janeiro 26, 2005

"EU ESTAVA NO TITANIC"

Quando chegar o dia do Juízo Final, este pobre jornalista brasileiro confessará diante do Criador: quase matei de frio a mais jovem sobrevivente do Titanic.

Como? Quando? Onde e por quê? Aos fatos, pois: desembarquei no porto de Southampton, na Inglaterra, num dia gelado de inverno, em companhia do cinegrafista Sérgio Gilz, para um encontro marcado com Milvina Dean. Aos não familiarizados com a crônica das tragédias marítimas, diga-se que Milvina Dean foi manchete dos jornais no já remotíssimo ano de 1912. A façanha involuntária de Milvina: ter escapado do naufrágio do Titanic. Milvina - um bebê de colo - se salvou porque a mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas. O pai afundou junto com o navio.

Compreensivelmente, Milvina passou a ouvir a história do Titanic desde que se entende por gente. Quando tinha oito anos, ouviu da mãe um relato completo sobre tudo o que aconteceu. Por razões óbvias, passou a se interessar pela história do naufrágio. Hoje, nonagenária, é abordada a cada aparição pública pela legião de excêntricos que vivem à procura de personagens direta ou indiretamente ligados à história do mais famoso desastre marítimo de todos os tempos. Para quem não sabe: funciona na Inglaterra uma certa Titanic Society - uma espécie de clube que reúne fanáticos de carteirinha pela história do Titanic. Aceitam-se sócios de qualquer país.

Depois de obter um contato com Milvina Dean através da assessora de um museu marítimo que organizara uma exposição sobre o Titanic, partimos rumo a Southampton. O encontro ficou marcado para o restaurante de um hotel - um local confortável para quem, como Milvina, carrega sobre os ombros o peso de quase nove décadas de vida. Antes de seguir para o hotel, no entanto, decidimos percorrer o cais do porto de Southampton, em busca do local exato de onde o Titanic partiu para a viagem que não teve volta, em direção a Nova York. Um guarda indicou o ponto em que uma pequena placa de bronze foi afixada para marcar o mais notório acontecimento já registrado na história do porto de Southampton. Vindas do mar, lufadas de vento gelado fariam um pingüim reclamar do incômodo do frio. Era janeiro.

Não resistimos à tentação de convidar Milvina Dean para uma visita ao local de onde partiu o Titanic. Partimos em direção ao hotel. Com a esperada pontualidade britânica, ela desembarcou do carro de um amigo - sapeca e bem-humorada. Parecia velhinha de filme inglês. Fizemos o convite: e se ela fosse com a gente ao local de onde o Titanic zarpou? Milvina disse sim. Nossa mini-caravana seguiu de volta ao porto. Gravamos a entrevista com Milvina Dean no cenário dos sonhos: a mais jovem sobrevivente contemplando o mar exatamente no local em que começou uma saga que até hoje atrai a curiosidade de multidões no mundo todo (é só checar os números da bilheteria do filme Titanic, mega-sucesso de Hollywood). A viagem do Titanic começou no dia 10 de abril de 1912. Quatro dias depois, no fim da noite do dia 14, o navio se chocou contra um iceberg. A madrugada seguinte foi de pavor. Quando o dia amanheceu, o gigante estava no fundo do mar. Número de mortos: 1.500.

Quando se aproximava o final da entrevista, Milvina - sempre com uma das mãos na cabeça, para evitar que o chapéu, levado pelo vento, fosse enfeitar o mar de Southampton, tal qual o Titanic fizera em 1912 - começou a se queixar dos rigores da temperatura. "Eu estou ficando azul de frio", disse. A mulher que já contava, no currículo, com dezenas de invernos, não iria reclamar à toa. Por precaução, decidimos escoltá-la de volta ao hotel, num carro devidamente aquecido. Não queríamos correr o risco de matar de frio a passageira que, nove décadas atrás, escapara de um infortúnio maior que o de ser importunada por repórteres brasileiros num dia gelado de inverno. Enquanto o vento soprava gelado, gravamos a entrevista. Trechos foram ao ar no Fantástico, em 1995. Agora, pela primeira vez, a entrevista é publicada na íntegra:

Geneton Moraes Neto: O que é que o Titanic significa para a senhora hoje? O que é que significa, para a senhora, voltar a este cenário hoje?

Milvina Dean: Tudo o que sei sobre o Titanic me foi contado por minha mãe. Quando minha família - eu, meu pai, minha mãe e meu irmão - se preparava para embarcar no Titanic, meu avô e minha avó disseram: "Que navio maravilhoso! Não vai afundar nunca! Vocês vão ter uma viagem maravilhosa!". É o que penso quando volto a este lugar.

De qualquer maneira, devo admitir que o Titanic hoje significa para mim a oportunidade de encontrar gente. É o que faço. Penso que é extraordinária a chance que sempre tenho de me encontrar com gente de todas as partes do mundo.O Titanic desperta um grande interesse. O meu sentimento em relação a tudo que aconteceu é diferente de uma sobrevivente que, por exemplo, tenha uma lembrança vívida de parentes que morreram no naufrágio. O meu sentimento é de outro tipo. Não tenho lembrança do meu pai - que morreu na tragédia - porque eu era um bebê. Se eu o tivesse lembranças da convivência com o meu pai, este fato certamente teria um grande efeito sobre a natureza de meus sentimentos diante do Titanic.

GMN: Qual é a grande pergunta que ficou sem resposta sobre o Titanic?

MD: A pergunta que sempre me faço é a seguinte: por que será que o navio navegou em direção a um iceberg? Penso freqüentemente sobre este detalhe: o capitão sabia da existência de icebergs na região? O navio estava na rota errada? Eu me pergunto por que o desastre aconteceu. Mas acho que jamais terei uma resposta.

GMN: A senhora ficou satisfeita com as respostas que obteve até hoje?

MD: Nunca houve uma resposta apropriada. Ninguém sabe com exatidão por que o Titanic afundou. Não sei se adianta perguntar: o que fez o Titanic ir em direção aos icerbergs?

GMN: O que aconteceu exatamente com sua família?

MD: Meu pai morreu. Afundou junto com o Titanic. Meu irmão - que tinha menos de dois anos de idade - se salvou, junto com minha mãe e eu. O meu pai ouviu um barulho na noite do desastre. Correu para o convés, para ver o que é que tinha acontecido. Disseram a ele que, aparentemente, o navio tinha batido num iceberg. O melhor seria ir com as crianças para o convés. É o que minha mãe fez. Minha mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas de número 13. Eu - que era pequena demais para usar coisas como coletes - fui embrulhada numa espécie de saco. O pior é que, em meio à confusão que se formou no momento em que os passageiros eram retirados do Titanic para serem encaminhados aos botes salva-vidas, minha mãe se perdeu do meu irmão. Só conseguiu reencontrá-lo quando outro navio - que passava pela região - nos resgatou. Aquilo foi terrível para a minha mãe. Além de perder o meu pai, que afundou junto com o navio, ela simplesmente não conseguia encontrar o meu irmão, uma criança de menos de dois anos de idade. Minha mãe teve de ser levada ao hospital. Ficou em estado de choque. De volta à Inglaterra, minha mãe passou a receber uma pensão, para educar a mim e ao meu irmão. Quando eu tinha oito anos, minha mãe começou a me contar tudo o que se passara com nossa família no Titanic.

Um detalhe curioso: o meu irmão - que viria a ter quatro filhos - morreu, aos 82 anos de idade, exatamente no dia do aniversário do naufrágio do Titanic, em 1992. É extraordinario. Quero dizer que acredito em destino. Não foi por acaso que ele morreu.

GMN: A senhora diz que acredita em destino. Que outros fatos ligados ao Titanic que fizeram a senhora adquiria essa crença?

MD: Eu acredito na força do destino, em primeiro lugar, porque nossa família não iria viajar no Titanic. Nós, na verdade, iríamos embarcar em outro navio. Meu pai ia tentar a vida nos Estados Unidos, com nossa família - eu, minha mãe e meu irmão. Um dia antes da viagem, meu pai soube, na companhia de navegação, que tinha havido desistências entre os passageiros que viajariam no Titanic para os Estados Unidos. O funcionário da companhia perguntou se ele gostaria de trocar de navio. O meu pai ficou super-feliz com a chance de embarcar no Titanic. A outra coincidência - ocorrida tempos depois - foi, como eu disse, o fato de meu irmão morrer no dia do aniversário do naufrágio.

Houve outro detalhe: numa escala da viagem, minha mãe mandou um postal para o meu avô e minha avó dizendo "tudo bem até agora", como se tivesse tido uma premonição sobre o que viria a acontecer.

GMN: Por que o Titanic chama tanta atenção ainda hoje?

MD: O principal motivo da mística que se criou em torno do Titanic foi o fato de terem dito que o navio jamais afundaria. É esta a razão principal por que o navio desperta tanto interesse: um transatlântico tão maravilhoso não poderia afundar - mas afundou. Por esse motivo, o interesse sobre o Titanic continua. Não pára.

GMN: O que é que a senhora diz dessas expedições que tentam recolher objetos do Titanic no fundo do mar?

MD: Há uma distinção importante a ser feita. Não me oponho que se resgatem objetos que estão espalhados no fundo do mar, ao redor da área onde se encontram os destroços do navio. São parte da história. Eu sei que objetos ficaram espalhados num longo raio em torno do ponto exato do naufrágio. Mas não concordo que retirem objetos encontrados dentro da carcaça do navio.

Detesto a idéia de ver exploradores tirando objetos no interior dos destroços do Titanic. Fico pensando onde estariam os restos do meu pai. É horrível.

GMN: É verdade que a senhora nunca bebe água?

MD: Nunca bebo água. Por quê? Minha avó não bebia. Viveu 93 anos. Minha mãe não bebia. Viveu 95 anos. Minha tia-avó não bebia. Viveu 97. Por que eu deveria beber água? Além de tudo, não gosto.

GMN: Há alguma relação entre o Titanic e o fato de a senhora jamais beber água?

MD: Não existe nenhuma conexão. Afinal, o Titanic naufragou na água salgada. Não bebemos água do mar de maneira nenhuma... (ri).

GMN: A senhora culpa alguém pelo desastre?

MD: Honestamente, penso que o naufrágio não deveria ter acontecido de maneira nenhuma. Mas não tenho conhecimento suficiente para culpar alguém pelo desastre. Ninguém sabe realmente o que aconteceu naquela noite.

GMN: A lenda sobre o Titanic vai sobreviver para sempre?

MD: Vai, sim. Há um fenômeno interessante: não apenas gente idosa se interessa pelo Titanic. Fui a uma escola em que crianças me pediam autógrafo. Perguntam sobre minha idade, se não foi terrível perder meu pai, o que minha mãe pensava. São super-curiosas. A pergunta mais inteligente foi feita por um menino - que quis saber se minha família tinha perdido tudo no naufrágio, inclusive dinheiro, o que é que fizemos para sobreviver quando voltamos à Inglaterra? Eu disse a ele que minha mãe nos levou para a casa de nossos avós. A fascinação sobre o Titanic continuará - para sempre.

GMN: Uma das sobreviventes disse que o Titanic provou que o homem não pode desafiar Deus. A senhora diria o mesmo?

MD: Definitivamente, acredito que não podemos desafiar as forças da natureza. Fatos como o naufrágio do Titanic acontecerão sempre. Porque nada na vida é certo. O homem propõe. Mas Deus dispõe.

Aquela foi a única vez em que se disse que um navio não iria afundar de maneira nenhuma. Não se dirá tal coisa novamente.

Penso em tanta gente que pereceu no fundo do mar. A gente vê nos filmes os gritos de gente que não conseguiu escapar na hora do naufrágio. É horrível. Tudo parece tão bem na hora em que os passageiros embarcam. Fui a uma exposição que exibia objetos recolhidos no fundo do mar, perto do Titanic. Vi objetos de uso pessoal - como pentes, por exemplo. Fiquei pensando que os donos desses objetos morreram no mar. É triste.

(1995)

Posted by geneton at 08:32 PM | Comments (14)

janeiro 19, 2005

DEVER DE CASA DE UM ALUNO DA ESCOLA DE JORNALISMO DA RUA FRANCISCO SÁ

Sou um projeto de ruína . Meu velocímetro profissional já registra três décadas de rodagem por redações. É um bocado. Quem mandou não estudar Medicina ? A hora de dizer “chega” vai se aproximando. Todo jornalista deveria mudar radicalmente de atividade depois de dez anos de exercício profissional. Somente assim não correria o risco de se habituar ao papel de figurante do espetáculo patético encenado em redações por gente que se considera cem vezes mais importante do que realmente é.

Não existe cena tão risível quanto o desfile de vaidades desprovidas de fundamento. Em nenhuma outra profissão há um abismo tão gigantesco entre pretensão e realidade. Ninguém me contou ; eu vi, com estes olhos que um dia o crematório de Golders Green há de comer : gente incapaz de pronunciar corretamente a palavra “gratuito”, gente que escreve exceção com dois “s”, gente que constrói frases como “para mim ver”, gente que acha que “sobrancelha” é “sombrancelha”, gente que jura que o substantivo óculos exige o artigo no singular, gente que comete pérolas como “fazem dez anos” – chorai, leitor, é esta a gente que, além de se julgar superior e competente, acha-se perfeitamente qualificada para descrever o que é que aconteceu ontem, o que acontece hoje, o que acontecerá amanhã, esta semana, este mês, este ano , no mundo . Quá, quá, quá. Pior : é gente que, a sério, exige remuneração superior à de médicos, engenheiros, nutricionistas, agrônomos, veterinários, biólogos e garis. Pausa para risos incontroláveis da platéia. Quá, quá, quá. De novo : quá, quá, quá.

É como se um cirurgião perfeitamente incapaz de manusear o instrumento de trabalho – um bisturi – saísse da sala de operações arrotando grandeza depois de cometer barbeiragens inomináveis no corpo do paciente. Falo com conhecimento de causa sobre imposturas ocorridas em redações . Conheço a raça. Orgulhosamente, faço parte do canil. Sou aquele terceiro vira-lata à esquerda, na penúltima fila. ( crianças : não se assustem com o vazamento de bílis. Feitas as contas, o Jornalismo pode valer a pena, sim. É a melhor profissão do mundo – para quem não consegue exercer tarefas realmente úteis à Humanidade. Os jornalistas podem ser, devem ser e, em geral , são benfeitores da sociedade, com as exceções de praxe. Ponto. Parágrafo ).
.
Há séculos, ao comentar o resultado de uma pesquisa em que os jornalistas só conseguiam superar os ladrões de galinha num ranking de estima pública, Paulo Francis dizia que os ladrões de galinha deveriam protestar contra a injustiça. Bingo.
.
Sinal dos tempos : três vezes por dia, sou visitado pela tentação de dar por encerrado meu paupérrimo espetáculo, apagar a luz da espelunca , pregar na porta um aviso de “saiu. não volta” e realizar, num subúrbio qualquer de uma cidade cinzenta, o sonho dourado de cultivar pelo resto da vida um silêncio irrevogável e benfazejo. “Ainda hei”. Só falta encontrar uma fonte financiadora. (tragédia : ela jamais aparecerá).
.
Quando olho pelo retrovisor, faço um esforço para contabilizar um ganho palpável, concreto, indesmentível , em meio ao rosário de perdas, equívocos, tropeços e decepções com que fui brindado pelo exercício do Jornalismo. Vou tentar. Agora. Um, dois, três minutos de busca. Nada. O “yahoo” instalado no meu lóbulo central falha na tarefa. “Nenhum resultado encontrado” . Meus dois neurônios pedem tempo para vasculhar de novo as gavetas da memória. Como se fosse um treinador de basquete, peço tempo ao juiz. Quatro, cinco, seis minutos de busca. Nada. Eis que surge uma luz no fundo do poço. Ah, achei um ganho profissional !

Que é o seguinte : tenho tido a chance de fazer um belo curso intensivo de Jornalismo que já se arrasta por anos e anos. Começou em 1988 – quando conheci pessoalmente o velho lobo da imprensa Joel Silveira. Desde então, sou um privilegiado freqüentador da escola de Jornalismo que, sem placa na porta, sem autorização do ministério, sem quadro-negro na parede e sem lista de chamada, funciona num apartamento do sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana - o refúgio de Joel. Lá, envolto numa concha invisível, ele se protege do mundo exterior escondido atrás de barricadas feitas de aço e papel : estantes superpovoadas de livros. O telefone – e a TV - são as únicas pontes com o horror externo. Joel diz que tem uma “diversão predileta” : falar mal de uma comentarista televisiva toda vez que ela surge no vídeo. “Assim que ela aparece, eu digo : ah, mulher chata ! Vaca ! Pronto. Ganhei o dia“.

Há anos Joel deixou de andar na rua. Não “circula”. Não visita. Não faz questão de ser visitado : “Só se for para receber algum pagamento. Se aparecer alguém aqui em casa com um cheque, eu boto gravata e bermuda para receber o presente”. Fez a opção preferencial pelo isolamento. Não corre o menor risco de ser atingido pelos perdigotos ou pelo bafo de terceiros. Não sente falta da contaminação externa. Faz bem. É um felizardo. Deveria soltar fogos pela janela todo dia de manhã, para comemorar o sucesso do isolamento. Nem a Albânia, nos áureos tempos de solidão internacional, conseguiu se proteger melhor do mundo exterior.

Aos recém-chegados ao Planeta Gutenberg, devo informar que Joel Silveira (sergipano da safra de 1918) ficou famoso, ainda nos anos quarenta, como repórter dono de um texto reluzente - uma víbora capaz de verter veneno em forma de tinta quando escrevia sobre, por exemplo, as grã-finas de São Paulo. Assis Chateaubriand, o todo-poderoso dono de uma rede de jornais, logo notou o talento do repórter recém-chegado de Aracaju. Terminou despachando Joel para cobrir a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em terras da Itália. Assim, Joel entrou para a história da imprensa brasileira como correspondente de guerra, além de repórter que imprimia uma marca própria aos textos que produzia, aos borbotões, para jornais e revistas. Humberto Mauro se enganou . Jornalismo (e não o cinema ) é cachoeira.

Se um noviço perguntasse ,a este aluno medíocre do Curso de Jornalismo da rua Francisco Sá , quais são as virtudes básicas do professor Joel , eu responderia na bucha. O mau jornalista – seja ele repórter, editor, dono de jornal ou seja lá o que for – é aquele que se deixa contaminar por uma doença estúpida, a Síndrome da Frigidez Editorial (SFE). Aos não iniciados no estudo das zoonoses das redações, diga-se que a SFE é uma praga que acomete jornalistas que, depois de anos e anos manuseando fatos extraordinários, passam a achar tudo “ordinário”, comum, banal, indigno de um mísero registro nas páginas dos jornais ou no quadrilátero brilhante dos aparelhos de TV. Transformam-se em derrubadores profissionais de matérias - especialistas em mandar para a lata de lixo as histórias apuradas por quem ainda não se contaminou com este vírus nocivíssimo . O horror, o horror, o horror. Sobre jornalistas que jogam notícia no lixo , tenho histórias que dariam para encher uma enciclopédia. Poderia exibir provas, se quisesse. Mas pouparei aqui a paciência do leitor.

Os jornalistas contaminados pelo vírus da SFE deveriam mudar de profissão com toda urgência. Mas não mudam. Passam o resto da vida destilando doses amazônicas de tédio sobre vítimas indefesas – em geral, repórteres que ainda não perderam o fogo. Aos oitenta e tantos anos, Joel Silveira é uma grande exceção a esta regra : nunca perdeu a chama interior que serve de combustível ao repórter.

Uma das grandes lições de Joel : um bom e inspirado repórter é perfeitamente capaz de escrever dez páginas sobre um encontro de minutos com uma figura histórica. É o que aconteceu com o repórter Joel Silveira ao descrever o “primeiro, único e desastrado” encontro que teve com o presidente Getúlio Vargas, no Palácio do Catete. Joel conseguiu uma audiência com o homem , na ilusão de que sairia da sala com uma entrevista. A raposa Getúlio Vargas pensou que o repórter estava ali para pedir um emprego. Nem uma coisa nem outra : Joel saiu do Palácio sem o emprego – que não queria – e sem a entrevista – com que sonhara. Um repórter burocrático seria incapaz de escrever um parágrafo de cinco linhas sobre a entrevista frustrada. Afinal, Getúlio se limitou a trocar com ele um punhado de frases bobas. Mas Joel escreveu um longo e brilhante texto que, retocado para o livro “Tempo de Contar”, termina assim, com a narrativa da frustração que sentiu ao deixar o palácio do presidente :

- Voltei ao boteco, a vários deles, durante horas amargando o fel da derrota, alisando a cara onde o chicote presidencial havia acertado em cheio. Lá para a meia-noite, entrei no Danúbio Azul, um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas, desde que existem mundo e manhãs de abril.

Pergunta-se : que jornal, que revista de hoje publicaria um texto escancaradamente autoral como este de Joel Silveira ? A resposta é um silêncio de rachar os tímpanos. O corvo de Edgar Alan Poe repete a cantilena fatal : “Never more, never more”. Nunca mais, crianças. Pobres de nós – leitores castigados com hectares e hectares e hectares de prosa que confunde narrativa jornalística com aridez vocabular e estilística.
.
Joel segue desde o início da carreira o ensinamento que Albert Camus deixou em O Estrangeiro : lá pelas tantas, o personagem enjaulado numa cela diz que um homem que tivesse vivido um único dia teria recordações suficientes para cem anos. Os fiscais da saúde jornalística, se existissem, poderiam dormir tranqüilos quando fossem fazer um check –up em Joel : um grande repórter, como ele, é imune ao vírus da Síndrome da Frigidez Editorial (SFE).

Uma vez, numa entrevista , pedi a Joel que imaginasse uma cena : se fosse chefe de reportagem, que pautas ele gostaria de ver apuradas ? Sem titubear , ele desfiou a lista :

- Que tal o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva durante o governo militar ? Já se cavou um cova. Vamos cavar outras, então ! E a morte da figurinista Zuzu Angel num acidente que não entra na cabeça de ninguém ? E a explosão da bomba no Riocentro ? Qual foi a intenção verdadeira ? Era causar um massacre ? Ou dar um susto ? A morte de Juscelino ficou mal contada. A mim, não me convenceu. Eu não sou um juscelinista. Sou um leitor de jornal. E o atentado à OAB ? Quem mandou ? E a morte de Lamarca ? E a de Marighela - um sujeito astuto e conspirador, como ele era, ia sair idiotamente daquele jeito ? E aquele operário que morreu no DOI-CODI em São Paulo ? E a morte de Herzog - que não tinha motivo nenhum para se suicidar ? Isso tudo daria uma série fantástica.

Além de repórter que tira leite de pedra, Joel cultua o “prazer do texto”. O que ele escreve é uma mistura feliz de Jornalismo e Literatura. Por que não ? O brilho do texto sobre o desencontro com Getúlio Vargas é apenas um exemplo, numa montanha. Eis outro : uma reportagem sobre a rebelião popular ocorrida no fim dos anos quarenta na Colômbia termina com a descrição de uma visita ao Cemitério Central de Bogotá. Lá, o repórter Joel vê o corpo de um menino morto no tumulto :

- Os olhos vazios fixavam o céu de chumbo e as mãos de unhas sujas e compridas pendiam sobre a laje dura – como os remos inertes de um pequeno barco. O barco fora surpreendido pela tempestade, havia perdido o leme, mas ficara boiando sobre as águas, sem afundar. Foi a impressão que me deu aquele menino : a impressão de que não havia morrido de todo. Era o que diziam os olhos muito abertos ; era o que igualmente parecia dizer o sorriso leve que mal se denunciava nos lábios finos e sem cor (...). Depois, um funcionário qualquer aproximou-se, olhou por alguns segundos o menino morto, procurou sem achar alguma coisa que ele deveria trazer nos bolsos. Tentou em seguida fechar com os dedos os olhos abertos, mas não conseguiu. Abertos e limpos, os olhos do menino morto pareciam maravilhados com o que somente eles viam, com o que queriam ver para sempre.

Compare-se este texto com a mesmice reinante hoje nos jornais e revistas. A saída é chorar lágrimas de esguicho no meio-fio mais próximo.

Como se tantas lições não fossem suficientes, o professor Joel dá, aos raríssimos freqüentadores da faculdade informal da rua Francisco Sá, aulas e aulas e aulas de bom-humor. Tenho a honra de dizer que, nestes últimos anos, fui o único discípulo a freqüentar assiduamente o refúgio do dinossauro. Confirmei o que já suspeitava : somente os idiotas se levam a sério. Em todos estes anos de convivência, perdi a conta das cenas cômicas que testemunhei na escola do professor Joel.

Quando pingou o ponto final num livro que fizemos juntos – “Hitler/Stalin: O Pacto Maldito” -, Joel me ligou, eufórico, com a voz pastosa. Deu para notar que ele tinha irrigado as cordas vocais com doses escocesas de uísque. Fez-me um apelo em tons dramáticos : “Pelo amor de Deus, você sabe onde é que existe uma boa sarjeta aqui por perto ? Consegui terminar o texto ! Hoje quero beber até cair na sarjeta !”. Tempos depois, rompeu para sempre relações diplomáticas com as destilarias de uísque. Motivo oficial : já não tinha com quem conversar. Os amigos tinham morrido. “Todos !”. Passou a se auto-intitular “a maior solidão do Brasil”.
.
Quando se internou no Hospital dos Servidores do Estado para uma cirurgia, passava horas sentado na cama observando os aviões que cruzavam o céu em direção ao Aeroporto Santos Dumont. Assim que cheguei para uma visita, Joel reclamou : “Quero ir embora. Não agüento mais ficar contando avião. Já contei dezoito hoje !”.

Dias depois, convocou-me para que me apresentasse imediatamente na rua Francisco Sá. Quando cheguei lá, Joel ,diante de uma garrafa de uísque pela metade, pegou o telefone para falar com um amigo que não via há anos. Do outro lado da linha, em Salvador, o amigo não deve ter entendido absolutamente nada. Joel se limitou a dizer a ele “ouça aí ! ouça aí !”. Em seguida, me fez ficar segurando o telefone junto ao alto-falante do velho toca-discos que amplificava a voz de Dorival Caymmi cantando “Peguei um Ita Norte”. O amigo teve de ouvir a música inteira por telefone. Quando a música acabou, Joel se despediu do ouvinte sem maiores explicações. “Passe bem !”.
.
Quantas e quantas cenas o professor Silveira não me descreveu com um sorriso escancarado ? Uma das melhores : o dia em que o amigo Rubem Braga resistiu a um convite feito por Joel para que os dois fossem a um concerto de música clássica na Roma do pós-guerra. Joel insistiu : por que não ir ? Rubem Braga deu a explicação inesperada: “Não posso ir. Violino me dá tosse”. Joel insistiu, insistiu. Rubem Braga foi. O desastre anunciado se consumou . Assim que a violinista começou a tocar, o parceiro de Joel na noitada sinfônica teve um acesso de tosse incontrolável.

Aos freqüentadores do refúgio da Francisco Sá, Joel falará da oferta de emprego que recebeu de um assessor do presidente Jânio Quadros : ia ser nomeado para o conselho consultivo da Companhia Brasileira de Álcalis. Resposta de Joel à oferta :

- Aceito o convite ! Só quero tirar duas dúvidas. Primeira : quanto vou ganhar ? Segunda : o que é álcalis, pelo amor de Deus ? ”.

Lá pelas tantas, ele se recordará da cena surrealista protagonizada por ele e pelo gênio Nelson Rodrigues. Colegas de trabalho numa redação, sem nunca terem sido amigos íntimos, os dois cultivavam uma convivência meramente profissional . Um dia, Nelson Rodrigues estaciona diante da máquina de escrever que Joel Silveira batucava ferozmente. Não diz nada. Fica em silêncio observando a cena. Lá pelas tantas, o gênio da crônica exclama uma palavra :

- Patético !

E vai embora, sem dar maiores explicações.

Quando mostrou a Graciliano Ramos o texto de um conto que tinha escrito, Joel foi brincado com a mais radical e silenciosa resenha literária já cometida no Rio de Janeiro : Graciliano Ramos simplesmente fez picadinho do conto. Em silêncio , diante de um Joel boquiaberto , Graciliano Ramos desfez a folha em mil pedaços. As frases que o Joel iniciante considerava geniais viraram confete. O conto do Joel iniciante se perdeu para sempre.

Provocado, Joel será capaz de dar conselhos. Adora repetir o que ouviu de um gigante do jornalismo – Herbert Mathews, globe trotter do New York Times : o repórter precisa ter humildade e sorte.
.
O Joel que se considera, além de “a maior solidão do Brasil”, o “último dinossauro” de nossa imprensa, é também o rei das implicâncias gratuitas. Como se fosse um franco atirador postado numa janela do sexto andar da Francisco Sá com um arsenal de petardos verbais na ponta da língua, ele adora fustigar inimigos gratuitos. Não tolera seres “ridículos” como alpinistas, turistas e tocadores de cavaquinho obesos. Recusa-se a ouvir uma nota sequer emitida pelo violão ou pela voz de João Gilberto. Diz que, se um dia fosse nomeado Imperador de Sergipe, baixaria um decreto proibindo que João Gilberto cantasse em terras sergipanas. ”Por chatice”.
.
As investidas do repórter Joel Silveira podem ser saboreadas em volumes como “Tempo de Contar” ou na coletânea lançada em 2004 pela Companhia das Letras – “A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista”, leitura que deveria ser obrigatória tanto para os noviços tanto para as múmias das redações .

O Joel deste “Diário do Último Dinossauro” não é o Joel das grandes reportagens: é o autor de pequenas tiradas, impropérios, ataques e louvações. Os textos que aqui aparecem alimentaram o “Diário de uma Víbora” - a coluna que Joel mantém na revista pernambucana “Continente Multicultural” desde julho de 2001 ( há vida editorial fora dos dois extremos da Via Dutra ! ). Os verbetes venenosos despachados para a Continente – e aqui reunidos - foram coletados em várias fontes : anotações inéditas que Joel acumulou em pastas de plástico, fragmentos de livros como “Vinte Horas de Abril”, “A Guerrilha Noturna”, “O Presidente no Jardim” e “Você Nunca Será um Deles”.
.
Um dia - eu vos prometo – pretendo reunir num livro os diálogos que tive com o mestre : longas sessões de entrevistas gravadas na escola informal da Francisco de Sá. São pelo menos seis , publicadas aos pedaços em jornais e revistas ou apresentadas , resumidamente, na TV. Lições que devem ser passadas adiante. “Vida aos outros legada” , como diria o Vate.
.
Agora, crianças, favor fazer silêncio na sala : a maior solidão do Brasil pede a palavra. Do alto do refúgio onde se protege de nós todos , atrás de barricadas de papel e aço no sexto andar de um prédio da Francisco Sá , o “último dinossauro” vai disparar seus petardos venenosos neste “Diário”.
.
Que ninguém se assuste : não existe guerra tão divertida. Joel não se leva a sério. Não nos leva. Não leva nada. Melhor assim.
.
É diversão garantida. Você não vai conseguir parar de ler.

(*)Texto de apresentação do livro "Diário do Último Dinossauro", publicado pela Travessa dos Editores.
Pedidos :
www.travessadoseditores.com.br

Posted by geneton at 02:23 PM

janeiro 18, 2005

DESCULPE,WILLIAM BONNER.

Jornal velho só serve para embrulhar peixe.

Acabo de escrever uma mentira.

Quem disse que o destino de jornal velho é se tornar embrulho de peixe na feira livre pode até ter criado uma frase pretensamente espirituosa mas nunca pisou numa redação. Não faz a menor idéia do que seja o jornalismo.

Ao contrário do que acontece com as notícias de televisão - que se evaporam no ar em questão de segundos, o que se escreve em jornal fica guardado nos arquivos privados ou nas bibliotecas públicas.

A permanência da palavra escrita pode ser uma bênção (há reportagens, artigos, crônicas e entrevistas que, por serem documentos de uma época, merecerão um dia a graça de serem relidas pelos olhos misericordiosos de um pesquisador perdido na poeira das bibliotecas) ou um castigo (a coleção de textos jornalísticos que realmente merecem o esquecimento imediato daria para embrulhar trezentas toneladas de peixe por dia. Avante, ciobas, salmões, agulhas e cações do Brasil! Nossos textos vos esperam!).

Se jornal velho não serve apenas para embrulhar peixe, para que serve, então? Uma das definições mais felizes diz que o jornal é o primeiro rascunho da História. Bingo !

O repórter faz a primeira anotação sobre o que aconteceu diante de suas retinas presumivelmente atentas. O que o repórter registrou vai se tornar matéria-prima para quem, um dia, no futuro, tentar reconstituir um instante perdido no tempo. Palmas para o jornalismo impresso. Longa vida aos jornais e às revistas !

Mas.....as coisas não são tão simples quanto parecem. A era dos computadores acaba de criar um problema tanto para os jornalistas quanto para os historiadores. Que destino terá a formidável massa de informações produzida pelo jornalismo via Internet ? Quem estocará todos esses textos ? De que maneira esse material será consultado no futuro ?

A Internet só perde para os terrenos da Companhia de Limpeza Urbana como depositária de lixo em quantidades industriais. Nunca se escreveu tanta coisa inútil. Mas a rede mundial de computadores é também uma belíssima fonte de pesquisa, um banco de dados planetário como nunca se imaginou.

Nem tudo o que circula nas telas dos monitores deve ser condenado a desaparecer.

Um historiador inglês – John Vincent, autor do livro “Na Intelligent’s Person Guide to History” – soprou as trombetas do Apocalipse : disse que a era digital oferece uma terrível ameaça à História. Com uma pitada de exagero, ele lançou um sinal de alerta : disse que o computador pode condenar a História a desaparecer. Por quê ? O que faz a História é a permanência da palavra escrita. Se, com o onipresente computador, a palavra escrita torna-se volátil, então a História pode se evaporar também. Textos que circulam na Internet podem ser perder para sempre no buraco negro dos computadores.

Pergunta-se : Quem estocará essa formidável quantidade de informação ? Quem ordenará essa Babel digital, para futura pesquisa ? Onde estará a Biblioteca de Alexandria da Era da Internet – um super-banco de dados que reúne todo o conhecimento que circula nas telas iluminadas ? A dúvida – inquietante - fica no ar.

O problema da disponibilidade de uma informação para futura pesquisa já existia no caso da televisão. Agora, agiganta-se, na era do computador. Um artigo publicado em junho de 1992 pelo New York Times já dizia: “A televisão tem um toque efêmero. Os melhores programas raramente deixam marcas nos arquivos e bibliotecas. É mais difícil localizar o script de um programa visto por milhões de pessoas do que desenterrar um obscuro artigo de revista, lido apenas por milhares”.

Se o autor do artigo publicado pelo New York Times – um certo Karl E. Meyer – tivesse dito essas palavras num programa de TV ou num site na Internet suas elucubrações teriam desaparecido no ar. Mas suas palavras foram impressas. Podem – então - ser citadas textualmente, uma década depois, por este anônimo escriba. Assim caminha a humanidade : escrevendo em papel.

Há um problema em busca de uma solução. O que foi ao ar, ontem à noite, para milhões e milhões de espectadores em horário nobre ,no Jornal Nacional, não estará acessível nas bibliotecas. Vai sumir “na poeira da estrada”, como diria Paulinho da Viola. Já estas mal traçadas linhas estarão armazenadas daqui a um século numa Biblioteca. Desculpe, William Bonner. Desculpe, Fátima Bernardes. A culpa não é minha.

O que acontece é que o que sai na tevê (ou na tela do computador) não se transforma em objeto de consulta, em fonte de informação histórica, em material acessível aos pesquisadores. Só se transformará no dia em que uma sonhada Biblioteca Planetária Digital guardar para os pesquisadores do futuro as imagens e palavras que hoje se evaporam no ar ou, no máximo, ficam estocadas em arquivos privados.

A palavra impressa ainda é a campeã absoluta de permanência. Quem resolverá este descompasso?

Enquanto esse tumulto não se resolve, não existe nada melhor do que o papel para enviar mensagens ao futuro. As frases que escrevemos num pedaço de papel podem ser tortas e precárias, como estas, mas certamente ficarão flutuando em alguma prateleira de biblioteca – quem sabe, numa remota cidade do interior - na esperança de que alguém, um dia, passeie os olhos sobre elas, exatamente como aquelas garrafas que os náufragos jogam ao mar, em busca de um impossível destinatário.

Pelo menos por enquanto , as garrafas mais duradouras sem dúvida nenhuma são feitas de papel.

Não se inventou ainda nada melhor.

Posted by geneton at 07:21 PM

janeiro 05, 2005

"DOSSIÊ MOSCOU" : O DIA EM QUE O LOCUTOR QUE VOS FALA VIU A HISTÓRIA ACONTECENDO

Vai fazer vinte anos agora em 2005: um homem até então desconhecido no resto do mundo assumia, em 1985, o comando de uma superpotência - a União Soviética. Chamava-se Mikail Gorbatchev. Ninguém esperava, mas ele viria a se transformar num dos mais fascinantes personagens da história política do século vinte.

O mundo passou a olhar com extrema curiosidade para Moscou assim que Gorbatchev acenou com mudanças no fechadíssimo regime soviético. Durante décadas, o planeta se dividia em dois campos. De um lado, as nações capitalistas. De outro, o mundo socialista, guiado por Moscou.

As reformas prometidas por Gorbatchev tomaram um rumo imprevisto: a União Soviética, um conglomerado de repúblicas socialistas reunidas sob o comando monolítico de Moscou, simplesmente se dissolveu, em dezembro de 1991. A superpotência - que durante tanto tempo funcionou como um contraponto ao poder americano - deixou de existir.

Um a um, regimes comunistas europeus que viviam sob a influência direta de Moscou desmoronaram como num jogo de dominó. O ciclo de reformas iniciado por Gorbatchev só estaria cem por cento completo quando a Rússia pós-soviética finalmente fosse às urnas para eleger um Presidente. É aí que o locutor que vos fala teve a oportunidade (rara!) de ver a História acontecendo “ao vivo” - a um metro de onde me encontrava.

Todo repórter que se preza faz todo dia de manhã o seguinte pedido a São Gutemberg - o padroeiro da palavra impressa: que lhe seja dada a chance de um dia testemunhar um fato histórico.

Um personagem de “O Estrangeiro”, grande romance de Albert Camus, dá, sem querer, uma bela lição de jornalismo: "Quanto mais pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória. Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia poderia, sem dificuldade, passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar".

Pois é exatamente esta a sensação que invade a alma do repórter transformado em testemunha de um acontecimento importante: se tivesse cem anos para descrever o que viu, ele os usaria de bom grado, sem o risco de cometer o pecado do tédio.

O locutor que vos fala viveu uma experiência parecida: como correspondente do jornal O Globo em Londres, fui deslocado para Moscou, em 1996, para fazer a cobertura dos dois turnos da primeira eleição direta para presidente realizada na Rússia depois do fim da União Soviética.

Reuni tudo o que vi e ouvi naqueles dias na Rússia num livro recém-lançado - o “Dossiê Moscou”.

Um pequeno trecho:
===================================================
“Acorda, Lenin: eles enlouqueceram!”.

Quem terá escrito palavra de ordem tão bela e tão inútil? Jamais se saberá. Quando os tanques soviéticos chegaram à Tchecoslováquia na quarta-feira, 21 de agosto de 1968, para esmagar a chamada “Primavera de Praga”, um estudante anônimo pichou este grito de protesto num muro.

A Tchecoslováquia - país satélite da União Soviética - estava tentando criar um “socialismo com face humana”. Mas o socialismo de face dura de Leonid Brejnev, o homem-forte da União Soviética, resolveu mandar lembranças, em forma de tanques. Moscou não estava para brincadeiras. Os países-satélites deveriam seguir o figurino do Kremlin.

O bloco soviético só voltaria a falar em “socialismo com face humana” quando um homem que, até então, era um ilustre desconhecido para o resto do mundo assumiu o poder no Kremlin no dia 11 de março de 1985. O cargo de secretário geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas estava vago depois da morte da múmia Konstantin Tchernenko - um clássico representante da gerontocracia que durante décadas mandou e desmandou na União Soviética. Nome do desconhecido: Mikail Sergueivich Gorbatchev, um jovem de apenas 54 anos.

A história deu voltas surpreendentes nos anos seguintes à ascensão de Gorbatchev ao comando do gigante soviético. Todo mundo conhece o resto do enredo: depois de perder o controle sobre o processo de abertura política e econômica, Gorbatchev viu o império soviético sumir sob seus pés, mas entrou para a História como o homem que mudou o rumo do Século Vinte.

O fascinante processo de democratização da Rússia pós-soviética só ficaria completo no dia em que o país fosse às urnas para eleger um presidente pelo voto direto. O cenário estaria completo se o próprio Gorbatchev, o último dirigente da finada União Soviética, comparecesse às urnas, para votar como cidadão e ser votado como candidato a Presidente da Rússia, uma cena que jamais passou pela cabeça dos que o antecederam no comando do império soviético - Vladimir Ilyitch Lênin, Josef Stalin, Nikita Kruschev, Leonid Brejnev, Yuri Andropov e Konstantin Tchernenko.

As peças do quebra-cabeças pareciam se juntar com a perfeição possível: a Rússia convocara para 1996 as primeiras eleições diretas para presidente depois da extinção da União Soviética; Gorbatchev se lançara candidato. A História se movia de novo. Um ciclo extraordinário iria se fechar.

O repórter que quisesse testemunhar uma daquelas cenas que só se repetem de mil em mil anos deveria voar, urgente, para Moscou. Porque a primeira eleição direta para Presidente na história da Rússia pós-soviética marcaria, por todos os motivos, o início de uma nova era.

O dia que demorou tanto para chegar estava se aproximando. Liberdade, abre as asas sobre o Kremlin: dezesseis de junho de 1996 - um domingo - foi a data marcada para a eleição. A sede do desmoronado império soviético iria às urnas. Se acordasse agora, às vésperas da eleição, o que Lenin diria?

Ao ver as multidões se dirigindo às cabines de votação com o título de eleitor nas mãos, saudosistas da gerontocracia soviética teriam todas as razões para pichar na porta do mausoléu : “Acorda, Lenin ; eles enlouqueceram”. Porque o mundo parecia ter enlouquecido: já não havia lugar para partido único, já não havia lugar para imprensa controlada, já não havia lugar para “economia planificada”, já não havia lugar para “comitês centrais”. A pichação do estudante - que servira como um grito em defesa da abertura política na Tchecoslováquia de 1968 - poderia ser usada, na Rússia de 96, como slogan a favor da Velha Ordem.

Durante décadas, corações e mentes de militantes políticos de todo o mundo - tantos tão bem intencionados - se voltaram para Moscou. Que motivos explicariam o fascínio que as muralhas do Kremlin exerceram por tanto tempo sobre os intelectuais engajados e jovens que queriam mudar o mundo?

- “Um sentimento de culpa de classe média, uma insatisfação vaga com o estado das coisas, um ódio incomum contra o status-quo, um desejo de escandalizar o conservadorismo dos pais e o não tão ilusório sentimento de que seria possível se envolver diretamente em questões mundiais” - é o que diria, em 2002, no livro “Koba the Dread”, o escritor inglês Martin Amis, ao listar as possíveis razões que levaram tantos a aderir à bandeira vermelha.

A “sociedade sem classes”, em que não haveria exploração do homem pelo homem, se revelara uma ficção histórica. A classe operária não foi ao paraíso. O “socialismo real” exibiria uma folha corrida marcada por perseguição a dissidentes, imprensa manietada, partido único, “economia planificada”, o Estado reinando absoluto sobre o indivíduo.

A História entraria em cena novamente em Moscou. O locutor-que-vos-fala queria estar na primeira fila, na ala das testemunhas oculares.

*********

Chega o grande dia. Moscou assiste a uma cena jornalisticamente improvável. As pesquisas apontam como campeões de votos neste primeiro turno o comunista arrependido Boris Yeltsin e o comunista renitente Gennady Ziuganov. Mas para onde correm os repórteres? Que Yeltsin que nada. Que Ziuganov que nada. Todos querem testemunhar um pequeno gesto que carrega um imenso peso simbólico: o instante em que o último líder da já extinta União Soviética - Mikail Gorbatchev - se encaminhará para a cabine de votação. Quando Gorbatchev depositar o voto na urna, um longo, tumultuado e surpreendente processo estará concluído.

Meninos, eu vi. Mikhail Gorbatchev, o estadista que provavelmente será lembrado daqui a cem anos por ter iniciado a abertura da cortina de ferro comunista para a democracia, foi personagem de uma cena histórica no início da tarde de um domingo, um dia de céu azul em Moscou: era exatamente meio-dia e quarenta e nove minutos quando Gorbatchev, candidato a presidente, caminhou em direção a uma urna eletrônica instalada numa sala do primeiro andar do Instituto de Química e Física da Academia de Ciências da Rússia, num bairro chamado Colina dos Rouxinóis.

A cena que demorou setenta e nove anos para acontecer durou apenas quarenta e cinco segundos - tempo que Mikail Gorbatchev precisou para cumprir o ritual do voto na cabine. Quem estava naquela sala do Instituto de Química testemunhou uma cena inédita: jamais um líder máximo da União Soviética participou de uma eleição direta. Nenhum dos antecessores de Gorbatchev no comando do hoje extinto império soviético (Lenin, Stalin, Kruschev, Brejnev, Andropov e Tchernenko) encarou o teste das urnas.

Sobriamente vestido, com um paletó escuro e uma camisa azul-clara, acompanhado pela mulher, Raisa Gorbatchev, o homem que chamou a atenção do mundo para a glasnost exibia um sorriso protocolar de candidato quando chegou ao Instituto de Física e Química. Antes de depositar o voto na urna, posou para os fotógrafos, com ar confiante de quem espera um milagre - mas, no íntimo, certamente sabia que eleição não se ganha com milagre, mas com voto. A campanha se encerrara. Já não haveria tempo para operar o milagre da multiplicação dos votos.

O Gorbatchev que agora caminha rumo à cabine de votação é outro homem. Era como se, por um instante, o peso do iminente naufrágio eleitoral fosse maior do que a certeza de que um ciclo histórico se fechava ali. Quando Gorbatchev sai da sala, é abordado por repórteres que disputam no grito o privilégio de uma declaração.

Em meio ao tumulto formado pelo empurra-empurra de fotógrafos, repórteres, cinegrafistas e seguranças, consigo me aproximar do homem.

Os repórteres seriam brindados com frases épicas, apropriadas para a ocasião. O homem que mudou o curso da história do século XX enfrentava com estoicismo a iminência de um naufrágio eleitoral:

- A primeira vitória eu já obtive: é a realização das eleições. Uma batalha só é considerada perdida quando o próprio comandante renuncia a ela.

- Nada pode me humilhar - nem as pesquisas, nem o poder. Nenhuma força pode humilhar um homem se ele se sente confiante, mantém a dignidade e a defende. Vocês têm diante de si um homem assim.

Termina a entrevista improvisada. Os repórteres se dispersam. Cinegrafistas recolhem suas câmeras. Fotógrafos e repórteres voltam aos carros de reportagem. Insisto em seguir - a uma pequena distância - os passos de Gorbatchev. Quero testemunhar até o fim a aparição pública do homem que mudou a História do século XX.

Tenho, então, a chance de assistir a uma cena comovente. Livre do assédio dos repórteres, Gorbatchev começa a caminhar - cabisbaixo - por uma alameda em direção a um portão de ferro. Quando cruzar o portão de ferro, sumirá de vista. O homem que já comandou uma superpotência vive, ali, naquela pequena caminhada, um momento de intensa solidão.

Depois de percorrer uns trinta metros, ele apressa o passo, separa-se da comitiva. Permanece cabisbaixo. Um observador rigoroso flagraria ali, nas feições de Gorbatchev, aquela “dor atônita dirigida contra todo o ordenamento das coisas” que o dom Fabrizio de “O Leopardo” notou no olhar de um coelho abatido. Aproximo-me o máximo que posso, com minha máquina fotográfica. É tudo o que posso fazer. Registro o momento. As feições de Gorbatchev exibem um ar grave.

O dia é de festa, a Rússia vai se lembrar dessas eleições, mas, ali, naquela alameda, o homem que, em última instância, tornou possível a reviravolta carrega, no rosto, as marcas de uma impenetrável melancolia. Em que ele estaria pensando, enquanto caminhava, silente, com o olhar voltado para o chão? Àquela altura, que diferença faria saber? A História já tinha mudado de rumo, independentemente do que Gorbatchev poderia pensar.

Um mundo desabava ali - não com um estrondo nem com um suspiro, como poderia imaginar o poeta, mas com um silêncio enigmático.

===================================================

Posted by geneton at 10:59 PM