setembro 11, 2009

ACORDA, GLAUBER. ELES ENLOUQUECERAM (RELATO DE UM ENCONTRO COM O CINEASTA QUE DELIRAVA COM O BRASIL)

A imagem ressurge clara e límpida na memória: Glauber Rocha desembarca numa sala de cinema acanhada, no bairro de République, Paris.

Era uma manhã de sábado. O mês: fevereiro. O ano: 1981. Os cabelos estavam ligeiramente desgrenhados. Os olhos, inchados, pelo sono recente.

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Glauber Rocha : fagulhas no ar ( Fotos: TV Globo)

A nove mil quilômetros dali, o Brasil fervia à espera do carnaval. Mas, em République, fazia um frio desgraçado. Um inverno cinzento engolia a cidade. O homem chega envolto num sobretudo escuro.

Glauber Rocha reclama de críticos “burros”, espalha fagulhas de vitalidade e polêmica por onde passa. Mas não estava bem fisicamente

O Glauber das minhas lembranças era o cineasta falante que incendiava o vídeo nos fins de noite de domingo no programa “Abertura”, transmitido pela falecida TV Tupi. Mas o Glauber Rocha real que chega a esta sala, com uma cópia do recém-concluído filme “A Idade da Terra” debaixo do braço, não exibe o vigor incendiário que marcava aquelas aparições na TV.

Ainda assim, espalha fagulhas de vitalidade por onde passa: fala como se estivesse discursando, usa um tom apaixonado para tratar do cinema e do Brasil. Dispara um petardo verbal contra um crítico “burro” do Jornal do Brasil, quer saber o nome, a ocupação, a procedência dos forasteiros que lhe são apresentados ali, no hall do cinema, pouco antes do início da projeção.

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Anima-se quando sabe que nós – eu e o também brasileiro Marcos de Souza Mendes – somos estudantes de cinema em Paris. Aumenta o tom de voz, faz gestos largos com as mãos, chama a atenção dos críticos franceses que desfilavam no saguão do cinema com seus cachecóis entediados: “Olhem aí: são os jovens cineastas, é a juventude brasileira estudando cinema! Isso me interessa! Quero saber o que é que vocês vão achar do filme!”. Os franceses olham para nós, o objeto do entusiasmo glauberiano. Procuro um lugar no chão para me esconder.

O dedo indicador da mão esquerda de Glauber Rocha toca no dedo indicador da mão direita: “Como é? Fizeram as ligações ?”

Depois, Glauber Rocha reclama de que a cor da cópia não é ideal, começa a falar francês com sotaque nordestino inconfundível. “Je vais rester ici; j´attende un ami” – declama, diante da porta de entrada da sala, enquanto avisa que os espectadores já podem ocupar seus lugares.

Em seguida, vai até a cabine, falar com o operador. O filme começa. Glauber sairá da sala umas duas vezes durante a projeção. Terminada a sessão, ele, que estava sentado três fileiras adiante, se vira para trás, olha para nós, a dupla de estudantes: “Como é? Fizeram as ligações? Fizeram as ligações?”.

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O dedo indicador da mão esquerda de Glauber toca no indicador da mão direita. Ao perguntar a dois jovens estudantes de cinema se eles tinham absorvido o impacto de “A Idade da Terra”, Glauber cumpria ali, informalmente, o grande papel que sempre lhe coube: o de provocar reações.

Lá fora, pergunta pela mulher, a colombiana Paula, procura por ela no café ao lado, fala mal desses “filmes reacionários, com história”, dá o toque de que “o cinema materializou o desejo de ser imagem e som da palavra”.

“A Idade da Terra” seria o último filme de quem fizera obras-primas como “Terra em Transe” e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”.

As notícias não eram boas: Glauber Rocha tinha passado uma noite vomitando. Dormira durante uma sessão de documentários

Cinco meses depois daquele sábado em Paris, Glauber estava morto. Coincidência: o coração do guerreiro parou de bater num sábado.

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A saúde de Glauber já era assunto de conversas ao pé do ouvido. O guerreiro não andava bem. Tinha passado uma noite vomitando, dormira durante a projeção de documentários brasileiros no cinema “Le Denfert”.

Um diálogo sobre cinema brasileiro com um estudante brasileiro que fora visitá-lo na casa em que ele passava a temporada parisiense teve de ser interrompido. O estudante terminou tendo de ir a uma farmácia, para comprar remédios.

Pouco tempo depois, Glauber levantara vôo para Portugal, onde trabalharia num projeto. As más notícias não demoravam a chegar a Paris: falava-se de complicações cardíacas, coisas assim.

Ao noticiar a morte de Glauber Rocha, O Le Monde chamou Glauber Rocha de “grande autor lírico e barroco”

A última palavra surgiu, enfim, na primeira página do “Le Monde”: “o cineasta brasileiro Glauber Rocha, um grande autor lírico e barroco”, tinha morrido no Rio de Janeiro.

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Um articulista do “Le Monde” escreveu que ele ficará para as “gerações futuras” como um testemunho da “necessidade de mudar mundo”. Guardo comigo os jornais.

Por que diabos as imagens daquela manhã de inverno em Republique estão passando agora, nítidas e claras, na minha cabeça, como se saídas de um filme doméstico que a gente deixa guardado durante anos no fundo da gaveta ?

Uma imagem que vi por puro acaso numa TV a cabo funcionou como um gatilho detonador dessa torrente de lembranças : a voz de Glauber Rocha fazia um discurso grandiloquente sobre imagens de Brasília. Falava de Terceiro Mundo, capitalismo, socialismo, revolução soviética confrontando a riqueza americana, a roda da História, invasões, Europa conquistando o Novo Mundo, catequeses, cristianismo, utopias, barbáries, caudilhos, a América Latina pagando o preço da progresso alheio, o sonho de que aquela paisagem do Planalto Central produzisse iluminações planetárias.

O delírio de Glauber : o Brasil poderia ser uma voz que pronunciasse novidades para o resto do planeta. Por que não?

O discurso de Glauber Rocha acendeu um devaneio tropical numa madrugada sul-americana: quem sabe, o que falta ao Brasil, hoje, é um toque épico, uma fagulha daquele delírio que Glauber Rocha articulava sobre imagens de Brasília.

Glauber Rocha apostava tudo no sonho de que o Brasil poderia ser, sim, um país original, uma voz que pronunciasse novidades para o resto do planeta, um laboratório bárbaro que emitiria luzes belas e grandiosas. Por que não ?

Hoje, quando a mediocracia e ausência de ambição desfilam de mãos dadas diante do Cemitério das Causas Perdidas, a figura de Glauber Rocha faz uma falta terrível.

O Brasil precisa de delírios glauberianos de grandeza. Ambição de originalidade. Explosões de gestos, imagens e palavras. Torrentes e vulcões contra a pequenez. “Ondas de civilização”.

Meninos, eu vi, num sábado cinzento, a fagulha de um visionário brilhar no saguão de uma sala de cinema em Paris. Glauber Rocha sonhava grandezas para o Brasil, quebrava os catecismos políticos, imaginava um destino épico para esta república ancorada na porção sul da América.

”Acorda,Glauber.Eles enlouqueceram!”.

Posted by geneton at setembro 11, 2009 11:22 AM
   
   
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