala.

Ainda bem.

Aos oitenta e sete anos de idade, ele poderia até ceder à tentação de dar por uma encerrada uma carreira que já se estende por seis décadas e meia – nos palcos, nas telas, nos vídeos. Mas, não. Permanece cem por cento ativo.

Além de atuar nos palcos, encontrou tempo para escrever um livro de memórias recém-lançado pela editora Tinta Negra : “O Teatro & Eu”. Num país em que figuras públicas vivem trocando deferências, ele dá nome aos bois: fala de desafetos, fracassos, derrapagens, arrependimentos. Em suma: a matéria de que é feita a vida.

Trechos da entrevista sincera que ele nos concedeu, para o programa “Dossiê Globonews”:

Por que você diz – que já trabalhou na emergência de um hospital – diz que todo ator deveria ser médico ?

“Num hospital, especialmente numa emergência, você vê a vida na dramaticidade diária, cotidiana, de uma maneira especial. Trabalhei na maternidade na Santa Casa. Mas o pronto-socorro era o foco principal. Tive uma experiência incrível. Vi,um dia, um homem entrar morrendo. Gritava.A mulher o agarrava e ele gritava: “Eu me suicidei! Vou morrer porque eu te amava e você me traiu!”.E ela: “Não morra! Não morra! Fui uma estúpida! Eu te enganei porque sou uma estúpida!”. O homem morrendo e ela o sacudindo…Tivemos de arrancar a mulher à força,porque ela não largava o cadáver. O homem já era um cadáver – ela continuava a sacudir. Uma coisa inesquecível. A gente não consegue esta verdade no teatro. Porque o teatro não tem de reproduzir a vida. Teatro é interpretação da vida – é representação”.

Sinceramente: você se envergonha de quê, nesta carreira de ator ?

Sérgio Britto: “Todo ator tem escolhas erradas. Escolhi duas ou três peças em minha vida que não foram nada boas. Exemplo: “Corações a Ponto de Explodir”. O título era bonito. Era uma peça homossexual. Todo mundo,na época, queria fazer uma peça homossexual,porque era moda ousar. Mas fui muito infeliz.Mas a peça era muito ruim.Dessa, eu me envergonho,me culpo e bato a cabeça na parede para dizer: “Que porcaria!”.

Há uma peça que diz mas não concordo ter feito: “A Prostituta Respeitosa” – de Jean Paul Sarte. Eu fazia o papel de um negro. Naquela época, não senti tanto. Depois é que fui pensar: “Meu Deus, eu pintei minha mão e minha cara de preto, para fazer o papel de um negro, num país onde o ator negro existe; onde existem tantos atores negros esperando uma chance!”.Hoje, depois que a coisa passou, senti uma certa vergonha. Mas era o tempo….”.

Quem foi o maior mau-caráter que você já encontrou no teatro ?

“Ah, esse é fácil: não existe ninguém que possa competir com ele. Carlos Imperial era um mau caráter perigoso. Era uma pessoa que tinha o prazer de fazer o mal, fazer o errado – e ainda se vangloriava de ter feito. Eu ia viajar para a Europa.Mas,antes de viajar, fiz um contrato para que Carlos Imperial ficasse no meu lugar no Teatro Senac, enquanto eu viajava. Mandei o contrato para ele – e viajei no mesmo dia. Quando voltei, disse: “Agora, Imperial, preciso ficar com o teatro,porque tenho uma peça para fazer”. E ele: “Ah, mas não vou sair”. E eu: “Como assim ? Há um contrato assinado!”. E ele: “Mas não assinei o contato. Você se esqueceu de me mandar o contrato a tempo de eu assinar e você receber de volta. Não assinei. Para eu sair, você vai ter de pagar um mês de minha produção inteiro,todos os meus atores, tudo o que gasto no teatro. Depois, eu saio”. O pior de tudo é a raiva: que idiota que eu fui…As pessoas da classe teatral diziam: “Ah, não,não fique contra ele: Imperial é ótimo…”. Por que ? Porque Carlos Imperial era importante como divulgador. E as pessoas se entregam aos divulgadores….”.

Em quem você teve vontade de dar um soco mas não deu ?

Sérgio Britto : “Em Ipojuca Pontes. Namorava Tereza Rachel e foi assistir a um ensaio. Nós estávamos no palco ensaiando. Sem me pedir licença, ele entrou na plateia com uma prancheta e uma caneta e começou a anotar. Fiquei quieto, para não prejudicar Tereza. Porque, se fosse brigar com ele logo no início do ensaio, eu iria criar uma situação muito desagradável.Quando acabou o ensaio, ele virou pra mim e disse:”Você não vai poder estrear amanhã. Anotei os erros aqui.

A peça está toda defeituosa…”. Eu disse: “Seu Ipojuca,você entrou na plateia e tomou notas sobre o meu texto sem me pedir licença. Eu não disse nada para não chocar Tereza ou prejudicar o ensaio. Mas agora…saia daqui, antes que eu te dê um soco na cara!”. E ele saiu.

Não é que ele tenha acreditado que eu daria o soco na cara.Nem eu ia dar. Mas é uma forma de se expressar. Ipojuca nunca me perdoou. Sempre procurou me prejudicar: quando o Centro Cultural do Banco do Brasil, o CCBB, estreou em 1981, ele conseguiu fazer com que eu não ficasse lá. Inventou tudo o que pôde. Inventou,até, que eu tinha falado mal da mulher do presidente do Banco do Brasil. Eu não conhecia o presidente do Banco. Não sabia o nome do presidente – nem o nome da mulher…Ipojuca inventou que eu tinha falado mal. Criou uma situação impossível. Tive de sair”.

Qual foi o grande fracasso da carreira de Sérgio Britto e o que é que você aprendeu com ele ?

“Não chegou a ser um fracasso meu, porque não entrei na organização inicial da novela – Supermanoela. Fui chamado para fazer um papel quando a novela já estava em mais da metade. Não sinto que pe um fracasso especial meu. Mas é a participação num fracasso especial. A novela era tão ruim que Marília Pera deixou de fazer televisão anos seguidos.Ficou apavorada com a má qualidade da novela. E esta foi a minha participação na pior porcaria da minha vida”.

Você diz,em suas memórias, que o ator Osmar Prado foi “uma praga, uma maldiçao” para você, durante a peça “De Getúlio a Getúlio”. Igualmente, você reclama do que chama de “poder destruidor” da atriz Beatriz Segall. Chegou a hora de fazer um grande acerto de contas ?

Sérgio Britto : “Beatriz teve problemas sérios comigo na peça “As Pequenas Raposas”. Em “De Getúlio a Getúlio”, Osmar Prado fazia o papel de um ator doente, completamente psicótico, que representava Getúlio Vargas. Os dois me criaram grandes problemas. Mas o tempo passou. Vejo dentro do processo do teatro. Não tenho nada contra Osmar Prado nem contra Beatriz Segall. Pelo contrário: prefiro me lembrar de uma fase muito boa da Beatriz, em quem eu via uma atriz muito disponível, uma atriz querendo acertar, pedindo mais ensaio. Do Osmar eu continuo a ver o talento que ele tem. Aparece em cada novela que ele faz! É um ator poderoso. Agora, não sei se o que há nele: uma vontade de destruir. Em “De Getúlio a Getúlio”, ele fazia um ator muito perturbado – que começa a assumir demais o Getúlio.Num momento, ele ficava falando de Getúlio. A cena era engraçada, porque, justamente, ele começa a falar e eu dizia: “Paulo (era o nome do personagem) chega ! Você está assumindo Getúlio”. Um dia, ele se vira para mim e diz: “Quem é você? É o fantasma do pai do Hamlet ?”.

Eu disse: “Não!”. Mas aí eu parei e resolvi responder a ele. É caco ? Vou soltar o meu : “Não. Eu sou o diretor Sérgio Britto – que quer te dirigir. Mas você quer dizer bobagem. Vou sentar naquela cadeira, vou deixar você falar a bobagem que quiser. Mas aviso: não vou achar graça!”. Você sabe que ele teve um ataque de riso ? Neste dia, ganhei de Osmar Prado”.

Qual foi a cena mais impublicável que você já testemunhou, dentro ou fora de um palco ?

“Nós estávamos no Teatro Municipal , num baile de carnaval. De repente, vimos Orson Welles agarrando e mordendo uma mulata, numa aflição louca. Não queria ver nada: agarrava a mulata, foi descendo, se ajoelhou. Nós vimos o que ia acontecer. A turma em volta foi fechando. Fez uma coisa tão fechada que Orson Welles desceu e meteu a língua na mulata. E nós o protegemos”.

Quem você viu domindo na plateia de uma peça ? E você já dormiu profundamente na plateia de algum espetáculo?

Ultimamente, tenho cochilado. Mas não tem sido culpa minha: os espetáculos é que andam muito ruins. Nada no Brasil anda muito bem. Por que é que o teatro seria privilegiado ? O teatro também não anda muito bem. Tenho visto espetáculos que me dão um pouco de sono. Cochilo. Mas dormir mesmo não. Mas Pierre Cardin dormiu. Estávamos no balcão.E ele ameaçou cair lá embaixo. Ficamos todos preocupados. Ao fim do espetáculo, ele foi falar com Bob Wilson. Tínhamos visto o espetáculo “Cartas para a Rainha Vitória”. E ele elogiou para Bob Wilson: “Que maravilha!”. O espetáculo durava seis horas. E Pierre Cardin: “Você nos manteve atentos por seis horas…”. Fiquei olhando a coragem de Pierre Cardin de mentir.Não precisava exagerar. Porque ele tinha dormido”.

Uma pergunta pessoal: por que você de repente tentou se matar ? Você já estava ali – jovem,ainda – fazendo o que todo ator faz, ou seja, se sacrificar para chamar a atenção dos outros ?

Sérgio Britto: “Naquele dia,eu tinha ido ao baile do High Life. Apagavam a luz. Ficava tudo escuro. Eu era um rapazinho. Uma mulher lá aproveitou a escuridão, avançou em mim e me comeu.Eu estava meio bêbado. Estava num hotel de Copacabana. A família tinha ido à praia. Fiquei sozinho. Quando a família saiu, eu me levantei, peguei uma lâmina e cortei os pulsos. Mas não pensei: “Ah,quero morrer. Que desespero…Vou me exibir…”. Não. Havia em mim alguma coisa que estava querendo se libertar. Eu queria me libertar de quê ? Posso não ter raciocinado na hora,mas,logo depois, eu sabia do que era: eu queria fazer teatro, mas a família estava me empurrando para a medicina. Eu estava estudando medicina porque eles queriam, não porque eu queria. A primeira imagem dessa vontade de sair dessa prisão foi cortar os pulsos”.

Você já namorou homens e mulheres,mas recusa o rótulo de bissexual. Prefere ser chamado de homossexual. Por que esta diferenciação ?

Sérgio Britto : “Se uma pessoa tem as duas opções sexuais na sua vida, esta negócio de bissexual é ridículo. Para quem transa com mulheres mas transa com homens, é lógico que a relação que não é a habitual e não é a esperada acaba por ser a mais importante. Não adianta negar. O bissexual vai negar. Aquele que tem uma vida dupla vai dizer : “Não,é assim mesmo:sou bissexual, gosto tanto de mulher quanto de homem”. Não é verdade. Pode gostar de mulheres, mas gosta mais de homens, porque, senão, não teria esta outra busca, esta outra forma de vida sexual. Não existe mistério. O que existe é o homossexual se defendendo com a palavra bissexual.Não quero que me chamem de bissexual. Quero que me chamem de uma pessoa que tem experiências em vários setores da vida sexual, já teve mulheres, já teve homens – e continua em aberto. Estou aí. Vamos ver o que é que dá”.

O grande dramaturgo Nélson Rodrigues disse que, se pudesse escolher um epitáfio, escolheria o seguinte; “Aqui jaz Nélson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”. Se você pudesse escolher um epitáfio, qual seria ?

Sérgio Britto : “Aqui jaz Sérgio Britto – que trabalhou em teatro sempre com muito prazer. Nem pensei : saiu”.

Posted by geneton at agosto 24, 2010 10:36 AM
   
   
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