junho 05, 2008

BERT KEIZER, O MÉDICO QUE MATA ( SE O PACIENTE PEDIR PARA MORRER)

Relato de um encontro com um personagem fascinante: o médico-filósofo que tenta salvar vidas mas , a pedido dos pacientes, pode também ajudá-los a morrer

CENA 1.EXTERIOR DIA. AMSTERDÃ, HOLANDA

O Dr.Morte anda por uma rua chamada Vondelstraat, no centro de Amsterdã, numa bicicleta de aros cor de prata. Veste um casaco de couro preto. Os cabelos, embranquecidos pelos cinqüenta e nove anos, estão ralos. Os óculos de aros finos ampliam um olhar inquisidor. O céu encoberto por nuvens escuras dá à paisagem um toque apropriadamente melancólico.

Depois de prender a bicicleta a um poste com uma corrente, numa atitude que revela uma precaução exagerada, o Dr. Morte caminha para o encontro marcado com o entrevistador.

CENA 2. FLASH BACK: O AVISO DA CIGANA

Pausa para uma digressão: a visão da bicicleta de aros cor de prata evoca a lembrança da única consulta que fiz a uma cigana, a serviço de uma edição especial do Almanaque Fantástico, em 2005. A Cigana Esmeralda disse que eu tomasse todo cuidado antes de viajar em carros prateados, porque as cartas do baralho que ele manuseava diante de meus olhos descrentes revelavam que havia risco de um grave acidente. Problemas no freio. Mas ela nada disse sobre bicicletas de aro prateado circulando sob o céu de chumbo de Amsterdã. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres, sopra-me com uma voz claudicante: “Vá em frente! Sinal verde para a entrevista”

CENA 3. PEQUENA INTERVENÇÃO DO NARRADOR

É bom prestar toda atenção ao que este homem diz. Porque o que ele diz tem tudo a ver com o destino de cem por cento dos seres humanos: a morte. Não é recomendável fazer de conta que o assunto não é fascinante. Porque é. Não adianta chamar o assunto de “mórbido”, “deprimente”, “lastimoso”, “incômodo”, “desagradável”. É bobagem recorrer a este velho arsenal de adjetivos, porque eles, no fim das contas, servem apenas como desculpa para que não se encare um fato irrevogável: um dia, o planeta seguirá existindo sem nossa presença.

“Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a idéia morte faz que com tudo passe a valer a pena. E torna tudo impossível, também. É, portanto, um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas!”, ele diria, durante nossa entrevista. “Não, eu não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”.

CENA 4. O PERSONAGEM PRINCIPAL ENTRA EM CENA

Hora das apresentações. O homem se chama Bert Keizer. É um caso raro de médico que é filósofo. Ou filósofo que é médico. Formou-se em Filosofia na Inglaterra. Em seguida, decidiu estudar medicina, na Holanda, no início dos anos setenta. Formado, passou uma temporada no Quênia. Desde o início dos anos oitenta trabalha com pacientes terminais.

Pai de um casal de filhos, Bert Keizer pratica eutanásia, quando um paciente terminal lhe pede. Ou seja: ajuda o paciente a morrer. O debate jamais terminará: um médico – o profissional encarregado de zelar a todo custo pela vida – deve ou não apressar a morte de um paciente? Deve, sim, se médico e paciente estiverem na Holanda. Keizer faz um cálculo aproximado: já deve ter tratado de cerca de 1.500 pacientes terminais. Destes, 25 optaram pela eutanásia. Pediram – e receberam – ajuda do médico para que morressem logo.

A bem da verdade, é injusto chamar Keizer de “Doutor Morte”. O médico-filósofo pratica, sim, eutanásia, a pedido de pacientes, mas é incapaz de pronunciar uma palavra de simpatia à morte. Prefere, sempre, oferecer consolação e alívio a quem vê o apagão final se aproximar.

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CENA 5: DE COMO O MÉDICO SE TORNOU UM SUCESSO EDITORIAL

Durante anos, Keizer fez anotações sobre a morte. Nunca publicara nada. Um dia, resolveu reunir as anotações num livro, publicado por uma pequena editora holandesa. Sucesso imediato. O texto do médico-filósofo é envolvente, inspirado. Não resvala jamais na pieguice. Uma grande editora inglesa se interessou pela aventura literária do médico, uma espécie de Drauzio Varella holandês. O livro “Dancing With Mister D” (“Dançando com a Sra. Morte”) fez sucesso na Inglaterra. Boa notícia: vai ser publicado no Brasil pela Editora Globo

Neste momento, o narrador passa a palavra para o médico-filósofo. O que ele diz nos ajuda a falar sobre o indizível, a entender o incompreensível.

CENA 6. O NARRADOR SAI DE CENA. CLOSE DO MÉDICO – QUE FALA OLHANDO PARA A CÂMERA

“ Nem sempre é possível salvar vidas. Uma das coisas que devemos lembrar é que a porcentagem de pessoas que morrem é de cem por cento! Todo mundo vai morrer um dia. A medicina tenta nos afastar da morte. Mas não funciona. Porque todos nós temos de morrer.

Uma das razões por que entrei na Medicina foi a vontade de procurar formas de diminuir o sofrimento alheio. Ao insistir, por exemplo, em lançar mão de recursos tradicionais, a Medicina pode até aumentar o sofrimento de quem se aproxima da morte. Mas o médico pode diminuir o sofrimento se tiver a coragem de encarar o fato de que aquela pessoa vai morrer. Assim, ele poderá transformar este processo em algo suportável”.



“O que ocorre na eutanásia é que você dá ao paciente um comprimido para dormir. Barbitúricos . Você não dá em forma de comprimido. Dá em forma de pó, dissolvido em glicerina e álcool. É uma poção, um drinque. Metade de uma xícara de café. Você dá. O paciente bebe. Em um, dois minutos, minuto, adormece. Não morre: adormece. Você, médico, faz uma promessa ao paciente: se ele, depois de adormecer, não tiver morrido depois de cerca de quarenta e cinco minutos, você dará uma pequena injeção letal, uma substância que se usa em cirurgias. Mas o paciente sabe que, quando tomar o comprimido dissolvido, morrerá. Se o paciente não puder engolir, você dará uma injeção, para administrar os barbitúricos. Também neste caso, os pacientes,primeiro, adormecem. Depois, morrem durante o sono. Parece terrível, mas não é uma maneira ruim de morrer.

É cair no sono na melhor das companhias”

CENA NUM QUARTO DE HOSPITAL: O MÉDICO ESPERA PELO SUSPIRO FINAL DA MULHER QUE TINHA PEDIDO PARA MORRER. MAS ELA DIZ: “AINDA ESTOU PENSANDO....”


“Aconteceu uma vez com uma senhora que tinha tomado esta poção de barbitúricos. Eu e a filha desta mulher estávamos em pé, ao lado da cama, à espera do momento em que ela adormecesse e, em seguida, morresse. A mulher sentiu esse silêncio, notou nossa expectativa de que ela perdesse a consciência. Neste momento, ela nos disse: “Ainda estou pensando....”, o que foi, realmente, engraçado. Mas sei que ela tinha a sensação de estar deslizando rumo a um abismo. Mas o que ela disse trouxe alívio para aquele momento.

EUTANÁSIA SÓ EXISTE QUANDO O PACIENTE, CONSCIENTE, PEDE PARA MORRER. QUALQUER OUTRO CASO NÃO É EUTANÁSIA: É MEDICINA PALIATIVA


“Aqui, no meu país, a eutanásia é definida como “suicídio assistido por um médico”. Ou seja: o médico dá a você uma overdose, em caso de sofrimento insuportável sem qualquer perspectiva de recuperação. O médico pode, ao invés de dar a dose a você, administrá-la ele mesmo, se você pedir. Isso é que é eutanásia.

Mas as pessoas têm idéias confusas sobre a eutanásia, porque pensam que é o que ocorre quando, ao tratar de um paciente terminal, que entrou mais ou menos em coma, o médico dá a ele uma dose extra de morfina, para que ele morra um pouco mais rápido. Isso não é eutanásia! Isso é tratar de um paciente terminal. Para nós, o pedido feito pelo próprio paciente para que se pratique a eutanásia é fundamental.
Para que haja eutanásia, é preciso que alguém, em plena consciência, peça para morrer. Somente nestes casos, a eutanásia é possível. Em todos os outros casos, fala-se de medicina paliativa. Ou seja : o bom tratamento de um
paciente terminal”.

UM INSTANTE DE DÚVIDA: DEVERIA OU NÃO TER AJUDADO UM HOMEM “COM RAIVA DA VIDA” A MORRER ?


“Em me lembro de um caso de eutanásia que me deixou intrigado...Um homem me fez ajudá-lo a se suicidar. Era um doente terminal de câncer de pulmão. Ia morrer. Mas ele fez aquilo com raiva. Estava com raiva dos médicos que o trataram, porque ele pensou que seria curado. Mas os médicos não o curaral. O homem ficou, então, furioso. Nesta raiva, ele contou com minha ajuda para se “vingar” da vida. Hoje, acho que é errado, não é um ato equilibrado de um homem sábio, mas um ato raivoso de um homem ferido. Não me sinto bem com relação a este caso”.

O MEDO ÍNTIMO DO MÉDICO QUE MATA: MORRER NAS MÃOS DE UM MÉDICO INÁBIL

“Tenho medo da extinção, sim. Isso me preocupa. Mas,biologicamente, sei que não existe escolha. Tenho também medo de morrer nas mãos de um médico que não saiba como cuidar de mim. Ou seja: um médico que continue tirando raios-x, em vez de me consolar e me dar analgésicos.

Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a morte faz com que tudo valha a pena. E torna tudo impossível. É um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas”.


SÓ HÁ DUAS MANEIRAS DE PENSAR NA MORTE. UMA É BOBA. A OUTRA É ESTÚPIDA

“Há duas maneiras de pensar na morte. Você pode pensar na morte o tempo todo, o que é uma bobagem. Também pode não pensar nunca, o que é igualmente estúpido. É difícil encontrar um meio termo. Há quem diga que perco tempo demais me preocupando com a morte. Mas, quando a gente envelhece, estatisticamente passa a ficar mais próximo da morte do que quando tínhamos quinze anos, por exemplo. Não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”

NÃO SE PODE OLHAR DIRETAMENTE PARA O SOL. NEM PARA A MORTE: “A GENTE NÃO PODE ENCARAR O NADA”


“Penso em La Rochefoucauld – que disse: “Não se pode olhar diretamente para o sol - ou para a morte”. É verdade: a gente não pode encarar o Nada, assim como não pode treinar os olhos para encarar o brilho do sol. Não se pode olhar para o Nada. É um abismo. Nem os que estão se aproximando da morte olham para ela! Pelo contrário. Preferem olhar para os que estão próximos e dizer: “Obrigado”, “aproveite”, “você é inesquecível”.

A morte é, portanto, uma daquelas condições que não podemos imaginar. Podemos, por exemplo, olhar para a noite passada. Ali, estávamos “mortos”. Porque estar dormindo sem sonhar é como estar morto. É o que todo mundo faz toda noite. Não é nada de grandioso. Mas o medo de uma situação irrecuperável – o “não-ser” – é uma das piores coisas sobre as quais temos de pensar. Porque não podemos imaginar o universo sem nós. A gente pensa: se morremos, todo o universo morre. É inimaginável que as coisas continuem depois”


A GRANDE SÁIDA É IMAGINAR: “DURANTE MILHÕES DE ANOS NÃO ÉRAMOS NASCIDOS. ISSO NUNCA FOI UM PROBLEMA PARA NÓS!”


“A vida não é perfeita. O que acho que serve de consolo é o fato de que podemos olhar para a morte com alguma distância, com clareza. Não se pode viver sem ilusões. Mas deve-se ter o menor número possível de ilusões. A tarefa de se livrar das ilusões é a Filosofia. Buscar a clareza na vida é uma atitude que nos ajuda a combater o pessimismo. A filosofia é uma maneira de criar clareza sobre nossas confusões.
É impossível contemplar o nada, o não-ser. Mas devemos pensar nos milhões de anos em que não éramos nascidos. O fato de não termos existido antes não é um problema para nenhum de nós. Qualquer criança pode entender!
É algo que não incomoda a ninguém. Mas aí nós nascemos, vivemos por sessenta anos – por exemplo - e morremos. Por milhões de anos adiante, estaremos mortos. O fato de não termos existindo antes não é um problema, mas o fato de que estaremos mortos por milhões de anos adiante nos incomoda! É engraçado este incômodo, porque não faz sentido. Creio que este incômodo acontece porque, neste caso, estamos falando de nossa própria morte, algo que não podemos imaginar. Não podemos nos imaginar não estando aqui!

Mas, antes de nascer, você esteve morto por milhões de anos. Isso não foi nada difícil. Ou foi ? Claro que não”.


Posted by geneton at 01:55 PM

THEODORE VAN KIRK, NAVEGADOR DO AVIÃO QUE JOGOU A BOMBA ATÔMICA EM HIROSHIMA

O HOMEM QUE PARTICIPOU DAQUELE QUE JÁ FOI CONSIDERADO “O MAIS VIOLENTO ATO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE” - O LANÇAMENTO DE UMA BOMBA ATÔMICA SOBRE A CIDADE DE HIROSHIMA, NO JAPÃO – DIZ QUE HOJE SE LEMBRA DAS VÍTIMAS “UMA VEZ POR MÊS,EM MÉDIA”

Eis um dos cavaleiros do apocalipse: um homem de oitenta e dois anos colhe peras no pequeno pomar que cultiva no jardim de casa, num subúrbio de São Francisco, Califórnia. Oferece-me a fruta. “É boa e doce”. Faz sol. O azul escancarado do céu só é maculado pelo rastro deixado por um avião a jato.

Enquanto saboreia a pêra que acabou de colher, ele se dirige, a passos lentos, para uma cadeira na beira da piscina. Os raios de sol acentuam a brancura dos cabelos ralos. O pomar em casa e o conforto sugerido pela piscina podem dar a impressão de que o homem que colhe peras é um milionário. Não é. O homem que colhe peras é apenas um militar aposentado.

A biografia deste octogenário não seria diferente da de tantos outros veteranos de guerra se ele não tivesse levantado vôo, na madrugada de agosto de 1945, a bordo do Enola Gay – o avião que conduzia a primeira bomba atômica usada numa guerra. Ao embarcar no Enola Gay, Van Kirk entrou para a História – para o bem e para o mal.

Os que criticam o uso da arma atômica chamam os militares que participaram do ataque de mensageiros da morte. Os que encontram uma justificativa histórica chamam-nos de guerreiros da paz. A polêmica durará séculos.

A missão que Theodore Van Kirk cumpriu há seis décadas mudou a história da humanidade. Todos os superlativos já foram usados para descrever a enormidade do ataque nuclear a Hiroshima. “Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra” - diz Bob Greene, autor de um livro recém-lançado, “Duty: a Father, His Son and The Man Who Won The War” - um jornalista que desde criança era fascinado pela Missão Hiroshima.

Que fantasmas povoam hoje os dias calmos deste homem ?

Se ele não tivesse embarcado há meio século para a Missão Hiroshima , certamente não teria o descanso dos seus dias de aposentadoria quebrado pela impertinência de repórteres que o procuram para tirar velhas dúvidas.

É o que faço agora. Van Kirk nos recebe com um sorriso largo , uma pergunta bem-humorada (“vocês conseguiram chegar ? Pensei que tinham ficado presos no engarrafamento !”) e a disposição de abrir o armário onde se escondem os fantasmas de Hiroshima.

Pergunto se ele levou algum objeto pessoal quando embarcou no vôo histórico. Van Kirk me surpreende com a resposta: o único “objeto pessoal” que ele levou a bordo do avião que carregava a bomba atômica foi uma Bíblia. Se precisasse de conforto espiritual durante a Missão, poderia recorrer àquela pequena relíquia familiar:

- A única peça pessoal que carreguei comigo foi uma Bíblia – que eu tinha recebido de minha mãe e de meu pai. Era pequena. Cabia no bolso. Durante o vôo, eu me lembro de ter tocado a Bíblia com a mão. Mas não cheguei a ler nenhuma passagem. O exemplar da Bíblia não tinha meu nome, nada que pudesse identificar quem eu era. Se o avião por acaso fosse derrubado em território inimigo, os japoneses não poderiam me identificar pela Bíblia. Terminei perdendo-a, tempos depois.

Além do pequeno exemplar da Bíblia, Van Kirk carregava consigo uma pistola automática – que poderia ser usada numa situação extrema:

- Não havia rifles a bordo. Mas cada um de nós tinha uma pistola automática, calibre 45. Carreguei uma comigo, na missão rumo a Hiroshima. Se fôssemos derrubados sobre território japonês, poderíamos usar as pistolar para nos proteger ou – Deus nos livre – para destruir a nós mesmos, se necessário (Van Kirk evita a palavra “suicídio”). Mas, se algo desse errado na missão, a cena seria tão catastrófica que teríamos pouca chance de usar as pistolas.

Ninguém participa impunemente de uma missão tão devastadora.

Van Kirk orgulha-se de ter contribuído para o fim da guerra. É um fato histórico indiscutível. O uso das armas atômicas – primeiro, em Hiroshima e depois em Nagasaki - obrigou o Japão à rendição incondicional . Se o Japão continuasse em guerra, seria invadido por terra. O número de mortos poderia ter sido maior do que o causado pelas bombas – dizem os estrategistas. Mas o preço do uso das armas atômicas foi altíssimo. O horror causado pelo cogumelo atômico jamais se dissipou. Calcula-se que cem mil pessoas tiveram morte instantânea, nos dez segundos seguintes à explosão. As cicatrizes deixadas pelas explosões atômicas vão atravessar os tempos.

Que tipo de pensamento terá passado pela cabeça de Van Kirk quando ele viu Hiroshima pela primeira vez, ainda a bordo do Enola Gay?

Van Kirk faz uma pausa, reconstitui o cenário do apocalipse:

- Era um dia perfeitamente claro. A gente podia ver a cidade a milhas de distância. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a de que nossa missão tinha sido bem sucedida: nós tínhamos encontrado a cidade, cumprimos os horários previstos, tudo estava perfeito. O primeiro pensamento que tive depois da explosão da bomba foi de alívio. Porque aquilo era algo que tinha exigido um treinamento que durara meses. O segundo pensamento que tive foi: a guerra acabou!


A História dos tempos de guerra não é feita apenas de ordens militares grandiosas e decisões sem rosto. Há sempre alguém que cumpre as ordens. As decisões tomadas no Salão Oval da casa Branca pelo Presidente dos Estados Unidos podem exigir - por exemplo – que um grupo de militares entre num avião de madrugada, invada o espaço aéreo japonês, mire numa cidade lá embaixo e abra as comportas para que seja lançada, naquele alvo povoado por homens,mulheres e crianças, a arma mais mortífera já concebida pelo homem- uma bomba atômica.

O avião Enola Gay levanta vôo da ilha de Tinian, no Oceano Pacífico, às 2 e 45 da manhã de seis de agosto de 1945 rumo a Hiroshima, com doze homens – e uma bomba atômica a bordo. A bomba explode às 9h16. Cem mil pessoas morrem instantâneamente na explosão. O número de vítimas chegaria a 145.000 no final de 1945.

“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastaram até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas seiscentos leitos e todos já estavam ocupados”, diria o jornalista americano John Hersey em "Hiroshima", texto clássico sobre o bombardeio.
“Nuvens de fumaça, próximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um céu silencioso ter causado tanta destruição (...) Zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos”

A Missão Hiroshima foi o momento mais grave vivido por Van Kirk. Mas, para decepção dos fanáticos por guerra, ele constata:

- A guerra é mais interessante na TV do que na vida real. Guerra pode significar cinco minutos de extrema atividade – e um ano de monotonia....

Não havia lugar para monotonia a bordo de um avião que voava rumo ao Japão para cumprir uma missão que – não é exagero dizer - entraria para a história da humanidade:

- Havia a possibilidade de a bomba explodir no avião, o que seria desastroso. Poderíamos ter problemas no motor. Nós estávamos preparados para o pior – que, felizmente, não aconteceu. Não estávamos preocupados com os japoneses durante o vôo em direção a Hiroshima, porque sabíamos que eles não tinham como nos alcançar naquela altitude – confessa Van Kirk . Mas sabíamos que nosso avião seria atingido por ondas provocadas pelo deslocamento de ar, depois da explosão. Disseram-nos que, depois da explosão, iríamos sofrer o impacto. Houve até especulações sobre o risco de a explosão atingir o nosso avião. De volta à base, cheguei a ouvir de um dos cientistas o seguinte: “Quando vocês partiram para a missão, pensei que aquela seria a última vez que eu os veria....”. A turbulência durou pouco. O vôo de volta pôde continuar.

O calor que se espalhou por Hiroshima e Nagasaki era o de “mil sóis”. Seres humanos “se desintegraram sem deixar qualquer vestígio”. O inferno se instalou na terra. O grande paradoxo é que tanta destruição foi cometida – em última instância - em nome da paz – para acabar com a guerra. O Japão se rendeu. A Segunda Guerra Mundial acabou ali. Mas Hiroshima e Nagasaki entraram para sempre na História como provas de que o homem é tecnicamente capaz de destruir a vida sobre a terra. Basta tomar a decisão.

“Os cientistas tinham dito que a temperatura no centro da explosão seria mais forte que a do sol – diz Van Kirk. Quando a bomba explodiu lá embaixo, nós já estávamos nos afastando de Hiroshima. Não havia janelas na parte traseira do avião. Usávamos equipamentos para proteger nosso olhos. Ainda assim, pudemos ver um clarão parecido com o de um flash fotográfico numa sala escura. Hiroshima estava inteiramente encoberta por uma fumaça negra e por poeira. Não se via a cidade. A nuvem que se formou tinha várias cores: eram tons de cor púrpura, rosa, branca – todos os tipos de cores".

A visão era bonita? – pergunto ao navegador.

“Não se pode chamar algo assim de belo. Era algo mais horrível do que bonito”.

Adiante, ele aprofunda a descrição:

- Minha primeira reação, ao ver as primeiras imagens de Hiroshima, foi de surpresa: como aquilo tudo pôde ser feito com apenas uma bomba? Aquilo reforçou a nossa certeza de que não havia meio de os japoneses resistirem a uma arma daquele tipo. O Japão iria se render logo depois.

O que é que a palavra Hiroshima significa hoje para este homem?

“Para mim, Hiroshima significa, hoje, a ressurreição de uma cidade que foi destruída”, diz Van Kirk. “Hiroshima é também a prova de que o homem pode corrigir seus erros. Não é que a bomba atômica tenha sido um equívoco. O bombardeio foi perfeitamente legítimo como ato de guerra. A população de Hiroshima é hoje devotada à paz.É uma mensagem que vai para todo o mundo”.

Que resposta o navegador do Enola Gay dá, hoje, aos críticos da Missão Hiroshima, gente que condena o uso de armas atômicas?

- Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento específico e qual a alternativa que existia ao uso da bomba. O que aconteceu é que a bomba salvou vidas. Se não tivéssemos jogado a bomba, a guerra não teria terminado em agosto. Teria se estendido por um, dois meses. Durante este período, o Japão estaria exposto a um horrível bombardeio – com grande perda de vidas. Embora tenha havido uma horrível perda de vidas em Hiroshima – e também em Nagasaki – a alternativa seria pior : basta levar em conta o número de vidas que teriam sido perdidas se a guerra continuasse.

Ao contrário do esperado, o Japão não se rendeu depois da explosão da bomba em Hiroshima. Os Estados Unidos decidem,então, lançar uma segunda bomba atômica. O alvo era a cidade de Kokura. Mas, como a cidade estava encoberta por nuvens, a bomba foi jogada em Nagasaki. O Japão finalmente se rende. O documento da rendição incondicional é assinado no dia 2 de setembro

Pergunto se Van Kirk já teve pesadelo com Hiroshima:

- Nunca. Há quem me critique pelo fato de eu nunca ter tido pesadelo com a bomba atômica. Mas devo dizer que não tive. Porque acho que o que fizemos em Hiroshima foi apropriado.

E ele faria tudo de novo?

- Eu faria – diz Van Kirk , sem titubear. Faria tudo de novo, se as circunstâncias que a gente tinha ali se repetissem : um conflito que se estendia por anos, com muita matança, com feridos, com o país inteiro em estado de guerra, não apenas as forças armadas. Mas creio que as circunstâncias não se repetiriam. Não acredito que nenhuma outra guerra dure mais que uma semana ou duas.

Se tivesse tido a chance de falar aos habitantes de Hiroshima momentos antes do lançamento da bomba, o que Van Kirka diria a eles?

- Eu diria: lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade. É um ato necessário. Vocês não aceitaram os termos da rendição incondicional – que nós oferecemos. O resultado é este.


Aos que dizem que o ataque a Hiroshima é discutível porque atingiu indiscriminadamente alvos civis, Van Kirk responde que não : Hiroshima era a sede das instalações militares japonesas encarregadas de defender o país em caso de invasão. Havia na cidade pelo menos cem “alvos militares”. Mas a população civil pagou o preço.

Van Kirk acha absurda qualquer comparação entre o ataque atômico ao Japão – um ato de tempos de guerra – e, por exemplo, o ataque dos guerreiros de Bin Laden ao World Trade Center. O sentimento antiamericano, aguçado na era Bush, deu margem a comparações desse tipo.

- Quando vi o ataque ao World Trade Center me perguntei: que tipo de gente pode fazer algo assim? É algo que não consigo imaginar : que eles tenham achado que algo de bom poderia sair dali. Quando houve Hiroshima, nós estávamos em guerra. Havia legitimidade. Não apenas nós estávamos envolvidos na guerra,mas todo mundo – os britânicos, os russos, todos. Mas o ataque ao World Trade Center foi feito em tempos de paz. Como puderam fazer? Não consigo entender. Eu não o faria – nunca. Nunca.

Tento provocá-lo : o senhor iria a uma guerra hoje para capturar Bin Laden?

- Sim. Mas não creio que seja necessária uma guerra.

Vida de personagem da história é assim: o navegador do avião que jogou a bomba atômica oferece ao repórter um autógrafo sobre uma foto do Enola Gay. A relíquia vai para meus arquivos implacáveis. Pai de dois filhos e duas filhas, avô de sete netos, Van Kirk vive sozinho, com a mulher parcialmente inválida.

Em seus momentos de solidão, Van Kirk hoje se lembra das vítimas da bomba?


- Eu hoje me lembro das vítimas com menos freqüência do que antes. Mas a cada vez que vejo uma foto, um filme ou uma menção de alguém, me lembro das vítimas da bomba atômica. É algo que acontece menos e menos, à medida em que envelheço e o tempo vai passando. Hoje, devo me lembrar das vítimas uma vez por mês. Pode acontecer de eu me lembrar das vítimas duas vezes em um mês e, em seguida, passar três meses sem me lembrar. Mas a média é de uma vez por mês.

Van Kirk fica em silêncio. Nessas horas, ele parece rever intimamente os fantasmas de Hiroshima : o pesadelo da guerra, o imenso cogumelo atômico, a decisão dramática, a destruição indizível.

É sempre assim: quando uma notícia qualquer de TV fala da guerra ou quando um repórter vem de longe para ouví-lo sobre o dia histórico, Van Kirk embarca numa viagem feita de palavras, lembranças e silêncios - como agora. Não se recusa a falar. Não se esconde. Porque, desde o momento em que entrou no Enola Gay para voar rumo a Hiroshima, ele sabia que aquela viagem não acabaria nunca.




Posted by geneton at 01:22 PM