janeiro 26, 2010

GENERAL ERNESTO GEISEL

O DIA EM QUE O BLOGUEIRO GRAMPEOU O GENERAL ERNESTO GEISEL, NA BUSCA (FRACASSADA) POR UMA ENTREVISTA

Crianças, favor prestar atenção : quem nasceu ontem talvez nem saiba, mas 2010 marca os vinte e cinco anos do fim do regime militar. O último general a governar o país deixou o Palácio do Planalto em 1985. Chamava-se João Figueiredo. O penúltimo presidente do ciclo dos generais chamava-se Ernesto Geisel.

Pausa para um relato da perseguição particular que movi em busca de uma mísera frase do general:

Confesso o fracasso: o máximo que consegui arrancar do general Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979), no primeiro e fugidio contato que tive com ele, foi uma declaração de duas palavras. É impossível escrever uma entrevista decente com uma declaração de apenas seis letras. Frustração. Meu plano dera errado. Ernesto Geisel passara a um metro de onde eu estava, no canteiro de obras da Barragem de Carpina, na zona da mata de Pernambuco, no dia 20 de agosto de 1976.

O general-presidente chegaria de Brasília às nove e meia da manhã, pegaria um helicóptero no aeroporto militar para inspecionar a construção da barragem no interior do Estado e retornaria imediatamente ao Recife, para participar daquelas solenidades chatas de “assinatura de convênios” no Palácio do Governo.

Por uma questão de logística, a maior parte dos repórteres ficou no Recife, à espera de que o general voltasse da rápida peregrinação ao canteiro de obras, no interior. Os compromissos mais importantes da agenda estavam previstos para a capital.

Cheguei ao canteiro de obras logo cedo, no início da manhã, docemente embalado pela ilusão de que poderia, quem sabe, arrancar uma mísera frase de um presidente que não queria conversa com jornalista.

Devidamente credenciado, desembarquei no canteiro como repórter da sucursal Nordeste do jornal O Estado de S.Paulo. O terreno estava quase livre de concorrentes. Se o general me concedesse a graça de uma declaração, eu sairia dali com uma manchete exclusiva no meu gravador. Tudo o que o homem dizia era notícia: cada palavra que o general pronunciava valia ouro no mercado jornalístico.

A chance de abordar o Grande Mudo da República estava ali, ao alcance da mão. Era só partir para o ataque e correr para o abraço. Ilusão. O general passa por nós com aquele porte imperial que o marcava. O estrabismo de Ernesto Geisel causava uma sensação incômoda a quem o encarava: não se sabia exatamente para quem ele estava olhando.

O general me encara ao passar pelo pequeno grupo de repórteres presentes. Tento dirigir-lhe a palavra. Em vão. O quarto dos generais- presidentes do regime militar pronuncia, então, a única frase dirigida a um jornalista naquela manhã. As seis letras fatais: “Bom-dia”. Sem dar tempo a qualquer réplica, segue em frente. Fracasso, fracasso, fracasso.

O Brasil vivia um tempo em que os repórteres tentavam decifrar, nas feições dos generais, uma pista sobre o que eles estavam pensando. A escassez de declarações era tanta que até aquele lacônico “bom-dia” do general aos repórteres acabou publicado nos jornais – foi o que O Globo fez, ao noticiar, na edição de 21 de agosto de 1976, a passagem do general Geisel pelo canteiro de obras da barragem.

O GENERAL GEISEL ATENDE À LIGAÇÃO.
DO OUTRO LADO DA LINHA, GRAMPEIO O TELEFONEMA. MAS A TENTATIVA DE ENTREVISTA FRACASSA
Tempos depois, voltei a caçá-lo, quando ele já era ex-presidente. Em companhia do cinegrafista, fico de plantão, numa manhã de 1991, na entrada do estacionamento do prédio em que o general dava expediente como presidente da Norquisa, empresa da área de química fina, na praia de Botafogo, no Rio.
Lá vem o carro. Os vidros estão levantados. Dá para distinguir, no banco dianteiro, a silhueta inconfundível do ex-presidente. Aponto o microfone para o vidro. Geisel desconhece olimpicamente a abordagem. Nem se dá ao trabalho de ouvir o repórter.

Próximo lance: corremos para a entrada do elevador, no saguão do prédio, para nova tentativa. Geisel se aproxima, em companhia da filha. Os dois estão de braços dados. O general caminha com um pouco de dificuldade. Eu e o cinegrafista Edison Santos nos aproximamos, mas somos providencialmente barrados por um segurança. Geisel pega o elevador. Dessa vez, nem bom-dia.
Não entregamos os pontos. A entrevista é a última que morre. O equipamento, (câmera e luzes) fica retido na portaria, mas sou autorizado a subir até a sede da Norquisa, para me explicar com a secretária do ex-presidente. Nada feito. A secretária diz que o general não ficara à vontade nem quando foi chamado a posar para fotos de uma publicação interna da empresa.
Se o general erguia um muro invisível em torno de si para rechaçar contatos pessoais, quem sabe se pelo telefone ele não baixaria a guarda? Consigo o número do telefone da casa do general, num sítio em Teresópolis.

Obviamente, o empregado que atende não passa a ligação para o ex-presidente. Faço novas tentativas. Um dia, eis que ele, o Grande Mudo, atende a ligação. Assim que o general diz “alô”, começo a gravar o telefonema. Faço um “grampo” preventivo: dali poderia sair uma boa declaração.

Surpreendentemente afável para quem tinha fama de inacessível, Ernesto Geisel explica por que não daria entrevista. Recorro a um argumento que pode dar resultado: uma entrevista poderia, quem sabe, dar origem a um livro sobre o governo Geisel.

Guardo a fita do “grampo” em meus arquivos implacáveis. Assim o general reagia, quando ouvia um pedido formal de entrevista:

(…) Olhe aqui: por enquanto, não dou entrevista. Não dou nada sobre o meu governo. Quanto às coisas do meu governo, estou me reservando para escrever umas memórias. Você pode entrevistar os ministros. Procure os ministros. Você tem o ministro Reis Velloso, o Simonsen, o Nascimento Silva, o Silveira – das Relações Exteriores… Todos estão aí.

É indispensável ter pelo menos um depoimento curto do senhor…

Eu sei, mas olhe aqui: vários jornalistas, amigos meus, inclusive, querem entrevista. Sempre digo a eles que não. Digo: “Quando der alguma coisa, darei em primeiro lugar a vocês, que são meus amigos”. Mas tenho recusado sistematicamente. Que você queira escrever um livro, muito bem! Se você quiser me mostrar depois o que você escreveu para eventualmente eu apontar coisas que precisam ser retificadas, estarei pronto a fazê-lo. Isso você pode fazer. Terei muito prazer em colaborar no sentido de mostrar coisas que, talvez, não estejam muito certas ou estejam diferentes. Mas eu responder a questionário e dar entrevista… Não dou. Não é pelo fato de ser você. É como uma regra, como conduta minha.

Uma pergunta: o senhor já vem escrevendo um livro?

Estou escrevendo algumas coisas.

Já tem idéia de quando termina?

Ah, não… essas coisas a gente vai fazendo muito devagar…

O senhor concorda que há um grande interesse de todo mundo sobre aquela época…

Não. Não, não creio, não. Agora há outros problemas…

Fico na esperança de que o senhor mude de idéia um dia…

Faça isto: procure os ministros, fale com eles. Depois, se quiser, mostre um projeto de livro. Poderei retificar, se for o caso. Possivelmente não haverá nada para retificar. Mas, se houver alguma coisa, estarei pronto para colaborar dessa maneira. Mas não para responder questionário ou dar entrevista propriamente. Não quero fugir da linha de conduta que tenho adotado.

E se a gente fizer uma gravação…

Não, não, não, não. Porque aí fico mal com os outros, que são meus amigos, aos quais sempre recusei.

Termina a abordagem telefônica. Ouço o rumor da torcida imaginária bradando um “uh…”, aquele som intraduzível que as arquibancadas produzem quando a bola bate na trave. Quase, quase. Como diria o locutor da Copa do Mundo de 1970, “por pouco, pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo…”
Um gesto de Geisel dá a medida da extrema reserva que ele impunha a si mesmo nos contatos com repórteres: entre 1984 e 1986, o ex-presidente teve cerca de 20 conversas gravadas com o jornalista Elio Gaspari. Eram amigos há anos. Gaspari conversava com o general, mas ia para casa de mãos vazias: Geisel ficava com as fitas.

Somente depois da morte de Geisel as gravações foram entregues ao jornalista pela filha do general, Amália Lucy. As 12 fitas, cada uma com 90 minutos, foram fundamentais para Gaspari traçar o perfil definitivo do ex-presidente, no livro A Ditadura Derrotada – O Sacerdote e o Feiticeiro, lançado pela Companhia das Letras em 2003.

Procurei, então, os ex-auxiliares diretos do presidente Geisel. Gravei depoimentos dos ex-ministros Azeredo da Silveira (Relações Exteriores), João Paulo dos Reis Velloso (Planejamento) e Armando Falcão (Justiça). Os três descreveram cenas dos bastidores do governo Geisel para o livro que jamais escrevi. Uma sucessão de desencontros empurraria para o mausoléu dos projetos irrealizados a entrevista exclusiva com o general.

Pergunta-se: o ex-presidente disse que tinha escrito “algumas coisas”. Onde foram parar estes rascunhos de memórias ?

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Com um gravador-tijolo nas mãos, o blogueiro espreita o general-presidente: única declaração que ele deu foi um "bom dia"

Posted by geneton at janeiro 26, 2010 12:55 PM
   
   
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