julho 24, 2014

ARIANO SUASSUNA

A 'LISTA DE OURO' DE SUASSUNA: CRIADORES QUE MERECEM O TRONO DA CULTURA BRASILEIRA
É hora de repassar as palavras de Ariano Suassuna. Durante quarenta anos (!), o locutor-que-vos-fala incomodou Ariano Suassuna com questionários sem fim. E ele nunca deixou de atender a um pedido de entrevista. Ainda bem.

(Pequena divagação: que outra coisa pode fazer um repórter, além de tentar passar adiante - da maneira mais fiel e mais atraente possível - o que ouviu e viu? É pouco, pouquíssimo – mas pode ser útil como contribuição, mínima que seja, para "produção de memória". Guardei o que Ariano Suassuna disse nessas entrevistas todas - é claro. Um dia, quem sabe, consigo reunir todo o material num "livro de papel" ou num território virtual como este. Daria um painel interessante. Faço uma pequena expedição aos meus arquivos não tão implacáveis: as primeiras entrevistas com Ariano Suassuna foram feitas em torno de 1974. Tinha meus dezessete para dezoito anos. Suassuna não tinha, ainda, um fio de cabelo branco. Dou um suspiro de espanto e incredulidade: quanto tempo!)

Ariano tinha sempre muitíssimo a dizer sobre a literatura e o Brasil. Não se trancafiava numa redoma literária. Fazia questão absoluta de intervir no debate cultural brasileiro. Ao longo do tempo, arrebanhou devotos e desafetos. Vai continuar dividindo opiniões.

Uma vez, em meados dos anos 1990, pedi a ele que fizesse uma lista dos nomes da cultura brasileira que, para ele, representavam melhor o Brasil.

Ariano me deu uma lista com exatamente 20 nomes. Tratou de corrigir um equívoco que, segundo ele, cercava suas investidas em defesa da arte popular: o que ele estava defendendo não era a valorização de algo rústico ou primário. Pelo contrário, dizia que há, em manifestações da arte popular brasileira, exemplos espantosos de qualidade literária.

Eis a íntegra da entrevista:

Autor de um dos mais belos livros publicados nas últimas décadas no Brasil, o imerecidamente pouco conhecido ''Romance d´A Pedra do Reino'', o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna vem se dedicando a uma grande tarefa. Em nome da defesa da cultura brasileira contra a infiltração do ''lixo cultural'' despejado goela abaixo em países satélites, como o Brasil, Ariano vem se dedicando a uma cruzada solitária em defesa de manifestações da criatividade popular.

O cruzado Ariano se esquece até de que tem horror a viajar. Há pouco tempo, foi parar no Rio Grande do Sul para dar uma ''aula-espetáculo'' – uma façanha digna de registro, na biografia de um homem que se contenta em ver aviões em fotografias. Segunda tarefa: conhecido como autor do ''Auto da Compadecida'', texto teatral que virou até filme dos Trapalhões, este sertanejo da Paraíba radicado há décadas no Recife pretende lançar em breve um livro em que simplesmente recria e reescreve tudo o que já produziu na vida. A tarefa se arrasta há anos. Não é para menos. Nesta entrevista, além de acusar de ''equivocados'' os que defendem a abertura dos portos ao ''lixo cultural'' estrangeiro, ele faz uma lista dos artistas e escritores que, segundo ele, realmente representam o Brasil.

O chamado ''gosto médio'', a que o senhor se refere com desprezo, é "pior do que o mau gosto''. Quais são, na produção cultural brasileira de hoje, os piores exemplos da vitória do ''gosto médio'' sobre a qualidade artística?

ARIANO SUASSUNA: '' O gosto médio a que me refiro é ligado àquele mesmo lixo produzido pela indústria cultural de massas. É fácil identificar na produção cultural brasileira de hoje quem segue tais padrões ou com eles se acumplicia''.

Há quem diga que quem defende a preservação da chamada ''arte popular'' defende, na verdade, a manutenção da pobreza. Porque, se conseguissem vencer a pobreza e se tivessem acesso à educação, os artistas populares certamente deixariam de produzir obras formalmente rústicas e primitivas. O que o senhor diz a estes críticos?

ARIANO SUASSUNA: "Digo, em primeiro lugar, que se realmente a opção fosse esta, eu não teria dúvida: seria melhor que a injustiça desaparecesse, mesmo que a Arte Popular desaparecesse com ela. Mas acontece que este é somente um sofisma, criado por pessoas que, na verdade, detestam as manifestações populares da nossa Cultura. Em segundo lugar, eu gostaria de refutar o lugar-comum segundo o qual as obras criadas no âmbito na Arte Popular são necessariamente rústicas e primitivas quanto à forma. Veja-se, por exemplo, a seguinte Décima que poderia ter sido escrita por Calderon de la Barca - e é do cantador Dimas Batista:

'Na vida material
cumpriu sagrado destino :
o Filho de Deus, divino,
nos deu glória espiritual.
Deu o bem, tirou o mal,
livrando-nos da má sorte.
Padeceu suplício forte,
como o maior dos heróis.
Morreu pra dar vida a nós:
a vida venceu a morte.'

Ou então esta, que Mallarmé assinaria :

'No tempo em que os ventos suis
faziam estragos gerais,
fiz barrocas nos quintais,
semeei cravos azuis.
Nasceram estes tafuis,
amarelos como cidro.
Prometi a Santo Izidro,
com muito jeito e amor,
leva-los, quando lá for,
em uma taça de vidro.'

Assim, caso os Poetas, hoje populares, recebessem educação universitária, o que poderia acontecer é que passassem todos a compor seus versos com o rigor das duas Décimas citadas. Não acredito que o Povo pobre do Brasil perdesse a força criadora caso melhorasse de vida. Melhorou, na China – e nem por isso o Teatro nacional e popular chinês desapareceu ou piorou. Pelo contrário. Ou, para falar em termos brasileiros: J. Borges é um grande gravador popular. Se tivesse tido formação ''erudita'', continuaria a ser o grande artista brasileiro que é, somente tratando seus universos pessoais e peculiares com o rigor formal de um Gilvan Samico''.

Quem é, afinal, para o senhor, o artista que, em qualquer área de produção cultural brasileira, melhor representa o Brasil?

ARIANO SUASSUNA: ''Artes plásticas: Aleijadinho, Francisco Brennand e Gilvan Samico. Artes cênicas: Antonio José da Silva, o Judeu; Martins Pena, Qorpo Santo e Artur Azevedo. Literatura: Euclydes da Cunha, Augusto dos Anjos. Música: José Mauricio Nunes Garcia, Villa-Lobos, Guerra Peixe, Ernesto Nazaré, Capiba e Antônio José Madureira. Vídeo e cinema: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Vladimir Carvalho, Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho''.

O senhor reclama de que ''o patrocínio de multinacionais nos eventos é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais''. Quais são os patrocínios ou promoções que o senhor considera exemplos de ''tentativas de suborno''?

ARIANO SUASSUNA: ''Recusei indicações para o Prêmio Shell e para o Sharp. Recusei-me a participar da Bienal Nestlé de Literatura. Não fui eu que passei a notícia das recusas para os jornais, porque não fiz isto para me exibir nem para incorrer em falta de fraternidade com escritores e artistas que não têm as mesmas ideias nem as mesmas condições que eu tenho. Tais condições me deixam à vontade para recusar. Por isso, peço licença para, de uma vez por todas, encerrar aqui este desagradável assunto''.

Se a cultura é inevitavelmente afetada pela economia, não é ingenuidade querer que manifestações culturais brasileiras sejam preservadas numa espécie de redoma à prova de influências externas, numa época em que as relações econômicas sofrem um processo radical de internacionalização?

ARIANO SUASSUNA: ''Colocar a Cultura Brasileira numa redoma, além de ser uma coisa impossível, é algo de absolutamente indesejável. Faz muito tempo que venho fazendo afirmações em tal sentido. Por exemplo: no dia primeiro de dezembro de 1963, publiquei no jornal ''Última Hora'' um artigo no qual dizia que ''a Arte que se tornasse uniforme não se tornaria mais pura, tornar-se-ia, isto sim, mais pobre''. Depois, em 1974, ao reunir as ideias centrais do Movimento Armorial, eu afirmava que, ao valorizar o tronco negro, indígena e ibérico da nossa Cultura, não estávamos esquecidos de outras etnias e manifestações culturais que também são importantíssimas para o Brasil. Tomávamos tal posição por estarmos convencidos de que somente fortalecendo aquele tronco cultural é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga e nos massifica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece.

O que não posso aceitar é que brasileiros equivocados queiram que, em nome de nossa bela e fecunda diversidade, aqui seja acolhido também o lixo cultural que é subproduto da indústria cultural americana espalhado pelo resto do mundo como se fosse coisa tão importante – e até mais importante – do que os romances de Faulkner. Ou seja: não tenho nada contra Melville. Mas não é possível que queiram exigir que eu ache que Michael Jackson e Madonna têm a mesma importância que Melville ou Euclides da Cunha. Quero deixar claro que tenho pelo ''lixo cultural'' brasileiro horror igual ao que tenho por qualquer outro''.

Se tivesse de escolher entre passar um fim de semana passeando com Woody Allen pelas ruas de Manhattan ou cavalgando com um vaqueiro pelos morros do sertão da Paraíba, com qual dos dois o senhor ficaria?

ARIANO SUASSUNA: ''Passear por Manhattan, com Woody Allen ou com qualquer pessoa de tal tipo, é coisa que, para mim, não representa qualquer atrativo. Nunca saí do Brasil, mas, já que estamos no terreno das hipóteses, por que você, que é meu amigo, não pensa em alguém melhor e num lugar melhor? Quanto à outra alternativa, não tenho mais a resistência para sair por aí afora cavalgando pelos morros do sertão da Paraíba''.

O senhor não acredita que manifestações culturais e artísticas de um povo possam absorver criativamente influências externas? Um violeiro que vê televisão não pode se enriquecer com as novas informações que recebe?

ARIANO SUASSUNA: “Qualquer um de nós pode se enriquecer com as novas (e boas) informações que recebe. Eu leio jornais e vejo televisão. Os cantadores e violeiros nordestinos também. Nenhum de nós perde, com isso, a garra brasileira e o senso crítico e satírico. Pelo contrário. Ouvi recentemente o cantador nordestino Edmílson Ferreira comentar assim, num Martelo-de-Seis-Linhas, as desventuras conjugais da família real inglesa:

'Na Inglaterra, as coisas andam feias,
todo mundo por lá endoidecendo.
Toda dia é uma princesa sem marido,
ou um príncipe que, só, fica vivendo.
Ou a carne de vaca fez efeito,
ou o chifre do boi está fazendo.”

Qual é a pior doença e qual é a melhor cura para o Brasil de hoje, às vésperas do ano 2000?

ARIANO SUASSUNA: ''Machado de Assis fez uma distinção definitiva entre o Brasil oficial e o Brasil real que, a meu ver, é o do Povo, o do ''Quarto Estado''. As maiores doenças nossas têm origem no Brasil oficial e a cura só lhe pode vir do Brasil real. As pessoas que sustentam ideias diferentes das nossas parecem pensar: ''O Brasil oficial é o problema; na Europa e nos Estados Unidos está a solução''. Eu acho que o Brasil oficial é o problema, no Brasil real é que está a solução. Ou, um pouco à moda de Unamuno: ''Brasil é o problema, Brasil é a solução''.

O senhor ainda reclama das guitarras elétricas. Isto não é uma discussão superada desde os anos 1960?

ARIANO SUASSUNA: ''Vou mais longe, até: esta é uma discussão que não tem o menor interesse – e desde muito antes. Nem nos anos 1960 ela fez parte das minhas preocupações. Em música, gosto de Monteverdi, Vivaldi, Scarlatti, Stravinsky, Erik Sati, José Mauricio Nunes Garcia, Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, Villa Lobos, Guerra Peixe ou Antonio José Madureira. Quando vão me entrevistar, fazem-me pergunta sobre guitarra elétrica, Michael Jackson e Orlando Silva. É por isso que apareço falando sobre assuntos ou pessoas sobre as quais não tenho o menor interesse. Nunca me viriam à lembrança se não me fizessem tais perguntas''.

O senhor diz que não tem interesse pela obra de compositores da MPB, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque eles são influenciados pela ''massificação cultural americana''. O senhor não reconhece na obra de compositores como estes nenhuma contribuição para a modernização da música popular brasileira?

ARIANO SUASSUNA: ''Por iniciativa minha, jamais fiz qualquer referência a Caetano Veloso e Gilberto Gil. As pessoas que me entrevistam é que fazem perguntas a respeito deles e de outros. Depois, na maioria dos casos, quando publicam as matérias, ficam me acusando de radical e intolerante por causa das respostas que dou, porque não costumo esconder nem disfarçar o que penso. Quanto a mim, não gosto de estar falando mal de nenhum companheiro de trabalho, principalmente quando se trata de pessoas que antes estavam do nosso lado e depois passaram a emprestar seu talento ao outro''.

O senhor, secretário do governador Miguel Arraes, que se declara intransigentemente nacionalista, gostaria de ser ministro de um presidente neo-liberal?

ARIANO SUASSUNA: ''Sou amigo do governador Arraes, mas só concordei em ser secretário porque acho que ele representa, no campo da política brasileira, o mesmo que eu procuro ser no campo da cultura. O convite foi honroso. O cargo tem me trazido muitas e ardentes alegrias. Mas está me obrigando também a fazer coisas que detesto – como, por exemplo, viajar. Imagino o que aconteceria como Ministro, motivo pelo qual não gostaria de exercer tal cargo com nenhum Presidente, neo-liberal ou não. Eu teria até de me mudar para Brasília, o que, para mim, seria uma verdadeira catástrofe. Felizmente, pertenço à oposição. Não existe qualquer perspectiva a tal respeito; de modo que não vou me preocupar com a possibilidade colocada na pergunta''.

Como se chama e do que tratará o livro que o senhor vem escrevendo há anos? Que impacto o senhor gostaria que este livro tivesse no meio literário brasileiro?

ARIANO SUASSUNA: '' O livro, ainda sem título, é um romance que, se for concluído como pretendo, será uma espécie de revisão e recriação de tudo o que escrevi. Terminará a história que comecei a narrar com ''A Pedra do Reino''. Quanto ao ''impacto'', não tenho nenhuma originalidade: gostaria que o livro tivesse boa aceitação de público e de crítica. Mas, infelizmente, tenho consciência de que sou um escritor de poucos livros e de poucos leitores. Já me darei por muito feliz se meu corajoso editor não tiver prejuízo''.

Se um violeiro procurasse o senhor com uma guitarra, o que é que o senhor faria?

ARIANO SUASSUNA: ''Um violeiro com uma guitarra na mão seria aquilo que, em Lógica, se chama uma contradição em seus próprios termos : ele não seria mais um violeiro e sim um guitarrista. E provaria, com a nova opção, que nem como violeiro ele prestava. Mas só estou respondendo porque, como se diz nos depoimentos judiciais, com grande alívio meu e dos leitores, chegou a hora do "nada mais disse nem foi perguntado''.
----------------
( 1996 )

Posted by geneton at julho 24, 2014 12:16 AM
   
   
Copyright 2004 © Geneton Moraes Neto
Design by Gilberto Prujansky | Powered by Movable Type 3.2