outubro 24, 2009

PAUSA PARA UM REFRESCO. AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES DE UM FORASTEIRO RECÉM-CHEGADO A COPACABANA : “A ÚNICA COISA QUE FUNCIONA COM REGULARIDADE NO RIO DE JANEIRO É O MAR”

Um forasteiro acaba de aportar no Rio de Janeiro. Vem de São Paulo. Chama-se Marconi Leal. É pernambucano na certidão de nascimento. As duas primeiras impressões de Marconi Leal sobre a cidade merecem registro.

Primeira impressão do recém-chegado : o Rio de Janeiro é, provavelmente, a única cidade do planeta em que toda e qualquer tarefa – especialmente, serviços prestados por encanadores, pedreiros, marceneiros e assemelhados – necessita sempre de duas pessoas para ser executada. O primeiro sujeito executa a tarefa propriamente dita. O segundo fica em pé, ao lado. Missão: passar o tempo todo conversando. Segunda impressão: o horário da maré é a única coisa que funciona no Rio.

Tradutor e redator, Marconi Leal já tratou de botar no papel suas primeiras impressões sobre o novo endereço.

Mas, antes, uma nota nostálgica. Marconi Leal trouxe para o Rio as lembranças imortais de um porteiro que animava seus dias em outras eras :

“Havia em meu prédio um porteiro chamado Ogberto, cujo QI era um pouco superior ao de uma apresentadora de televisão e um pouco inferior ao de uma ostra. Isso, desde que consideremos, para efeito de cálculo, uma ostra morta, claro. Dono de uma acuidade vocabular de surpreender o Houaiss, de um poder de concisão e sentido de economia inigualáveis, Ogberto conseguia responder a 90 por cento de todas as questões que lhe eram propostas com um expressivo: “E apois”, cuja entonação variava de acordo com o sentido que queria lhe emprestar.

— Boa essa música, né, Ogberto?
— E apois.
— Será que vai chover hoje, hein, Ogberto?
— E apois…
— Ô, Ogberto, mamãe quer falar contigo.
— E apois?
— Ogberto, tu acha que a contemporaneidade ainda pode se valer do conceito de eterno retorno como o entendiam os clássicos ou com a linearidade cronológica imposta pela revolução industrial e intensificada na pós-modernidade ele se tornou anacrônico?
— E apois! E apois!

Depois, não mais que oito meses para perceber que não adiantava gritar horas seguidas quando o interfone tocava: era preciso tirar o aparelho do gancho para falar. E, por fim, que morder o receptor quando com raiva não consistia numa forma eficaz de comunicação.

Dava, assim, mostras da sua superioridade sobre os ratos de laboratório, não se deixando levar por tolices como o reflexo condicionado — num eloqüente protesto contra Pavlov.

Era um homem, além disso, de hábitos simples. Passava tardes inteiras cuspindo pra cima e tentando apanhar o cuspe de volta na boca. Ou então jogando bola de gude com os garotos do prédio, usando para isso o seu olho de vidro — que depois, claro, era devidamente soprado e reposto no lugar, como mandam as normas da boa higiene”.

As primeiras anotações do forasteiro sobre o Rio, depois de cruzar a Via Dutra :

*”Não há nada mais parecido com o inseto de Kafka ou a hiena Hardy do desenho animado que um intelectual caminhando na praia.

*Aqui no Rio de Janeiro, as seis horas da manhã começam pontualmente ao meio-dia.

*Sabem todos que desgraça é que nem sogra: aparece quando a gente menos espera. Fui acometido por desgraça decomunal: tive de me mudar para longe da civilização e me estabelecer no Rio de Janeiro.

*Os assaltos no Rio ficam cada vez mais violentos. Onde isso vai parar? Começam usando granadas, daqui a pouco passam a usar sogras. Absurdo.

*Acabo de voltar da praia aqui em Copacabana e vocês não sabem da maior. Quem estava no lugar do mar ? Belchior, claro.

*A única coisa que funciona com regularidade no Rio de Janeiro é o mar.

*O pedinte carioca ultrapassa aquele sujeito proverbial que pede uma gota de colírio emprestada. Se não há colírio, ele pede o frasco vazio.

*O Globo: “Anvisa divulga novas regras para bulas de medicamentos.” A partir de agora elas serão escritas em português.

*Não tenho condições de saber se o Rio continua lindo porque sempre que tento observá-lo há um par de ancas na minha frente.

*Mensagem na garrafa: “Socorro. Estou em terra firme, cercado por 190 milhões de brasileiros. Me mandem uma ilha deserta! “.

*A sociedade do Rio é a mais coletivista que conheço. Toda atividade requer ao menos duas pessoas: a que realiza o trabalho e a que conversa com ela.

*Chove e faz frio no Rio de Janeiro. Sem praia, hordas de cariocas saem às ruas perguntando-se pelo sentido da vida em comunidade.

*Para o carioca, o Rio está a anos-luz das outras capitais. Entendo. O que vemos agora na cidade é o passado primitivo da humanidade.

*São Paulo não tem trânsito: tem engarrafamento móvel.

*A prova de que a psicanálise não funciona é que faço terapia há 10 anos e meu psicanalista ainda não se curou”.

PS: O olho clínico do histórico diretor de TV Maurício Shermann detectou o talento humorístico do neo-carioca Marconi Leal. Resultado: o biógrafo do porteiro Ogberto acaba de ser incorporado ao time de redatores de humor da Rede Globo. A bola cruzou a linha. É gol.

Posted by geneton at outubro 24, 2009 08:23 PM
   
   
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