outubro 02, 2014

DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 4

JORNALISTA NÃO PODE SER TIETE - NUNCA, JAMAIS, EM SITUAÇÃO ALGUMA ( OU: DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO -
CAPÍTULO 4)
( Depoimento colhido por alunas do curso de jornalismo da Universidade do Povo/ SP e publicado num livro que reúne entrevistas de quinze repórteres brasileiros sobre a profissão:
http://goo.gl/cQQwaB
É longo. Vou republicá-lo aqui, "em capítulos", como uma pequena contribuição a estudantes eventualmente interessados no que diz um quase-dinossauro:
Gravando! ):

Hoje em dia, nas redações, é comum o repórter realizar apurações por telefone. Qual é a sua opinião a respeito?
GMN: "Não tenho, sinceramente, preconceito contra apuração por telefone. É claro que nada substitui o contato pessoal. É muito bom entrevistar a pessoa frente a frente, olho no olho. É possível perceber as reações, os gestos, o silêncio, as pausas, as vacilações. Tudo serve como informação sobre o entrevistado. Mas fiz quinhentas mil matérias por telefone, especialmente em jornal.
Eu me lembro quando liguei na casa de uma sobrevivente do Titanic [Eva Hart, em 1992]. Gravei nossa conversa. Daria uma página de jornal. Carlos Drummond de Andrade foi o caso “mais telefônico” que eu tive [risos]. Drummond se sentia melhor falando por telefone do que pessoalmente. Eu ficava ligando para ele quando eu trabalhava no Jornal da Globo. Se não me engano, foi Ziraldo quem disse que Drummond era um ser “eminentemente telefônico”. Já o grande poeta João Cabral de Melo Neto disse que, quanto mais perto você estivesse fisicamente de Drummond, mais ele parecia distante.
Agora, quanto mais longe você estivesse, mais ele se abriria. O telefone, então, era a “arma” ideal.
Preparei um questionário com cerca de 70 perguntas: tudo o que eu queria saber sobre Drummond. Armei o gravador na minha casa, liguei e ele atendeu. Estava gravando desde que ele disse “alô”. Brinco que quebrei o sigilo telefônico do maior poeta brasileiro. Havia um pretexto para a entrevista, porque o poema “No meio do caminho” faria 60 anos em 1988. Usei esse argumento. Drummond contra-argumentou que não valia a pena lembrar desse aniversário.
Quando insisti para que ele desse a entrevista, ele disse que não daria, porque a filha estava doente no hospital. Quando perguntei se poderia ser por telefone, ele disse que poderia falar comigo naquele momento, porque estava disponível. Ao ouvir a resposta de Drummond, senti como se estivesse fazendo um gol no Maracanã [risos]. Gravei toda a entrevista. Depois, escrevi o livro Dossiê Drummond. Dezessete dias após a entrevista, Drummond morreu. Aquele longa entrevista telefônica terminou se tornando, então, uma espécie de testamento do poeta. Se eu tivesse tido a atitude de dizer “não, por telefone, não” ou “não quero, porque telefone tira a proximidade”, eu teria perdido a entrevista com Carlos Drummond de Andrade, uma das mais marcantes que fiz na vida. Transcritas, as respostas de Drummond por telefone deram duas mil linhas datilografadas.
Conclusão: se não der para fazer pessoalmente, faça por telefone, código Morse, fumaça, qualquer coisa. Isso é absolutamente secundário em alguns casos".

Você já entrevistou mestres como os escritores João Cabral de Melo Neto e Nelson Rodrigues. Foi pautado para essas entrevistas ou você mesmo escolhe seus entrevistados?
GMN: "Em 98% dos casos, tomei a iniciativa de entrevistar. Se em alguns momentos eu me deixasse levar pelo que a profissão estava me oferecendo, hoje eu estaria, certamente, fazendo uma coisa completamente diferente - e pior - do que estou fazendo.
Há algum tempo, por algum motivo, o tipo de matéria que eu sempre fiz já não encontrava espaço na TV aberta. Tomei iniciativa de ir fazer outra coisa. Bati em outra porta. Bem ou mal, o importante, para mim, é fazer reportagem e entrevista, nem que seja em "circuito fechado".
Fui para Globo News. Quanto a Drummond, tomei a iniciativa, ninguém me pediu para fazer. Idem no caso do Rubem Fonseca, que detestava jornalista. Uma amiga minha havia me dito que Rubem Fonseca faria uma conferência em Paris. Fui até a conferência e o abordei. Rubem Fonseca disse que não daria entrevista. Ainda brincou: disse que era tímido. Insisti, mas vi que ele não daria. Então, ele me disse: “Grave o que eu vou falar. Depois, você faz o que quiser”.
Gravei toda a conferência. Voltei para o Brasil, transcrevi a fala, que era um depoimento biográfico em primeira pessoa. Ninguém me pediu para fazer. Deixei o texto pronto na portaria do Jornal do Brasil, endereçado a Zuenir Ventura, que eu não conhecia pessoalmente. Avisei que era um depoimento do Rubem Fonseca. Zuenir terminou contando esta história no livro de memórias que publicou. Disse que, quando a secretária lhe disse que um repórter chamado Geneton tinha deixado uma matéria com Rubem Fonseca, pensou: “Isso não deve ser verdade. Primeiro: Rubem Fonseca não fala. Segundo: não pode existir alguém chamado ‘Geneton’, ainda mais Neto. Quer dizer que existem três Genetons? O pai, o filho e o neto? Impossível!” [risos]. Virou "folclore".
Não existem, na verdade, três "Genetons" na família, mas dois: meu avô e eu...De qualquer maneira, quando pegou a reportagem que deixei no JB, endereçada a ele, Zuenir viu que era verdade. Publicou aquilo sem mudar uma vírgula. Quando o Rubens Fonseca ficou sabendo do texto, levou um susto. Não acreditava [risos]. O caso me motivou a ir atrás de Carlos Drummond de Andrade. É o que eu digo: ou você toma iniciativa ou fica esperando que as coisas caiam do céu. É melhor você entrar em campo".

Você comentou há pouco que gostaria de ter entrevistado o ex-presidente George Bush. Por quê?
GMN: "Para entender essa mentalidade meio “fundamentalista” americana. Teria curiosidade de falar sobre o Iraque, as dúvidas que vão ficar, a decisão de invadir o país. Entrevistei um assessor do Bush e ele me explicou algumas coisas a respeito, mas, em última instância, como a decisão é sempre do presidente, seria interessante falar com o próprio Bush. Poderia ser por telefone, se ele não quisesse pessoalmente..."
Qual pergunta direta você faria para o Bush, por exemplo?
GMN: “O senhor se arrepende da decisão de ter invadido o Iraque?” Poderia ser um bom começo ou não, porque o melhor é deixar as perguntas mais incômodas para o final".
Então, o melhor é deixar as perguntas incômodas para o final... Já passou por alguma experiência, durante uma entrevista, que gerou uma reação surpreendente?
GMN: "É melhor começar com assuntos mais leves, até que tenha construído um clima para as perguntas mais incisivas. Mas nem sempre é assim. Quando fiz uma primeira entrevista com o [ex-presidente Fernando] Collor, resolvi iniciar com algumas opiniões que Pedro Collor tinha dito sobre ele. Pedro Collor tinha falado: “Fernando era predestinado, inteligente, carismático, comunicativo, demagogo, irresponsável, ambicioso, vingativo e ganancioso”. Então, comecei a entrevista dizendo ao ex-presidente: “o senhor é predestinado, inteligente [...] vingativo e ganancioso”. E ele só me olhando [risos]. Então, completei: “São palavras do seu irmão”. Aquilo criou um clima tenso a princípio, mas terminou com ele reagindo bem à entrevista.
É difícil lembrar totalmente, mas já houve caso de eu tocar num assunto e o entrevistado não gostar. A entrevista mexe um pouco com a vaidade do entrevistado. Há várias estratégias que podem ser usadas numa entrevista. Se há alguma coisa que mexe com o ego do entrevistado, como um elogio que alguém fez sobre ele, você pode usar numa pergunta para deixar o entrevistado mais à vontade. Assim, depois, você pode fazer as perguntas mais duras. Mas a regra geral é basicamente essa: deixar as perguntas mais incômodas para o final. Isso funciona sempre".
Analisando seu jeito de entrevistar, percebemos que você costuma fazer perguntas que exigem respostas descritivas do entrevistado. Por exemplo, em 2011, na entrevista com Ethan McCord, ex-soldado americano que atuou na guerra do Iraque e foi repreendido pelo Exército dos EUA por salvar crianças durante um bombardeio, você fez a seguinte pergunta: “como era um dia típico na guerra?”. Isso é proposital?
GMN: "As entrevistas descritivas são as que rendem mais em televisão. Posso citar vários casos. Um exemplo é o do ex-senador Paulo Brossard. Fiz uma entrevista recentemente com ele. Pedi que ele descrevesse o dia em que José Sarney iria renunciar à presidência da República. E ele contou: “Cheguei ao gabinete, Sarney disse que iria renunciar. Fiquei perplexo”. Dá quase pra ver a cena. É o tipo de descrição que pode virar, também, um documento.
Sobre o caso do soldado americano: a entrevista ficou forte porque ele foi "descritivo". Disse que se aproximou da van e viu a menina ferida lá dentro. Isso dá uma dramaticidade que dispensa adjetivos: é uma coisa factual. O jornalismo precisa se render à força avassaladora dos fatos. Gosto de entrevistas que são essencialmente descritivas, mais do que as opinativas. É uma escolha que faço.
A entrevista pode render mais se o entrevistado se preocupar mais com a descrição do que com a opinião. É o que aconteceu com Newton Cruz, por exemplo. Durante a entrevista, ele deu opiniões, mas descreveu com detalhes cenas dos bastidores da noite em que aconteceu o atentado ao Riocentro. Nesta hora, jornalismo pode produzir um documento, o tal "primeiro rascunho da História". Tenho uma obsessão com essa capacidade do jornalismo de produzir memória".
Já aconteceu alguma situação embaraçosa durante as entrevistas?
GMN: "Fiquei em uma situação meio deselegante em relação ao caso que o repórter Carl Bernstein teve com a atriz Elizabeth Taylor. Perguntei se ela não era "velha demais" para ele. Percebi que ele ficou no limite [risos].
Já levei até um fora uma vez, mas desse eu gostei, porque não foi agressivo. Aconteceu com Charlotte Rampling, aquela atriz inglesa. Quando eu tinha 17 anos, era Deus e ela para mim. Sempre achei Charlotte Rampling linda. Quando ela esteve no Rio para um festival, arrumaram uma entrevista para o Fantástico. Fui fazer. Ela tem aquela elegância inglesa, é meio lady, admirável. Uma das coisas interessantes é que ela se recusa a fazer operação plástica. É uma postura louvável. É linda até hoje, mas poderia ser uma daquelas peruas siliconadas.
Durante a entrevista, perguntei: “você se sente discriminada por essa indústria da juventude, pelo fato de assumir a idade?” E ela me rebateu: “Discriminada...como?”. Falei: “Pelo fato de você...”. Irritada, ela nem esperou que eu completasse: “mas por que você me pergunta isso?” Deixamos essa parte no ar na entrevista da Globo News. Ao final, ela se levantou e eu agradeci.
A cena genial aconteceu quando ela estava saindo da sala. O cinegrafista continuou gravando. Ela me disse : “See you next time” [Vejo você na próxima vez]. Um segundo depois, virou para trás e disse: “Maybe...”[talvez]. E foi embora. Num estilo inglês, ela estava me dizendo, na verdade: “Nunca mais!”. Isso é que é ser elegante!
Houve quem achasse que fui meio deselegante com ela por tocar no assunto da idade, mas a entrevista rendeu bem justamente por essa razão. É muito melhor que ficar dizendo: “ah, você é linda. Você continua muito bonita”. Eu me esforço tremendamente para não passar recibo de admirador. Jornalista não pode ser tiete".
Muita gente opta pelo jornalismo pelo glamour que a carreira pode oferecer. Qual é a sua opinião a respeito?
GMN: "Jornalista convive com celebridades. Mas, se achar que pertence àquele mundo, estará morto como jornalista. Uma cena surrealista que passei, por exemplo, foi com o ex-presidente Collor. A imagem que sempre tive é aquela dos tempos em que ele era presidente: todo pomposo, descia a rampa do Palácio do Planalto, em Brasília.
Quando acabou a entrevista, em Maceió, para aquela série sobre ex-presidentes que fiz para o Fantástico, ele desceu com a gente até o carro, na maior simplicidade. Só não pegou o equipamento do cinegrafista porque não pedimos. Começamos a conversar sobre a revista Realidade. Ele dizendo: “Gostava muito da Realidade, me lembro do Pelé na capa”. Situações assim oferecem um risco ao jornalista: o de se achar “íntimo” de celebridades. Mas é preciso separar drasticamente as coisas".
Você costuma afirmar que no Brasil não há uma tradição de prosa clara, de um texto plenamente compreensível. Por quê?
GMN: "Estou citando Paulo Francis [1930-1997] - que fez essa afirmação em um encontro na Folha de São Paulo. Francis lamentava o fato de o Brasil não ter criado uma tradição de texto claro, ou seja, "uma prosa clara e instruída". Ainda vivemos o equívoco de achar que escrever difícil é escrever bem, mas é exatamente o contrário.
O próprio texto do Paulo Francis é um belo exemplo de como escrever simples e bem, independentemente de você concordar ou não com o que Paulo Francis dizia. O texto era arrebatador.
Em televisão, a falta de clareza é muito mais grave. Em jornal, você pode reler uma frase que não entendeu, mas a TV não lhe dá essa chance.
O próprio Paulo Francis escreveu: “Nossa imprensa: chata, previsível e empolada. Como é chata, meu Deus!”. Dou toda a razão a ele. Se você pegar um texto jornalístico de Paulo Francis e comparar com o que se vê corriqueiramente nos jornais, notará em cinco segundos a diferença. Não é possível começar cinco parágrafos de uma matéria com “segundo ele”. Eis aí um exemplo da chatice! O texto dá tédio. Depois, os jornais ficam reclamando que estão perdendo leitores...
Falo como leitor: outro problema é a falta aguda de criatividade. Há 40 anos se diz que o jornal não deve repetir o que a televisão deu. Quem, no entanto, abrir o jornal do dia seguinte, verá, na primeira página, 90% daquilo que já soube na véspera pela televisão. É algo que hoje já acontece também com a TV em relação à Internet. Quem tiver vasculhado a Internet já estará sabendo das notícias mais importantes quando for ver o telejornal. A informação instantânea, tornada real pela fantástica Internet, cria novos problemas para os "velhos meios".
Fiz um teste, uma vez. O Brasil tinha ganhado da Argentina por 2 a 0. Disse: “99% da população brasileira já conhecem esse resultado. Se amanhã o jornal botar na manchete que o Brasil ganhou de 2 a 0 da Argentina, é melhor fechar”. Não deu outra. A manchete era essa [risos]. É uma dessas situações tristes da imprensa escrita.
Em congressos de jornalismo, vivem dizendo que o jornal tem que oferecer uma abordagem diferenciada, aprofundar mais, fazer um texto bem cuidado, investir na reportagem. O diagnóstico já foi dado há décadas. Mas, guardadas as exceções, os jornais continuam fazendo exatamente o oposto. Ou seja: tudo errado. Não avançam um milímetro em relação ao que a televisão ou que a própria Internet já deu. Nesse ponto, a situação do jornal é meio dramática. Ou muda ou morre"

É uma coisa do Brasil mesmo ou acontece também no exterior?
GMN: "Posso falar da Inglaterra. Talvez porque tenha morado lá, eu me confesso meio anglófilo em matéria de gosto de imprensa. Quando lia as edições dominicais dos "jornais de qualidade" ingleses e os comparava com os do Brasil, era deprimente. A palavra é essa. Depressão profunda.
Você não consegue largar o jornal britânico. São pautas diferentes, textos bem escritos, uma diagramação bonita. Bastar pegar o Sunday Telegraph para ver a quantidade de matérias especiais. Eu estava lá na eleição do Tony Blair [então candidato a Primeiro-Ministro pelo Partido Trabalhista]. Aqui no Brasil, por exemplo, quando sai uma pesquisa do Ibope, o Jornal Nacional dá o resultado na véspera, e, nos jornais do dia seguinte, na primeira página, 90% dos textos dizem: “Lula tem 55%, Serra tem 30%”....
Tinha saído uma pesquisa que apontava que o Partido Trabalhista iria ganhar a eleição. Quem estava no poder era o John Major [do Partido Conservador]. O Daily Telegraph, em vez de botar o velho título “Ibope dá vantagem a Lula”, que é o que os jornais daqui fazem, pegou uma foto do John Major sozinho em frente à Downing Street [residência oficial do Primeiro-Ministro da Inglaterra]. O titulo era: "Este homem pensa que vai ganhar a eleição". Quer dizer: quem bate os olhos numa chamada desta já fica interessado pelo assunto. É um jeito pouco óbvio e nada burocrático de dar uma notícia que a TV, aliás, já tinha dado".

Posted by geneton at outubro 2, 2014 11:36 AM
   
   
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