março 03, 2015

JORNALISTA DE VERDADE É AQUELE QUE, NA CAMA DO HOSPITAL, CONTA QUANTOS AVIÕES PASSARAM NO CÉU

Trombo, num dessas gavetas virtuais, com um texto que escrevi quando Joel Silveira, o maior repórter brasileiro, morreu. Convivi durante vinte anos com ele. Digo que aquele apartamento na rua Francisco Sá, em Copacabana, funcionou como uma espécie de curso alternativo de jornalismo.
Tema do nosso documentário GARRAFAS AO MAR: A VÍBORA MANDA LEMBRANÇAS - o primeiro produzido e exibido pela Globonews -, Joel era feito de um material que, lastimavelmente, é raro em redações: era um daqueles que acham que jornalista existe não para jogar notícia no lixo, mas para descrever da melhor maneira possível o grande espetáculo da vida - com suas glórias, suas tragédias, seus personagens irrepetíveis.

Quando ele morreu, tentei publicar este texto, uma espécie de obituário, no jornal. Não consegui. Deve ter ido para o lixo.
Vai aqui, como lembrança:
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O que dizer de um grande repórter ?
Diga-se que, numa tarde, sem ter o que fazer num quarto de hospital, ele foi capaz de contar o número de aviões que cruzavam os céus.
A cena, testemunhada pelo abaixo-assinado:
Enrolado num lençol verde para atenuar o frio do ar-condicionado ligado na potência máxima, o ex-correspondente de guerra Joel Silveira descobriu uma maneira originalíssima de combater o tédio que se abatia sobre ele nas tardes infindáveis do quarto 1122 do Hospital dos Servidores do Estado, no centro do Rio, numa das vezes em que esteve internado: resolveu contar quantos aviões passavam no céu.
O quarto 1122 oferece uma bela vista da Ponte Rio-Niterói. Da cama de Joel, era possível enxergar o intenso tráfego de aviões que se dirigiam ao Aeroporto Santos Dumont. “Já contei quarenta e três aviões. Agora, chega” – disse, ao dar por encerrada a apuração de dados aeronáuticos para uma reportagem que, ele sabia, jamais seria escrita.
A contagem de aviões nos céus do centro do Rio foi a última tarefa jornalística daquele que era chamado por Assis Chateaubriand de “a víbora”.
O apelido lhe foi dado pelo chefão dos Diários Associados depois que Joel escreveu uma reportagem recheada de ironias sobre as damas do soçaite paulistano. O título de “maior repórter brasileiro” também acompanhou inúmeras vezes o nome de Joel Silveira – que, aos trinta e dois anos, foi enviado por Chateaubriand para os campos de guerra na Itália,na Segunda Guerra Mundial.
”Fui para a guerra com 32 anos.Voltei com 80.O que a guerra nos tira – quando não tira a a vida – não devolve nunca mais” – diria, pelo resto da vida. Viu o sargento Wolf ser fuzilado por uma patrulha alemã. O texto que Joel mandou para os Diários Associados começava na primeira pessoa : “Vi perfeitamente quando…..”.
Joel Silveira era representante de uma categoria rara: a dos repórteres que dão um toque pessoal e inconfundível ao que escrevem. Passou a vida lamentando não ter abordado Ernest Hemingway que, solitário, bebia conhaque num café da Paris do pós-guerra.”Perdi a chance de pedir uma entrevista. O pior que poderia acontecer era levar um soco de Hemingway- o que garantiria uma bela matéria”. Rubem Braga foi companheiro de Joel na aventura européia durante a guerra.
Com Nélson Rodrigues – de quem foi companheiro de redação em publicações como a Manchete a e Última Hora – Joel tinha relações distantes.
Depois de ficar em silêncio observando Joel datilografar furiosamente um artigo na redação, Nélson Rodrigues soltou uma exclamação: “Patético !”. Dias depois, Joel devolveu o gesto. Diante da mesa de Nélson Rodrigues, bradou : “Dramático !”.
O humor afiado transformou-o em personagem de incontáveis histórias dos bastidores do jornalismo. Sempre que tinha chance, encaixava em seus artigos uma observação contra dois tipos que detestava gratuitamente : os tocadores de cavaquinho e os alpinistas.
“O cúmulo do ridículo – beirando o grotesco – é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”- escreveu, num dos seus livros.
Em outro texto,perguntou: “Pode haver algo mais idiota do que um alpinista ? “.
Depois de consumir quantidades oceânicas de uísque, passou os últimos anos da vida abstêmio.”Já não tenho com quem beber. Meus amigos se foram. Nada é tão triste do que beber sozinho”. Passou os últimos anos declarando : “Sou a maior solidão do Brasil”.
Repórter a vida inteira, dizia que, se houvesse justiça na hierarquia das redações, os donos dos jornais seriam subordinados aos repórteres. Só teve uma experiência como dono de jornal. Publicou, no início dos anos cinqüenta, um jornal, Comício, que reunia um time de primeira : Clarice Lispector, Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Castelo Branco.
Dizia que tinha perdido a conta de quantos livros publicara. Entre os títulos mais conhecidos, estão “A Guerra dos Pracinhas”, “Tempo de Contar” e o autobiográfico “Na Fogueira”.
Resumiu assim uma trajetória iniciada num jornalzinho de escola em Sergipe,em 1935 : “Passei a vida vendo a banda passar. É o que todo repórter deve fazer”. Conheceu pessoalmente dois cardeais que, depois, seriam indicados Papas : João XXIII e Paulo VI. Teve um encontro com Pio XII. Os encontros com os Papas não foram suficientes para transformá-lo em homem religioso . Cético, gostava de repetir o poeta Murilo Mendes : “Deus existe. Mas não funciona”.
Atento aos fatos até o último momento, disse-me, por telefone: “Estou morrendo. É o fim”.
Uma das lições que aprendi: jornalista de verdade é aquele capaz de contar aviões na cama de um hospital.

Posted by geneton at março 3, 2015 01:26 PM
   
   
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