setembro 01, 2009

HENRY METELMANN

UM SOLDADO NAZISTA, UM REPÓRTER BRASILEIRO: VAI COMEÇAR A LONGA TARDE DAS LEMBRANÇAS ATORMENTADAS

O repórter-que-vos-fala quer fazer diante deste tribunal imaginário uma confissão que pode parecer despropositada, mas não é : sempre tive vontade de interrogar um soldado nazista. Ponto. O problema é que veteranos de guerra nazistas fazem, quase sempre, a opção preferencial pelo silêncio. Por que se expor ao escárnio ?

Kurt Vonnegut chamava os repórteres de voyeurs da desgraça alheia. Ah, o inconfessável apetite de repórteres por dramas, derrocadas, derrapagens, tragédias, derrotas, arrependimentos; a íntima necessidade de vasculhar escombros, ruínas, destroços e estilhaços – físicos ou morais. Porque qualquer estagiário de jornalismo sabe que paisagens devastadas são um belo hábitat para personagens trágicos. Provocados, eles emergirão da névoa em que se encontram.

Durante anos imaginei o cenário: um veterano de guerra, octogenário, já pressentindo o blecaute final, expõe seus fantasmas mais íntimos a um repórter forasteiro que o procura, no meio da tarde, num casarão de uma rua deserta numa cidade obscura da Baviera - o berço do delírio hitlerista.

Minha insistência foi premiada. A cena que imaginei aconteceu, não numa cidadezinha da Baviera, mas no interior da Inglaterra. Tive a chance de interrogar um ex-soldado nazista, veterano da temidíssima Divisão Panzer. Nome: Henry Metelmann.

Steve McQueen, mocinho do filme de guerra, tenta escapar dos soldados alemães. O menino se pergunta: quem são esses cães de guarda que querem aprisionar nosso herói numa solitária ?

A fantasia de um dia dirigir a palavra a um nazista pode ter nascido, quem sabe, numa sessão do Cinema da Torre, no Recife, quando eu tinha doze, treze anos de idade. Eu me lembro de ter visto a platéia em peso torcendo por Steve McQueen, enquanto ele, a toda velocidade, a bordo de uma motocicleta, tentava escapar dos soldados alemães no filme Fugindo do Inferno (The Great Escape). A platéia batia palmas e gritava. O incentivo não deu certo. Recapturado, Steve McQueen voltou para a solitária.

Quem eram aqueles cães que puniam o herói com temporadas intermináveis na solitária ? Pela primeira vez, eu via uma platéia torcer pelo bem, contra o mal. O filme durava quase três horas. Vi três sessões, em três dias seguidos. Quase nove horas no cinema. Nenhum menino de doze anos escapa impunemente de tal maratona cinematográfica. A curiosidade de um dia interrogar um vilão instalou-se em algum escaninho de minhas florestas interiores.

O que um soldado nazista teria a dizer, na “vida real” ? Bato na porta da casa número 132 de uma rua sem movimento de uma cidade sem atrativos num ponto remoto da Inglaterra. O encontro tinha sido marcado a duras penas. Quando fiz o primeiro contato, por telefone, o ex-soldado alemão, radicado há décadas na Inglaterra, confessou que não tinha nem um pingo de orgulho pelo que fez no passado. Mas aceitou falar, porque queria “transmitir às novas gerações” as lições que aprendeu.

O ex-soldado de Hitler confessa que chorava ao ouvir a palavra do líder
Educado na Juventude Hitlerista, o jovem Metelmann chorava de emoção ao ouvir Hitler. Não tinha a menor dúvida da superioridade da “raça alemã” sobre os outros povos – a escumalha que deveria ser varrida do planeta em nome da supremacia ariana. Terminou se integrando à temida Divisão Panzer, a muralha de tanques que abria caminho para o avanço das tropas nazistas.

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O ex-soldado nazista: lembranças atormentadas (Foto: GMN)

Quando a guerra eclodiu, em setembro de 1939, Metelmann ainda não era soldado. Dois anos depois, foi personagem da ofensiva contra a Rússia.

Eis um decálogo das lembranças do homem que matava em nome de Adolf Hitler:

1.”Tudo o que me foi ensinado na Juventude Hitlerista e na escola dizia que eu pertencia a uma das maiores nações da terra: a alemã. Hitler era nosso líder. Para mim, ele era uma espécie de segundo Deus. Eu poderia morrer por ele!”.

Uma menina que corria para dar as boas-vindas aos soldados, um prisioneiro chamado Bóris, uma mulher chamada Celina: três tragédias que atormentam as lembranças do soldado

2. “Quando vi Hitler pela primeira vez, em Hamburgo, devo dizer que fiquei desapontado, porque ele era baixo. Pensei que ele era grande e forte, mas ele não era. Tinha um rosto sério. Não se via riso ao redor de Hitler. Assim era ele”.

3.”Quando me tornei soldado, achava que era um ser humano superior, em comparação a todos os outros. Éramos a raça ariana! Os russos, os poloneses, os povos eslavos era raças inferiores. Por essa razão, éramos superiores”.

4.”Precisávamos conquistar primeiro a Europa para, depois, conquistar o mundo. Eu apoiava inteiramente essa idéia! Pensava que ela era certa. Nossa missão, portanto, era impor nossa vontade às outras nações. Se as outras nações não acreditassem nessa idéia, teríamos de forçá-las. Era este o motivo de nossa brutalidade na guerra”

5.”A lembrança mais dolorosa que tenho é do ponto de vista humano. Estávamos em nosso tanque quando um colega disse : “Olhe, maçãs !”. Tínhamos chegado a uma espécie de sítio. Eu estava guiando o tanque. Desci, então, para colher maçãs para nós. Neste momento, vi uma mulher debruçada sobre uma menina que deveria ter uns doze anos. Tinha sido atingida por um disparo. O sangue saía da ferida aberta no corpo da menina. Pensei: “Não posso fazer nada”. A mulher – a mãe da menina – levantou-se, olhou para mim e disse: “Veja o que vocês fizeram ! Minha filha estava vindo para dar as boas-vindas a vocês, soldados ! O que ela estava trazendo para vocês era pão e sal – que é um sinal de boas-vindas. E vocês a mataram!”. Eu me lembro de que a menina ainda estava respirando. Voltei para o tanque. Um dos meus colegas perguntou: “Cadê as maçãs ?”. Eu disse : “Acabei de ter uma experiência terrível. Nós matamos uma menina! Ela está ali, no chão. Não podemos fazer nada!”. Meu colega disse : “Ah, não importa! É somente uma russa…”

6.”Conheci bem um prisioneiro, porque fui encerregado de vigiar,à noite, a área em que ele estava. Chamava-se Bóris. Eu sabia que todos seriam executados. Estava de guarda naquela que seria a última madrugada da vida de Bóris. Eram cerca de quatro da manhã. Pouco depois, às seis, ele seria fuzilado. Enquanto eu me afastava, ele apontou para o meu rifle: “Você pode fazer qualquer coisa! Pode matar muitos de nós, russos. Pode destruir! Pode causar mal! Mas não pode matar idéias!” . Ainda respondi: “Não consigo entender!”. Eu estava impregnado de minhas idéias nazistas. Fui embora. Mas ele repetiu: “Você pode fazer mal com este rifle! Mas não pode atingir as idéias. E essas idéias vencerão, não importa quanto demore!”. Participei da execução de Bóris e de outros prisioneiros – que foram fuzilados. Ouvi os tiros. De fato, fiquei triste por ele. Porque achei que ali estava um ser humano decente. Eu estava sentindo pena de Bóris. Mas devo dizer que também não achava que as execuções fossem exatamente erradas. Eu pensava na superioridade dos alemães. Nossa obrigação era limpar o lixo do mundo. Era este o motivo de estarmos fazendo aquelas coisas”

“A mulher disse: “Vocês são uns porcos nazistas! Espero que percam a guerra!”

7.”Vi uma mulher que, para mim, parecia velha: devia ter uns sessenta anos. As mãos da mulher tinham sido amarradas a uma árvore. Perguntei a um soldado que estava por perto: “O que foi que aconteceu?”. E ele: “Nós a capturamos na noite passada, quando ela se preparava para enterrar minas”. Ou seja: quando um tanque de nossa Divisão Panzer, um caminhão ou um carro alemão passassem, explodiriam. Eu disse a ela algo como: “Ah,bom, pegamos você! Como é que você se chama ?”. Ela respondeu: “Celina”. E eu: “Celina de quê ? “. E ela: “Não vou dizer nada!”. Nossos soldados, então, pegaram uma corda para que ela pudesse ser executada. Disse: “Porcos alemães! Vocês vieram aqui ocupar nosso país. Longa vida à revolução! Longa vida a Lênin! Vocês são porcos! Espero que percam a guerra!”.

Celina morreu. Nosso comandante disse: “Livrem-se do corpo. Enterrem-no”.

Fiquei pensando: “Celina era uma mulher muito corajosa. Sozinha, diante de nós, soldados fortes, disse: “Vocês são uns porcos nazistas!”. Pensei comigo: “Isso foi um gesto de coragem, Celina. Não importa de que lado as idéias estejam. Não importa. Você teve coragem”.

8.”Participei do combate contra os russos. A única maneira de sair daquele inferno era manter a coesão do nosso exército. Ou seja: nós, alemães, nos unirmos para tentar sair. Creio que essa foi uma das razões por que lutamos como demônios na Rússia: não queríamos ser capturados. Tínhamos ocupado um país! Além de tudo, matamos gente, matamos soldados. Éramos duros, difíceis. Pensávamos que tínhamos esse direito. Hoje, lamento”.

9.”Não posso dizer, hoje, que “lamento” o que fiz, porque não significa nada para para ninguém. Mas, hoje, sou totalmente internacionalista. Não acredito na superioridade alemã, porque essa idéia é estúpida, perigosa e, por fim, autodestrutiva”.

10.”Hoje, como existe uma espécie de guerra em andamento no Iraque e no Afeganistão, vejo jovens que são postos em uniformes e enviados para esses países. Vão matar e, provavelmente, morrer. É esta fonte de minha frustração: sei que é errado, mas não posso fazer nada”. ( o depoimento do ex-soldado foi publicado, na íntegra, sem qualquer corte, em “Dossiê História“).

Quando saí da casa do velho soldado, em companhia do cinegrafista Paulo Pimentel, ao fim de uma entrevista que se estendeu por uma tarde gélida de fevereiro de 2007, um detalhe me impressionava. Décadas e décadas depois do fim da guerra, o ex-soldado, então com 85 anos, não fazia grandes elucubrações geopolíticas nem alinhavava teses para justificar o horror. Não se estendia sobre Hitler nem Stalin nem Mussolini. Não tratava da Conferência de Yalta nem da divisão da Europa. Preferia falar de três lembranças que o acompanham, intocadas, desde então.

Três personagens literalmente perdidos no tempo, sem rosto, sem sobrenome, sem história : a menina que corria com um cesto de pão nas mãos, Celina e Bóris.

Feitas as contas, os três é que importam. A “dimensão humana” termina se impondo.

Depois de se despedir, o ex-soldado recolhe-se à solidão da viuvez, na andar térreo do casarão onde mora, longe de tudo e de todos. Lá dentro, as três lembranças de sempre estarão esperando por ele: a menina, Celina e Bóris; a menina, Celina e Bóris; a menina, Celina e Bóris.

Sempre foi assim.

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Foto: GMN

Posted by geneton at setembro 1, 2009 09:57 PM
   
   
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