outubro 31, 2009

LEDO IVO - PARTE 1

O DIA EM QUE O POETA LEDO IVO OUVIU DO GRANDE ESCRITOR GRACILIANO RAMOS UMA CONFISSÃO IRRITADA, SURPREENDENTE E POLITICAMENTE INCORRETA SOBRE MARCEL PROUST: “NÃO LEIO VEADOS!”

Caçadores de belos versos,tremei de arrependimento : quem nunca leu um poema de Ledo Ivo, por preguiça, desinformação ou enfado, deve se penitenciar deste crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível.

Um exemplo ? É difícil encontrar uma declaração de princípios tão bela quanto “A Queimada” :

“Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita”.

O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da poesia brasileira neste início de século, diga-se que o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Ao contrário do que os versos podem fazer supor,o homem não é uma fera de garras afiadas.

Ei-lo : sentado numa poltrona da sala, o lobo Ledo vai fazer, a pedido do repórter,uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O cenário que circunda o Covil do Lobo é um convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas do mundo, o lobo Ledo precisa caminhar apenas cinco passos. É a distância entre a sala e a extremidade da varanda deste apartamento. Lá fora,a beleza escandalosa de um céu sem nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo.

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Ledo Ivo : convivência com Graciliano Ramos (Foto: Geneton Moraes Neto)

A localização do apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um poeta.Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Não é para qualquer um.

As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações de poeta vão se sucedendo,aos borbotões : com os gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível, o pequenino Ledo Ivo reconstitui, com frases precisas, momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de Andrade,Graciliano Ramos,Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.

Justiça se faça : Ledo Ivo já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de “o Brasil oficial” : a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe, por unanimidade, a cadeira número 10, no não tão distante ano de 1986. Mas o “Brasil real”, aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos, não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser.

O Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário, um ermitão que prefere ver a humanidade à distância. A ode à solidão – que ele já escrevera nos versos definitivos do poema “A Queimada” – repete-se no não menos belo “A Passagem” :

“Que me deixem passar – eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar,exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho”.

Ledo Ivo vai alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo cuidado que devota à linguagem escrita. O Português agradece,comovido. O poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como “de maneiras que….”. Se alguém cometer o sacrilégio de misturar “tu” com “você” diante do lobo,certamente escapará de uma admoestação, porque o homem é afável, mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.

Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski,o lobo Ledo carrega,pelas décadas afora,as marcas da infância em Maceió :

“Na tarde de domingo,volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam as maresias e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências
monótonas.
(…) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,
voltai a este dia inacabado
que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.
Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no mar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno

Apenas nomes em lápides.Apenas nomes.E o barulho do mar”.

Graciliano Ramos,João Cabral de Melo Neto,Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes vivos da imaginária enciclopédia do Lobo Ledo.
Gravando !

PRIMEIRA ESTAÇÃO : O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE DESPEDIR DA VIDA

GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável,corresponde à verdade ?

Ledo Ivo : “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo estado. Quando menino, como primeiro da turma no grupo escolar, fui apresentado a Graciliano,na época secretário de Educação. Pôs a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando ele publicou “Vidas Secas”, eu,”menino prodígio” em Maceió,escrevi,em 1938,um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse “vá visitar Heloísa” – a mulher do Graciliano Ramos, àquela altura, aos cinquenta anos de idade,uma figura importante na literatura brasileira. Durante nossa conversa, ele abriu uma gaveta e disse : “Quando publiquei “Vidas Secas” em Alagoas,só uma pessoa falou do meu livro : um menino de 14 anos…..”.

A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio, porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada, jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e Graciliano Ramos puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas,como,por exemplo,a correção lingüística que,dizem,existe em minha prosa.

Graciliano Ramos era,sim,uma pessoa rústica. Em toda a literatura brasileira,ele só tinha três, quatro admirações, além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês : José Lins do Rego,Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia, admirava Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos).

Notei, na casa de Graciliano Ramos, um livro de poesia autografado, fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa de Graciliano,dizia a ele : “Você deveria abrir esse livro ! “. E ele : “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos) .

Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro.Se não me engano,era um volume das poesias completas de Augusto Frederico Schmidt”.

GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical ?

Ledo Ivo: “A herança – pungente – é ver que a glória de Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com Graciliano Ramos foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um grande escritor,mas ainda não plenamente reconhecido – essa é que é a verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não reeditava. Em conversas íntimas, Graciliano chamava José Olympio de “esse filho da puta – que vive editando Lourival Fontes e Getúlio Vargas…..” (N: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas) . O que eu via ali, em Graciliano, era a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal – Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos em Alagoas : “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de Alagoas, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances ? Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa que o Rio,a metrópole,deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor.

Qual foi,então,a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ? A fidelidade ao ofício, algo que se viu também em Machado de Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia,não pensava em prêmios literários,não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles”.

GMN : O desleixo com a glória imediata foi,então,uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos ?

Ledo Ivo : “Uma característica de Graciliano Ramos -que me orgulha- é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil diferente. Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro – oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que tinham carro ! Um negócio impressionante,porque todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo diferente,o da vida literária, marcada pela existência de suplementos literários.

Mas havia ,em Graciliano Ramos,um detalhe que me impressionava : o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de certa maneira – muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele gostava -,no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust, por exemplo. Quando eu perguntava por que,ele dizia : “Não leio veados ! “.

Quando o visitei pela última vez,no hospital, ele chorou, porque sabia que ia morrer. Enquanto chorava,falava -e muito – sobre a mãe. O hospital ficava aqui ao lado,onde hoje é este edifício (Ledo aponta para fora do apartamento). Aquele foi nosso último encontro, porque eu estava de partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido.De vez em quando,falava coisas desconexas. Contava que a mãe,quando casou,levou as bonecas para casa – um negócio curioso.

O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante, porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que,por mais que ele dissesse que odiava a vida, ele, na verdade, amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma. Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão,mas nunca fumou.
Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”.

A SEGUIR : LEDO IVO FAZ RETRATOS FALADOS DE MANUEL BANDEIRA E CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Posted by geneton at outubro 31, 2009 07:47 PM
   
   
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