outubro 22, 2011

PAULO BROSSARD

O DIA EM QUE SARNEY DECIDIU RENUNCIAR À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (O EX-SENADOR PAULO BROSSARD FAZ UMA VIAGEM AO “BOULEVARD DA MEMÓRIA”, ÀS VÉSPERAS DE COMPLETAR 87 ANOS. E EXPLICA: O QUE SERÁ A “FATALIDADE HISTÓRICA DOS ALGARISMOS ?”)

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Brossard: uma expedição ao País da Memória, às vésperas dos 87 anos de idade (Foto: Ricardo Chaves)

A Globonews exibe, neste domingo, ao meio-dia e meia, uma entrevista gravada em Porto Alegre com o senador que já foi líder da oposição no Senado durante o regime militar: Paulo Brossard. Aqui, um texto que este repórter escreveu para o jornal Zero Hora:

O então ministro da Justiça Paulo Brossard foi o primeiro brasileiro a saber que o Presidente da República iria renunciar ao mandato. A notícia bombástica lhe foi dada pelo próprio Presidente, numa audiência no Palácio do Planalto. “Fiquei um tanto perplexo” – resume, hoje, Brossard, às vésperas de completar 87 anos de idade.

O presidente era José Sarney, o vice que chegara ao cargo num inacreditável golpe do destino: como se sabe, o presidente eleito, Tancredo Neves, foi internado num hospital na véspera de tomar posse. Não se recuperaria. Quando foi entronizado na Presidência, Sarney tinha diante de si seis anos de mandato. A duração do mandato fora reduzida para cinco. Mas uma porção considerável do Congresso queria porque queria estabelecer uma nova redução do mandato – desta vez, para quatro anos. O presidente perdeu a paciência. Chegou à conclusão de que perderia as condições políticas de governar se o Congresso reduzisse para quatro anos o mandato presidencial.


O que fez Sarney ? Chamou o ministro Brossard para dizer que a decisão estava selada: iria renunciar. O país certamente enfrentaria turbulências : se Sarney renunciasse ali, em 1988, não havia um vice à mão para assumir. O presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, teria de convocar imediatamente uma eleição para Presidente da República. Acontece que o Congresso estava mergulhado na preparação de uma nova Constituição. Uma eleição inesperada, ali, atropelaria os trabalhos da Constituinte, além de jogar para o ar o calendário da redemocratização.

O senhor diz que ficou “perplexo”. Quando o Presidente lhe disse que iria renunciar, o senhor tentou demovê-lo ? – pergunto, durante a gravação da entrevista para o Dossiê Globonews (Canal 40 da Net).

“Não” – responde, firme, Brossard. “Eu tinha perguntado ao Presidente se aquilo era uma inclinação, uma hipótese ou uma resolução. Quando ele me disse que era uma resolução, eu disse: “Então, vamos tratar como uma resolução!”.

Brossard descreve o drama que estava se armando no Palácio do Planalto:

“Eu disse ao Presidente: “Compreendo a situação. Mas estou agora numa situação extremamente desconfortável. Porque – sabendo deste fato e nada fazendo – não cumpro o meu dever com o País. Ao mesmo tempo, não posso tomar qualquer iniciativa à revelia do senhor”.

O que fez o então ministro ? Avisou ao Presidente que iria convocar para uma “reunião reservada”, de manhã cedo, na sede do Ministério da Justiça, os líderes dos quatro maiores partidos: Ulysses Guimarães (PMDB), Jarbas Passarinho (PDS), Marco Maciel (PFL) e Paiva Muniz (PTB). Assim foi feito. O ministro disse aos quatro que, diante da pressão pela redução do mandato, o Presidente decidira abandonar o cargo. Os quatro ficaram tão perplexos quanto o ministro tinha ficado. Deixaram o Ministério discretamente, sem atrair a atenção de ninguém. Nenhum repórter viu o quarteto entrar ou sair do prédio. “Não tinha ninguém no Ministério. Não houve jornal que publicasse. Nada, nada”, descreve Brossard.

Depois da reunião secreta, a campanha pelos quatro anos arrefeceu. Brossard aposta que os quatro líderes trataram de alertar os seus liderados mais exaltados sobre o que estava para acontecer. O certo é que a renúncia não se consumou. Sarney, como se sabe, cumpriu cinco anos de mandato.

O ex-ministro produziu um documento sobre esta cena dos bastidores do Poder. Redigiu um relato de sessenta e cinco linhas sobre a ameaça de renúncia. Tratou de mandar uma cópia do relato para o próprio Sarney e os dois sobreviventes do quarteto de líderes partidários: Marco Maciel e Passarinho. Pediu que os três atestassem, por escrito, que o relato era fiel aos fatos. Os três atenderam ao pedido. Num gesto raro entre políticos, Brossard disse que vai encaminhar o documento à Biblioteca Nacional e ao Instituto Histórico e Geográfico.

O que é que alimenta um político já afastado da ribalta ? A memória, esta entidade impalpável mas fascinante – é o que penso, enquanto, diante de mim, o ex-ministro descreve com detalhes cenas de que foi personagem e testemunha privilegiada.

Agora, é o repórter que embarca no Boulevard da Memória.

CHEGA DE ESCURIDÃO

A palavra é esta: um acontecimento.

A chegada do então líder da oposição Paulo Brossard ao Recife era um acontecimento ali, na segunda metade dos anos setenta.

Eu fazia parte daquele pequeno enxame de repórteres abelhudos que iam ao Aeroporto dos Guararapes em busca de alguma estocada que, com certeza, o senador iria desferir contra as arbitrariedades do general que dava plantão na Presidência da República ( Pernambuco não era brincadeira: era a terra de Miguel Arraes – o governador de deposto e exilado; Francisco Julião, o líder que queria fazer reforma agrária “na lei ou na marra” e Gregório Bezerra, o militante comunista que fora arrastado pelas ruas feito bicho. O Estado era uma das bases de operações dos “autênticos” do MDB. Ainda assim, víamos o Rio Grande do Sul com uma ponta de inveja e admiração: a cada vez que fossem abertas, as urnas da terra de João Goulart, Leonel Brizola, Paulo Brossard e Pedro Simon haveriam de pronunciar sempre um rotundo “não” à ditadura. Nem sempre foi assim, claro, mas uma indefinível mística gaúcha reverberava lá do outro lado do Brasil). Havia um tom ligeiramente épico em imagens como aquela de Paulo Brossard montado num cavalo no dia em que venceu a eleição para o Senado Federal.

A gente sabia que, logo depois de desembarcar no Recife, o senador tiraria o chapéu, se acomodaria numa poltrona do terminal de desembarque , passaria a mão na testa e pronunciaria um punhado de frases ferinas – com aquelas pausas brossardianamente dramáticas e aqueles gestos brossardianamente teatrais. A bem da verdade, as pausas da fala do senador seriam um desastre para a televisão. Mas, oh tempos, as TVs não costumavam acompanhar as perorações de senadores inconvenientes. Já os gestos teatrais faziam a alegria dos fotógrafos.

Uma vez, acompanhei uma expedição do senador pelo agreste pernambucano. Meus arquivos não tão implacáveis guardam uma foto tirada num comício: num canto do palanque, eu, repórter de jornal, vinte anos de idade, ouvia o que aquele senador que vinha dos Pampas tinha a dizer à multidão reunida numa praça de Caruaru, sob a lua clara do agreste. O ano: 1976. O discurso dizia : chega de arbítrio, chega de eleições indiretas, chega de exilados, chega de cassações, chegada de AI-5. Ah, em nome do Brasil, chega de escuridão.

Três décadas e meia depois, desembarco no casarão do senador, num bairro batizado com um nome que causa certa estranheza aos meus ouvidos pernambucanos: Petrópolis. Quem diabos terá tido a ideia de batizar aquele pedaço de Porto Alegre com o nome de uma cidade fluminense ? “Colonos alemães”, responde prontamente o Dr. Google.

Lá vem Paulo Brossard. Em algum ponto do salão devo ter visto um chapéu, pendurado num cabide (ou terá sido uma alucinação visual provocada pela lembrança das andanças pernambucanas do senador?) . As paredes estão entulhadas de livros. As estantes guardam raridades bibliográficas como uma coleção completa da Documentos Brasileiros, a coleção que Gilberto Freyre dirigiu nos anos quarenta na Editora José Olympio.

Quando Brossard subia à tribuna, para disparar petardos contra o arbítrio do regime dos generais ou para disputar pelejas com o líder do governo, Jarbas Passarinho, o Senado ouvia com reverência. Que palavras hoje seriam capazes de eletrizar o eleitorado ?

O discurso emociona, ainda hoje. Interrompido aqui e ali por aplausos, Brossard bradava:

“Daqui, diremos ao Brasil: a nossa vitória está longe ainda de ser alcançada. Mas, dia mais, dia a menos, ela virá, pela voz dos homens que, no fundo das trevas, não perdem esperança” – brada a voz de Brossard, num discurso de 1979, preservado no site do Senado Federal.

( http://www.senado.gov.br/senado/grandesMomentos/brossard.shtm#senador1 )

Imagino: se um dia, em meio a uma caminhada solitária entre as estantes, o senador se der ao trabalho de ouvir gravações como esta, haverá de respirar aliviado, porque sabe que, lá atrás, naquele tempo de trevas, ele estava do lado certo : brigava pela volta da democracia.

“Daqui,diremos ao Brasil….”

O repórter sente a tentação de roubar as palavras do tribuno: daqui, diremos ao Brasil…..que o senador vai bem, obrigado. Os quase oitenta e sete anos lhe pesam nos ombros. O homem já não se move com tanta facilidade. É natural. O outono, quando chega, é assim. Mas a fluência é espantosa. A memória não claudica em momento algum. Os cabelos e o bigode algo acinzentados combinam com a cor do paletó. A gravata é consistentemente preta. ( É curioso como nenhum senador é chamado de “ex”. O título de senador passa o resto da vida colado ao nome de quem um dia ganhou um mandato).

Daqui, diremos ao Brasil que, durante a entrevista para a Globonews, Brossard falou de um telefonema dramático que recebeu do então líder do governo, Jarbas Passarinho, pouco depois do atentado ao Riocentro. Passarinho disse a Brossard que tinha falado com o Presidente Figueiredo. O governo iria apurar o caso.

Apurou nada.

Depois, Brossard descreveria uma cena inesquecível: uma conversa com o Comandante Fidel Castro, em Cuba. Quando soube que o delegação tinha viajado a Cuba num avião de fabricação brasileira, Fidel tirou do bolso uma caderneta e começou a fazer contas, até concluir que aquele tinha sido uma boa iniciativa. Em seguida, Fidel falou “com a mais absoluta tranquilidade e serenidade” sobre a execução de dissidentes cubanos. Brossard pensou que Fidel iria demonstrar algum constrangimento ao tocar em tema tão controverso.

Demonstrou nada.

E o telefonema que Brossard receberia do ainda vice-presidente Sarney em Bagé, quando Tancredo estava internado ? Brossard estava otimista com o noticiário sobre a alegada recuperação do presidente. Sarney tratou de dizer que não, a situação era dramática. Hoje, Brossard pode dizer, sem constrangimento: “Conhecido o estado real de Tancredo, ficou evidente que havia realmente o propósito de ocultá-lo, na medida do possível”. Mas, antes de receber o telefonema de Sarney, Brossard chegou a pensou que Tancredo iria sair da cama do hospital para botar a faixa de Presidente no peito.

Botou nada.

A entrevista prosseguiria: Brossard guarda na memória um encontro absolutamente fortuito que teve em Portugal com o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, à época exilado na Argélia. Arraes fez uma confissão: disse a Brossard que estaria disposto a permanecer indefinidamente no exílio, desde que, em troca, os militares tratassem de devolver o país à normalidade democrática. “Isso Arraes me disse com lágrimas nos olhos. Não me esqueci. Não poderia esquecer”. Brossard pensou que a anistia viria logo, logo.

Veio nada.

Por fim, Brossard cita a frase inesquecível que ouviu, faz décadas, “nos tempos de mocidade”, quando ainda servia ao Exército,no CPOR. Quando queria parecer profundo, grave e filosófico, o capitão que atuava como instrutor da turma de Brossard no CPOR pronunciava uma frase que mereceria um lugar glorioso nas antologias:

“É a fatalidade histórica dos algarismos !”.

Ainda hoje, quando repete a frase do capitão, o senador ri, deliciado, como se saboreasse cada uma das letras da sentença imortal. A frase foi devidamente registrada no livro de 573 páginas que Luiz Valls produziu sobre a caminhada do senador: “Brossard: 80 Anos na História Política do Brasil”.

Não é que o capitão poderia estar certo ? Os algarismos bem que podem estar por trás de tudo. Estava escrito que Brossard seria eleito em 1974 para oito anos de mandato no Senado Federal. Estava escrito que tantos discursos, tanta campanha, tantas expedições pelo Brasil afora, como aquela que passou por Caruaru, um dia dariam resultado: quinze anos depois do golpe de 1964, os exilados voltariam ao País. Arraes não precisaria fazer o sacrifício de passar o resto da vida longe das águas do Recife. Estava escrito que o senador chegaria aos 87 anos perfeitamente lúcido, entre montanhas de livro. Se tivesse a chance de voltar no tempo para perguntar àquele instrutor do CPOR qual a explicação para tudo, o senador sabe que a resposta viria fulminante e definitiva:

“É a fatalidade histórica dos algarismos !”.

Eis aí seis palavras que podem explicar tudo e todos, a chave de todos os mistérios, o guia de todos os destinos.

Faz tempo que o habitante do casarão número 716 de uma rua do bairro do Petrópolis aprendeu a lição.

Tento a última pergunta antes de bater em retirada:

Se o senhor fosse resumir estes 87 anos de vida em uma só palavra, qual seria ?

“Em uma, não dá. Em duas ou três: não tenho queixas. Acho que recebi demais”.

Posted by geneton at 01:32 PM