setembro 19, 2014

CENA SURREALISTA: O DIA EM QUE A POLÍCIA FEDERAL ESTEVE NO ENCALÇO DO LOCUTOR-QUE-VOS-FALA. MOTIVO: UM FILME DE ARNALDO JABOR ( E OUTRAS ANOTAÇÕES SOBRE OS VERDES ANOS )

Descubro, por acaso, num escaninho virtual qualquer, um texto que me foi pedido, faz alguns anos, sobre o Diário de Pernambuco.
Trata de uma época "braba": o início dos anos setenta. É inacreditável, mas a Polícia Federal perdia tempo querendo saber por que um repórter escreveu um sinal de reticências! Ressuscito o texto. Ei-lo:
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Se eu fosse supersticioso, teria me recusado terminantemente a sair da maternidade: nasci numa sexta-feira 13, num beco sem saída. A história tinha tudo para dar errado. Para dizer a verdade, deu. Mas continuo tentando. Não custa nada.


( O grande Paulo Francis disse uma vez que, se tivesse a capacidade de falar cinco minutos depois de nascer, teria inspecionado a paisagem ao redor e perguntado: "Quem disse que eu queria vir para esta joça? ". Faço minhas as palavras do bebê Francis ).
Posso dizer, sem medo de errar, que sou um zagueiro-central frustrado, cuja maior façanha foi marcar um gol de bicicleta, numa pelada na praia do Janga, durante um fulminante contra-ataque, num dia azul de verão de Olinda. O gol foi prontamente anulado por um banhista que passava pelo local.
Fora dos gramados, começo a escrever em jornal aos treze anos de idade, no início de 1970, no suplemento “Júnior” - que circulava aos sábados, no Diário de Pernambuco.
Inocente como todo zagueiro-central amador,cometo o pecado mortal de de tentar imitar o estilo bombástico de David Nasser em “O Cruzeiro”. Os leitores infanto-juvenis resistiram bravamente ao trauma provocado por meus artigos. O suplemento era dirigido por Fernando Spencer e por D. Loydes Marques dos Reis, a famosa “Tia Lola”, a quem devo agradecimentos, pelo incentivo nos verdes anos.
Depois, passei três anos na reportagem geral do Diário de Pernambuco. As lições que a gente aprende no início da profissão são, provavelmente, as mais importantes, porque ficam para sempre.
Adquiri ali, nos meus primeiros tempos na redação do Diário, uma crença que me acompanha até hoje: a reportagem é a função mais importante e mais fascinante do Jornalismo. É claro que, sem editores, os jornais não iriam para a rua. Mas, sem repórteres, as notícias não chegariam às redações.
Carrego comigo – nítidas – outras tantas lembranças: o intenso barulho das máquinas de escrever, principalmente no início da noite, hora em que os repórteres e editores começam a “correr contra o relógio”.
A morte das máquinas de escrever decretou uma estranha lei de silêncio nas redações. Hoje, a aparente assepsia das redações contrasta com aquela sinfonia desafinada que aprendi a ouvir, ali, nos primeiros anos da década de setenta.
As cenas que guardo na lembrança encheriam páginas e páginas de um livro que,certamente, jamais escreverei, porque espero estar sempre ocupado em busca de boas histórias e bons entrevistados – que são os outros, não eu. Não me julgo ,sinceramente, um personagem tão interessante. Não sou.
De qualquer maneira, eu me lembro do Dr. Antônio Camelo – na época, superintendente do Diário de Pernambuco, homem que a redação encarava com reverência – me chamando à sala que ele ocupava, no segundo andar, para dar uma missão àquele repórter iniciante: queria que eu fizesse uma reportagem “completa” sobre as condições de funcionamento do hospital psiquiátrico da Tamarineira. “Vá lá, entre sem dizer que é repórter, diga que tem uma irmã internada lá, faça qualquer coisa, mas volte com a matéria!”.
Com a petulância típica dos adolescentes, eu disse “pode deixar”. De fato, entrei sem me anunciar como repórter. O fotógrafo ficou acompanhando tudo à distância. Consegui falar com os internos. Ouvi queixas sobre a qualidade da comida servida. Disseram-me que o feijão vinha com pedra.
Voltei ao hospital – dessa vez, já na condição declarada de repórter. Procurei a direção. Ouvi que o cardápio dos pacientes era um primor de variedade : um dia peixe,em outro frango,em outro carne. Que história era aquela de reclamações?
Volto para a redação do Diário. Graças à missão que me fora dada por “Doutor Camelo” (era assim que todos o chamávamos), aprendi, na prática, uma lição fundamental na vida de qualquer jornalista: há sempre duas verdades - a "verdade oficial" e a "verdade dos fatos".
Nem sempre o que os porta-vozes oficiais dizem é verdadeiro. Se eu tivesse ouvido apenas a direção do hospital, teria voltado para a redação certo de que o serviço oferecido aos pacientes era digno de um hotel de cinco estrelas. Mas, misturado aos internos, pude constatar que existia o outro lado da moeda.
O Brasil vivia os chamados “anos de chumbo”. O início dos anos setenta nem sempre era um época divertida para um candidato a jornalista. Eu me lembro de ter visto chegar à redação do Diário de Pernambuco comunicados da Polícia Federal avisando, por exemplo, que estavam vetadas quaisquer referências, comentários, entrevistas ou notícias sobre a proibição de uma peça de teatro escrita por Chico Buarque – “Calabar“.
A divulgação de notícias sobre discursos pronunciados por Dom Hélder no exterior também estava vetada.
Uma cena que vivi na redação do Diário ilustra o tamanho da escuridão: publiquei, numa coluna que eu assinava no caderno “Domingo” – em formato tabloide – um ligeiro comentário sobre o filme “Toda Nudez Será Castigada”, dirigido por Arnaldo Jabor a partir de uma peça de Nélson Rodrigues.
O filme, premiado no exterior, acabara de ser proibido pela censura. Lá pelas últimas linhas do comentário, eu falava da proibição e dizia que era “uma pena”. O artigo terminava com reticências.
Bastou para que dois agentes da polícia federal fossem enviados à redação do Diário, no início da tarde da segunda-feira, à procura do autor de tão perigoso comentário. Eu não estava. Procuraram pelo editor do caderno “Domingo”. Era João Alberto – na época, cronista social já famoso. Lá se foi João Alberto para a Polícia Federal, para tentar explicar ao superintendente o que queriam dizer aquelas reticências.
Quando cheguei à redação, fui chamado para a “sala do Doutor Camelo”. Lá estavam João Alberto, Gladstone Vieira Belo (na época,editor-chefe) e o próprio Doutor Camelo discutindo o caso das reticências. ( Eu estava em início de carreira. Tinha dezessete anos de idade. Começara a trabalhar como repórter, no Diário, aos dezesseis - em agosto de 1972 ).
Os três, a bem da verdade, me tranquilizaram: disseram que não era a primeira vez que tais problemas ocorriam. Não seria a última. Que eu continuasse o meu trabalho. Mas João Alberto não escapou de ouvir uma bronca do superintendente: para o policial, era uma “irresponsabilidade” um mero estudante - que nem tinha entrado no curso de Jornalismo ainda - ter uma coluna assinada no Diário de Pernambuco.
Hoje, a cena parece surrealista: mas houve um tempo em que a Polícia Federal gastava pessoal e gasolina em busca de um estudante que escrevera um sinal de reticências no Diário de Pernambuco! O ano: 1973. Quanto desperdício, quanto surrealismo, quanta alucinação!
Fragmentos de lembranças vão passando agora diante de mim, como um filme que fosse exibido aos pulos.
Eu me lembro de ter visto Luiz Gonzaga,o “Rei do Baião”, sentado no fundo da redação do Diário. O que ele estaria fazendo ali? Não me lembro. Mas sei que aproveitei a chance para fazer uma entrevista que foi publicada no domingo seguinte.
Ou Alceu Valença sentado na ante-sala da redação, empenhado na tarefa de divulgar a música “Vou Danado pra Catende” – que seria apresentada num festival de música da TV Globo.
Ou Gilberto Freyre, o Mestre de Apipucos, interrompendo uma entrevista para consultar no dicionário o exato significado de um adjetivo. Virou-se para mim, perguntou :“Viu como consulto dicionários ?”. Vi, sim. Se o gênio Gilberto Freyre se dava ao trabalho de consultar dicionários,o mínimo que eu poderia fazer era tentar um dia ler o Dicionário Aurélio da primeira à última página.
Ou o escritor de livros infantis Malba Tahan ditando para mim, na sala de Gladstone Vieira Belo, aquelas que seriam suas últimas palavras. O escritor viera ao Recife para fazer conferências. Depois de deixar o prédio do Diário de Pernambuco, foi para um Hotel em Boa Viagem – onde morreu de um enfarte fulminante.
Jornalista faz humor até em situações dramáticas. Eu me lembro de que alguém fez circular pela redação uma lista de “inimigos públicos” que eu deveria entrevistar – na esperança de que acontecesse com eles o que aconteceu com o escritor.
O que um repórter iniciante vive na redação do jornal que o acolhe é fundamental para o aprendizado profissional. Sem exagero : os anos que passei na redação do Diário de Pernambuco valerão sempre para mim como um curso intensivo.
Anos depois, li um conselho de um editor inglês : “Quando estiver ouvindo presidentes e ministros,líderes sindicais e empresários,iogues e delegados de polícia,o repórter deve sempre perguntar a si mesmo : Por que será que estes bastardos estão mentindo para mim ? “.
Sem saber, eu já tinha aprendido essa lição quando saí da redação do Diário para tentar fazer uma reportagem
no Hospital da Tamarineira.
A lição ficou . A verdade pode ter várias faces. O repórter deve desconfiar sempre. Não custa nada perguntar intimamente: afinal de contas, "por que será que estes bastardos continuam mentindo para mim ?".
PS: Ah,sim. Confesso: é claro que as reticências eram uma ironia.

Posted by geneton at setembro 19, 2014 12:18 PM
   
   
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