novembro 20, 2013

“ISTO É A ESCRITA: O ESFORÇO DE TRANSCENDER A INDIVIDUALIDADE E A MISÉRIA HUMANA, A ÂNSIA DE NOS UNIR AOS OUTROS NUM TODO, O DESEJO DE SOBREPOR-NOS À ESCURIDÃO, À DOR, AO CAOS, À MORTE"

O nome : Rosa. É assim que se chama a mulher que telefona para a redação tarde da noite à procura de um repórter. Quer dar uma notícia sobre “a aparição de uma baleia”.
O repórter suspira, desalentado: a mulher – que fala com sotaque espanhol – deve ser uma dessas loucas que escrevem cartas para as redações ou ligam de madrugada para dar notícias absurdas sobre profecias, iluminações, códigos, conspirações, segredos.
O sotaque só serve para agravar a suspeita: o espanhol é a língua preferida por cartomantes que inventam nomes e carregam no sotaque para impressionar os desesperados que as procuram.

Rosa insiste : a notícia sobre a aparição da baleia merece ser ouvida porque é algo “sumamente importante”. A entrevista fica marcada para o dia seguinte, num lugar improvável : um banco de praça.
Rosa chega na hora marcada: meio-dia ( Noto que os cabelos pretos estão penteados como se, numa subversão absurda do calendário, ela estivesse posando, agora, para uma foto que já nascia amarelada, num álbum dos anos setenta. Aquele corte de cabelo um dia foi chamado de Pigmalião. Virou febre, nos anos setenta, não em homenagem ao escultor da mitologia, mas porque era usado por uma atriz numa novelinha medíocre das sete da noite. Ah, o implacável poder simplificador da televisão…)
Informa a idade: 56 anos. Traz, nas mãos, um livro em que, na capa, a imagem de uma menina de vestido rosa se sobrepõe a uma velha foto de família. Os outros nove personagens retratados na capa estão em preto-e-branco. Só a menina ganhou a graça da cor.
Noto um detalhe banal: o título do livro que ela traz para a entrevista tem doze letras. Por um segundo, cedo às tentações da superstição: são doze os apóstolos, são doze os signos, são doze os meses do ano, são doze as horas que dividem as duas metades do dia. As doze letras do título terão algum significado ?
Não! – repreendo-me, em silêncio. Toda superstição é idiota.
A visitante se move com gestos rápidos.
Não há tempo a perder. Pergunto como foi, afinal, a aparição da baleia. Por que diabos a aparição de um animal terá sido tão aterradora, tão reveladora e tão importante? Rosa move a cabeça em direção ao gravador que seguro nas mãos. Não quer que o alvoroço do barulho de carros na rua e de crianças na praça encubra o que ela vai falar:
- “De repente, sem nenhum aviso, aconteceu. Um estampido aterrador agitou o mar ao nosso lado : era um jato d´água, o jato de uma baleia, poderoso, enorme, espumante, uma voragem que nos encharcou e fez o Pacífico ferver em torno de nós. E o ruído, aquele som incrível, aquele bramido primordial, uma respiração oceânica, o alento do mundo. Essa sensação foi a primeira : ensurdecedora, ofuscante; e imediatamente depois emergiu a baleia. Primeiro, emergiu o focinho, que logo depois tornou a se meter debaixo d´água; e depois veio deslizando todo o resto, numa onda imensa, num colossal arco de carne sobre a superfície, carne e mais carne, brilhante e escura, emborrachada e ao mesmo tempo pétrea, e num determinado momento passou o olho, um olho redondo e inteligente que se fixou em nós, um olhar intenso vindo do abismo. Quando já estávamos sem fôlego diante da enormidade do animal, ergueu a toda altura aquela cauda gigantesca e afundou-a com elegante lentidão na vertical; e, em todo esse deslocamento do seu corpo tremendo, não fez qualquer marola, não provocou a menor salpicadura nem emitiu nenhum ruído além do suave cicio de sua carne monumental acariciando a água. Quando desapareceu, imediatamente depois de ter mergulhado, foi como se nunca houvesse estado ali”.
Rosa fala sem tomar fôlego. Diz que a aparição da baleia pode significar para todos o que significou para ela : a descoberta do Cálice Sagrado, a visão inesquecível que lhe abriu as portas para desvendar o Grande Segredo das Palavras, esta obsessão que há séculos mobiliza tanta gente:
- “Com a escrita é a mesma coisa: muitas vezes, você intui que o segredo do universo está do outro lado da ponta dos seus dedos, uma catarata de palavras perfeitas, a obra essencial que dá sentido a tudo. Você está no próprio limiar da criação, e em sua cabeça eclodem tramas admiráveis, romances imensos, baleias grandiosas que só revelam o relâmpago do seu dorso molhado, ou melhor, fragmentos desse dorso, pedaços dessa baleia, migalhas de beleza que permitem intuir a beleza insuportável do animal inteiro; mas em seguida, antes de você ter tempo de fazer alguma coisa, antes de poder calcular seu volume e sua forma, antes de entender o sentido do seu olhar perfurante, a prodigiosa besta submerge e o mundo fica quieto e surdo e tão vazio”
Pergunto: o que fazer com as palavras, depois da revelação de que elas, no fim, não conseguirão desvendar a “beleza insuportável” do grande animal ? Que utilidade elas terão ?
-”Disparamos palavras contra a morte, como arqueiros de cima das ameias de um castelo em ruínas. Mas o tempo é um dragão de pele impenetrável que devora tudo. Ninguém vai se lembrar da maioria de nós dentro de alguns séculos: para todos os efeitos, será como se não houvéssemos existido. O esquecimento absoluto daqueles que nos precederam é um manto pesado, é a derrota com a qual nascemos e para a qual nos dirigimos. É o nosso pecado original”.
Se a batalha contra esse “dragão de pele impenetrável” um dia estará perdida, por que, então, insistir na tarefa de erguer barricadas com as palavras ?
- “Isto é a escrita : o esforço de transcender a individualidade e a miséria humana, a ânsia de nos unir aos outros num todo, o desejo de sobrepor-nos à escuridão, à dor, ao caos, à morte”
Você diz que escolheu escrever romances para participar dessa batalha. Por que essa escolha ?
- “Escrever romances implica atrever-se a completar o monumental percurso que tira você de si mesmo e permite se ver no convento, no mundo, no todo. E, depois de fazer esse esforço supremo de entendimento, depois de quase tocar por um instante na visão que completa e fulmina, regressamos mancando para nossa cela, para o encerro de nossa estreita individualidade, e tentamos nos resignar a morrer”.
A fita termina. Rosa soletra o sobrenome : Montero, sem “i”. Rosa Montero. Deixa de presente o livro com o título de doze letras (“A Louca da Casa”).
Despede-se com um leve meneio de cabeça. Começa a caminhar em direção ao portão de ferro que, à noite, protegerá a praça da invasão dos mendigos. Dá meia volta, pede para o repórter checar se o gravador funcionou. Fica aliviada quando vê que as pilhas funcionaram, sim. “Gravou tudo”, digo. “Por supuesto”, ela responde.
E vai embora.
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PS: Tanto os encontros com a escritora espanhola Rosa Montero quanto as perguntas da entrevista são imaginários. O repórter pede licença aos internautas para, uma vez na vida, inventar um cenário. Mas as respostas da escritora sobre as baleias e as palavras são verdadeiras : foram extraídas do livro “A Louca da Casa”, publicado no Brasil pela Ediouro. Recomendadíssimo.

Posted by geneton at novembro 20, 2013 11:53 AM
   
   
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