março 18, 2010

O DIA EM QUE CID MOREIRA CHOROU “DE SOLUÇAR”

Aviso ao internauta incauto : se quiser saber do choro de Cid Moreira, vá direto para o penúltimo parágrafo.

Porque o resto do espaço foi ocupado pelo maior preâmbulo já publicado pelo Dossiê Geral.

O primeiro contato entre as patas do blogueiro-que-vos-fala e o carpete da sede da Rede Globo, no Jardim Botânico, ocorreu em 1985. Logo depois, tive uma sensação que seria marcante: ter um texto lido por Cid Moreira.

A sensação seria marcante para qualquer jornalista, mas especialmente para quem, como eu, jamais teve qualquer vocação para TV : o blogueiro era – e é – um praticante da “imprensa escrita” que foi parar em TV por puro acidente. Terminou ficando. C´est la vie.

(É verdade: se eu fosse um filósofo de botequim, declararia solenemente que a vida não passa de uma enorme sucessão de acasos e equívocos que a gente nunca consegue corrigir a tempo. “O que diabos estou fazendo aqui? ” é uma pergunta que me ocorre quinze vezes por dia, em qualquer ambiente em que esteja. Costumo fazê-la na surdina, a mim mesmo. A resposta é um silêncio cúmplice. Meu demônio-da-guarda costuma me soprar: “Também não tenho a menor ideia. Toca o barco enquanto tento achar uma resposta!”).

Mas, como ia dizendo antes de ser estupidamente interrompido por este devaneio filosófico: eu estava na praia de Boa Viagem, no Recife, recém-chegado de uma temporada em Paris, onde, além de estudar cinema e ter tido a chance de um encontro com Glauber Rocha, prestei relevantes serviços à pátria francesa como camareiro de um hotel no Quartier Latin e motorista de uma família rica. Um ex-chefe de reportagem caminhava pela areia. Perguntou se eu não queria ir para a TV. Respondi que não, obrigado. Não tinha o menor interesse em trabalhar em televisão. Gostava de escrever reportagens que se estendiam por laudas e laudas (era assim que se chamavam as páginas onde nós, dinossauros, datilografávamos os textos). Jornal era minha praia. Além de tudo, uma jaguatirica da serra, minimamente maquiada, é vinte vezes mais fotogênica do que eu. Reconhecer-se pouco “fotogênico” é um eufemismo para “que bicho feio arretado!”. O que diabos eu iria fazer em TV? Ficar escrevendo frases telegráficas ? E a subliteratura que eu cometia com tanta dedicação em minhas reportagens especiais para o jornal? O que é que iria fazer com ela ? De qualquer maneira, por insistência do ex-chefe de reportagem, Ricardo Carvalho, subi o Morro do Peludo, em Olinda, onde ficam as instalações da TV Globo-Recife.

Corta para 1985. Jardim Botânico, Rio. O texto que Cid Moreira gravou se perdeu na poeira da estrada: tinha sido feito para o Jornal Nacional. Descrevia o primeiro dia de desfile das escolas de samba no carnaval de 1986. Entendo tanto de escola de samba quanto o atacante Dentinho – do Corinthians - entende de física quântica. Mas o texto, claro, era meramente descritivo. Não precisava ser escrito por um especialista. Eu me lembro de que o destaque do desfile daquele ano foi a homenagem,bonita, que a Mangueira fez a Dorival Caymmi.

( Quanto a ser ou não especialista: jornalista, como se sabe, é aquele ser bípede capaz de se transformar, em poucos minutos, num profundo especialista em todo e qualquer assunto. A cena é corriqueira nas redações. Cai um avião, por exemplo. É pule dez dez: logo, logo, na reunião de pauta, um jornalista começará a pontificar sobre segurança aérea, treinamento de pilotos, técnicas de resgate, profissão de aeromoça, capacitação de comissários de bordo, envio de equipes de salvamento, programação de robôs, engenharia de vôo, diâmetro das turbinas, painel de controle,velocidade do reverso etc.etc. Faz parte do ritual da profissão. A sorte é que, antes de ir ao ar, tais teses passarão por “n” filtros).

Pois bem: depois de rabiscar o texto sobre o desfile das escolas de samba numa máquina de escrever que, hoje, pareceria jurássica, entreguei a obra-prima a Cid Moreira, para que ele gravasse. Cid chegava à redação do Jornal Nacional em torno das quatro da tarde. A cena era característica: dobrava o braço, levava a mão até a altura do ombro e usava o dedo médio e o indicador, estendidos, para carregar o paletó nas costas. Era assim que desfilava pelo corredor onde ficavam as ilhas de edição.

Instalado na cabine de gravação, ele passava os olhos no texto. Fazia marcações com a caneta para sublinhar as pausas. Depois, eu teria a chance de gravar dezenas de textos com Cid Moreira, no Jornal Nacional ou no Fantástico. Vi que Cid precisava apenas de alguns segundos de dar à leitura o tom que a gente pedia. Os grandes narradores são assim. Quando a matéria tratava de algum assunto grave, bastava pedir : “É porrada!”. Quando o assunto não tinha tons dramáticos, bastava dizer: “Pega leve”.

A passagem pela TV deu a este blogueiro a (rara) chance de ter suas frases mambembes lidas por vozes grandiosas, como as de Cid Moreira, Sérgio Chapelin ( é dono de uma das locuções mais marcantes, mais elegantes e mais bonitas da história da TV brasileira), William Bonner (caso raríssimo de jornalista que, se quisesse, poderia fazer carreira apenas lendo textos com aquele vozeirão), Celso Freitas, Berto Filho. São feras diplomadas e reconhecidas. A gente dizia, em tom brincadeira: “Lida por Sérgio ou por Cid, uma frase como Gugu-Dadá imediatamente soa importante”.

De vez em quando, uma alma curiosa pergunta ao blogueiro: “Por que é que você não lê o texto de suas matérias na TV?”. Respondo, há anos: se algumas das vozes mais marcantes da TV estão ali, ao alcance da mão, para dar brilho, ritmo, clareza e força ao que a gente escreve, por que é que eu iria dispensá-las ? Sempre que possível, recorri e recorro a elas. Fiz os cálculos: daqui a 85 anos, seis meses e vinte e cinco dias aparecerá um jornalista que leia um texto com o brilho de um Sérgio Chapelin ou um Cid Moreira. Como diria o filósofo Riachão, “cada macaco no seu galho”. Voz é dom. Não se adquire.

Cena de redação: era preciso criar um nome para a versão brasileira do mascarado. Que tal Mister M ? E assim foi feito
Tive uma co-participação num episódio famoso da carreira de Cid Moreira. O Fantástico tinha comprado uma série produzida no exterior, em que um mágico desvendava os segredos das mágicas. O programa original o apresentava como “masked magician” – o mágico mascarado. Era preciso arranjar um nome “brasileiro” para ele. Reunião na sala da direção do Fantástico para tratar do momentoso assunto. Lá estavam Luizinho Nascimento, diretor do Fantástico; Luiz Petry, o editor que, brilhantemente, terminou dando alma à versão brasileira do mágico mascarado – e o locutor-que-vos-fala – que, na época, era editor-chefe do programa. Faltava um nome. Meu pequeno rebanho de neurônios se reuniu para fazer uma prece às musas da inspiração, em busca de uma saída para o impasse. Propus: e se a gente chamar o mágico de Mister M ? “Por quê?” – uma voz inquisidora queria saber. Não havia um motivo especial: “Mister M pode ser Mister Mágica. Ou Mister Montano ( o sobrenome do nome de batismo do mágico). Ou nada: apenas um nome”.

E assim foi feito. Cid Moreira leu com uma entonação inesquecível os textos inspirados que Luiz Petry preparava para o quadro. O mágico virou “senhor de todos os segredos”. O nome “Mister M” caiu na boca do povo. O próprio mágico – que não sabia que tinha sido batizado como Mister M no Brasil – chegou a adotar o nome, depois de informado. Uma vez, liguei para ele. A gravação na secretária eletrônica dizia que “Mister M” não podia atender. Ocorre-me agora: Mister M poderia ser “Mister Moreira”.

Um dia, quando estiver recolhido a uma caverna, ouvirei a pergunta fatal, provavelmente pronunciada por um neto curioso: “O que foi que Vossa Excelência fez de memorável na vida ?”. Depois de pedir três horas para pensar, responderei: “Que eu me lembre, nada, a não ser criar um nome: Mister M”.

Belo destino.

E o choro de Cid Moreira ?

O superlocutor lançou, esta semana, o livro “Boa Noite”, escrito em parceria com Fátima Sampaio Moreira. Como diziam aqueles anúncios antigos, já deve estar nas “boas casas do ramo”. Não deu tempo ler. Passei uma vista, curioso. Já deu para ver que é um belo registro sobre a trajetória do dono de uma voz que marcou época.

Uma das cenas narradas por Cid no livro:

“Sou uma pessoa que teve grande credibilidade em meu trabalho, que teve muitas coisas que muitos poderiam chamar de sucesso. Era reconhecido por um país inteiro, onde quer que eu fosse, tive relacionamentos amorosos com muitas mulheres bonitas e inteligentes, tive dinheiro, prestígio e cultura. Usufruí de conforto e pratiquei esportes. Vivo em uma das cidades mais bonitas do mundo, quase em frente ao mar. Viajei e visitei várias partes do planeta. Então, muitos vão insistir que isso é sucesso e tudo o que o homem precisa nessa vida. Eu vou dizer do fundo do meu coração : é tudo ilusão, como refletiu tão bem o sábio rei Salomão. É tudo ilusão ! Não que eu não seja agradecido, ou coisa assim, por ter vivido as minhas experiências (…) Nâo estou dizendo que, apesar de tudo, não foi boa a minha vida. Estou dizendo que, em algum momento, a gente para para pensar e se dá conta de que se sente imensamente sozinho. Certa noite, depois do jantar, sentei em uma poltrona em meu escritório e sentir uma dor incrível provocada pela solidão. Nesse dia, eu chorei. Chorei muito mesmo! De soluçar! De doer a alma! Quando não suportava mais essa dor, me ajoelhei e pedi a Deus um sinal do que eu deveria fazer para tornar minha vida realmente significativa (…) Nós, miseráveis, que andamos de um lado para o outro sem saber para onde estamos indo, nos destruímos mutuamente(…) Desejo parar de vagar que nem cego e usar os atributos que me foram dados de maneira inteligente”.

Depois dessa crise, Cid Moreira embarcou num projeto grandioso: usar aquela voz para gravar a Bíblia na íntegra.

Posted by geneton at março 18, 2010 12:16 PM
   
   
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