fevereiro 26, 2007

ANOTACOES DE UM NAVEGANTE. ESCALA: UMA APARICAO DO ''MAIOR ESCRITOR BRITÂNICO''

LONDRES - Eis o homem que o The Guardian acaba de batizar como ''o maior escritor britânico vivo'': Martin Amis toma um líquido amarelado. Pode ser vinho. Fuma. A voz é algo grave. Faz pausas estratégicas nas frases, para arrebatar a platéia. Tira e bota os óculos repetidamente. A cabeleira ostenta uma cor suspeita. Pode ter sido beneficiada por uma leve tintura, quem sabe, para disfarçar os 57 anos.

( Amis é, obviamente, um escritor de primeira linha. Mas o título de ''maior escritor britânico vivo'' - que lhe foi concedido pelo jornal, há poucos dias, num texto de primeira página - provocou reaçoes: uma leitora exaltada escreveu uma carta para dizer que consideraria a possibilidade de se matar, se a imprensa insistisse em se referir ao escritor nestes termos.''Quem tem paixao por livros vai querer se exilar imediatamente no Uruguai. Por favor, salvem minha vida" - disse a autora do protesto. Uruguai, para ela, é sinônimo de fim de mundo)



Mr. Amis desembarcou no Royal National Hotel,na Bedford Way, perto do centro de Londres, para participar de uma Semana do Livro Judaico, como um dos convidados de honra.O que ele faz lá? Homenageia o amigo e ídolo Saul Below, um escritor que, nas palavras de Amis, ''emancipou'' os judeus na cultura popular americana. Depois, produz uma boa frase de efeito: ''Israel nao é um museu do Holocausto equipado com helicópteros''.

O ''maior escritor'' vai para um salao ao lado do auditório, para se submeter á tortura regulamentar de uma sessao de autógrafos. Troca frases simpáticas com fas que compram exemplares de seus livros, empilhados numa mesa.

(Amis produz textos em quantidades industriais. Transita, sem perder o brilho, entre a ficcao e a realidade. Já escreveu, como em ''Koba The Dread'', libelos para denunciar os horrores de Stalin - logo ele, filho de um escritor que durante décadas foi um simpatizante engajado da causa comunista. Em ''Time's Arrow'' descreve - de trás para frente - a vida de um médico criminoso de guerra nazista. Em "Visiting Mrs Nabokov'', produz ensaios para ridicularizar , por exemplo, as imposturas do show bunisess, como o circo armado em torno de entrevistas de estrelas como Madonna. Tanto barulho para nada: algum habitante deste Vale de Lágrimas já ouviu um pensamento original emitido por ela? Há um texto brilhante em que Amis mistura realidade com ficcao: reconstituiu os últimos momentos dos terroristas que sequestraram os avioes do 11 de Setembro. A revista Piauí publicou a traduçao no Brasil. Grande leitura)

Fico na fila. Dou a Amis um exemplar de "Time's Arrow''. Nosso personagem fica sabendo que o meu nome, esquisito, é Made in Brazil. ''Ah, brasileiro?'', pergunta, com a paciência profissional de quem ainda vai cumprir, esta noite, por 'n', vezes a obrigacao de ser cordial com estranhos.''Você sabia que passei uma temporada no Uruguai?''. Digo que sim, porque os jornais falaram da expedicao que Amis fez á América do Sul para acompanhar a mulher, a também escritora Isabel Fonseca, descendente de uruguaios.

Dou a Martin Amis, com dez anos de atraso, a notícia da morte de Paulo Francis. Meses antes de morrer, Francis o entrevistou, em 1996, em Londres. Fui testemunha : de volta ao escritório da TV Globo, Francis dizia, satisfeito, que tinha passado a vista nas estantes de Amis. Constatou que tinha lido a grande maioria daqueles livros. Deve existir - dizia ele - uma ''conspiracao internacional'' entre escritores e intelectuais, porque os livros que eles lêem sao os mesmos.


Amis franze a teste, dá a impressao de que tenta se lembrar da entrevista que deu a Francis. Quantas centenas de entrevistas nao terá dado nesta década? Ainda assim, exibe um ar de espanto quando sabe que Francis morreu poucos meses do encontro com ele.

Já sao dez e meia da noite. O próximo leitor se aproxima com outro livro nas maos.

Pego o autógrafo. Procuro a saída.

Lá na mesa, Amis comeca um novo diálogo - telegráfico - com outro fa.

Bota os óculos. Assina o exemplar. Oferece um sorriso profissional.

Próximo leitor, por favor.

Martin Amis vos espera, com uma caneta na mao, as sobrancelhas arqueadas e os ouvidos atentos- para entender como se soletra o nome de cada forasteiro que o aborda ali, na noite de autógrafos improvisada.

Faz parte do show. É assim que Martin Amis paga, sem reclamar, o pedágio que a fama cobra de escritores que se tornaram celebridades.



Posted by geneton at 08:10 PM

fevereiro 23, 2007

UMA FIGURA NA JANELA. É O PAPA. E A LOJA DOS TRAPOS DO CORAÇAO AVISA: UM DIA, ELE VIRÁ. QUEM? O AGENTE FUNERÁRIO SORRIDENTE

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Posted by geneton2 at 06:19 PM

ANOTACOES DE UM NAVEGANTE. ESCALA: ''A LOJA DOS OSSOS E DOS TRAPOS DO CORAÇAO''

PARIS - O mundo é um belo lugar, mas um dia, cedo ou tarde, ele virá : o agente funerário sorridente.

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Passo pela Livraria Shakespeare, no Quartier Latin. É uma espécie de monumento à ingenuidade. A livraria oferece dormida de graça aos forasteiros que leiam pelo menos um livro por dia. Pequenas camas se misturam a livros - antigos - no primeiro andar. Um espelho registra as mensagens deixadas por forasteiros que passaram por aqui. Sao candidatos a escritores, a poetas, a sonhadores. Flagro - por puro acaso - o dono da livraria debruçado numa janela, com a cabeleira branca exposta ao vento frio de uma manha de inverno em Paris.
É uma figura quase exótica: declara-se neto bastardo do grande poeta americano Walt Whitmann. Se o parentesco é lenda ou é verdade, o que importa? Imprima-se a lenda. A Livraria se alimenta de mitos. Hemingway passou pela Shakespeare.

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As salas da livraria ganharam nomes bonitos:

Loja dos Ossos e dos Trapos do Coraçao, Sala de Chá da Ostra Azul, Sala de Leitura de Antigas Fumaças.

Vasculho as estantes. Termino encontrando um livro de apenas 45 páginas do poeta beat americano
Lawrence Ferlinghetti. Título: ''Pictures of the Gone World''.

Um poema bem que serve de alerta:


''The World is a beautiful place
to be born into

If you don't mind happiness
not always being
so very much fun
If you don't mind a touch of hell
now and then
just when everything is fine
because even in heaven
they don't sing
all the time


(...) Yes, the world is the best place of all

for a lot of such things as making the fun scene
and making the love scene
and making the sad scene
and singing low songs and having inspirations
and walking around
looking at everything
and smelling flowers
and goosing statues
and even thinking
and kissing people and
making babies and wearing pants
and waving hats and
dancing
and going swimming in rivers
on picnics
in the middle of the summer
as just generally
''living it up''

Yes,
but then right in the middle of it
comes the smiling
mortician''


Valeu a expediçao até a livraria.

Posted by geneton at 05:08 PM

ANOTAÇOES DE UM NAVEGANTE. ESCALA: VATICANO

CIDADE DO VATICANO - Nem 11:59 nem 12:01. O relógio marca meio-dia em ponto quando uma das janelas do Vaticano se abre. Apequenada pela distância que a separa da multidao, uma figura se aproxima do parapeito para saudar os visitantes que,lá embaixo, na Praça de Sao Pedro, apontam para a janela um oceano de câmeras digitais . De longe, é impossível discernir, a olho nu, as feiçoes da figura que acena da janela. Mas quem usa o visor das câmeras como uma espécie de binóculo improvisado vai enxergar, com razoável clareza, o sorriso travado do personagem. Ei-lo: o papa Bento XVI acaba de fazer uma apariçao no Vaticano.

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Justiça se faça: a taxa de carisma do Papa é algo perto de zero, comparada com a de Joao Paulo II. Mas uma apariçao do sucessor de Sao Pedro é sempre capaz de espalhar pela multidao uma corrente de entusiasmo. É o que acontece. Os fiéis aplaudem. Bento XVI acena. Gritos. Novas palmas.

Depois que o Papa se recolhe, a multidao forma uma fila para entrar no Vaticano. Um ponto de passagem quase obrigatório: os túmulos dos Papas. Despojado, como os outros, o túmulo de Joao Paulo II desperta comoçao. Quem nao se lembra da imagem comovente de Joao Paulo II se contorcendo de dores naquela janela do Vaticano, incapaz de pronunciar até o fim a bênçao aos fiéis ?

Visitantes mais devotos choram lágrimas discretas diante do túmulo. Poucos resistem à tentaçao de fotografar. Um funcionário pede que a fila apresse o passo, para evitar um congestionamento humano nos corredores do Vaticano. A dois passos dali, outro túmulo atrai atençoes: o de Joao Paulo I, o Papa que só reinou por trinta e três dias, em 1978. Um visitante anônimo deixa uma rosa vermelha sobre o túmulo de Joao Paulo I. É o único ornamento de um túmulo extremamente despojado. Silêncio, pedem os vigilantes do Vaticano. ''Um minuto, é só uma foto'', respondem os turistas.

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A figura do Papa pode até parecer um anacronismo. Mas a aura de segredo que envolve aqueles corredores, a sincera comoçao despertada - por exemplo - pela visao do túmulo de Joao Paulo II ou a corrente de eletricidade que percorre a multidao quando o Papa surge na janela deixam uma certeza: o fascínio produzido por estes rituais é que garante a permanência da Igreja.

Sem segredos, sem esta pompa, sem esta grandiosidade que se estende por corredores sem fim, o que restaria?

Ainda assim, o Vaticano de vez em quando concede ao populacho a chance de espiar de relance uma nesga do que acontece por trás daqueles muros. O Museu do Vaticano abriu, no Palazzo Apostolico Lateranense, uma exposiçao chamada "Habemus Papa''. Lá estao relíquias como o martelo usado para constatar a morte dos Papas. O martelo exposto à curiosidade pública foi usado para cumprir o ritual fúnebre de Leao XIII, em 1903. Um ajudante bate três vezes na fronte do Papa morto com o martelo, para constatar a morte. Chama o nome de batismo do Papa. O silêncio é a resposta.

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É assim que tudo acaba. O que fica ? A grandeza esmagadora do Vaticano e a beleza de rituais capazes até de acender uma fagulha de fé no peito de descrentes.

Posted by geneton at 04:57 PM