outubro 16, 2009

KURT VONNEGUT MANDA LEMBRANÇAS ( É O HOMEM QUE APRENDEU O SENTIDO DA VIDA COM O FILHO E LIÇÕES DE GUERRA COM UM CORONEL : “QUERO QUE VOCÊS SE TORNEM A MAIOR CORJA DE SAFADOS DA HISTÓRIA!”)

A boa notícia : o velho Kurt Vonnegut acaba de dar sinal de vida, nas livrarias brasileiras. Já, já, os detalhes.

Primeiro, uma rápida divagação:

Se houvesse um pingo de justiça no planeta, o Papa Bento XVI apareceria numa sacada da Praça de São Pedro às 11 e 15 da noite de hoje para anunciar que tinha acabado de assinar um decreto entronizando Nossa Senhora do Perpétuo Espanto como Padroeira Plenipotenciária dos Jornalistas.

Mas, não. Bento XVI deve estar dormindo a essa hora. Não existe justiça na terra. A vida neste planeta giratório é o que o poeta Carlos Drummond já chamou de “um vácuo atormentado”, “um sistema de erros”, “um teatro de injustiças e ferocidades extraordinárias”. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, então, jamais será entronizada padroeira de coisa alguma. Assunto encerrado. Próximo tema, por favor.

….Mas, apenas para constar na ata dos trabalhos de hoje do Dossiê Geral : por que diabos Nossa Senhora do Perpétuo Espanto haveria de ser nomeada padroeira dos jornalistas ?

Por um motivo básico : jornalista de verdade é o que jamais perde a capacidade de se espantar diante da Grande Marcha dos Fatos, sejam eles banais ou marcantes, pequenos ou grandiosos. O que distingue um jornalista puro-sangue de um jornalista burocrata é exatamente a capacidade de olhar para os fatos da vida com uma saudável dose de espanto, como se estivesse vendo tudo pela primeira vez. Simples assim. Quando perde a capacidade de se espantar, o jornalista vira um burocrata encarregado de tornar chato o que é vívido, tornar cinza o que é cintilante, tornar morno o que é incandescente. Fica fácil entender por que o jornalismo tantas vezes se transforma em monumento à chatice. Como diria Jaqueline Kennedy, horrorizada, ao catar os miolos do marido baleado naquele carro em Dallas: “Oh, no!”.

Se pudessem, certamente leitores & telespectadores gritariam em coro : Acorda, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto ! Iluminai a fauna de burocratas que vive espezinhando o jornalismo & arredores ! (mas esta é uma discussão que só interessaria a um punhado de jornalistas : não aos navegantes que aportam num blog como este).

O escritor que inventou Nossa Senhora do Perpétuo Espanto era um humanista que testemunhou um bombardeio apocalíptico na Segunda Guerra Mundial

Agora, o principal : quem criou esta divindade – a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto – foi um escritor americano chamado Kurt Vonnegut.

Quem não o conhece não sabe o que já perdeu. Mas ainda há tempo de corrigir a perda.

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Kurt Vonnegut : humanismo e insolência (Foto: Divulgação)

Ah, se eu tivesse tido a chance de entrevistar mister Vonnegut, teria registrado, num velho bloco de anotações, que seus cabelos levemente encaracolados soavam como um anacronismo num octogenário de voz fatigada. Pareciam uma impropriedade, uma inadequação. Mas tudo em Vonnegut tinha algo de vagamente impróprio ou inadequado. Se era assim, ele poderia, então, exibir seus caracóis sem se importunar com observações de repórteres forasteiros.

Eu teria notado que a voz do bicho exibia uma leve rouquidão, entrecortada por espasmos de respiração, típicas de fumantes diplomados. As frases eram de vez em quando pontuadas pela tosse.

Que importa ? Lá pelas tantas, mr. Vonnegut, um escritor que sabia misturar em seus textos simplicidade, graça, leveza e acidez, me diria, em tom casual :

- Eis aqui uma lição de texto criativo. Primeira regra: não usem ponto-e-vírgulas. São travestis hermafroditas que não representam absolutamente nada. Tudo o que fazem é mostrar que você esteve na universidade.

Vonnegut processou a indústria tabagista porque, toda vez que abria um maço de cigarros, recebia o aviso de que iria morrer se continuasse fumando. Não morreu.

Vonnegut mantinha, na “vida real”, a insolência que cultivava em suas frases. Durante décadas, fumou “feito uma chaminé”. Já velho, resolveu processar os fabricantes do cigarro, por assédio moral. Reclamou de que, durante anos e anos, foi advertido de que o cigarro iria matá-lo. Não matou. Resolveu pedir indenização à indústria, por se sentir perseguido pela ameaça. Não ganhou, mas fez barulho:

- Estou processando o fabricante de cigarros Pall Mall porque os produtos dele não me mataram - e estou hoje com 84 anos. Escutem: estudei antropologia na Universidade de Chicago depois da Segunda Guerra Mundial, a última que vencemos. E os antropólogos físicos, que estudavam crânios humanos de milhares de anos, diziam que só deveríamos viver mais ou menos 35 anos, porque era isso que os nossos dentes duravam antes da odontologia moderna. Não eram bons estes tempos ? Trinta e cinco anos e dávamos o fora.

Houve aventura e drama na juventude de Vonnegut. A mãe, depressiva, se matou:

- Minha teoria é que todas as mulheres possuem ácido fluorídrico engarrafado dentro delas, mas minha mãe possuía uma quantidade grande demais.

A frase que ouviu de um coronel no dia em que se alistou no Exército para ir à guerra combater os nazistas: “Nosso trabalho é torná-los a maior corja de safados da história. Matem, matem, matem, entenderam ?"

Alistado no exército americano, ouviu, logo no primeiro dia, a lição inesquecível que um coronel “baixo e magro” transmitiu aos jovens soldados que estavam prestes a viajar para a Europa, para combater os nazistas:

- Homens, até agora vocês foram americanos decentes e limpos, com um amor americano pelo espírito esportivo e o jogo limpo. Estamos aqui para mudar isso. Nosso trabalho é torná-los a maior corja de safados da história. De agora diante, vocês podem esquecer as regras do marquês de Queensbury e toda e qualquer regra. Vale tudo. Nunca batam num homem acima da cintura quando puderam atingi-lo por baixo. Façam o maldito gritar. Matem-no como conseguirem. Matem, matem, matem, matem, entenderam ?

Os recrutas entenderam, claro.

Mas guerra é guerra: Vonnegut terminou caindo nas mãos do exército alemão, como prisioneiro, justamente em Dresden, a cidade alemã que seria castigada pelos aliados com um bombardeio de proporções apocalípticas. O bombardeio de Dresden se transformaria, nas décadas seguintes, num assunto central da vida de Vonnegut:

- O bombardeio de Dresden foi o maior massacre na história européia. Eu, naturalmente, sei sobre Auschwitz, mas um massacre é algo súbito, que, num tempo muito curto, promove a matança de uma enorme quantidade de pessoas. Em Dresden, em 13 de fevereiro de 1945, cerca de 135.000 pessoas foram mortas por bombardeios britânicos em uma noite.

Décadas depois, Vonnegut chegaria a uma conclusão que pode parecer paradoxal: disse que daria a vida para salvar a cidade alemã da chuva de bombas. Sim, era um soldado americano combatendo os alemães. Sim, a Alemanha cometera crimes inomináveis. Precisava levar uma lição de fogo. Mas a aniquilação de milhares de civis durante o bombardeio de Dresden alimentou, em Vonnegut, uma certeza:

- A morte de Dresden foi uma tragédia amarga, executada sem necessidade e intencionalmente. A matança de crianças – alemães ou japonesas ou quaisquer inimigos que o futuro possa nos reservar – nunca pode ser justificada. Eu teria dado a vida para salvar Dresden para as próximas gerações do mundo. É como todos deveriam se sentir a respeito de todas as cidades da terra.

Aprendeu o sentido da vida com um filho: “Estamos aqui para ajudar uns aos outros a atravessar esta coisa, seja lá o que for”

A experiência de Vonnegut na guerra teve, também, fugazes momentos de humor bélico, se é que é possível tal aberração :

- Os alemães nos perguntavam: “Por que vocês, americanos, estão em guerra contra a gente ?”. “Não sei, mas estamos dando uma surra e tanto em vocês” – era uma resposta comum”.

Como se estivesse falando para uma platéia imaginária de jovens, o velho Vonnegut declamaria, depois de falar sobre os fantasmas de Dresden:

- Quando chegarem à minha idade, se chegarem à minha idade, e se tiverem se reproduzido, vão se encontrar perguntando a seus filhos, então já na meia-idade: “Qual é o sentido da vida ? “. Tenho sete filhos, três deles sobrinhos órfãos. Fiz minha grande pergunta sobre a vida ao meu filho pediatra. O dr. Vonnegut disse ao seu trêmulo e velho papai: -”Pai, estamos aqui para ajudar uns aos outros a atravessar esta coisa, seja lá o que for”.

O escritor que processou a indústria tabagista era um humanista horrorizado com as iniquidades e injustiças. Mas não se importava nem um pouco em ir contra o senso comum. Dizia, por exemplo, que não via nada demais no fato de Karl Marx dizer que a religião era o ópio do povo:

- Ainda há muita gente capaz de dizer que a coisa mais maligna a respeito de Karl Marx foi o que ele disse sobre religião. Disse que a religião era o ópio das classes mais baixas, como se acreditasse que a religião fosse ruim para as pessoas. Mas quando Marx disse isso, nos anos 1840, o uso da palavra “ópio” não foi simplesmente metafórico. O ópio era o único analgésico disponível para dores de dente, câncer na garganta ou o que fosse. Ele próprio o usara. Como um sincero amigo dos oprimidos, estava querendo dizer que achava bom que o povo tivesse algo com pudesse aliviar suas dores ao menos um pouco – e a religião servia para isso. Então, ele gostava de religião – e certamente não estava querendo aboli-la. Está certo ? Ele poderia dizer hoje o que digo esta noite: “A religião pode ser o Tylenol de muitos infelizes – e muito me agrada que funcione”.

Vonnegut guardava uma surpresa no colete para cada tema que lhe fosse proposto. Se um forasteiro perguntasse como é que ele resumiria a felicidade, ela responderia:

- Perguntaram certa vez à grande antropóloga Margaret Mead, e ela havia estudado homens, mulheres e crianças em todos os tipos de sociedade, quando os homens são mais felizes. Ela pensou um pouco e respondeu: “Quando estão partindo para uma caçada sem mulheres ou crianças”. Acho que ela estava certa.

A maior contribuição americana para a civilização: os Alcoólicos Anônimos

E qual teria sido a grande contribuição americana para o avanço da civilização ?

- Muitos responderiam qúe é o jazz. Eu, que amo o jazz, diria outra coisa: Alcoólicos Anônimos. Não sou alcóolatra. Se fosse, iria até a uma reunião doa AA mais próxima e diria: “Meu nome é Kurt Vonnegut. Sou alcóolatra”. Se Deus quisesse, esse poderia ser meu primeiro passo na longa e dura estrada que leva de volta à sobriedade. O esquema dos AA, que exige uma confissão desse tipo, é o primeiro a ter qualquer sucesso mensurável em lidar com a tendência de alguns seres humanos, talvez dez por cento de qualquer amostragem da população, a se tornarem viciados em substâncias que lhes dão breves espasmos de prazer, mas a longo prazo transmutam suas vidas e as das pessoas ao seu redor em algo definitivamente terrível.

Quando estava diante de um repórter ou de uma platéia de estudantes, Vonnegut jamais deixava de recorrer a uma arma infalível – o humor , um dos pouquíssimos antídotos de eficiência comprovada contra o circo de horrores geral. Quando tinha a chance, citava piadas inesquecíveis que ouvira em velhos programas de rádio :

- Uma antiga: dos anos dourados das comédias de rádio, durante as quais Ed Wynn foi nomeado chefe dos bombeiros. Cada programa começava com Wynn no telefone portando-se ridiculamente diante de algo relativo ao Corpo de Bombeiros. Certa vez, uma mulher ligou e disse que sua casa estava em chamas. Wynn perguntou a ela se ela já havia tentado jogar água no incêndio. Ela disse que sim - e ele retrucou: “Então, desculpe, mas a senhora já fez o nosso serviço”. E desligou.

O inventor de Nossa Senhora do Perpétuo Espanto vivia repetindo uma frase que ouvira de um companheiro soldado, nos campos de batalha na segunda guerra:

- Ao final de um dia terrível, estávamos fumando e observando o impressionante monte de mortos acumulado. Um de nós atirou a bagana do cigarro na pilha. “Caramba – disse ele. Estou pronto para a morte na hora em que ela quiser vir atrás de mim”.

Vonnegut viveu seis décadas depois de testemunhar os horrores da guerra. Não temia o blecaute final:

-Não tememos a morte nem vocês deveriam temer. Sabem o que Sócrates disse sobre a morte - em grego, é claro ? “A morte é apenas mais uma noite”.

A última noite do velho Kurt Vonnegut começou no dia 11 de abril de 2007, quando ele morreu, em Nova York, vítima de danos cerebrais “irreversíveis” provocados por uma queda que sofreu em casa. Idade: oitenta e quatro.

A morte foi a última piada de Vonnegut: não, incrivelmente, o cigarro não o matou.

Nossa Senhora do Perpétuo Espanto ergueria as sobrancelhas, surpreendida com o desfecho. O homem que bombardeou consistentemente os próprios pulmões com volumes de fumaça suficientes para paralisar uma horda de rinocerontes hiperativos terminou morrendo de uma queda.

C´est la vie, criançada.

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PS: Todas as declarações de Kurt Vonnegut usadas neste post foram retiradas de livros seus, publicados no Brasil: “Um Homem Sem Pátria”, “Destinos Piores que a Morte” e “Armagedom em Retrospecto” . Livro póstumo, organizado por um dos filhos de Kurt, Mark Vonnegut, “Armagedom em Retrospecto” é facilmente encontrável: acaba de ser publicado no Brasil, pela L&PM, com tradução de Cássia Zanon. “O que acontece com as pessoas quando elas lêem Kurt Vonnegut é que as coisas ficam muito mais disponíveis do que imaginavam que fossem. O mundo se torna um lugar um pouco diferente simplesmente porque elas leram um bendito livro. Imagine só”- escreve Mark Vonnegut ao apresentar a nova coletânea de textos do pai. As últimas palavras de Vonnegut, no último discurso que escreveu, foram : “Agradeço por sua atenção e caio fora”.

Posted by geneton at outubro 16, 2009 02:07 PM
   
   
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