novembro 30, 2009

JEAN-LOUIS FOURNIER

O PAI DE DUAS CRIANÇAS DEFICIENTES ESCREVE O QUE OUTROS PAIS NÃO TERIAM CORAGEM DE ESCREVER. RESULTADO: UM BELO LIVRO

Fiz,em 2.000, uma entrevista de vinte horas (!) de duração com um jornalista que tinha se especializado em comandar redações : Evandro Carlos de Andrade. Vinte horas! Dez sessões de duas horas cada. Fiz um rosário de perguntas sobre o Diário Carioca, o Globo, a Rede Globo de Televisão.

A entrevista permanece inédita. Evandro morreu em 2001, quando comandava a Central Globo de Jornalismo. Tinha dirigido a redação do Globo por anos. Prometido: a entrevista um dia vai ser publicada, porque é um registro importante sobre a história da imprensa brasileira nas últimas décadas.

Um detalhe me chamou a atenção. Depois de falar de presidentes, ministros, campanhas, eleições, revoluções, vitórias, derrotas, grandezas e fraquezas, Evandro concluiu: o sentido da vida são os filhos. Ponto final. Não era nem o jornalismo nem a carreira nem a política nem o dinheiro nem a literatura nem a religião. Nada. Eram os filhos. E assunto encerrado.

Eu me lembrei do comentário sucinto mas inequívoco de Evandro Carlos de Andrade ao terminar a leitura de um livro belo e perturbador sobre filhos. Título: “Aonde a gente vai, papai?” (“Où on va, papa?”) . Autor: Jean-Louis Fournier. Editora: Intrínseca.

Fournier é um diretor de programas de TV francês. Teve dois filhos deficientes. Nomes: Mathieu e Thomas. A experiência, claro, deixou marcas profundíssimas na vida de Fournier – que, depois de décadas de silêncio, resolveu escrever sobre o assunto. O livro fez um enorme sucesso na França. Os filhos ficaram adultos. Um já morreu. O outro vive internado numa espécie de clínica de repouso.

Fournier teve a imensa coragem de escrever o que outros pais que viveram experiência semelhante podem até ter pensado mas dificilmente teriam coragem de confessar : diz,por exemplo, que, ao levar os filhos deficientes para passear de carro, pisava no acelerador e fechava os olhos, porque achava que um acidente na estrada poderia ser uma “solução” para tantos planos irrealizados, tantos silêncios, tantas impossibilidades. Mas, ao contrário do que as aparências possam fazer supor, o sentimento de Fournier pelos dois é de paixão.

Faço contato com o pai corajoso – o escritor que expôs, em livro, os dilemas e dubiedades provocadas pela dupla experiência.
“Se vocês fossem como os outros, eu talvez tivesse tido menos medo do futuro. Mas, se vocês tivessem sido como os outros, seriam como todo mundo”

Trechos do livro:

“Quando se fala de crianças deficientes, assume-se um ar circunspecto, como quando se fala de uma catástrofe. Ao menos uma vez, eu gostaria de falar de vocês com um sorriso. Você me fizeram rir, nem sempre involuntariamente”.

“Graças a vocês, tive algumas vantagens em relação aos pais de crianças normais. Não me preocupei com seus estudos nem com orientação profissional. Não tivemos de hesitar entre uma carreira científica ou literária. Nem de nos inquietar quanto ao que vocês fariam mais tarde – soubemos rapidamente o que seria: nada”.

“Se vocês fossem como os outros, eu os teria levado ao cinema, teríamos visto juntos os velhos filmes de Chaplin, Eisenstein, Hitchcock, Bunuel e outra vez Chaplin(…)Se vocês fossem como os outros, eu os teria levado ao baile com suas namoradas em meu velho carro conversível(…)Se vocês fossem como os outros, eu teria tido netos. Se vocês fossem como os outros, eu talvez tivesse tido menos medo do futuro. Mas, se vocês tivessem sido como os outros, seriam como todo mundo. Talvez não tivessem se interessado por nada na escola. Teriam gostado de Jean-Michel Jarre. Teriam se casado com uma idiota. Teriam se separado. E talvez tivessem tido filhos deficientes. Escapamos de boa”.

“Aqueles que nunca tiveram medo de ter um filho que não fosse normal que levantem a mão. Ninguém levantou.Todo mundo pensa nisso como pensa num terremoto, como pensa no fim do mundo – algo que só acontece uma vez. Eu tive dois fins do mundo”.

“Quando eu era jovem, desejava ter mais tarde uma escadinha de filhos. Eu me via escalando montanhas cantando, atravessando oceanos com pequenos marinheiros que se pareceriam comigo, percorrendo o mundo seguido de uma alegre tribo de crianças curiosas de olhar vivo, às quais eu ensinaria muitas coisas – os nomes das árvores, dos pássaros e das estrelas(…)Crianças para quem eu inventaria histórias engraçadas. Não tive sorte. Joguei na loteria genética, perdi”.

“Nunca compreenderei por que foram punidos com tanto rigor. É profundamente injusto, eles não fizeram nada. Isso parece um terrível erro judiciário”.

“Queríamos poder tê-lo defendido da sorte que se havia agarrado a ele. O mais terrível é que não podíamos fazer nada. Não podíamos sequer consolá-lo, dizer-lhe que o amávamos assim como era – tinham-nos dito que ele era mudo. Quando penso que sou o autor dos dias dele, dos dias terríveis que ele passou na Terra, que fui eu quem o fez vir, tenho vontade de lhe pedir desculpas”.

“Quando estou sozinho no carro com Thomas e Mathieu, passam-me às vezes pela cabeça ideias estranhas. Penso que se sofresse um grave acidente de carro talvez fosse melhor. Estou ficando cada vez mais insuportável de conviver – e as crianças crescem e ficam cada vez mais difíceis. Então, fecho os olhos e acelero – mantendo-os fechados o maior tempo possível”.
“Quando acontece algo assim, a gente não costuma falar. É como um tremor de terra, é como o fim do mundo”

A entrevista de Jean-Louis Fournier ao DOSSIÊ GERAL:

O senhor não costumava falar sobre seus filhos. Por que mudou de atitude?

Jean-Louis Fournier: “Quando acontece algo assim, a gente não costuma falar. É como um tremor de terra, é como o fim do mundo. Quando a gente vê um tremor de terra, a gente espera que ele termine, antes de falar sobre ele. Porque, quando a gente sofre um tremor de terra, há tantas coisas a fazer que não se pode refletir. Não há tempo para escrever.É preciso esperar que a poeira baixe. É exatamente o que aconteceu comigo. Agora que um dos meus filhos morreu – e outro vive numa clínica- , já não tenho problemas domésticos ou problemas práticos a serem enfrentados. Posso, então, refletir. E mais: já não sou jovem. Tenho setenta anos. Sou biodegradável. Já não posso esperar tanto, se desejo deixar uma lembrança dos meus filhos. Fiz o livro também para deixar uma lembrança, um marca dos dois. Porque as crianças deficientes não deixam marcas na vida. Não falamos sobre elas. Os outros,em geral, nem sabem que elas existem. Quando eles morrem, não dizemos a ninguém. Não há nada. Com meu livro, quis fazer com que eles passassem a existir. Quis fazer com que eles fossem conhecidos no mundo inteiro”.

O senhor conseguiu, já que eu, por exemplo, estou ligando do Brasil para falar dos seus filhos….

Jean-Louis Fournier: “O que é extraordinário é que, quanto a estas crianças, ninguém pergunta por elas. As pessoas ficam incomodadas. Porque a verdade é que não há nada a dizer sobre as crianças deficientes. Não podemos dizer: o que é que elas estão estudando? Fizeram provas? Arranjaram uma namorada? A única resposta que a gente pode dar, quando alguém nos pergunta o que é que nossos filhos deficientes estão fazendo, é: “nada”.O que é que eles fazem? Nada. O que é que eles fazem? Nada. Não me perguntavam nunca sobre eles. Agora, quando um dos meus filhos já nos deixou – e o outro quase já não vive entre nós -, os que leram meu livro me pedem notícias dos dois”.

Qual foi a lição mais importante que você aprendeu com seus filhos?

Jean-Louis Fournier: “A lição mais importante….(pausa) foi : o fato de não ser parecido com os outros não quer dizer, necessariamente, que você não seja tão bom quanto os outros. As crianças deficientes são um mistério. Não temos o direito de dizer que a vida que elas vivem não é interessante, já que não sabemos. A vida de cada um é diferente. A frase que não gosto de ouvir – mas que ouvi algumas vezes – é : “Eu me coloco no lugar dessa criança”. Ora, ninguém pode se colocar no lugar de outro. Não podemos dizer que a vida de um gato é menos interessante do que a vida de um político ou de um sábio. Não sabemos”.

Por que o senhor diz que não se considera um bom pai ?

Jean-Louis Fournier: “Não fui porque sou impaciente. Não sei ser paciente. Perco logo a cabeça. Quando eles choravam de noite, eu tinha vontade de jogá-los pela janela. Não creio, portanto, que tenha sido um pai tão bom. Com essas crianças, é preciso ter uma paciência de um anjo. E não sou um anjo”.

O que é o senhor pode dizer a um pai que tenha o mesmo problema que o senhor teve?

Jean-Louis Fournier: “Digo que não há uma criança deficiente: há uma criança que, por ser não ser como as outras, é um mistério. Dizem que são menos inteligentes do que as outras. O que é que elas significam ? Que há diferentes formas de inteligência. Ouço coisas como: se a Terra fosse povoada apenas por pessoas normais e inteligentes,a vida seria impossível. Porque a vida seria parecida com um estádio, onde cada um tentaria ser o primeiro. Mas, graças a essas crianças, há coisas que valorizamos, como o sonho, a inutilidade, a poesia. Porque de certa maneira elas são poetas, já que não estão integradas ao nosso mundo moderno: não vivem, por exemplo, tentando ganhar dinheiro. Vivem no sonho. Creio que o surrealismo é próximo do que essas crianças são. Há poemas surrealistas que poderiam ter frases ditas por crianças deficientes. É o que quero dizer. O que aprendi com meus filhos é que crianças deficientes são uma forma de poesia”.

Posted by geneton at novembro 30, 2009 06:13 PM
   
   
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