outubro 01, 2014

DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 3

"NÃO SE PODE SAIR DA REDAÇÃO COM A MATÉRIA PRÉ-CONCEBIDA" . OU: DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 3

( Depoimento colhido por alunas do curso de jornalismo da Universidade do Povo/ SP e publicado num livro que reúne entrevistas de quinze repórteres brasileiros sobre a profissão:
http://goo.gl/cQQwaB
É longo. Vou republicá-lo aqui, "em capítulos", como uma pequena contribuição a estudantes eventualmente interessados no que diz um quase-dinossauro:
Gravando! ):

Houve, nas entrevistas que você fez com o general Newton Cruz e com o general Leônidas Pires, que chefiou o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna - do I Exército no Rio de Janeiro entre março de 1974 e janeiro de 1977), algo que foi dito que o incomodou?
GMN: "Já me perguntaram até se fiquei com medo. Não fiquei com medo, mas, em alguns momentos, quando os generais me dirigiam perguntas, evitei responder, porque minha função, ali, era a de jornalista: eu não estava ali pra fazer um debate com Leônidas Pires ou com o Newton Cruz. Mas quando o general Leônidas falou sobre algo que me pareceu muito injusto sobre o [ex-governador] Miguel Arraes ter "fugido", tive que lembrar que Arraes foi deposto do governo, preso na ilha de Fernando de Noronha e exilado. Teve de sair do Brasil.
Em outro momento da entrevista, ao falar sobre mortes na luta armada, o general perguntava: “É duro de ouvir ? É duro de ouvir? ”. Também há outra parte em que ele disse que nós, da imprensa, tínhamos acesso a eles [generais] na época da ditadura. Tive que rebater, porque não era o que acontecia.
Perguntaram uma vez, logo depois da entrevista, qual havia sido a minha impressão. A impressão que me deu foi a de que eles [generais] falavam com toda convicção, não estavam fazendo teatro ali.
Para eles, a atitude que tomaram em 1964 foi “salvacionista”. Dizem, convictos, que cumpriram uma missão naquele momento, porque, como o Brasil seria "dominado" pelo comunismo, eles "salvaram" o país. A repercussão das entrevistas foi surpreendente.
Ficou claro, para mim, que havia uma sede de informação pela versão dos militares. Já fiz quinhentas matérias com militantes, com gente que sofreu tortura, mas deu para sentir que o público tem o desejo de conhecer a opinião dos militares. Há muitos e muitos personagens que precisam ser ouvidos para esclarecer o que aconteceu. O Brasil vive uma democracia. Devemos, necessariamente, ouvir a voz dos militares, inclusive as mais chocantes".
Como você conseguiu a entrevista com eles? Foi na primeira tentativa?
GMN: "Consegui depois de alguma insistência. Não foi fácil. Só consegui que eles marcassem após a quarta tentativa. O momento era bom: os generais estavam "fora da mídia", meio esquecidos. Em casos assim, é o momento ideal. Isso aconteceu com os dois.
Quando pedi a entrevista a Newton Cruz, ele inicialmente recusou. Disse que já não tinha o que falar sobre o período da ditadura. Não queria se meter em "confusão". Fiquei insistindo. Era perto do Natal. O general chegou a dizer - brincando - que era mal educado e se alterava em entrevistas. “Vou gritar, não vai dar certo”, ele me disse. Eu pensava: “Tomara que ele faça isso, quando eu for gravar a entrevista” [risos]. Continuei insistindo até que ele topou.
Com o general Leônidas, foi a mesma coisa, porque ele não queria falar, mas aí você pode recorrer à vaidade. Eu disse a ele que era essencial que ele desse depoimento sobre os bastidores da noite em que o ex-presidente Tancredo Neves passou no hospital. Era importante ter este registro. E ele terminou aceitando.
Um dia antes da entrevista, liguei pra confirmar e ele disse: “Você se esqueceu que está tratando com um "milico"? Se eu marquei amanhã às cinco horas da tarde, então está confirmado amanhã às cinco! Não tem essa história de vamos ver”. Engraçado.
Um detalhe curioso na entrevista com o general Leônidas: quando fomos gravar, havia um vaso de rosas atrás do lugar onde ele se sentaria. E ele o tirou. É só um detalhe, mas achei interessante. Não sei o que tinha ali, mas ele tirou. Talvez tenha achado que não ia combinar muito.
Os dois generais foram, para mim, exemplos ostensivos de como você não pode se deixar levar por preferências políticas. O importante era tratar os dois com justiça. Ou seja: ser jornalisticamente justo. É o mínimo que um jornalista pode fazer".
O general Leônidas Pires pediu para que a entrevista dele não fosse editada. Acha que ele disse isso por medo de haver alguma manipulação ou frase tirada do contexto?
GMN: "O general disse que podíamos pegar uma frase ali e tirar do contexto, o que sabemos que é verdade. Resolvi deixar o pedido do general no ar. Se eu pegasse uma frase solta, poderia, sim, distorcer o que foi dito. Nesse ponto, temos que reconhecer que esse é um poder que o jornalista possui. É o poder de apresentar uma personalidade ao público. Temos um enorme poder de manipular e omitir. Uma vez, um articulista escreveu uma coisa politicamente incorreta, mas que é, de certa maneira, verdadeira. Disse que, em última instância, quem manda no veículo de comunicação é o dono, claro, mas o poder exercido na redação pelos jornalistas é enorme".

Como foi entrevistar Carl Bernstein, jornalista que ao lado do colega Bob Woodward, foi responsável pela série de matérias do The Washington Post sobre o caso Watergate, que levou, em 1974, à renúncia do presidente republicano Richard Nixon?
GMN: "A entrevista com Bernstein foi uma lição que eu tive. Quando era repórter do Washington Post, Carl Bernstein realizou, ao lado de Bob Woodward, aquele sonho de derrubar um presidente da República.
Digo - brincando - que jornalista tem que querer derrubar alguém. Se não for o presidente da República, pode ser o síndico do prédio, o presidente do Palmeiras, o diretor da limpeza urbana, mas precisa derrubar [risos]. Eis uma boa bandeira. Tive que me controlar para não bancar o tiete na entrevista com ele. Fiquei me contendo.
Quando acabou a entrevista, Bernstein estava tirando o microfone e disse: “Ah, essa foi uma das melhores entrevistas que já dei pra televisão!”. Virei pro cinegrafista e disse: “Se você não gravou isso, eu te mato!” [risos] E ele me falou: “Ainda estava ligado”. E eu: “Graças a Deus!”. [risos] Não é todo dia que se recebe um elogio de um jornalista deste calibre, habituado a dar entrevistas a TVs de todo o mundo. São histórias de bastidores.
Depois que gravamos, Bernstein me perguntou: “Você vai para onde?”. Estávamos em São Paulo. Respondi: “Estou indo para o Rio”. E ele disse: “Ah, então me dê o seu contato, porque eu vou te ligar.” Eu fiquei pensando: “Duvido... Carl Bernstein vai me procurar?!”.
Gravei a conferência que ele fez na Câmara Americana de Comércio em setembro de 2007 e fui embora. Quando eu chego em casa, no dia seguinte, tinha um recado na secretária eletrônica: “Hello, Geneton. This is Carl Bernstein. [Olá, Geneton. Aqui é o Carl Bernstein.]”. Pensei: “Que negócio é esse?”. A gravação continuou: “Eu quero convidar você para um jantar hoje lá na Urca. Me ligue no número tal”. É claro que eu gravei essa mensagem e falei para o pessoal de casa: se alguém apagar, vai de castigo ! [risos]. Liguei, mas ele não estava. Deixei um recado. Quando chego no computador, vejo um e-mail de Carl Berstein dizendo: “Quero me encontrar com você”.
Sou um bicho para sair de casa. Não costumo sair, mas não podia perder aquela oportunidade. Então, fui. O encontro aconteceu na casa de uma promoter na Urca. Assim que cheguei, ele disse: “Esse aí fez uma excelente entrevista comigo”. Falou para todo mundo ouvir. Fiquei meio constrangido. O encontro foi aquela coisa social. Eu não ia ficar em cima do cara.
Uma coisa interessante, que cito no livro Dossiê História [2007], é que a gente percebe que, quando o sujeito é bom jornalista, ele é jornalista o tempo todo. Durante o encontro, Bernstein falou: “O que você acha daquela catedral [catedral Metropolitana] aqui no Rio?”. É que ele tinha passado no centro do Rio, visto aquela catedral toda estranha e queria a opinião das pessoas.
A mulher de Bernstein, uma lourona americana, brincou: “Ele é assim até lá em casa. Se vou fazer compras e volto com outra marca de açúcar, ele fica perguntando por que eu mudei de marca”.
Posso dizer que fazer essa entrevista foi um pequeno curso de jornalismo. Tenho Bernstein como ídolo. Eu sei que ele não tem aquele texto maravilhoso do Gay Talese [um dos pais do New Journalism, movimento que revolucionou o texto jornalístico nos EUA, na década de 60], mas as atitudes de Bernstein como jornalista são admiráveis. Afinal, ele revelou, junto com Bob Woodward, um escândalo que provocou a queda do presidente dos Estados Unidos! Quando ele escreve sobre o caso, é de maneira factual: não faz julgamentos. Teve obsessão com a apuração. Não é algo ideológico. Isso eu acho fundamental. Não era, certamente, simpático a Nixon. Não sei em quem ele votava. Tudo indica que votaria no Partido Democrata, mas se aproximou dos assessores de Nixon, que era republicano, para conseguir informações estratégicas. Disse que tudo o que descobriu sobre o caso nasceu da apuração - e não de visões pré-concebidas sobre este ou aquele personagem. Isso vale para todo mundo. Você não pode sair da redação com a matéria pré-concebida".

Posted by geneton at outubro 1, 2014 11:37 AM
   
   
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