outubro 09, 2014

"E PASSAMOS / CARREGADOS DE FLORES SUFOCADAS / MAS, DENTRO, NO CORAÇÃO/ EU SEI / A VIDA BATE / SUBTERRANEAMENTE, A VIDA BATE"

( OU: O DIA EM QUE O POETA GULLAR DESCOBRIU QUE "AS PAREDES, OS PRÉDIOS, AS RUAS, SÃO INDIFERENTES AO QUE A GENTE PENSOU, SOFREU E CHOROU. TUDO SE APAGA").
Ferreira Gullar acaba de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Só faltou um voto para a unanimidade. Um dos acadêmicos preferiu votar em branco.
Aqui, um relato sobre uma de nossas entrevistas - em que ele fala da experiência de rever o país em que tinha vivido momentos dramáticos, no exílio:

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Um poeta brasileiro – que também era militante político – desembarca no Chile, no início dos anos setenta, para viver uma experiência que tinha tudo para ser historicamente fascinante: pela primeira vez, o país era governado por um presidente socialista que chegara ao poder pelo voto direto.
Exilados brasileiros apostavam que uma primavera estava nascendo ao pé da Cordilheira dos Andes. O Eldorado dos militantes políticos ganhava um novo nome: Santiago do Chile.
O poeta era Ferreira Gullar. O presidente era Salvador Allende. A experiência terminou em tragédia: as Forças Armadas bombardearam o Palácio de La Moneda no dia 11 de Setembro de 1973.
Allende saiu do Palácio sem vida ( há controvérsias sobre se teria cometido suicídio ou se teria sido morto, o que não faz tanta diferença).
A Junta Militar, comandada pelo general Augusto Pinochet, instalou uma ditadura que, como se sabe, não brincou em serviço. Há relatos de cenas tétricas: helicópteros pousavam no gramado do Estádio Nacional para recolher presos que, em seguida, desapareciam. Nem sempre se sabia para onde eram levados. Pelo menos cinco exilados brasileiros estão até hoje desaparecidos.
Traumatizado pela experiência que viveu no país, Ferreira Gullar passou décadas sem voltar ao Chile. Quando finalmente voltou, teve sentimentos “contraditórios”.
Nesta expedição de volta ao cenário das turbulências que testemunhou no início dos anos setenta, o poeta Ferreira Gullar contemplou, por exemplo, a fachada do Palácio de La Moneda. Pegou um táxi para visitar a rua onde vivera.
Descobriu que a paisagem é absolutamente indiferente ao que a gente sente. As cidades, diz ele, são feitas de “pedra”. Não se contaminam com as lembranças, dramas, aventuras, alegrias, tragédias e vitórias de cada um. A memória é algo pessoal e intransferível – que cada um carrega dentro de si, até o dia do apagão final. Fora deste território feito de lembranças, o que há é a paisagem, com seus palácios, edifícios, ruas, becos e avenidas, gloriosamente indiferentes aos nossos espantos.
Um trecho da entrevista que Ferreira Gullar nos concedeu para o DOSSIÊ GLOBONEWS:
“Estava lá o mesmo palácio onde Salvador Allende foi assassinado e diante do qual fiquei tantas vezes em manifestações políticas. Não havia mais nada. Era aquele silêncio. Eu, então, senti saudade daqueles tempos. Agora, tudo está tranquilo, mas falta o fogo, a luta pelo mundo melhor e pela transformação! A gente nunca está contente”.
“De repente, estou de novo diante daquele prédio – e não ficou nada do que aconteceu lá. O porteiro que me recebe não sabe quem sou nem sabe que morei ali. A escada é a mesma, os degraus são os mesmos. Mas não têm nenhuma marca de mim ou do que aconteceu. Da mesma maneira que diante do La Moneda, falei assim: mas cadê aquelas coisas que aconteceram aqui ? Cadê a tragédia ? Cadê o drama humano ? Apagou tudo! Por um lado, tudo bem: o Chile agora é muito mais feliz do que naquele momento. Mas é uma coisa contraditória. Porque a gente vê que nós, na verdade, é que carregamos as coisas conosco”.
“Fui ao prédio onde morei, na avenida Providência. Era diferente. Não reconheci. A sensação que dá é essa: as paredes, as ruas não guardam nada da gente. É como se nada tivesse acontecido ! Está tudo em minha cabeça. É tudo memória minha. As paredes, os prédios, as ruas são indiferentes ao que a gente faz, ao que a gente pensou, sofreu e chorou. Tudo se apaga”.
Ferreira Gullar é um poetaço.
Um trecho do belo “A Vida Bate” :
“Alguns viajam:
vão a Nova York,
a Santiago do Chile.
Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega,
detrás de balcões e de guichês.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas,
a cidade é o refúgio do homem,
pertence a todos e a ninguém.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas.
És Antônio ?
És Francisco ?
És Mariana ?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate.
Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina”

Posted by geneton at outubro 9, 2014 11:30 AM
   
   
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