setembro 04, 2009

“RECÉM-NASCIDOS ENFORCADOS EM FRALDAS” POVOAM A PEÇA QUE NÉLSON RODRIGUES PROMETEU MAS NÃO ESCREVEU NA SEMANA DO SEQUESTRO DO EMBAIXADOR AMERICANO!

Ah, as pequenas – mas inesquecíveis – compensações da vida de repórter: tive a chance de fazer uma longa entrevista com o gênio Nélson Rodrigues numa tarde em que, diante de nós, na TV sem som, a seleção brasileira derrotava a seleção do Peru por três a zero, no Maracanã.

(pausa para uma promessa: farei em breve uma reconstituição completa do fato. Que outra coisa de útil um jornalista pode fazer, além de tentar obsessivamente reconstituir o passado com palavras e imagens ? Não importa que o fato tenha acontecido faz cinco minutos, não importa que seja grandioso ou banal, como o encontro de um repórter com um cronista : já é passado, já virou destroço submerso. O jornalista é o escafandrista que entrará em cena para revirar os destroços em busca de indícios do que aconteceu).

Nunca me esqueci de uma queixa que Nélson Rodrigues repetiu na entrevista: dominada pelos chamados “idiotas da objetividade”, a imprensa brasileira tinha deixado de publicar pontos de exclamação nos títulos! O motivo da queixa rodriguena: os jornais tentavam ostentar uma frieza e um distanciamento que não correspondiam à fabulosa marcha dos acontecimentos. Os fatos da vida merecem, sim, um ponto de exclamação !

Nélson Rodrigues não se conformava: os “idiotas da objetividade” tinham banido os pontos de exclamação das manchetes dos jornais

Há uma crônica em que Nélson lamenta, desolado: o sangue do presidente John Kennedy ainda estava quente, mas os jornais brasileiros não se dignavam a conceder um ponto de exclamação à tragédia de Dallas. Majoritários nas redações, os “idiotas da objetividade” tratavam a notícia chocante como se estivessem falando de uma partida de biriba.

O pior de tudo: a situação só piorou dos tempos em que Nélson Rodrigues fez a queixa para cá. Em homenagem a Nélson Rodrigues, este post ganhou um ponto de exclamação no título!

2009. O repórter-que-vos-fala desembarca na sala de periódicos da Biblioteca Nacional, o santuário das “miudezas efemêras” estampadas ao longo do tempo nas páginas de jornais e revistas. Eu teria, ali, um encontro inesperado com a lembrança de Nélson Rodrigues.

O passado manda lembranças : num jornal amarelado, o maior cronista brasileiro analisa o manifesto dos guerrilheiros que sequestraram o embaixador

Percorro páginas de quarenta anos atrás. O ano: 1969. O mês: setembro. Descubro, por acaso, uma preciosidade amarelada : o maior cronista brasileiro, Nélson Rodrigues, escreveu uma espécie de resenha sobre o manifesto divulgado pelos guerrilheiros que sequestraram o embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, no dia quatro de setembro de 1969.

O principal autor do manifesto foi Franklin Martins, à época, militante de política estudantil convertido em guerrilheiro; hoje, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.

Os guerrilheiros obrigaram o regime militar a divulgar o manifesto nos meios de comunicação. Era uma das exigências feitas para que o embaixador fosse libertado são e salvo. A outra exigência era a libertação de quinze presos políticos. As duas exigências foram cumpridas pelos militares. O embaixador foi solto no dia sete de setembro, um domingo, com a marca de uma coronhada na testa – e, certamente, um sentimento de alívio que carregou pelo resto da vida. Jamais imaginou que viveria tão aventura no Brasil. Nunca, jamais, em tempo algum, diplomatas tinham sido usados como moeda de troca contra regimes militares.

O manifesto lançava um alerta ao regime militar : “Quem prosseguir espancando, torturando e matando ponha as barbas de molho”

“O sequestro do embaixador dos Estados Unidos foi a primeira operação do gênero no mundo, na história da guerrilha urbana”, escreveria o historiador Jacob Gorender em “Combate nas Trevas”.

Um trecho do manifesto:

“Com o rapto do embaixador, queremos mostrar que é possível vencer a ditadura e a exploração, se nos armarmos e nos organizarmos. Apareceremos onde o inimigo menos nos espera e desaparecemos em seguida(…)A vida e a morte do senhor embaixador estão nas mãos da ditadura. Se ela atender a duas exigências,o senhor Burke Elbrick será libertado. Caso contrário, seremos obrigados a cumprir a justiça revolucionária. Nossas duas exigências: a) a libertação de quinze prisioneiros políticos. São quinze revolucionários entre os milhares que sofrem as torturas nas prisões-quartéis de todo o país(…) b) A publicação e leitura desta mensagem, na íntegra, nos principais jornais, rádios e televisões de todo o país (…) Finalmente, queremos advertir aqueles que torturam, espancam e matam nossos companheiros: não vamos aceitar a continuação dessa prática odiosa. Estamos dando o último aviso. Quem prosseguir torturando, espancando e matando ponha as barbas de molho. Agora, é olho por olho, dente por dente”).

O que Franklin Martins não esperava era que o texto do manifesto fosse merecer uma “crítica” assinada por Nélson Rodrigues.

A promessa de Nélson Rodrigues: iria escrever uma peça em que guerrilheiros tomariam o berçário de uma maternidade…

Apenas três dias depois do desfecho do sequestro, Nélson Rodrigues escreveu, no jornal O Globo, uma crônica em que, além de criticar o manifesto, faz uma promessa que não viria a cumprir.

Melodramático, disse que, se encontrasse tempo, iria escrever uma peça de teatro em que seqüestradores simplesmente atacavam um berçário com cinqüenta recém-nascidos:

“Notem como há, no manifesto dos extremistas, um narcisismo indisfarçável. Redigiram um documento para o Brasil e para o mundo.Fazem questão de reivindicar a autoria de não sei quantas atrocidades (…) Não sei se será justo chamar os nossos terroristas de “brasileiros”. Eis a verdade: o brasileiro é muito mais suicida do que homicida. Sempre nos faltou a vocação do crime político (…)Os terroristas são brasileiros. Mas é fácil perceber no episódio do sequestro (tão anti-brasileiro, tão anti-Brasil) vários sotaques. Os rapazes que o executaram são brasileiros, sim,mas amestrados lá fora. Comandados por sotaques diversos, eles estão dispostos – e o dizem – a matar sempre e cada vez mais. Logo que encontrar uma brecha de tempo, farei uma peça política. É justamente uma história de terrorismo,passada no Brasil. Imaginem que um grupo de rapazes, socialistas radicais, ocupam um berçário. Entram lá de metralhadora, expulsam as freiras e lançam um “ultimatum” à nação. Das duas, uma:ou a nação lhes daria o poder ou eles fazem,ali, uma carnificina com os recém-nascidos. O governo tem um prazo de 24 horas. Durante dez, quinze, vinte horas,as autoridades não sabem o que pensar, o que dizer. São cinqüenta criancinhas. O país para. Mas ninguém acredita que homens, nascidos de mãe, cumpram a ameaça. A resposta aos extremistas é “não”. Cada recém-nascido foi enforcado na própria fraldinha”.

O que são os jornais ? “Museus de miudezas efêmeras”

Dou por encerrada minha expedição. Visto hoje, tudo o que um dia pulsou, dramático, nas páginas de um jornal antigo parece ter se transformado irremediavelmente em peça de museu, tudo se reduz a miudezas, tudo ganha um ar de efêmero. Mas o passado, quando manda lembranças, pode brindar os garimpeiros com pequenas surpresas, como a promessa que Nélson Rodrigues fez numa página de jornal.

Bem que Jorge Luis Borges chamava os jornais de “museus de miudezas efêmeras”. Acertou na mosca. Ponto.Parágrafo.

Tudo vira miudeza, tudo é efêmero – mas, no fim das contas, pelo menos uma lembrança remota dos fatos se salva, na superfície plana, frágil e retangular destes museus de papel – os velhos jornais armazenados em bibliotecas.

O apresentador daquele programa jurássico de televisão berraria “absolutamente certo!” se tivesse a chance de ouvir dos lábios de Jorge Luis Borges uma resposta tão precisa sobre a natureza dos jornais.

Posted by geneton at setembro 4, 2009 09:48 PM
   
   
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