dezembro 06, 2008

HENFIL

O DIA EM QUE O CARTUNISTA HENFIL DISPAROU PETARDOS CONTRA ROBERTO CARLOS, PELÉ, GILBERTO FREYRE, FERNANDO GABEIRA, GILBERTO GIL, CAETANO VELOSO


O cenário: um quarto de hotel na praia da Boa Viagem, no Recife. Henfil chega mancando de uma perna. O joelho vem incomodando de novo. É sempre assim. Mas ele já se acostumou. Quando começa a falar sobre personagens que lhe soam contraditórios, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Roberto Carlos e Gilberto Freyre, o mais conhecido cartunista brasileiro sublinha as frases com um gesto que gosta de repetir: franze a testa e coça a barba espessa.

O Brasil é o assunto predileto de Henfil ( local de nascimento: Nossa Senhora do Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Data: 05/02/1944). Não é para menos. Henfil nunca escondeu que enxerga em tudo o que faz um toque missionário. É provável que esta certeza venha de uma educação religiosa rígida - somente aos 21 anos, Henfil perdeu a virgindade.

Quem sabe, a consciência missionária seja resultado da convivência com a hemofilia, um aviso permanente da fragilidade do corpo. O certo é que Henfil não se dispensa do papel de militante. Ao cumprir esta função, chega a ser desmesuradamente rígido no julgamento da atuação política de outros artistas. Igualmente, não hesitou em ir morar no Rio Grande do Norte, já depois de consagrado, porque julgava indispensável a experiência de conhecer de perto o Brasil nordestino, tão diferenciado do que ele próprio chamava - ironicamente - de "Sul Maravilha". Henfil só não quer ser simplista: repete que a culpa pelas mazelas brasileiras pode até caber aos governantes - mas deve ser repartida com o povo também.

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Qual deve ser exatamente o papel do humor num país como o Brasil?

Henfil: "O humor, em geral, tem o papel de fazer rir, mas, no Brasil, há algo mais: o humor têm também o papel de conscientizar, infelizmente. É um pouco como cobram que o papel da televisão é educar ; a TV, dizem, deveria ser uma espécie de braço direito do Ministério da Educação. Infelizmente, é um pouco verdade, porque o grau de informação e consciência do povo brasileiro a respeito da cultura e dos problemas do país é pequeno.

A gente às vezes nem sabe se vive em Nova Iorque ou na caatinga. Nunca se sabe direito. Então, é uma espécie de orientação que você pode dar. Há casos como o da dívida externa. O brasileiro não sabia que a dívida externa era de 10 bilhões de dólares - saudosos 10 milhões de dólares! E foi papel do humor, naquele tempo, dizer que era esse o valor da nossa dívida"

O que você espera quando desenha um cartum? Que ele faça pensar, em primeiro lugar?

Henfll: "Eu diria que era fazer pensar. Depois, tenho a preocupação de que esse pensar doa menos. Em geral, pensar dói demais, principalmente no Brasil, a terra do FMI. Dói demais pensar. Então, este é um aspecto do humor.

Mas o humor tem também uma coisa inteligente: a inteligência do humor se situa acima da filosofia. Por quê? Porque o humor reverte a expectativa. Você nunca ri porque a coisa é simplesmente engraçada ou esquisita. Você ri porque descobre algo sobre o qual você não tinha pensado antes. É aí que você ri."

Depois que vê todo o trabalho que realizou até hoje, você acha que vale a pena fazer rir, afinal?

Henfll: "Quando ri, você relaxa e sente a despreocupação de receber uma idéia. A única forma de vencer o medo é através do humor. O riso ajuda e relaxa, para que a pessoa possa ficar inteligente. Quando estão rindo, as pessoas são mais inteligentes do que quando estão com raiva. Pode notar: a pessoa riu - e todo mundo já começa a achá-Ia mais simpática, mais inteligente e menos parecida com os vegetais e os minerais."

Quem é o personagem mais caricaturável da política brasileira?

Henfll: "Paulo Maluf é bem fácil. O general Figueiredo também é fácil fazer.
Mas o povo brasileiro é o mais fácil de caricaturar. Não sou caricaturista, mas é fácil colocar o povo dentro dos quadrinhos e dos cartuns, porque o povo é o principal responsável por tudo o que existe aí.

Há uma certa passividade do povo brasileiro - que deixa as coisas acontecerem além da conta. Tenho mais vontade de cutucar o povo brasileiro - cada um de nós - do que de cutucar aqueles que estão por cima criando caso com o povo brasileiro. A macaquice nossa de imitar neve e imitar americano o tempo todo no vestir e no cantar...

Meu Deus do céu, como é que vou poder criticar a orientação das autoridades financeiras do Ministério do Planejamento de ficar importando tudo, se, até quando não é permitido, o brasileiro vai lá fora e traz como contrabando? Nós estamos contrabandeando, em todos os sentidos, tudo o que vem de fora. Ocorre, principalmente, no Nordeste, o que é uma coisa que me atinge ainda mais, porque sou identificado com a região. O grau de desnacionalização no Nordeste é ainda maior do que em qualquer outra parte do Brasil. Dá vontade de ficar cutucando o brasileiro, principalmente o nordestino "

Quem é o personagem menos caricaturável? O que traz mais dificuldade na hora de caricaturar?

Henfil: "Para ficar coerente com o que estou dizendo, tenho dificuldade com os poderosos. Hoje, na medida em que as eleições estão surgindo e a gente vai ganhando mais condições de trabalhar e expor as coisas, é difícil você chegar e dizer, com relação aos poderosos: 'É aqui!'.

Dou um exemplo. Posso chegar e dizer: 'A culpa é do ministro Delfim Netto! Vou lascar o pau nele!'. Ora, mas existe o FMI ! E como é que vou caricaturar o FMI? Com as iniciais? Isso cansa. Parece marca de caminhão. Não dá pé. Então, já que o humor que faço é mais de conscientização, é bastante difícil mostrar ao povo brasileiro, aos leitores, quem é que realmente manda no Brasil, qual é a cara, se tem bigode, se é homem, se é mulher, se é a terceira força. O FMI é o quê? Fica difícil"

Mãe dá Ibope?

Henfil: "Mãe sempre dá Ibope. Você se refere às 'Cartas da Mãe' - que venho escrevendo desde 1977 na revista ISTOÉ. Tenho também o livro 'Cartas da Mãe'. Acontece que escrever cartas para a mãe foi a forma que descobri de falar com o leitor - não mais através de desenhos de uma forma que ele pudesse entender o que eu estava querendo. Há os que têm dificuldade de entender o desenho. Só uma geração criada com história em quadrinhos é capaz de pegar o simbolismo e saber o que é que quer dizer aquilo, esse traço assim, esse balão com três pontinhos embaixo significando pensamento...

Parti, então, para escrever carta, para facilitar o entendimento. Carta todo mundo sabe escrever - ou ler. Escrever carta para a mãe é o mínimo que cada um faz. Eu escrevo para minha mãe. Ora, todo mundo tem mãe - espero. Todo mundo tem filho. Todo mundo é mãe ou filho. Então, ou se identifica comigo porque é o filho escrevendo para a mãe ou então é o contrário.

As mulheres, em geral, se identificam com a mãe e me falam: 'Eu me identifico tanto com a sua mãe...' Já os homens me dizem: 'Eu me identifico com você!'. A linguagem da mãe é a mais acessível. Porque a mãe,afinal, é obrigada a falar com crianças de um mês, um dia. Procuro entrar na cabeça da minha mãe e escrever na linguagem com que ela falaria. É aquela linguagem de mãe: simples.

A política entra na conversa porque as mães hoje estão ficando cada vez mais politizadas. Veja o caso da Argentina. Quem desestabiliza o regime de exceção na Argentina são as mães, as chamadas Loucas da Praça de Maio "

De que político brasileiro você não compraria um carro usado?

Henfil: "Ah... (pausa). Meu Deus do céu! Eu queria saber com que carro eu ia comprar um político usado... Não compro com carro nenhum político usado! São pouquíssimos os políticos de quem eu compraria um carro usado.

Vamos facilitar: não compro carro usado por nenhum político. Mas de alguns eu até compraria. Um exemplo: Teotônio VileIa. É, para mim, o símbolo de um político que escreve carta pra mãe todas as vezes em que fala da Mãe-Pátria "

Já se disse que em épocas fechadas, como no Brasil dos anos 70, há um espaço grande para o cartum político, mas, em épocas de descompressão e abertura, há um espaço maior para o cartum de costumes. Você concorda com esta interpretação?

Henfil: "Durante o período da chamada fechadura, é como na Igreja. Qualquer coisa que você faz na Igreja, engraçada ou pesada, todo mundo fica em silêncio, falando baixinho. Tudo o que se faz ali é significativo. Diziam-me: 'Que cartum genial que você fez! Você denunciou bem!'. Ora, eu não tinha denunciado nada. Era apenas um cartum que eu tinha bolado. Mas, naquele silêncio todo, as pessoas acham logo que o cartum foi feito cheio de significados.

É bom para o cartunista ficar cheio de significados secretos e trabalhar em fechadura. Mas a maioria do povo não entende! Fica uma espécie de Língua do P. Só quem sabe que existe um indício de problema numa área como repressão ou dívida externa vai achar segundas intenções em determinado cartum. A maioria, realmente, nem entende! O humor brasileiro, tão popular até a época de Juscelino Kubitscheck, Jânio Quadros, com Carlos Estêvão, o Amigo da Onça, Millôr Fernandes daquele tempo, Ziraldo, tinha um grande alcance. Depois, não teve alcance popular. Humorista ficou coisa de elite intelectualizada e informada. Se não fosse o humor na TV, o humor hoje não seria popular e estaria quase que em museus de arte moderna. Então, esse negócio de dizer que em época de repressão você fica mais criativo... Você
fica mais criativo para a fuga! Dizem: 'Cria-se mais na cadeia'. O que se cria mais em cadeia é oportunidade de fuga! Nunca vi ninguém criar nada legal e bom na cadeia."

Como é,afinal, o Brasil dos seus sonhos?

Henfil: "Ah, o Brasil.... Vou dizer uma coisa: já morei dois anos em Natal porque escolhi e quis morar, depois de ter vivido dois anos em Nova Iorque. O Nordeste parece mais com o Brasil. É aquela coisa descontraída, aquela força das pessoas convivendo e se conhecendo. Você tem grandes chances de comer, beber e cantar ainda em nossa língua, com as coisas da terra. Penso muito. Tenho um sonho: que nosso problema com o FMI, com a dívida externa, vá conduzir a uma coisa que a gente poderia até chamar de fechadura.Ou seja: : o Brasil se fechar para dentro de si próprio.

Tenho tantas saudades da língua portuguesa! Já estou cansado de falar em cheeseburger, hamburguer, overnight, open, spread, jeans, T-Shirt, essas coisas todas. Tenho saudade de falar nossa língua, cantar nossa música, comer nossa comida. Estou nesse hotel, resolvi pedir um cartola. De repente, veio cartola com queijo prato! É brincadeira? Não se respeita nem cartola mais!"

Acabou a briga entre os chamados "patrulheiros ideológicos" e a "Patrulha Odara"?

Henfil: "Primeiro é preciso esclarecer ao distinto público o que é que significa esse diabo de patrulha ideológica e Patrulha Odara.

Houve um determinado momento em que alguns críticos, principalmente de cinema e de música, começaram a criticar uma tendência havida particularmente entre os chamados baianos - que hoje são paulistas, são cariocas - de entrarem no esquema da "open-music". Começaram a fazer uma música que estava correndo em Nova Iorque, discoteca, aquelas coisas todas.

Críticos que começaram a dizer: 'Não é por aí! Cadê as raízes? Cadê a nossa música? Nós estamos pagando royalties! Para quê? Vai aumentando a nossa dívida externa!'.

Porque dívida externa não é só dólar que se pega emprestado para construir viaduto, Angra dos Reis, Itaipu, aquelas coisas, não! Dívida externa se faz a cada disco estrangeiro que se compra no país também. Os cantores chamados baianos começaram a ser pontas-de-lança da música estrangeira, principalmente a americana. Não era nem a música estrangeira em si. Que venha a música italiana, que venha a música do Haiti! Mas não: é só música americana! Como foram,todos, criticados, resolveram reagir. Disseram que era "patrulhamento ideológico". Crítica virou "patrulhamento ideológico"!

Eu é que inventei que eles, os baianos, eram a Patrulha Odara, porque queriam patrulhar a crítica que se fazia. Ora, crítica é um negócio que faz todo mundo crescer. A preocupação dos chamados críticos era com o crescimento desses artistas - que são importantes. Caetano Veloso é importante. Gilberto Gil é importante. São tão bons que não poderiam estar fazendo aquilo.

Quem falava eram as pessoas que estavam interessadas no crescimento dos dois - e não na decadência. Gilberto Gil - que entrou nessa e começou a fazer discotheque - se arrebentou, inclusive comercialmente, porque não adianta. Macaquice não dá dinheiro! Só dá dinheiro para o vendedor de amendoim. O macaco não ganha nada. Agora, Gilberto Gil já vem tendo de voltar e ver que realmente errou. O que aconteceu, então, foi patrulha ideológica ou foi crítica chamada construtiva e de amigo?

Isso tudo já foi superado, justamente por um retorno e uma consciência do país inteiro - inclusive dos cantores - de que, quando você copia culturalmente qualquer outro país, faz dívida externa, paga royalty. Você não copia idéia de outro país de graça! A dívida externa deve estar em 110 bilhões de dólares. A música tem culpa também!"


O que é que significam, para você, as seguintes pessoas: em primeiro lugar, Fernando Gabeira.

Henfil: "Fernando Gabeira esteve exilado uns tempos, voltou ao Brasil, escreveu O Que é Isso, Companheiro?, Entradas e Bandeiras, Sinais de Vida no Planeta Minas, aqueles negócios.

Prestou, principalmente com o livro O Que é Isso, Companheiro?, uma colaboração imensa a todo mundo, na consciência do que aconteceu no exílio e do que aconteceu no Brasil antes de ele partir para o exterior, principalmente sob o aspecto da tristeza de um tipo de comportamento que em geral os grupos políticos têm, sejam de direita ou de esquerda. É um comportamento quase religioso, aquela coisa de magia negra, fechada, cheia de dogmas, punições e inferno. 'Você vai para o inferno se for revisionista!', aquelas coisas.

Mas há um problema com relação a Fernando Gabeira: ele chegou parecendo que tinha descoberto o Brasil! O país existe aí há quatrocentos e oitenta e tantos anos. Mas parecia que ele, Gabeira, é que tinha começado o movimento negro, o movimento dos homossexuais, o movimento feminista! É aquele negócio do sujeito que chega descobrindo tudo. É o 'Brasil Ano-Zero: Gabeira chegando ao país'. Tirando esse lado, tudo perfeito. Mas o movimento feminista tem centenas de anos no Brasil, principalmente no Nordeste, onde houve o movimento pioneiro pelo voto feminino."

Dom Hélder Câmara...

Henfil: "Dom Hélder é uma coisa contraditória. A gente tem um carinho imenso por Dom Hélder - e também um medo imenso por ter carinho por ele. Quem escolheu Dom Hélder Câmara como figura subversiva não fomos nós. Nós o escolhemos pela dedicação que tem às causas, às denúncias e, principalmente, ao povo. É um dos primeiros que fez opção preferencial pelos pobres. Mas o sistema o escolheu como inimigo número um. Dá até medo de admirá-Io, porque eles vão falar: 'Admiram Dom Hélder porque ele significa uma coisa que a gente tem de combater.' "

Gilberto Freyre...

Henfil: "Tudo no Brasil é contraditório, mas Gilberto Freyre talvez seja o mais contraditório de todos. A obra de Gilberto Freyre é voltada para o povo. É opção preferencial pelo povo. Ninguém mais do que ele talvez tenha condições de mostrar a realidade do povo brasileiro, principalmente do Nordeste. Mas há uma contradição: o comportamento político de Gilberto Freyre, quando ele não escreve ou exerce a visão sociológica, é de extrema-direita. Admiro Gilberto Freyre de um lado. Tenho medo de Gilberto Freyre por outro, porque ele é poderoso dentro do sistema. Coluna do meio."

Roberto Carlos...

Henfil: "Eu espero que você não me pergunte também sobre Pelé: dá no mesmo. Roberto Carlos - que tem um grande carisma - também é uma figura contraditória.Todo mundo tem um grande carinho por ele. É algo que transcende a música que ele faz. Não é nem questão de saber se ele canta bem ou mal. Eu - que já fui chamado de patrulheiro ideológico - nunca parei para pensar se Roberto Carlos canta bem ou se suas músicas são bonitas ou não. Roberto Carlos tem uma presença humana e se entrega à música de tal forma que não quero saber se é bonito ou feio: gosto de Roberto Carlos. Quando canta, ele se entrega; não brinca.

Mas ele tem uma dívida interna com o brasileiro. Roberto Carlos, apesar de todo o carinho que o público brasileiro lhe dá, não devolve o carinho em forma de atuação. Quando perguntam a Roberto Carlos a respeito de qualquer coisa, ele diz: 'Não; eu sou apolítico. Não sou político, não me meto em política.' Ora, todo mundo é político! Dizer 'eu não me meto em política' é a pior das políticas. 'Não tenho nada com vocês'. Como não tem? Nós batemos palmas para você! Como é que não temos nada a ver com você? Tenho uma mágoa pela não-participação de Roberto Carlos na defesa de um povo que vem se lascando."

Sônia Braga...

Henfil: "Que é que vou dizer? Sônia Braga já devolveu mais do que a gente deu a ela. Ela é aquele desejo imenso: todo mundo adora Sônia Braga. É a mulher que todo mundo gostaria de ter. Mas ela devolve. Quando a coisa pipoca por aí, Sônia Braga tem uma boa atuação, uma firmeza. Não se entrega a essa coisa de dizer 'não sei; sou atriz'. Sônia Braga é a vizinha que todo brasileiro gostaria de ter."


(1983)

Posted by geneton at dezembro 6, 2008 10:00 PM
   
   
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