novembro 17, 2009

OLEG IGNATIEV

AVENTURAS EM MOSCOU/ PARTE 3: O JORNALISTA REVELA UM SEGREDO GUARDADO DURANTE VINTE ANOS: O CHINÊS QUE ESCREVIA CARTAS SUPER-POLITIZADAS NUNCA EXISTIU

O baú de histórias proibidas que o jornalista Oleg Ignatiev guardou em segredo mas hoje pode contar não pára aí : além do poema que foi arrancado às pressas da edição do jornal porque trazia uma comparação imprópria entre Josef Stalin e a águia das montanhas, ele se viu às voltas com um chinês que jamais existiu.

Ignatiev recebeu a tarefa de encontrar, entre a correspondência enviada ao jornal, uma carta que saudasse a amizade entre a Rússia e a China. Mas não pôde cumprir a missão : a carta simplesmente não existia. Nenhum leitor tinha se dado ao trabalho de louvar os tratados de cooperação assinados entre os dois países.

O que fez nosso herói ? Num gesto que não teve coragem de confessar nem aos seus companheiros de trabalho, Ignatiev cometeu um pecado : simplesmente inventou um leitor chinês, um suposto Sun-Tsé-Lin. Ninguém viu Ignatiev cometer o sacrilégio de redigir uma carta que seria assinada por um leitor que jamais existiu.

A carta impressionou a todos na redação : o suposto autor – um operário chinês – era capaz de exibir um grau de politização que soava como música aos ouvidos dos jornalistas habituados a redigir loas ao regime soviético.

O velho jornalista me entrega o texto em que descreve com detalhes a aparição de um inexistente Sun-Tsé-Lin nas páginas do jornal :

- “O que não nos faltava em absoluto – confessa Ignatiev – era a audácia : ninguém se dava ao trabalho de medir cuidadosamente as expressões quando se tratava de estigmatizar os tubarões do imperialismo empenhados “em devorar a América Latina” (ou a Ásia ou a África – de acordo com a região do mundo a que dizia respeito o material denunciativo…).Mas a repetição infinita de fatos universalmente conhecidos massacrava e entediava não só os leitores mas também os autores.Queríamos escrever algo que fosse diferente de chavões repisados pela milésima vez”.

“A quatorze de fevereiro de 1951,todos os jornais soviéticos comemoravam o primeiro aniversário da assinatura do tratado sino-soviético de amizade, cooperação e ajuda mútua.O Komsomolskaia Pravda também deveria comemorar a data. O redator-chefe do jornal, Dimitri Petrovich Goriunov, encarregou a editoria internacional de preparar um “material não-padronizado”. A seção de correio do Comitê Antifascista da Juventude Soviética me entregou um maço de cartas vindas da República Popular da China. Todas vinham acompanhadas de uma tradução do chinês para o russo”

“Depois de ler todas as cartas, senti um calafrio : ficou claro que eu não conseguiria cumprir a missão do redator-chefe. Os autores de todas as cartas – sem exceção – ignoravam totalmente a amizade entre os povos da União Soviética e da China. Parecia que todos eles tinham combinado entre si pedir que lhes enviassem selos soviéticos….Minha situação era dramática, porque o jornal não poderia sair no dia 14 de fevereiro sem um material original dedicado à China. Não tive outra solução : precisei recorrer a um gesto desesperado”.

“Ninguém pode imaginar o martírio que é inventar uma carta em nome de um autor imaginário que, além de tudo, é chinês….O autor da carta fala de trabalho, sonha com um “futuro feliz” e refere-se com o máximo de calor ao “irmão mais velho” – a União Soviética. “Sun-Tsé-Lin”, maquinista de locomotiva, era um nome cem por cento chinês. A primeira parte do nome tirei de Sun Yat-Sem ; a segunda tirei de Mao Tsé-Tung . A terceira tirei de Lin Piao. Fiz três páginas de texto”.

“Quando o editor Boris Strelnikov entrou no gabinete do redator-chefe, Dmitri Petrocich Goriunov, encontrou-o segurando nas mãos uma prova da página com a minha “obra-prima”. “Diga-me,Boris, perguntou Dmitri Petrovich,como é possível : nossos jovens jornalistas – gente com instrução superior, gente que dispõe de condições especialmente favoráveis para o trabalho - usam uma linguagem pobre e ruim,enquanto que um simples maquinista chinês consegue encontrar palavras que nos emocionam profundamente. São palavras fortes e penetrantes !”.

“Não ousei, naquela ocasião, confessar a minha ação desonesta não só ao redator-chefe como também ao meu amigo Strelnikov. Jurei, então, que, no futuro, jamais utilizaria semelhantes métodos que violam a ética elementar do jornalismo. Somente depois de passados vinte anos, quando todos já tinham deixado de trabalhar no jornal, é que relatei toda a verdade ao meu antigo chefe, o que aliviou a minha alma”.

A dor de consciência só não atormentou Ignatiev porque ele foi - literalmente – salvo pelo gongo : a carta do chinês imaginário teve de ser substituída,”já à meia-noite”, nas páginas do jornal, por um longo artigo intitulado “A União Soviética é o nosso Futuro Feliz”, escrito por um certo Li Chiang – este,sim,um chinês de verdade, integrante da Nova Aliança Democrática da Juventude da China,como registram os arquivos implacáveis de Oleg Ignatiev.

A idéia de escrever uma carta em segredo, como se fosse um chinês politicamente engajado, deixou Ignatiev numa situação surrealista : ao contrário do que acontece com cem por cento dos jornalistas, ele torceu desesperadamente para que suas palavras jamais fossem publicadas. Por sorte, o comício do chinês imaginário sobre as belezas do regime soviético terminou cedendo lugar a outro artigo.

Quando os nomes dos todo-poderosos dirigentes do Kremlin eram escolhidos em conciliábulos do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, o mundo inteiro procurava enxergar, nas entrelinhas do jornal “Pravda”, algum sinal sobre a dança do poder no Olimpo comunista. Como se fossem egiptólogos debruçados sobre hieróglifos, os chamados “analistas políticos” ocidentais interpretavam cada palavra do jornal em momentos decisivos da história da finada União Soviética.

Não era para menos. O Pravda era o porta-voz oficial do Comitê Central do Partido Comunista, num regime que se fechava para o resto do mundo. O jornal tinha uma tiragem de cerca de 11 milhões de exemplares. O número de correspondentes espalhados pelo exterior chegava a quarenta e cinco, na “época de ouro”.

Logo depois do fracassado golpe de comunistas de linha dura contra o então presidente Mikhail Gorbatchev em 1991, o que parecia impossível aconteceu: o Soviet Supremo simplesmente ordenou a suspensão da publicação do Pravda – que voltaria a circular sob a direção de um coletivo de jornalistas.

Fã de Nikita Kruschev, o líder comunista que caiu em desgraça ao tentar ensaiar um início de liberalização do regime comunista nos anos cinqüenta, Ignatiev chama Stalin de “criminoso” e Brejnev de “fraco”.

Se quisesse, o senhor poderia escrever estas opiniões no Pravda ? – pergunto a ele.

Ignatiev suspira fundo. Responde, convicto:

– Não era impossível escrever. Mas sob o ponto-de-vista moral, não seria bom escrever no Pravda que Brejnev era fraco. Porque o Pravda era o órgão do Partido. E Brejnev, o líder do Comitê Central…

Aos setenta e dois anos, o velho jornalista do Pravda — até hoje comunista convicto — faz questão de repetir:

– Quando não concordava com um assunto, eu não escrevia nada. Mas nunca escrevi contra minhas opiniões.

(*) A reportagem completa sobre a primeira eleição para presidente realizada na Rússia depois do fim da União Soviética foi publicada no livro Dossiê Moscou

Posted by geneton at novembro 17, 2009 06:36 PM
   
   
Copyright 2004 © Geneton Moraes Neto
Design by Gilberto Prujansky | Powered by Movable Type 3.2