junho 30, 2010

PELÉ

CONFISSÕES DE UM REI: PELÉ DIZ QUE MARADONA PRECISA, PRIMEIRO, PROVAR QUE FOI O MELHOR DA ARGENTINA…

O Dossiê Geral promete – e cumpre. Eis a entrevista completa com Pelé :

Jornalistas entediados espalharam a versão de que Pelé derrapa quando fala. É mentira. Provocado, nosso monarca é perfeitamente capaz de premiar a curiosidade dos repórteres com confissões surpreendentes, cenas de bastidores, eventuais inconfidências.

Aqui, Édson Arantes do Nascimento, a versão terráquea da entidade Pelé, apontará, por exemplo, quais eram os dois únicos defeitos do Rei do Futebol.

Descreverá pressões sofridas para disputar a Copa do Mundo de 1974 pela seleção brasileira. Falará de uma cena inusitada ocorrida nos vestiários do Brasil,no intervalo da final da Copa do Mundo de 1970, no México.

Sociólogos de botequim juram que em algum ponto do inconsciente coletivo brasileiro reluz uma difusa nostalgia da realeza. Quando querem reconhecer os talentos e virtudes de alguém, os habitantes da República Federativa do Brasil tratam de conceder-lhe um título monárquico. Roberto Carlos virou “Rei da Jovem Guarda”. Uma expedição por qualquer cidade brasileira revelará um rol de majestades de todo tipo: Rei da Bateria, Rei do Churrasco,Rei do Mate, Rei dos Pneus. Mas ninguém encarnou tanto a palavra Rei quanto Édson Arantes.

Sessenta e nove anos depois da proclamação da República, o Brasil ganhou, na Copa do Mundo de 1958, um Rei que até hoje não perdeu a majestade (fiz um teste: desafiei Pelé a ir conosco até a Quinta Avenida, para ver por quanto tempo ele poderia andar na rua sem ser reconhecido. Três décadas depois de ter abandonado os gramados, Pelé precisou de apenas dezesseis segundos para ser reconhecido por um africano. Em questão de minutos, o tumulto estava formado: pedidos de autógrafo, espoucar de flashs, assédio de admiradores. Pelé teve de voltar para a van. Tinha passado incólume pelo teste do reconhecimento público – em Nova York). Que outra celebridade seria capaz de criar um alvoroço numa das principais avenidas da cidade que é tida como a capital do planeta?

Agora publicado na íntegra, sem qualquer corte, o depoimento do Atleta do Século ao Fantástico é um documento sobre uma das pouquíssimas personalidades que, durante um diálogo com um repórter, podem se dar ao desplante de se comparar, a sério, com gênios como Beethoven ou Miguelângelo. Pelé pode. Porque sabe que, no futebol, pode ter sido o que Beethoven foi na música – ou Miguelângelo na pintura.

Que outra celebridade pode se referir a si própria na terceira pessoa, como se Pelé fosse um mito há tempos desvinculado das miudezas do mundo real? Pelé pode.

O encontro foi marcado para o apartamento que Pelé mantém desde os anos setenta em Nova York. O “Rei” chega com o rosto semi-encoberto por um boné. É o truque que usa para tentar esconder uma das fisionomias mais reconhecíveis do mundo. O punho, machucado num jogo de tênis, estava enfaixado. Pelé pede licença para ir “lá dentro”. Volta de camisa trocada. Enquanto o cinegrafista prepara a câmera, ele lembra que, quando morava em Nova York, costumava jogar tênis com o jornalista Lucas Mendes. Confessa uma pequena frustração: não consegue ganhar nunca de Rivelino no tênis.

Diz que passou a se policiar para não ficar repetindo a pergunta “entende?” ao final de cada frase:

- “Percebi que sempre falava “entende”, em todas as entrevistas. Depois das gozações, comecei a me policiar. Perdi o hábito. Depois que me chamaram a atenção para esta mania, psicologicamente já eliminei a palavra “entende”. Mas de vez em quando escapa algum”.

A bem da verdade, diga-se que Pelé conseguiu atravessar a entrevista sem emitir um “entende ?” sequer.
O “Rei” se confessa, numa gravação preservada no Centro de Documentação da Rede Globo:

Você já passou um dia sem dar autógrafo?
Pelé: “Digo com toda honestidade: só quando não saio de casa. Em casa, ainda tenho de assinar cheques para fazer pagamentos.Depois desta fase de Pelé – ou seja, desde a Copa de 1958 – não me lembro de ter passado um dia sequer sem ter dado autógrafo. Não me lembro!”.
Qual foi o pedido mais absurdo que você já recebeu?

Pelé: “Já recebi tantos pedidos e tantas propostas… A gente recebe, no escritório, cartas com todo tipo de pedidos – desde ajuda financeira até apartamento, casa e carro… Mas o pedido mais complicado que recebi foi feito, na África, por um pai, que me trouxe a filha e pediu para que eu casasse com ela. Era uma garota de 15 anos!”

Que resposta você deu?

Pelé: “Eu disse que não estava preparado ainda para casar….”.
Você sempre fala de Pelé como se Pelé fosse outra pessoa. Isso não é delírio de grandeza de um “Rei”?

Pelé: “Talvez seja delírio de grandeza de um ”Rei”, mas, por outro lado, é até uma modéstia do Edson. Porque um novo Pelé, que todo mundo procura desde 1958, não vai aparecer. Dona Celeste e Dondinho, meus pais, fecharam a fábrica. O novo Pelé não vai aparecer, então.

Edson Arantes do Nascimento é o que sofre, é a pessoa. Já Pelé é o mito que não vai morrer. Vai ficar para sempre.

Édson morre : é uma pessoa normal, alguém que chora, tem sentimentos e sofre pelas coisas erradas. É esta a diferença que sempre tento fazer”.

Ninguém gosta de pensar em morte, mas, já que ela é inevitável, qual seria o epitáfio de Pelé?

Pelé: “Não tenho medo de morrer nem de falar sobre a morte. Mas acho que o epitáfio do Pelé seria “o eterno”.

Sinceramente: você tem inveja de quem?

Pelé: “Inveja não tenho de ninguém. Em todo este tempo em que viajei com o futebol, conheci grandes personalidades: reis, rainhas, políticos, atletas, artistas. Eu às vezes falava: “Eu poderia ser um Nelson Mandela, um Juscelino Kubitscheck, um artista…”. Fui abençoado pelo Papa várias vezes. Mas inveja nunca tive.

Quando eu era garoto, o jogador que tentei imitar, porque era minha inspiração na época de minha chegada ao Santos, foi Zizinho. Quando comecei, aos dezesseis, dezessete anos, Zizinho estava terminando a scarreira. Eu achava: “Um dia vou ser igual a Zizinho…..”

Você disse que gostaria de ter sido JK. Por quê?

Pelé: “Porque, dentro do pouco que a gente conhecia de política, Juscelino chegou com uma proposta avançada e decente para nosso país. A grande mudança do Brasil aconteceu com Brasília e com JK. Eu o admiro muito”..

Você se disfarça?

Pelé: “Já usei bigode. Uma vez, fui à China. Pus uma peruca afro, além do bigode, para ir a um restaurante. Havia lá um pessoal que falava português. De repente, vi o pessoal da cozinha chegando. Eu disse: “Alguma coisa deu errado….”. Um dos garçons terminou perguntando: “É Pelé? “. O professor Júlio Mazzei – que estava na mesa conosco – perguntou: “Como é que souberam? “. O garçom: “Ah, ele começou a rir. A gente reconheceu”.

Todo mundo já falou das qualidades do Pelé em campo, mas poucos foram capazes de apontar os defeitos. Para Pelé, qual era o grande defeito de Pelé dentro do campo?

Pelé: “Pergunta difícil ! Você perguntou para Pelé. Se tivesse perguntado para Édson….

Pelé corrigiu um defeito que tinha durante a carreira. Eu me lembro: o meu pai me dizia que jogador que é centroavante ou atacante tem que saber cabecear e chutar de esquerda e direita. Porque a bola – afinal- pode cair de qualquer um dos dois lados. Eu tinha uma dificuldade de esquerda. Mas fiquei treinando e batendo com a perna esquerda. Hoje há até quem ache que sou canhoto! Mas sempre fui destro.

E cabecear? Fico triste de ver jogadores profissionais que ganham uma grana danada mas não sabem cabecear, o que é um absurdo!.

O garoto não saber cabecear era um absurdo nos tempos do meu pai. Porque cabecear é um principio do futebol. Hoje existem profissionais, centroavantes, que não sabem cabecear.

Depois dessa correção, eu, como Edson, não sei se vejo muito defeito no Pelé como jogador.

Pelé podia ser menos forte num tipo de jogada, mas defeito acho que ele não tinha”.
Os dois pequenos defeitos de Pelé no início da carreira eram, então, não saber cabecear e não saber chutar com a esquerda?

Pelé: “Exatamente! Aprendi com meu pai. Aprendi a chutar com a esquerda depois que vim para o Santos. Ficava batendo bola depois dos treinos. Ficava batendo bola contra a parede. Pedia para os jogadores cruzarem a bola para que eu pudesse bater de esquerda. Fui, então, superando esta dificuldade”.

Quanto valeria hoje o passe de Pelé, se Pelé estivesse jogando?

Pelé: “Que pergunta! Hoje, tudo tem um valor, uma comparação. Se fôssemos fazer uma comparação com o que se paga hoje, se fizéssemos uma relação de custo e benefício, Pelé não teria preço. Porque não daria para pagar o tempo que Pelé jogou na Seleção Brasileira e no Santos – quase vinte e cinco anos de carreira, sem parar. Talvez desse para pagar a divída do Brasil….”.
Que valor se aproximaria do talento de Pelé, em preço de passe?

Pelé: “ Se fosse feita uma comparação com os atletas de hoje, Pelé seria acima de qualquer um. O jogador mais caro foi – o quê? – 35, 40 milhões de dólares. Pelo que falei, Pelé deveria valer uns 100 milhões de dólares por ano”.
É verdade que o governo militar quis forçar você a jogar a Copa de 74 pelo Brasil ?

Pelé: “´Forçar´ é uma palavra forte, mas eles tentaram me persuadir a voltar a jogar, porque havia um interesse grande em que o Brasil fosse bem na Copa do Mundo de 1974,na Alemanha. Nós estávamos numa fase política muito difícil, no Brasil.

Eu me lembro de que tinha dado uma entrevista para Ziraldo, em que eu dizia que tinha ficado sabendo das barbaridades e das torturas que tinham sido feitas naquele tempo – de 1971 a 1973. Indignado com aquilo, uma das decisões que tomei foi a de não apoiar e não esconder o que estava acontecendo. Porque, cada vez que o Brasil ganha uma Copa do Mundo, esconde tudo: a fome, o desemprego, a saúde, a falta de moradia. O povo se envolve na alegria, naquela coisa de “Brasil” – e esquece de tudo.

Eu não queria aquilo porque eu já tinha conhecimento de muita coisa: já tinha conversado com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque. Já tinha me encontrado com eles; sabia de coisas que estavam acontecendo. Tomei realmente esta decisão. Como eu ainda estava em grande forma – afinal, o Santos foi campeão em 1973 e fui artilheiro do campeonato – , houve uma procura da filha do general Ernesto Geisel, e políticos como Pratini de Moraes e Jarbas Passarinho. Falei com vários políticos na época: todos achavam que eu tinha de jogar. Mas minha decisão foi a de não jogar”.

Você estava em perfeita forma em 1974: poderia ter jogado a Copa do Mundo na Alemanha sem qualquer problema. Você não se arrepende de não ter jogado?

Pelé: “Não. A decisão de me despedir como campeão do mundo foi a mais certa que tomei. Tenho convicção de que, se hoje os garotos de nove, dez anos de idade ficam gritando o nome de Pelé, é porque eles têm Pelé como um campeão. Por isso, não tenho nenhum arrependimento de não ter jogado a Copa de 74”.

É surpreendente ver Pelé dizer que, com a vitória do Brasil numa Copa do Mundo, o povo se esquece de tudo. Você sempre teve esta visão crítica?

Pelé: “Sempre. Sou uma pessoa que o Brasil todo conhece desde 1958. As minhas batalhas pela educação. Tenho procurado passar para o povo minha indignação por não termos um país que dê o mínino de condições para o povo – educação, moradia e saúde. Todo mundo sabe de minhas brigas, desde o milésimo gol que venho falando. Nem sei o que falar. Quando começo a falar, fico emocionado. É uma tristeza saber que o Brasil ainda hoje vive o que vive. Fomos o antepenúltimo país em educação. Isso é triste para quem, como eu, vive viajando – e vê que, em países que não têm a mínima condição, o povo vive melhor que brasileiro”.
Se Pelé estivesse em campo, o Brasil teria perdido da Holanda em 74?

Pelé: “Talvez não! Mas futebol é detalhe: em questão de segundos um lance pode decidir uma Copa do Mundo. O Brasil foi surpreendido na Copa de 1974 porque a Holanda veio com uma proposta de jogo que ninguém conhecia. Nem digo que o Brasil tenha jogado mal. O que aconteceu é que a surpresa provocada pelo tipo de jogo da Holanda tornou tudo difícil para o Brasil.

Não sei se, se eu tivesse jogado, a Holanda jogaria diferente – diante da preocupação de estar diante de um Pelé em campo – ou um Tostão. Porque se estivesse um Pelé, um Tostão ou um Jairzinho em campo, a postura da Holanda seria defensiva. Não iria para o ataque daquele jeito. Mas é dificil dizer se o Brasil, afinal, ganharia ou não”. ( N: O Brasil foi eliminado da Copa de 1974 ao perder para a Holanda por 2 a 0, no dia 3 de julho de 1974, em Dortmund).

Intimamente, em algum momento você se sentiu co-responsável pela derrota do Brasil em 74?

Pelé: “Fiquei triste, sofri. Mas é claro que ,durante a Copa, sempre dava aquela “cócega”, aquela vontade: “Puxa, eu poderia estar aí”. Eu, que amo o futebol, vivi realmente esta situação. Houve momentos em que eu disse : “Eu poderia ter jogado, eu poderia estar em campo….”.

Qual foi o argumento que a filha do Presidente Geisel usou pra tentar convencer você a disputar a copa de 74?

Pelé: “ Como faz muitos anos, não me lembro de detalhes. Porque muita gente me ligou. O deputado Athiê Jorge Cury, presidente do Santos na época, me passou o recado de que eu ira ser chamado pela Amália Lucy Geisel , que,na época, uma espécie de secretária do pai. Por telefone, ela me disse que eu deveria pensar bem, porque seria bom para o Brasil. A conversa foi amigável, num tom que chamava a atenção para o benefício que o Brasil poderia ter para o Brasil se eu aceitasse voltar”.

Que argumento você usou para não aceitar?

Pelé: “Eu disse exatamente o que vinha dizendo para todo mundo: eu já tinha me despedido em 1972, numa grande festa. Quando ocorreu a festa de despedida, no Maracanã, se o Presidente da CBF na época e se o próprio povo insistisse para eu ficar, talvez eu tivesse mais sensibilidade para ficar. Mas, como todo mundo aceitou a festa, todos acharam, ali, que era um momento bom para a despedida. Não havia, então, razão para eu ficar”.
De todos os nomes que foram citados ao longo dos anos, quem realmente chegou perto de ser o sucessor de Pelé?

Pelé :“Desde que comecei a jogar, nomes vão aparecendo. Apareceram grandes e excelentes jogadores. Eu vi. Por exemplo: Di Stéfano, Beckenbauer, Bob Charlton, Zico, um excelente jogador.

Tivemos excelentes jogadores brasileiros,como Ronaldinho, Rivaldo. Há Maradona, Eusébio, Paolo Rossi, Sívoli. Poderia ficar aqui citando vários nomes.

Maradona foi a última polêmica de Pelé. Gostei muito de jogadores argentinos. Eu gostei do Sivoli , que jogou na Itália uma vez. Gosto de Di Stéfano, a grande figura do Real Madri. Maradona, primeiro, precisa ser o melhor da Argentina. Porque lá ainda há dúvida sobre se é ele ou o Di Stéfano. Precisaria aprender a chutar de direita e a cabecear, porque ele não cabeceava bem nem chutava bem de direita. Assim, eu poderia compará-lo com Pelé. Mas foi um excelente jogador. Tivemos também no Brasil Dirceu Lopes, Tostão, Garrincha – um jogador diferente- , e Didi…..”

De todos os brasileiros que você citou, quem chegou mais perto de Pelé como jogador?

Pelé: “Pela característica de jogo, o que chegou mais perto foi Zico. É aquela história que sempre falo: não adianta você querer procurar um novo Beethoven, um novo Hamlet .(aqui Édson se confunde ao falar de Pelé: certamente, ele queria citar William Shakespeare. Terminou citando Hamlet). Não adianta você querer procurar um novo Frank Sinatra ou Michelângelo, que pintava de cabeça pra baixo. Porque Deus faz mas, depois, quebra a fôrma. Podem até surgir outros melhores e diferentes, em outras épocas. Mas igual ao Pelé vai ser difícil”.

Qual é o segredo dos bastidores da Copa do Mundo que você nunca contou pra ninguém?

Pelé: “Quando você é um jogador com mais experiência, fica sabendo de coisas. Há um segredo que já é nem segredo, porque até Gerson já comentou. Aconteceu na Copa de 70. Eu tinha dado entrevista dizendo que a Copa de 1970 seria a minha última. Carlos Alberto, Brito, o próprio Gerson, todos nós queríamos ganhar aquela Copa do Mundo. A gente fazia oração, fazia de tudo, porque aquela Copa iria encerrar nossa carreira.

Nós sentimos, no intervalo da final contra a Itália, um cheiro de cigarro. Fomos no banheiro – eu e Carlos Alberto. Gérson tinha acendido um cigarro lá, o “desgraçado”! . Acendeu um cigarrinho. Disse: “Ah, eu estou muito nervoso. É para desabafar”. Depois, ouvi dizer que Félix também. Não sei se já foi levado a público. Era um negócio absurdo!. Mas, realmente, aconteceu. Gérson sabe. É um segredo que eu não tinha falado para ninguém, mas, graças a Deus, ganhamos a Copa”.

Você reclamou de Gérson?

Pelé: “Ali, na hora, quase saímos de porrada em cima de Gérson: “Oh, papagaio desgraçado, a gente aqui querendo ganhar a Copa do Mundo….”. E ele: “Mas estou nervoso….”. Gérson fumava mesmo antes. Nunca escondeu de ninguém.

Gérson terminou fazendo o gol. Deu também o passe para eu fazer aquele outro gol em que matei a bola no peito. A gente não sabia o que aconteceria no segundo tempo. Se soubesse, mandava Gerson fumar em todos os intervalos”.

Você, afinal, é pão-duro?

Pelé: “Isso é uma coisa injusta! . Tudo começou com uma brincadeira com Gérson e Zagallo. Os dois é que são pão-duro, mão de vaca: não abrem a mão nem para o cafezinho. É aquela história de nunca ter dinheiro trocado para o café. Então, estes sim, eram pãos-duros,na seleção brasileira.
Sempre reservado: não gasto dinheiro à toa, o que é diferente. Contaminaram até o meu filho, o Edinho, com esta história. Quando conversam com ele, ele diz: “O meu pai é muito pão-duro….”. Mas meu filho tem tudo! Não acredito que eu seja pão-duro. Pelo contrário”.
Em algum momento você já se sentiu discriminado por ser negro?

Pelé: “Graças a Deus, não. Nem em Bauru: o meu pai jogava pelo Bauru Atlético Clube, o clube da elite. Em Bauru, meu irmão chegou a comentar alguma coisa. Mas, durante minha carreira, nunca.

Tive uma certa preocupação quando estava para vir para o Cosmos. Naquela época ,Muhammad Ali etava muito bem, ele que tinha sofrido, antes, aquela discriminação. Vir para os Estados Unidos com o futebol era uma coisa nova. Quando chegou a hora de decidir sobre vir ou não vir, pensei: “…Mas será que vou ter problema de racismo ? Vão me usar para alguma coisa?” Graças a Deus, minha vinda foi um grande sucesso – uma vitória do Brasil, porque hoje em dia o futebol é um dos grandes passatempos do jovem nos Estados Unidos. Pelé – acho- é o grande ídolo americano. O know-how que o Brasil vendeu para os Estados Unidos foi o futebol com Pelé. Nem nos Estados Unidos tive problema de racismo, graças a Deus”.

“Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada….”
Você já se apaixonou por mulheres famosas?A paixão foi correspondida?

Pelé: “Nunca me apaixonei por mulheres famosas. As mulheres com quem me casei – primeiro, Rose; depois, Assíria – não eram famosas. Assíria é cantora evangélica conhecida, mas não é famosa. Quando eu jogava, existia muita onda. Se eu saía para jantar com uma artista, com uma cantora, todo mundo dizia que eu estava apaixonado.

Houve aquele caso de Xuxa. Disseram também que fui apaixonado pela Luíza Brunet. Conheci Luíza, por coincidência, junto com Xuxa. Naquela época, a gente fez um trabalho junto na revista Manchete, para escolher a modelo do ano. Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada…. Devia ter 16, 17 anos. Não houve nada de paixão”.
A atenção que Luíza Brunet chamou em Pelé não chegou a se transformar em paixão?.

Pelé :”Não chegou porque,logo em seguida, tive todo o namoro com a Xuxa. Fala-se muito no Brasil: disseram também que fui apaixonado por Vera Fischer- minha amiga. Nunca tivemos nada. Falaram de Gal Costa. Disseram que fui apaixonado por uma menina que foi Miss Brasil, Flávia Cavalcanti. Sou apaixonado pela Assíria”.

Você já se encontrou com reis, papas, estrelas de cinema, celebridades de todo tipo. Qual é a celebridade que você gostaria de conhecer, mas ainda não teve oportunidade?

Pelé: “Você falou uma coisa certa: nesta terra, conheci quase todas as grandes celebridades. Dos brasileiros, conheci Ayrton Senna, Emérson Fittipaldi, Éder Jofre. Por falar em Éder Jofre: uma das grandes figuras que não conheci ainda é Popó, o lutador. Aproveito para parabenizar o Popó pela garra e pela técnica. Popó é a figura do momento que não tive oportunidade de conhecer ainda”. ( A TV Globo promoveu um encontro entre os dois poucas semanas depois desta declaração)
Xuxa disse numa entrevista que os seus pés não eram bonitos. O que você não acha bonito na Xuxa?

Pelé: “Respeito –muito – Xuxa. É um exemplo pela batalha e pelo sucesso. Fico feliz de ter participado deste início. Não acho que Xuxa tenha nada feio”.

Qual foi o maior perna-de-pau que você já enfrentou?

Pelé: “Em trinta anos de carreira, já joguei contra tantos pernas-de-pau que fica até difícil me lembrar de algum nome”.

Você sempre teve fama de conquistador. Pelé já falhou na cama?

Pelé: “A fama de conquistador não é verdade. Sempre respeitei todo mundo. Graças a Deus, até hoje, onde chego as portas estão sempre abertas., o que não quer dizer que eu seja conquistador. O importante é respeitar as pessoas que me admiram, tratar bem as pessoas que me procuram. É o que faço com crianças, gente de idade, jovens , mulheres – bonitas, feias. Não acredito que esta atitude seja nenhum galanteio: é obrigação de qualquer pessoa tratar a outra bem, respeitar os outros. Por essa razão, sou respeitado em todo o mundo”.

Você acabou fugindo da pergunta…

Pelé: “Não estou fugindo. O que estou dizendo é uma coisa real. Além de tudo, não me considero nenhum galã. É respeitar quem me procura, tratar bem os outros e saber que vou morrer – como as outras pessoas : o respeito talvez faça com que as pessoas se aproximem de mim, sejam elas como forem”.
Você aguentaria hoje, passado dos sessenta anos, jogar por quanto tempo uma partida?

Pelé: “Não tenho dúvida de que o futebol de hoje é de muito mais pressão, muito mais corrido do que era antes. O condicionamento físico vem de acordo com a competição. Com cinqüenta anos de idade, joguei na Itália, com a Seleção Brasileira principal. Com sessenta anos, fiz a inauguração do Centro de Treinamento do Santos, com a garotada. Mas, no futebol atual, com este preparo físico que tenho hoje, não dava para fazer nem o aquecimento…”

Quais são os cuidados que você toma fisicamente?.

Pelé: “Sempre tive facilidade para manter o meu peso. Nunca deixei de fazer exercício. Sempre que posso, faço exercício em casa ou na praia. Cuido da minha alimentação. Quanto ao futebol, agora falando sério, é evidente que, se eu jogasse agora, estaria preparado. Por exemplo: com sessenta e dois anos da idade, se eu tivesse de fazer uma partida amistosa como fiz quando completei cinquenta anos, eu iria me preparar por dois, três meses. Jogaria. Com certeza: se conseguisse este tempo para parar e treinar, eu jogaria meio tempo. Mas não seria aquele Pelé que fazia gol de bicicleta. Não se pode exigir tanto: é o Pelé normal”.

Em nome de que causa Pelé entraria em campo hoje pra jogar meio tempo que fosse?

Pelé: “ Talvez para acabar definitivamente com uma guerra. Porque parar uma guerra o Santos já parou, nos anos sessenta. Depois, a guerra continuou. Ou para concretizar o desejo de Lula de acabar com a fome no Brasil. Penso que seria excelente fazer um jogo com a assinatura de “acabou a fome no Brasil” “.
Que reação você teria se visse hoje o Maracanã superlotado gritando o nome de Pelé e pedindo que ele entrasse em campo?.

Pelé: “Teria a mesma reação que tive na despedida, diante do Maracanã lotado, dentro daquela emoção: iria me despedir porque aprendi com seu Dondinho que parar no melhor da carreira é a coisa mais inteligente”. (N:Pelé se despediu da seleção brasileira em jogo no Maracanã, no dia 18 de julho de 1971, contra a seleção da Iugoslávia. O jogo terminou empatado: 2 a 2. Pelé deixou o gramado – chorando – sob o coro da torcida que pedia “fica, fica, fica” ).

Qual foi a grande mudança na vida de Pelé nestes últimos trinta anos?

Pelé: “ Tive mudanças, graças a Deus, para melhor. A vinda aqui para os Estados Unidos, a parte de educação e cultura. Amadureci como ser humano. Aprendi muito. Posso até dizer, por exemplo, que peguei o “Fantástico” no colo. O Fantástico era uma criança quando conheci o programa ( a primeira edição do Fantástico foi ao ar em agosto de 1973). Eu melhorei muito, aprendi muitas coisas : não parei.

Há coisas que falo com o orgulho. Fernando Henrique Cardoso disse que Pelé foi o Brasil que deu certo. Tenho muito ainda o que aprender”.
Por quanto tempo você pode andar nas ruas de Nova York sem ser reconhecido?

Pelé: “ Depende do lugar. Sem disfarce, é difícil. Em qualquer lugar, sempre vem um ou outro. Quando vou sair – por exemplo, para a Igreja Saint Patrick, para rezar – ponho óculos ou bonezinho. Dizem que vou disfarçado de Milton Nascimento. Mas quando saio de cara limpa, basta descer do carro: vai ter sempre alguém chamando”.
Você sempre soube administrar muito bem a carreira. Você tem idéia do tamanho da fortuna de Pelé, em dólar?

Pelé: “Nunca me preocupei muito em parar para contar. Quem pára para contar perde dinheiro – a coisa material. E a coisa material nunca foi muito importante em minha vida. Já a marca “Pelé” é uma das mais valiosas no mundo, sem dúvida nenhuma”.
Você tem idéia do valor desta marca?

Pelé: “Não tenho idéia do valor. Mas a marca “Pelé” hoje é de um valor inestimável”.
Você conhece um ator de cinema pior que Pelé?
Pelé: “Conheço muitos. O que não é justo é o pessoal fazer, na época em que eu filmava, comparações entre Pelé ator e Pelé jogador de futebol. É injustica. Pelé nasceu para jogar futebol. Ator ele estava aprendendo a ser. Mas poucos atores, com todo o nome que têm, foram dirigidos por John Huston, trabalharam e foram dirigidos também por Silvester Stallone, Michael Caine, Ipojuca Pontes. Trabalharam com Paulo Goulart, Stênio Garcia, Regina Duarte. É bom, não é? “.
Qual foi, afinal, o gol mais bonito que você já fez ?

Pelé: “O gol mais bonito foi contra o Juventus, na Rua Javari.(N: o jogo Santos 2 x 1 Juventus, pelo campeonato paulista, foi disputado no dia dois de agosto de 1959). Todo mundo fala. A descrição feita pelos jogadores que estiveram no dia do jogo, tanto do Juventus quanto do Santos, é maravilhosa. Infelizmente a equipe de Aníbal Massaíni não conseguiu achar imagens deste gol , depois de quatro anos de pesquisas sobre jogadas e momentos importantes da vida de Pelé para o filme “Pelé Eterno”. Há também o “gol de placa” , lindo ( marcado contra o Fluminense, no Maracanã, pelo Torneio Rio-São Paulo de 1961. Pelé driblou sete jogadores do Fluminense antes de marcar o gol).

Quanto ao gol da Rua Javari, eu me lembro de que três jogadores do Juventus foram “chapelados”. Quando Mão de Onça, o goleiro, veio na bola, também levou um chapéu. Fiz o gol de cabeça.

Todo mundo diz que criei o soco no ar na comemoração do gol. Não foi nada disso. O que aconteceu foi que, neste jogo em que fiz o gol, a torcida estava me perturbando. O Santos não estava jogando bem. Eu também não. Já o Juventus estava numa tarde boa. A torcida, então, ficou vaiando, vaiando, vaiando. Quando fiz este gol, fui para a torcida, desabafei, falei palavrão. Dei, então, um soco no ar. Porque tinha feito o gol mais bonito da minha vida”.
Quer dizer então que a origem do soco no ar na comemoração do gol foi um desabafo por este gol?

Pelé: “Exatamente! É esta a origem do soco no ar. Há quem diga que Pelé é tão pão-duro que até para comemorar o gol ele fica com a mão fechada…. Mas não é assim. O soco no ar, na verdade,foi para comemorar um gol que foi uma coisa maravilhosa. Se pudéssemos reconstituir este gol para os mais jovens, para que a nova geração não tenha nenhuma dúvida, seria maravilhoso”.
Aqui da varanda você tem esta bela vista de Nova York. Quanto tempo você passa aqui por ano?

Pelé: “Passo três meses por ano. Quando eu jogava com o Cosmos, tinha contrato com a Warner: ficava seis meses, a duração de uma temporada de esporte. A vista aqui é maravilhosa. Do topo do prédio, você vê o East River. Tive muita sorte de conseguir este lugar aqui no tempo que estava jogando no Cosmos. Agora, estou aqui para sempre”.

Onde você estava no dia do atentado de 11 de setembro de 2001?

Pelé: “Viajei na noite anterior. quando cheguei ao Brasil, pela manhã, soube do atentado pela televisão. Meu irmão, “Zoca”, tinha ficado aqui em Nova Iorque. Meu assessor também. Uma loucura: fiquei apavorado porque minha filha, que mora aqui, vivia perto do World Trade Center. Fiquei procurando saber e querendo me comunicar, mas, graças a Deus, com a família não aconteceu nada”.
Do que é que você mais gosta aqui em Nova York?

Pelé: “Tenho liberdade em Nova York. Vou ao supermercado, vou ao Central Park. Em algum lugar dá para ficar, especialmente se é dia de semana. Porque se é domingo ou feriado os lugares ficam cheios. O pessoal me descobre logo. A liberdade, esta coisa mais respeitosa do americano, é o que mais me cativa em Nova York”.
Com que frequência você vai à catedral rezar?

Pelé: “Sempre que estou em Nova Iork. Quando fiz o contrato com o Cosmos, eu cheguei aqui nos Estados Unidos; pedi a ela que me ajudasse, iluminasse meu caminho. Deu tudo certo, porque foi uma grande vitória. Agora, já me acostumei. Vou à Saint Patrick, para agradecer”.
Qual é o santo de devoção de Pelé?

Pelé: “Meu santo é Nossa Senhora Aparecida. Minha mãe sempre diz uma coisa engraçada: quando crinça, em Bauru, eu era tão levado que ela me entregou a São Benedito. Minha mãe pediu: “São Benedito, tome conta deste garoto!”.

São Benedito tomou conta bem”.

*Publicado no Livro das Grandes Reportagens ( Editora Globo, 2006)

Posted by geneton at 11:00 AM

junho 29, 2010

PELÉ

O DESABAFO DE PELÉ NO OUVIDO DOS MARCADORES : “MAS VOCÊ PARECE MINHA MULHER ! NÃO ME DEIXA SOZINHO NUNCA!”

…E o Dossiê Geral apresenta : o Rei Pelé !

O blog publica esta semana, em dois tempos, dois depoimentos do maior jogador que já passou pelos gramados do planeta. O primeiro foi gravado em Londres, “clandestinamente”. O segundo é uma entrevista que o locutor-que-vos-fala gravou no apartamento de Pelé em Nova York.

Primeiro tempo:

Cena londrina: o “Rei” se trancou durante uma tarde inteira num pequeno estúdio de televisão em Candem Town, no norte de Londres, para fazer confissões sobre uma carreira até hoje inigualada. Quando o vídeotape começa a rodar, Pelé revela, por exemplo, qual foi a única vez em que suas pernas tremeram no gramado do Maracanã.

Adiante, confessa que, quando criança, sonhava com uma profissão que igualmente o levaria às alturas, mas não tem nada a ver com o futebol. Saudoso, dá o nome do jogador da seleção brasileira com quem se entendia, dentro de campo, apenas pelo olhar: uma cumplicidade muda que enlouquecia os adversários. Um dos gols mais bonitos marcou quando oficialmente já tinha se despedido do futebol: jogava pelo Cosmos de Nova Iorque.

O depoimento traz surpresas. Ao contrário do que todos pensam, o jogo “mais duro” da desastrada campanha brasileira na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966, não foi a derrota que eliminou o Brasil. Pelé fala com orgulho sobre o dia em que o Santos parou uma guerra na África. Diverte-se quando descreve a odisséia do juiz colombiano que foi enxotado do estádio para que Pelé, expulso de campo, voltasse a jogar.

Por fim, lamenta que jamais conseguiu saciar uma curiosidade: diz que até hoje se interessa em saber o que é que, afinal, significa o nome Pelé – a marca registrada do Brasil no exterior.

Pelé tinha chegado ao estúdio numa limousine branca de seis portas. Pouca gente sabia deste compromisso do Rei. Quem testemunha, por puro acaso, a chegada do “atleta do século” a este prédio de tijolos aparentes paga reverências: o porteiro do prédio não perde a chance de posar para uma foto ao lado do ídolo. Lá dentro, zelosas funcionárias tratam de cumprir ao pé da letra o papel universalmente destinado a assessores: o de atrapalhar até onde for possível o trabalho de repórteres.

O astro vai cumprindo pacientemente o que as assessores decidem. Só ensaia uma reclamação bem-humorada quando a responsável pela maquiagem insiste em espalhar um pó pelo rosto do “Rei” para evitar o reflexo das luzes: “Não precisa! Não precisa! Todo mundo me conhece….”.

Um grupo de crianças – comandado pela sobrinha de uma das funcionárias – leva bolsas, camisas e fotos para Pelé autografar. O “Rei” improvisa, então, uma curta aula de futebol: pergunta a cada um o que é mais importante na hora de chutar. Ouve respostas desencontradas. Trata de esclarecer : o mais importante num chute é a posição da perna de apoio:

- Se você vai chutar com a perna esquerda, a perna direita deve estar bem equilibrada. Parece fácil, mas nem todo mundo se lembra…

Os meninos ouvem a explicação, silenciosos e atentos. Vão ter o que contar quando chegarem à escola, no dia seguinte.

Gravado em seis fitas de vídeotape, em dezembro de 1995, o depoimento terminou se transformando numa espécie de autobiografia eletrônica do Rei. Pelé gravou o depoimento ora em português, ora em inglês. A gravação foi patrocinada pelo cartão de crédito que contratou Pelé como garoto-propaganda de luxo, o Mastecard.

Correspondente do jornal O Globo em Londres, escondo um gravador junto a uma das caixas de som do estúdio, sem ser notado pelos funcionários da produtora contratada para filmar a performance verbal do Rei.

Sem saber que um repórter brasileiro estava “grampeando” suas palavras, o Rei Pelé começa a falar, para público estrangeiro, sobre as façanhas do maior jogador de futebol de todos os tempos:
A OUTRA PROFISSÃO: “Quando eu tinha uns doze anos de idade, sonhava em ser piloto de avião. Ficava olhando os aviões passando por sobre os campos. Pensava comigo: “Um dia, vou ser piloto”. Hoje, tanto tempo depois, acho que tenho mais hora de vôo do que muitos pilotos…Mas meus primeiros pensamentos, quando bem jovem, eram dirigidos para o sonho de ser piloto”.

O DIA EM QUE O REI TREMEU: “Tive a felicidade de marcar 1.263 gols. Posso dizer que o gol mais importante, para mim, foi o que marquei na Copa do Mundo de 1958,na partida contra o País de Gales. Eu tinha dezessete anos de idade. O Brasil ganhou de um a zero. O gol foi meu. O Brasil, então, classificou-se para o final da Copa. O outro gol que foi importante, porque o mundo inteiro estava esperando, foi o milésimo, marcado de pênalti contra o Vasco da Gama, no Maracanã, em 1969. Todos dizem que gol de pênalti é fácil. Não é. Só é fácil quando o placar já foi definido. Numa final, ou quando todos estão olhando para você, não é fácil. Que eu me lembre, foi a primeira vez que minhas pernas tremeram no Maracanã, porque todos gritavam Pelé, Pelé, Pelé”. ( O milésimo gol foi marcado no Maracanã, às 23:11h do dia 19 de novembro de 1969, diante de 65.167 torcedores, em jogo que terminou com a vitória do Santos sobre o Vasco da Gama, por 2 a 1).

O MENINO QUE INSPIROU O MILÉSIMO: “Pouco antes de fazer o milésimo gol, eu tinha visto um menino de rua arrombando carros. Era um daqueles garotinhos de praia,em Santos. Eu disse a ele: “Não faça isso!”. O garotinho ainda brincou comigo: “Mas eu só estou roubando carros de São Paulo.Não são daqui de Santos,não….”. Reclamei: “Não pode ! Isso não é coisa de criança!”.

Uma semana depois, fiz o milésimo gol. A primeira coisa que me veio à cabeça foi pedir proteção às crianças. Comecei a jogar entre os profissionais aos dezesseis anos. Tinha – e tenho – ligação com as crianças. Chamei, então, a atenção da sociedade. Jornalistas disseram que era demagogia: o que eu estava querendo era “aparecer em cima das crianças”….
Mas a verdade é que eu já estava vendo o problema. Infelizmente, hoje, tanto tempo depois, a gente vê o problema da violência em todos os lugares, principalmente no Brasil. Tudo porque o governo e a sociedade não se preocuparam com a educação das crianças. Daquela época para cá, já se passaram trinta anos. Teríamos tido uma geração diferente,se fosse feita alguma coisa”.

O GOL AMERICANO: “Vi meus gols em vídeotape. Porque a verdade é que, na hora do jogo, a gente não vê. O gol de bicicleta que fiz pelo Cosmos de Nova Iorque foi um dos mais bonitos que vi, entre os que fiz. Igualmente, o gol que ganhou uma placa no Maracanã, contra o Fluminense.O gol de bicicleta foi um dos melhores. Em toda a minha carreira, fiz três gols assim: este pelo Cosmos, um no Brasil e outro na Europa”.

O MELHOR PARCEIRO EM CAMPO: “Joguei na Copa do Mundo de 1958 com um jogador que, para mim, era excelente, porque combinávamos muito bem: Garrincha. Era excelente jogar com Garrincha, porque ele ia à linha de fundo. Didi, no meio-de-campo, também foi um grande parceiro. Depois, tive em Coutinho, centro-avante do Santos, um excelente parceiro. Coutinho é que criou a tabelinha com Pelé. Por fim, na última Copa do Mundo que joguei, no México, tive um grande parceiro em Tostão. Era um jogador muito inteligente, sabia tocar a bola, sabia voltar: pelo olhar, ele já sabia para onde a bola ia. São estes os jogadores com quem mais me adaptei. Mas, em vinte e cinco anos de carreira, joguei com outros muito bons”.

A VITÓRIA MAIS DURA, EM 1966: “A partida contra a Bulgária,na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, terminou com vitória do Brasil por dois a zero,mas, para mim, este jogo foi mais duro do que contra Portugal – que nos venceu por 3 a 1. O que aconteceu comigo contra Portugal foi uma fatalidade ( N : Pelé teve de deixar o campo amparado,porque não conseguia andar. Desde o início do jogo, Pelé foi perseguido em campo pelo zagueiro Vicente ). É evidente em todo caso, que aquela falta foi cometida por trás. Hoje, aquele jogador português seria expulso, sem dúvida. Mas houve também problemas no jogo da Inglaterra contra a Argentina – partida dura e difícil – e na decisão entre Inglaterra e Alemanha. A copa de 1966 foi dura e violenta”.

O DESABAFO AOS MARCADORES: “VOCÊ PARECE MINHA MULHER!” : “Os treinadores adversários sempre diziam a um dos jogadores: “Você vai marcar Pelé”. Então, este jogador ficava o tempo todo colado comigo. De vez em quando, eu tinha de dizer a eles: “Mas você parece minha mulher! Não me deixa sozinho nunca!”. Eu tinha dificuldade para jogar assim. Pedia a eles:”Vá jogar um pouco! E aí então você me marca!”. Tínhamos esse tipo de discussão dentro de campo. Era problemático. De qualquer forma, em vinte e cinco anos de carreira, só tive duas contusões sérias. É um saldo positivo. Uma foi contra Portugal,na Copa de 1966. Fui atingido por trás. Da outra vez que tive um problema sério, me machuquei sozinho, ao chutar uma bola. Tive uma distensão grave. Agradeço a Deus por ter tido somente estes dois problemas sérios, em tanto tempo de carreira”.

O PREÇO DA FAMA: “Ser tão conhecido me traz uma grande responsabilidade. Você perde um pouco de privacidade, sem dúvida. De vez em quando, nas viagens, preciso usar um chapéu e um bigode postiço. Por outro lado, é bom saber que as pessoas gostam de mim. Sou uma das poucas figuras, no mundo, que podem dizer: “Tenho as portas abertas no mundo inteiro….”. Onde quer que eu vá – na África, na Ásia, na América do Sul – tenho uma grande responsabilidade. Não posso cometer enganos”.

A CRÍTICA AOS TREINADORES: “O treinador, primeiro, tem de fazer o papel de psicólogo; precisa atuar como um amigo do garoto em início de carreira. É como se ele fosse um irmão mais velho, mais do que um treinador de futebol. Independentemente de qualquer coisa, o treinador precisa ser um bom observador. O que vejo hoje, em quase todos os treinadores de divisões inferiores, infantis ou juvenis, é que eles querem impor uma maneira de ser, querem impor estratégias, querem que o jogador jogue feito uma máquina. As crianças não têm liberdade. Isso é ruim! Treinador de infantil e juvenil tem de dar liberdade ao jogador para que ele possa criar. Somente depois é que o treinador deve tirar os defeitos”.

1970: “EU NÃO SABIA SE RIA OU SE CHORAVA”: “Quando fui para o México, em 1970, já pensava em me despedir do futebol depois daquela Copa. Poder me despedir por cima, como campeão, foi maravilhoso. Eu não sabia se ria, se chorava, se pulava. A verdade é que todos os jogadores ali, como Gérson, Carlos Alberto, Félix, Brito e até Jairzinho pensavam em disputar no México a última Copa de suas carreiras. Das quatro Copas do Mundo que disputei, a de 1970 foi a melhor para mim. Não tive contusão, joguei todas as partidas. A seleção brasileira de 1970 foi a melhor de todos os tempos”.

HOJE, JOGADORES QUEREM DINHEIRO: “Quando comecei a jogar, entre 15 e 16 anos de idade, recebia algum dinheiro do Santos – que usava para ajudar minha família. Um ano depois, fui chamado para a Seleção Brasileira. Aos 17 anos, já estava na Copa do Mundo, na Suécia. Clubes estrangeiros começaram a me chamar, principalmente italianos e espanhóis. Alguns jogadores brasileiros se transferiram, como Didi ou Garrincha. Mas eu nunca quis deixar o Santos. Depois, ao longo de minha carreira, recebi outras propostas. Mas nunca quis jogar apenas pelo dinheiro. Fui jogar no Cosmos depois de abandonar o futebol porque queria promover o esporte nos Estados Unidos. Hoje, é diferente. Jogadores já não se ligam tanto aos clubes. Atuam um ano num lugar; no ano seguinte, em outro. Querem o dinheiro. É uma abordagem diferente.

Eu, pessoalmente, nunca quis sair do Brasil. O dinheiro que eu ganharia fora do país seria umas três vezes maior. Mas eu estava bem no Brasil, porque nunca joguei por dinheiro”.

UMA CURIOSIDADE QUE RESISTE: “Tento até hoje descobrir – na África, por exemplo – algo que me ajude a entender o que significa a palavra Pelé. Comecei a jogar futebol na rua quando tinha uns seis, sete anos. Meu pai era jogador. Um dos meninos que jogavam na rua com a gente, em Bauru, passou a me chamar de “Pelé”. Eu não entendia, porque o meu nome era Édson. Tinha orgulho do meu nome, porque Thomas Édison era um grande homem. Tinha inventado a lâmpada…Quando este menino começou a me chamar de “Pelé”, briguei com ele: “Meu nome é Édson! Por que é que você me chama de Pelé? “. Ninguém sabia o que Pelé significava. Fui,então, para a escola. O mesmo grupo de garotos passou a brincar comigo na sala de aula. Briguei com um deles. Peguei dois dias de suspensão. O meu pai foi chamado à escola. O professor disse que eu tinha brigado por causa do nome – “Pelé”. A escola inteira, então, começou a me chamar de Pelé, para gozar comigo. Eu detestava o nome “Pelé” no início. Hoje, gosto”.

O REI PÁRA UMA GUERRA: “Guardo até hoje com alegria o fato de ter estado na delegação do Santos durante uma viagem à África, em que pudemos dizer que paramos uma guerra por uma semana. Primeiro, jogamos numa ilha. Fizemos uma grande partida. Fiz uns três gols. Quando íamos sair para jogar em outra ilha, disseram que havia uma guerra lá.”Mas, se vocês forem, a guerra pára”. Isso foi uma coisa maravilhosa em nossa vida. O Santos,com Pelé, parou uma guerra na África – pelo menos, enquanto a gente estava lá. O ideal seria que tivéssemos parado a guerra para sempre”

O JUIZ É EXPULSO, PARA QUE PELÉ VOLTE A JOGAR: “Viajamos para jogar na Colômbia, numa época em que o Santos sempre ganhava. Tínhamos sido campeões do mundo interclubes por duas vezes. O estádio estava lotado. Houve, então, uma briga no meio-de-campo. Eu, Eu,Coutinho e Doval estávamos juntos. Os dois eram negros, parecidos comigo. Tinham o mesmo porte físico, tudo igual. Armaram a confusão. O juiz não viu direito quem foi. Eu estava tentando resolver a briga quando o juiz decidiu expulsar um jogador de cada lado. E me expulsou! Eu disse: “Mas eu não estava brigando!”. O juiz respondeu: “Não quero saber!”. Então, saí de campo. De repente, já no vestiário, ouvi um barulho, uma confusão do lado de fora. A polícia chegou. Vieram me chamar: “Volta!”. Eu disse que não poderia voltar, porque tinha sido expulso. E eles: “Volte, porque o juiz é que vai sair. Quem vai apitar o jogo é o bandeirinha. Você vai jogar!”. Voltei. O juiz é que foi expulso….”. ( O jogo contra o Millionarios, no estádio El Campin, terminou com a vitória do Santos por 5 a 1).

OS MAIORES : “É difícil dizer, porque joguei contra grandes jogadores. Mas poderia citar George Best – que seria um grande jogador, se não fossem os pequenos problemas de cabeça que teve. Atuei contra Bob Charlton, excelente jogador. Igualmente, Cruiff, Eusébio,Beckenbauer, Bob Moore. Di Stefano e Puskas foram excelentes. Tivemos uma boa fase de Maradona.. Nestes últimos tempos, foi o jogador que apareceu melhor. Um pouco antes, tivemos Zico. Alguns dos melhores foram estes”.

OS GRANDES MARCADORES: “Nunca foi fácil jogar, principalmente na minha situação, eu que era sempre marcado homem a homem. Tive marcadores que admirava, como Passarela, Nilton Santos,Beckenbauer e Bob Moore. O italiano Fachetti também foi um bom marcador”.

A VIDA EM VÁRIAS FRENTES: “Tenho a base ( financeira) que obtive no futebol. Toda vez que há eleição no Brasil, alguém me oferece: quer ser candidato a presidente? Digo que não. Não quero fazer política diretamente.Quero ajudar, mas não como presidente. De vez em quando, me oferecem a possibilidade de ser candidato a presidente da Fifa. Não sinto que deva”.

O DESCANSO DO REI: “Gosto de passar meu tempo livre com meu violão – fazendo música. Tenho algumas gravadas. Gosto também de fazer música para crianças. Outra coisa que gosto de fazer, quando tenho tempo de relaxar, é pescar. Vou pescar no barco de um amigo. Ou então me recolho a meu sítio, no interior de São Paulo, onde existe uma lagoa. Lá, passo uma semana, dez dias, depois de um ano inteiro de trabalho. Volto relaxado”.

O DESTINO: “Meu pai era jogador. Quando eu via meu pai jogando, pensava: “Um dia, vou ser igual a ele”. Mas nem sempre ele ganhava. Quando meu pai perdia, chegava em casa inseguro. Pensei: tenho de me preparar para não perder nunca- e ganhar sempre. Nasci para jogar futebol. Deus me deu esse destino”

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junho 26, 2010

O PASSADO MANDA LEMBRANÇAS : ARGENTINA EXIBE NOMES DE DESAPARECIDOS E DE “REPRESSORES”. E UM DEBATE DIVIDE OPINIÕES: COMO ENCARAR A HERANÇA DOLORIDA DOS “ANOS DE CHUMBO”?

A Globonews reexibe neste domingo, às 17:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS, uma reportagem especial que o locutor-que-vos-fala gravou em Buenos Aires sobre os desaparecidos políticos argentinos.

Anotações da expedição portenha:

A ditadura militar argentina durou de março de 1976 a dezembro de 1983.

Mas, na prática, ainda não terminou.

O motivo: a discussão sobre o que fazer com a herança ( sangrenta ) dos “anos de chumbo” argentinos ainda divide opiniões, corações e mentes.

Os que acham que não se deve simplesmente esquecer o passado estão ganhando a batalha.

Um exemplo : depois de polêmicas de todo tipo, Buenos Aires ergueu, às margens do Rio da Prata, o “Parque da Memória” : lá, quatro enormes muros de pedra exibem o nome dos desaparecidos políticos.

Calcula-se entre dezoite e trinta mil o número de desaparecidos nos sete anos de ditadura. Os nomes de oito mil e setecentos desaparecidos e a idade de cada um já estão gravados em pedra, para sempre. A lista parece interminável.

O local escolhido para a construção dos muros não é casual: depois de anestesiados, prisioneiros políticos eram jogados de avião no Rio da Prata, nos chamados “voos da morte”.

Sem meias palavras, uma placa na entrada no Parque avisa que aquele é um monumento “às vítimas do terrorismo de Estado”.

O Parque não ficou pronto ainda : das dezessete esculturas que lembrarão os desaparecidos, cinco já foram instaladas.

Uma polêmica parecida envolveu as discussões sobre o que fazer com um prédio que virou sinônimo de infâmia : a sede da Escola de Mecânica da Armada (Esma).

O que aconteceu ali, no prédio de número 8.300 da Avenida do Libertador, é indescritível : os relatos comprovam que a Esma foi transformada numa espécie de campo de concentração de prisioneiros políticos durante a ditadura argentina.

A estatística é macabra : calcula-se que – dos cinco mil prisioneiros levados para a Esma – somente cerca de duzentos e cinquenta saíram vivos.

Não por acaso, o endereço virou sinônimo de infâmia.

Hoje, depois de um grande debate sobre o que fazer com o prédio que foi cenário de tanto horror, a Esma ganhou um novo nome : Espaço para a Memória e para a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos.

O governo federal, a prefeitura de Buenos Aires e organizações de direitos humanos tomam conta do lugar.

A transformação da Esma num grande centro de memória é um capítulo importante de um debate sobre como tratar a herança da ditadura.

O governo de Raul Alfonsín – o primeiro civil a ocupar a presidência depois do fim do regime militar – baixou duas medidas polêmicas:

a Lei do Ponto Final fixava em trinta dias o prazo para que fossem apresentadas denúncias contra militares envolvidos em tortura: a partir daí, não se poderia fazer nada.

A Lei da Obediência Devida dizia que militares envolvidos em atrocidades não poderiam ser punidos porque estariam apenas cumprindo ordens superiores.

As leis do Ponto Final e da Obediência Devida foram anuladas pelo Congresso Nacional argentino em 2003 e declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte em 2005.

Agora, a justiça obriga envolvidos em atrocidades a participarem de audiências públicas.

Um dos mais célebres carrascos da Esma, o ex-tenente Alfredo Astiz, teve de depor, sob os gritos de manifestantes que conseguiram lugar na sala do tribunal.

A área da Esma é do tamanho de dezessete campos de futebol.

Já do lado de fora, um aviso: “Aqui, funcionou o Centro Clandestino de Detenção e Extermínio durante a ditadura militar que assaltou os poderes do Estado de março de 1976 a dezembro de 1983″.

Esculturas exibem fotos e nomes de prisioneiros que, depois de entrarem na Esma, jamais foram vistos de novo.

A palavra “vida” foi esculpida na grade. Numa das entradas, um painel expõe os nomes de militares e civis envolvidos em tortura.

São chamados de “repressores” e apontados como autores de “centenas de delitos cometidos na Escola de Mecânica da Armada durante a última ditadura militar”.

O mais célebre é ele – o ex-tenente Astiz, que era capaz de se infiltrar em reuniões de parentes de desaparecidos para fazer novas prisões e sequestros.

Uma sala da Esma guarda,hoje, fotos das Mães da Praça de Maio, as mulheres que exigiam do governo notícias de seus filhos desaparecidos.

O lugar mais temido dentro da Esma era o Cassino dos Oficiais. Quem passasse pela guarita que dava acesso ao Cassino estava, na prática, condenado à morte. O prédio de três andares tinha cinco salas que eram usadas para todo tipo de tortura. Presos eram submetidos a afogamento. Motocicletas pilotadas por oficiais passavam por cima de prisioneiros deitados nos corredores.

As celas ficavam no subsolo. Uma alameda ganhou um nome irônico: “Caminho da Felicidade”.

Dali saíam os presos que, depois de receberem anestesia, eram levados para aviões da Força Aérea e jogados no Rio da Prata ou no Oceano Atlântico.

Quando não eram mortas, as prisioneiras grávidas eram levadas a uma maternidade clandestina que funcionava na Esma.

Os recém-nascidos eram adotados por militares ou entregues a outras famílias – que nem sempre sabiam de onde eles tinham vindo. As mães – militantes políticas – eram eliminadas em seguida.

A expedição ao território deste pesadelo argentino terminaria com um encontro marcante : com o pai de três desaparecidos políticos. É um advogado e escritor de oitenta e dois anos.

A seguir.

Posted by geneton at 11:10 AM

junho 18, 2010

JOSÉ SARAMAGO

RELATO COMPLETO DE UM ENCONTRO COM SARAMAGO : “PARA QUE TUDO ISSO ? VOU MORRER SEM ENCONTRAR A RESPOSTA. CREIO QUE NINGUÉM NUNCA ENCONTROU”

José Saramago morreu. O Dossiê Geral pede licença para republicar o relato de um encontro com o homem:

A ficha que a gente preenche quando chega a um hotel sempre pergunta qual é a nossa profissão.

Se dependesse de mim, eu escreveria : “agente provocador”.

Imagino a cena de um filme B de décima-oitava categoria: o gerente da espelunca - com camiseta branca, barriga estufada e um lápis encaixado atrás da orelha - tiraria o cigarro de palha da boca, cuspiria de lado e me perguntaria, com voz fanhosa e entonação de personagem mal dublado de filme de TV : “Quer fazer o favor de dizer o que diabo significa “agente provocador” ? Alguma piadinha de mau gosto, por acaso ? Sinto muito, forasteiro, mas não temos vaga. É melhor você ir andando, se ainda estiver pensando em salvar a própria pele ! O último agente provocador que passou por aqui virou banquete para as águias daquela montanha. Get out of here, coiote!”.

Vou. Sem tiroteio, sem cenas de ação, sem pancadaria no saloon, sem cavalos em fuga, o filme B termina sob as vaias da plateia. Não poderia ser de outra maneira.

Mas, como todo filme deve ter uma ponta de verdade, o locutor-que-vos-fala declara que sim, se pudesse, escreveria as palavras “agente provocador” no espaço destinado à profissão. Afinal de contas, que outras coisas úteis um repórter pode fazer na vida, além de cumprir o papel de agente provocador diante dos entrevistados ? Poucas. Pouquíssimas.

De vez em quando, a tática da provocação pode dar resultado. Ou seja: pode levar o entrevistado a produzir declarações interessantes.

Dou um exemplo aos senhores jurados. Quando fui entrevistar José Saramago, o escritor que permaneceu fiel ao Partido Comunista Português independentemente das mudanças da paisagem política, comuniquei ao meu demônio-da-guarda: “Vou dar uma cutucada no bicho. Vou insinuar que ele é um dinossauro político. Quero ver o que ele diz”. Meu demônio-da-guarda se limitou a expelir um daqueles suspiros com cheiro de enxofre e a rir uma risada de bruxa de desenho animado, como se dissesse: “Você vai levar uma patada. Quero ver!” (a bem da verdade, diga-se que, tempos depois, o “dinossauro político” e “comunista de carteirinha” Saramago escreveu um artigo criticando pela primeira vez a rigidez de penas impostas pelo regime cubano a dissidentes. A lembrança do encontro com Saramago me veio quando li, neste fim de outubro, a notícia de que o homem acaba de lançar um novo romance – “Caim”, uma espécie de acerto de contas com Deus).

De fato, Saramago reagiu com alguma irritação à nossa provocação. A entrevista estava salva. Num gesto de cortesia, o português laureado com o Nobel de literatura ainda citaria o nome de três escritores brasileiros a quem ele concederia – de bom grado – o prêmio.

Ei-la:

O senhor é até hoje filiado ao Partido Comunista Português. Não tem medo de ser visto como um animal político em vias de extinção?

(O espírito de porco que quiser irritar o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago já sabe o que fazer : basta chamar o homem de dinossauro político. Quando ouve a insinuação político-zoológica, o cordato Saramago imprime um tom incisivo à resposta)

Saramago: “Há muitas coisas em vias de extinção que deveriam preocupá-lo mais : profissões que se acabam, culturas que desaparecem, línguas que perdem sentido porque já não têm ninguém que as fale, um planeta que estamos destruindo. Deixemos lá os dinossauros políticos. Porque acontece uma coisa curiosa : é preciso ter cuidado com a expressão “dinossauro político”. Pode chegar o momento em que, tal como acontece com os dinossauros autênticos, os estudiosos andem à procura dos ossos dos dinossauros políticos, para tentar reconstituí-los tal como eles teriam sido. Talvez um dia se venha a necessitar dos ossos dos dinossauros políticos que nós somos para que se entenda o que acontecia no mundo”.

( Minha tática de agente provocador funcionou : quando se sente confrontado, o dinossauro Saramago reage com um punhado de frases afiadas,o que não deve ser difícil para quem se notabilizou como exímio esgrimista das palavras)

Usa-se no Brasil a expressão “comunista de carteirinha”. O senhor anda com a carteirinha do Partido Comunista Português ?

Saramago: “Não ando com ela. Tenho cartões e carteirinhas de várias e várias instituições com quem mantenho relações. Não ando com as carteirinhas de todos. Mas pago a minha cota ao PC”.

O dirigente comunista Álvaro Cunhal entregou ao senhor uma carta que não deveria ser aberta. Que segredo essa esse ?

Saramago : “Álvaro Cunhal na verdade escreveu uma carta que nunca li, porque a carta só me seria entregue se ele não tivesse sobrevivido a uma intervenção cirúrgica a que foi submetido na União Soviética. O que sei é que ele escreveu cartas que seriam entregues a vários destinatários se ele não tivesse sobrevivido. Não é o Terceiro Segredo de Fátima : ele próprio me comunicou, depois, ter dito, na carta, que esperava que eu nunca saísse do Partido Comunista Português. Não saí. Não sairei. Em todo caso, a carta nunca me foi entregue”.

Independentemente do apelo que seria feito nessa carta, jamais lhe passou pela cabeça a idéia de largar o Partido Comunista ?

Saramago: “Não tenciono efetivamente – para usar a expressão que você usou – “largar” o Partido Comunista, a não ser que ele me largue. Quero dizer : se amanhã o Partido se transformar em outra coisa, como aconteceu com a maioria dos partidos comunistas europeus, posso não reconhecer o Partido a que aderi. Nesse caso,é possível que eu saia. Mas espero que não aconteça”.

Por que é que o Prêmio Nobel de Literatura não gosta de falar de literatura ?

Saramago : “…Mas eu nunca disse que não gosto de falar de literatura! O que disse foi que cada vez menos me interessa falar no assunto.Não é que não goste.Se é meu trabalho,como é que não iria gostar ?
Quando se publica um livro, ou por qualquer outro motivo, ligado ou não ligado a mim, falo de literatura, evidentemente. O que acontece é que considero que os problemas do mundo não se esgotam na literatura. São tão graves e tão importantes que, se tenho a oportunidade, até quando trato de literatura trato de abordá-los. Não é dizer que não gosto de falar de literatura”.

O senhor já disse que o Brasil é um país de luzes e sombras. Aos olhos do mais famoso escritor português de hoje,qual é a grande luz e qual é a grande sombra que o Brasil projeta ?

Saramago: “Uma pergunta dessas não é fácil de responder. Países de luzes e sombras de uma maneira ou de outra todos o são. O que digo em relação ao Brasil é que o país poderia ser, pelas riquezas naturais e pelas características do povo, um país em que as luzes predominassem. Não digo que as sombras é que predominam. O que quero dizer é que as sombras poderiam ser menores e menos graves”.

Se o senhor fosse fazer hoje o papel do escrivão Pero Vaz Caminha,quinhentos anos depois, qual seria a primeira frase que escreveria sobre o Brasil ?

Saramago : “Depende do lugar onde eu desembarcasse. Se desembarcasse em Copacabana, quando se arrebentaram os esgotos nas praias no Rio de Janeiro, diria ao rei Dom Manuel que aqui não poderia viver ninguém, porque o lugar cheira mal .Se, pelo contrário, desembarcasse numa praia limpa, coberta não de índias despidas, mas de lindas moças quase despidas, diria que aqui é um sítio para viver, uma terra linda. Se, no entanto, começasse a encontrar as favelas, diria : “Mas o que é que se passa aqui ? Eu julgava que os índios viviam de outra maneira!”.

O senhor ainda se sente “como uma Miss Universo”, com a agenda atolada de compromissos depois do Prêmio Nobel ?

Saramago : “Fiquei com a sensação de que as agendas de uma Miss Universo e a de um escritor premiado eram bastante parecidas. Mas hoje posso dizer que não se parecem em nada. As obrigações e responsabilidades de uma Miss Universo duram um ano. Haverá, então, outra Miss Universo ,não só com a coroa na cabeça, mas também com o dever de fazer tudo aquilo que a predecessora fez. Mas,no meu caso – eu, que, não sei se feliz ou infelizmente, não pareço em nada com a Miss Universo – as obrigações não cessaram pelo fato de em 1999 Gunter Grass ter ganho o Prêmio Nobel.

Diga-se que o Prêmio Nobel não impõe rigorosamente nenhuma obrigação. O sujeito chega lá, recebe o Prêmio e vai para casa. Depende da vontade do escritor o uso que ele fará do tempo – o emprego que fará de suas possibilidades de comunicação, se vai continuar a escrever, se vai ter contatos com os leitores.
Como o Prêmio Nobel foi atribuído a um escritor de língua portuguesa, é claro que minhas obrigações e responsabilidades se multiplicaram. Eu entendi que deveria assumi-las”.

Qual é o maior incômodo que um Prêmio Nobel enfrenta, além do fato de ser sempre importunado por jornalistas, como o senhor agora ?

Saramago: “Poderia responder que o outro maior incômodo é ser importunado por fotógrafos. Mas não. Incômodo não há nenhum. O que acontece é que se perde a invisibilidade depois que se ganha o Prêmio! É o pior. Evidentemente que é agradável ser reconhecido na rua e em qualquer parte, no aeroporto ou no restaurante. É agradável ver um leitor se aproximar para nos dizer uma palavra amável sobre o que leu. Em todo caso, não é que eu preferisse voltar ao anonimato, mas não há dúvida de que há momentos em que gostaria de me tornar invisível. Só não quero ser ingrato. Todos me tratam com tanto carinho e tanta atenção que qualquer palavra minha nesse sentido poderia parecer de algum modo uma ingratidão. Não é. Apenas que vez em quando sinto a necessidade de recolher-me à minha própria privacidade – que, enfim, já se perdeu”.

A que escritor brasileiro vivo ou morto o senhor concederia o Prêmio Nobel de Literatura ?

Saramago: “Não me importaria nada dar a eles o Prêmio, se fosse membro da Academia Sueca: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Sem nenhuma dúvida, eu, membro da Academia Sueca, atribuiria o Prêmio a qualquer um dos três. Mas não foi assim que aconteceu."

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Jorge Amado e José Saramago: o português daria o Nobel ao brasileiro (Foto: Site Fundação José Saramago)

O senhor tem uma visão essencialmente pessimista diante do mundo. O pessimismo é bom para a literatura ?

Saramago : O pessimista não é bom nem mau para a literatura, mas não tenho uma visão pessimista do mundo. Num momento como esse, pareceria, a mim, um pouco surpreendente que alguém se atrevesse a ser um otimista.Quem, diante do espetáculo oferecido pelo mundo em que vivemos, veja razões para ser otimista é uma pessoa que ou não percebe aquilo que se passa ou então faz de conta que não entende.O melhor, então, é deixarmos de falar em otimistas e pessimistas. Os fatos são os fatos. Não há otimismo ou pessimismo que faça com o que um fato deixe de ser um fato .A interpretação do fato é que pode variar. Mas o fato continua lá.

Penso que os fatos desse mundo, dessa vida, desse planeta, dessa sociedade humana são fatos suficientemente sérios e graves.Temos de enfrentá-los não para divagar sobre o otimismo e o pessimismo com que poderíamos considerá-los mas para pelo menos compreendê-los e, se possível, tentar resolvê-los”.

Mas há dois fatos que são aparentemente indiscutíveis no mundo de hoje. Primeiro : o fato “otimista” de que nunca tantas pessoas em todo o mundo viveram tão bem e tiveram acesso a tanta riqueza. O fato “pessimista” é que nunca foi tão grande a diferença entre pobres e ricos. Diante desse quadro, o senhor não tiraria nenhum motivo para enxergar o futuro com algum otimismo ?

Saramago : “Não. Se a parte negativa não existisse, então eu diria : uma vez que nunca houve tanta gente vivendo tão bem, pode-se presumir que, no futuro, haja ainda mais gente que vai viver igualmente bem. Mas, como você mesmo acaba de dizer, nunca foi tão grande a diferença entre os que têm e os que não têm .Tudo indica que a diferença vai ampliar-se. Não vem se reduzindo.

É evidente que há mais pessoas que estão vivendo bem. Mas também há mais pessoas vivendo mal. Como a população da terra vem se multiplicando, pode-se dizer que, se alguma parte vai se integrar à minoria que vive bem ou razoavelmente bem, muito mais gente vai se incorporar à parcela dos que vivem mal. Além de tudo,não se deve esquecer que há uma tendência para a pauperização das classes médias. Há uma parte mínima da classe média que ascende – e passa para o outro grupo. Mas há uma parte da classe média que vai se aproximando cada vez mais da parte desfavorecida.

Volto a dizer que não há pessimismo nem otimismo. Repito : os fatos são os fatos. Noto também que o problema já não é ter ou não ter. O problema – não menos importante – é saber ou não saber. É cada vez maior o número de pessoas que não sabem.Ou sabem mal aquilo que julgam saber. É cada vez menor o grupo de pessoas que detém todo o conhecimento – e de certa forma usa-o para levar o mundo para onde o mundo vai”.

Por que os escritores brasileiros são tão ausentes de Portugal e os escritores de Portugal tão ausentes do Brasil ?

Saramago : Pode-se pensar, por exemplo, que leitores de um país não dêem atenção suficiente àquilo que se publica no outro. Pode-se pensar que os temas que tratam os escritores de um país não interessam aos leitores de outro. Mas também se pode pensar que não há um trabalho de fundo para aproximar os dois. É certo que os escritores portugueses vêm aqui. É certo que os escritores brasileiros vão a Portugal. Mas há algo que se passa que não sei explicar. Temos de pensar no seguinte : o leitor também tem suas razões para preferir ou não preferir. Quero crer,no entanto, que seria bom se houvesse um trabalho contínuo de ajuda à edição – evidentemente, é preciso ver até que ponto tal ajuda é economicamente viável .O que é lamentável é que seja assim. Sou uma exceção. Eu próprio me pergunto por quê. Não sou capaz de dar uma explicação.

Talvez o que se devesse fazer seria perguntar aos leitores: por que não os interessa a literatura portuguesa? Por que não os interessa a literatura brasileira ? Como é que poderiam se interessar ? Por que os interessa um determinado autor – e não outro ? Fernando Pessoa é muito lido no Brasil. Cem anos depois, Eça de Queiroz também o é. Já Machado de Assis não é tão lido em Portugal como Eça de Queiroz é no Brasil. Faça-se um inquérito para que se chegue a alguma conclusão”.

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Saramago, Sebastião Salgado, Chico Buarque (Foto: site Fundação José Saramago)

O primeiro escritor brasileiro com quem o senhor teve contato deixou alguma influência na formação do senhor ?

Saramago: “Não posso jurar, porque foi há muitos e muitos anos. Mas o primeiro pode ter sido Raul Pompéia,com esse livro extraordinário que é O Ateneu. Você me pergunta se ficou alguma influência da leitura. Claro que não, porque eu era muito novo.Ainda não pegava essas coisas. O resto foi a aprendizagem. Uso essa palavra propositadamente ,porque o que houve comigo foi a aprendizagem de uma literatura escrita em minha própria língua, mas criada e imaginada em outro lugar – o Brasil ,com tudo o que para mim representou a descoberta não só dessa literatura,mas também das realidades sociais e culturais que estavam por trás dos livros”.

Uma crítica publicada numa revista brasileira sobre o livro “A Caverna” diz que “a literatura refinada de Saramago dessa vez dá lugar a um sermão”. O senhor acha que a denúncia das mazelas do mundo pode eventualmente comprometer a qualidade literária ?

Saramago : “Tenho que dizer que nunca comento qualquer crítica. É um princípio meu. Eu escrevo o que entendo;o crítico escreve o que entende. Comentários meus sobre uma crítica ninguém encontrará,em toda minha vida”.

Uma velha pergunta : o senhor escreve para fugir da morte ?

Saramago : “Não, porque ninguém foge da morte. É uma ilusão. O que pode acontecer é pensarmos – e devo ter pensado – que se escreve porque não se quer morrer. Parte-se do princípio de que a obra vai ficar ,não se sabe por quanto tempo. Hoje, não sou tão ambicioso. Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas”.

O senhor escreveu, no livro “A Caverna”,que as frases de efeito são “uma praga maligna”.Qual é a frase de efeito predileta de José Saramago?

Saramago :”Tento evitar,o mais que posso, as frases de efeito. Mas nem sempre consigo fugir à tentação de escrever uma. Só espero é que, se elas são só frases de efeito, as pessoas que as leiam ou as ouvem não as tomem demasiado a sério”.

Se o senhor fosse definir o Brasil numa só palavra, que palavra o senhor usaria ?

Saramago: “Como é que se pode definir numa só palavra ? Se pudesse usar nem que fossem duas palavras, talvez eu conseguisse. Dê-me três palavras…..”

Quais seriam,então, as três palavras ?

Saramago: “Eu definiria assim o Brasil: “Quando se decidem ?”.

Qual é a grande pergunta que o escritor José Saramago não conseguiu responder até hoje ?

Saramago : “A pergunta que não consigo responder é muito simples : para quê ? Para que tudo isso ? Vou morrer sem encontrar a resposta. Creio que ninguém nunca encontrou”.

Levada ao ar na Globonews, a entrevista com José Saramago foi publicada, na íntegra, no livro “As Grandes Entrevistas do Milênio”, recém-lançado pela Editora Globo

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junho 14, 2010

CARTA AOS MENINOS QUE CORREM ATRÁS DO ÔNIBUS DA SELEÇÃO BRASILEIRA

O técnico Dunga é teimoso, ranzinza, irritadiço ? Deve ser. Deu um apisada na bola histórica ao deixar o supercraque Paulo Henrique Ganso de fora da seleção. Mas… já não é hora de discutir convocações. A partir desta terça, o Brasil entra em campo. Por pelo menos noventa e minutos, todo o resto, todas as maquinações do planeta, tudo, tudo, tudo parecerá secundário e desinteressante. Nada superará um espetáculo que é dramático e fascinante justamente por ser improvisado e imprevisível : tudo pode acontecer ali.

Todo mundo vira profeta do futebol nestes dias de febre planetária. Deixei registrada, no reinado dos 140 caracteres do twitter, minha pequena provocação de torcedor : “Brasileiro que é macho torce para que a Argentina ganhe todas e chegue à final contra o Brasil. Vai ser o Jogo do Século. Adelante, Maradona !”.

E: “Não faz sentido torcer contra a Argentina. Os inimigos são : Itália (que pode ser penta) e Alemanha (tetra). A final dos sonhos : Brasil x Argentina”.

Reviro meus arquivos não tão implacáveis. Descubro uma viagem aos doze anos de idade, nesta Carta aos Meninos que Correm Atrás do Ônibus da Seleção Brasileira :

O autor da melhor definição já escrita sobre futebol é um ilustríssimo desconhecido. Seja lá quem for, merece ser entronizado quem resumiu em apenas doze palavras esta paixão tão avassaladoramente brasileira:

- Das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante…

Noventa e cinco por cento dos brasileiros devem ser adeptos desse mandamento.Os cinco por cento restantes não nasceram ainda.

Quero fazer uma confissão: eu estava banhado de suor no exato momento em que descobri que “das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante”. Não, eu não estava disputando uma final de campeonato. Como um celerado, eu corria desembestadamente atrás do ônibus da seleção brasileira, na avenida Rosa e Silva, no Recife, no já remotíssimo ano de 1969. Em minhas mãos, carregava uma folha de papel em branco. Não estava à procura de nenhuma declaração, não esperava por nenhuma entrevista. Nem sonhava em ser repórter. O que eu queria – como, provavelmente, todo menino brasileiro apaixonado por futebol – era um autógrafo de um dos meus ídolos.

Fui a pé de minha casa até o estádio do Náutico, na avenida Rosa e Silva. Uma multidão de torcedores esperava pela chegada da seleção, para o treino. Lá vem o ônibus. Tumulto. Gritaria. Empurrões. Eu me lembro de ter visto Tostão e Clodoaldo acenando na janela. Ou terá sido Gérson? Quem sabe, Jairzinho.Não importa: os craques dos meus times de botão estavam ali, materializados, a dois palmos de distância.

O treino ia ser fechado. Mas eram tantos os torcedores correndo atrás do ônibus que a Federação resolveu abrir os portões do estádio. Aquele punhado de fanáticos teve, então, o privilégio de assistir a um treino da seleção que, meses depois, entraria para a história do futebol mundial nos gramados do México como o melhor time de futebol de todos os tempos.

O que diabos eu estava fazendo na arquibancada do estádio dos Aflitos, na manhã de um dia de semana?

Aos doze anos de idade, eu estava descobrindo que o futebol é a mais importante das coisas menos importantes da vida. Dizem que a gente só guarda na memória rostos, datas e nomes que, por um ou outro motivo, nos são realmente importantes.O trator dos neurônios soterra o resto. Pois bem: meu professor de desenho no Colégio São Luís – que Deus o perdoe – passou o ano tentando me fazer entender que “o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”. Eu passei o ano preocupado com outro problema: o Sport Club do Recife, afinal de contas, ia ou não barrar a caminhada do Náutico rumo ao título de heptacampeão pernambucano? O meu time de botão ia ou não ganhar o dificílimo campeonato que a gente organizava na rua Dom Manoel da Costa, no bairro da Torre?

Enquanto o professor – com cara de zagueiro alemão – tentava me familiarizar com o fantástico mundo da geometria, eu ficava pensando com meus botões: quem é hipotenusa? O que significa cateto? Onde fica a saída, pelo amor de Deus? Cadê o meu timaço de botão?

Hoje, séculos depois, declaro-me formalmente incapaz de explicar o que significa a soma dos quadrados dos catetos. Mas sei de cor a escalação do time do Sport: Miltão; Baixa, Bibiu, Gílson e Altair; Válter e Vadinho; Dema, Zezinho, Acelino e Fernando Lima. Não preciso consultar nenhum jornal antigo para recitar de trás pra frente a escalação do meu time de botão – o Palmeiras de 1968: Perez; Scalera, Baldochi, Minuca e Ferrari; Dudu e Ademir da Guia, Gildo, Sevílio, Tupãzinho e Rinaldo. Eis uma prova matemática dessa verdade fundamental: das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante.Se não fosse, eu não teria guardado tantos nomes.

O meu exercício de memória, obviamente, não vale nada. Mas o que é a vida, se não uma coleção de gloriosas inutilidades ? Sou igualmente capaz de recitar o meu time de botão do Botafogo de 1969: Cao, Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César. É pouco? Lá vai o time do Santos: Cláudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manoel Maria, Toninho, Pelé e Edu. Minha memória sepultou no cemitério dos esquecimentos todo o palavrório que meu professor mobilizou na inglória missão de me apresentar aos mistérios dos catetos e hipotenusas. Não tive coragem de dizer a ele, mas, desde o primeiro dia de aula, eu tinha certeza absoluta de que o futebol era mais importante do que a soma dos quadrados dos catetos. Não me perguntem por quê. Eu era um menino brasileiro. Não se deve pedir explicação a nenhum menino brasileiro apaixonado por futebol.

Esquecido das hipotenusas, guardei na memória duas cenas do dia em que corri desembestado atrás do ônibus da seleção brasileira. Clodoaldo saiu de campo chorando, machucado. Termina o treino. Nós, os desocupados meninos do Brasil que saímos de casa numa manhã de dia de semana para correr atrás do ônibus da seleção, tentávamos agora vislumbrar por uma fresta numa das paredes do estádio nossos craques se preparando para ir embora. Parecia filme de Fellini. Nós nos revezávamos no posto de observação. Cada um podia olhar por cinco, dez segundos o que estava acontecendo no vestiário dos nossos deuses. Quando chegou minha vez, o que vi? Clara, nítida, diante de mim, a imagem do Rei Pelé ensaboado da cabeça aos pés.O Rei estava nu.

Quando os jogadores voltaram para o ônibus, pararam para saciar nossa fome de autógrafos. Devo ter guardado em algum lugar esta relíquia. Onde estará este meu pequeno tesouro, pessoal e intransferível ? Lá estão os autógrafos de Tostão, Rivelino, Brito, entre outros que terminaram ficando no caminho, na odisséia rumo ao México – como Paulo Borges, ponta-direita do Corinthians. A seleção que foi treinar no campo dos Aflitos trazia as estrelas que reluziriam na campanha do México: Félix, Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho,Tostão e Pelé. Quando o ônibus partiu, repetiu-se a gritaria, o tumulto, a vibração, os acenos. Nova correria atrás do ônibus.

O que terá acontecido naquele ano na vida do menino brasileiro apaixonado por futebol ? O meu professor de desenho me reprovou, é claro. Meu pai me deu uma bronca de dimensões bíblicas: disse que eu passaria os próximos meses proibido de ir ao estádio. O meu time do Palmeiras perdeu o campeonato da rua Dom Manoel da Costa na penúltima rodada. O juiz com certeza deve ter roubado. O Santa Cruz – tragédia – venceu o campeonato pernambucano. O Sport ficou a ver navios, na Ilha do Retiro.

O menino brasileiro – um entre milhões – aprendeu ali que a vida é feita também de derrotas, fracassos, reprovações. Mas é também feita de lembranças que só aparentemente são desimportantes. Minha paixão pelo escrete deve ter começado ali, na corrida atrás daquele ônibus.

Então, dou um conselho aos meninos brasileiros: corram atrás do ônibus da seleção, se tiverem a chance. Ou do carro de bombeiros no desfile da vitória. Quantas lembranças, quantas paixões pelo escrete não surgirão entre esses meninos que correrão, desembestados, com uma folha de papel em branco nas mãos?

Da matéria dessas lembranças se alimenta a mais bonita, a mais avassaladora, a mais incondicional paixão de um povo por uma instituição nacional: a do brasileiro pela seleção.

Posted by geneton at 11:20 AM

junho 09, 2010

JOÃO SALDANHA

DOCUMENTO / JOÃO SALDANHA MANDA LEMBRANÇAS : UM ENCONTRO COM O TÉCNICO QUE “INCENDIOU” A SELEÇÃO BRASILEIRA

A Globonews vem levando ao ar esta semana ( às 19:30, com reprise 7:30 e às 15:30 do dia seguinte) uma série de entrevistas que o locutor-que-vos-fala fez sobre os bastidores do futebol – aqueles lances que o torcedor não vê. O time de entrevistados do GLOBONEWS EXTRACAMPO é de primeira: Ricardo Rocha (Copas de 90 e 94), Carlos Alberto Torres (1970), Leão (74,78 e 86), Roberto Carlos (98,2002 e 2006) e Zico (1978, 82 e 86).

Um nome que invariavelmente é citado em época de Copa do Mundo: João Saldanha, o jornalista que, na pele de técnico da seleção brasileira, abriu o caminho para a conquista do tri-campeonato mundial.

Época de Copa de Mundo é o momento ideal de ouvir o que João Saldanha dizia. Tive a chance de entrevistá-lo.

Voilà :

Guardo em meus arquivos implacáveis a fita (precariamente gravada) de uma entrevista que fiz com um homem que entrou para a história do futebol brasileiro: o cronista esportivo desbocado que virou técnico da Seleção Brasileira. Nome: João Saldanha.

Não era uma figura de “meias palavras”. Ganhou fama de “desbocado”, o que pode ser visto como uma virtude, num país habituado à cultura do ôba-ôba. Assim que assumiu o posto, foi logo anunciando o time titular – imediatamente batizado pela imprensa como “as feras de Saldanha”. A situação de Saldanha no comando da seleção cedo ou tarde criaria desconfortos: era um comunista dirigindo a Seleção Brasileira sob uma ditadura militar.

Terminou batendo de frente com o governo – não por motivos políticos, mas, supostamente, por tentar ficar imune a ingerências indevidas. Telefonei num domingo à noite para a estação de rádio onde ele gravava comentários. Saldanha marcou o encontro para o dia seguinte, no início da tarde, na redação do Jornal do Brasil. Fiquei esperando pelo homem, na recepção. Quando ele chegou, foi direto ao assunto : não era de perder tempo falando sobre as fases da lua. A entrevista poderia começar um minuto depois, numa mesa da redação. Assim foi feito. O caminhar era ligeiramente torto. Usava a camisa por dentro das calças. Fumava.

Sete anos depois, morreria, em plena Copa do Mundo de 1990, na Itália, vítima de um enfisema pulmonar.
E agora, caros ouvintes, vai falar o homem que quer para o Brasil a alegria da geral do Maracanã, vai falar o homem que desagradou o ditador quando era técnico da seleção brasileira de futebol; vai falar o único convidado que teve coragem de ir jantar com o presidente João Goulart numa noite de exílio no Uruguai. A bola é tua, João Saldanha!”.

GMN : Ainda hoje correm histórias de que o afastamento de João Saldanha do cargo de técnico da seleção brasileira de futebol se deveu a motivos políticos. De uma vez por todas, para passar a limpo esse caso: é verdade?

João Saldanha: “De uma vez por todas para você! (em tom irritado). Afirmei e reafirmei e outras fontes metidas no meio também. Claro: na época fui convocado para a seleção brasileira no governo Costa e Silva. E Costa e Silva, estranhamente, morreu no meio do caminho. O governo mudou. Houve uma série de modificações na cúpula. E entrou o governo Médici – que, como precisava de uma frente bem ampla, resolveu usar a seleção, como vários governos usam até hoje. Inclusive o governo Figueiredo usa a seleção. Por exemplo: eu estou chegando da Europa, fui acompanhar jogos de uma seleção brasileira que não representava coisíssima nenhuma, por motivo algum. Nem a Europa dava bola. A não ser na cidade onde a gente estava, a outra cidade ao lado não sabia que a seleção brasileira estava jogando. Isso nunca aconteceu! É jogada política. Naquela época, também.

O presidente … Aliás, não chamo de presidente da República porque costumo chamar de presidentes os que foram eleitos; não os usurpadores do poder. Então, o usurpador do poder naquele momento era o senhor Médici – que desejava popularidade e quis fazer popularidade através da seleção. Não era um bom caminho. Eu não estava de acordo. Nós éramos apenas um time de futebol. Mais nada!

Quiseram impor a convocação de Dario – por sinal, um bom jogador.
Era de alto nível, mas não de tão alto nível como eram os jogadores de que a seleção precisava, como Pelé, um Tostão, um Dirceu Lopes, um Gérson, um Clodoaldo, um Rivelino, um Jairzinho. Embora Dario fosse um bom jogador do ranking brasileiro, não existia lugar para ele nessa turma.
Mas, como Dario era do Atlético Mineiro e o governo naquele tempo precisava uma barretada pra Minas Gerais, quiseram botar Dario à força. Recusei. Puseram para fora Toninho – do Santos – um grande goleador com quase novecentos gols, por causa de uma sinusite. Antônio do Passo e João Havelange diziam: “Pelo amor de Deus, convoque Dario, nem que seja pra ele nem mudar de roupa. Convoque pelo nome, porque vamos ficar bem com os homens e precisamos de dinheiro!”.

Não convoquei. Convoquei até homens de meio-de-campo. Neste momento, entrei num atrito desvantajoso”.

GMN: A pressão do general Médici para ver Dario na seleção brasileira era indireta, através de declarações, ou ele chegou a pressionar diretamente?

Saldanha: “Pressão direta se fazia através dos homens da CBD. Era indireta em relação a mim. A pressão direta era lá com os homens. Diziam: “Ou bota Dario ou sai fora”. Chegaram e me disseram: “João, não podemos agüentar mais! Faça isto!”.

João Havelange dizia: “Pelo amor de Deus, convoque Dario! Convoque pelo nome!” Se convoco Dario, tudo bem. Eu ia me avacalhar! Mas não tenho hábito de me avacalhar. Não me avacalhei. A seleção brasileira, felizmente, ganhou a Copa do Mundo no México, em 70. Se não, eu não poderia nem voltar para o Brasil (N: na época da Copa, João Saldanha já tinha sido substituído por Zagalo).

Quando eu ia sair do Brasil para o México, fui posto para fora do avião no Aeroporto do Galeão, embora tivesse passagem comprada, passaporte, tudo certinho. Tive de ir para o México. para ver a Copa, pelo caminho que Ronald Biggs, aquele ladrão de trem, fez. Fui parar em Port of Spain, via Pará-Paramaribo. Lá, vendem umas passagens estranhas de ida-e-volta, assim numa espécie de falso turismo, porque nem precisa de passaporte nem nada. Avião de vagabundo. Fui parar lá. De Paramaribo, não voltei. Comprei uma passagem com meu passaporte, tudo legal e fui para Port of Spain. Lá, peguei a Pan-American para a Guatemala e, só então, fui para o México. Cheguei três dias depois de quando tinha saído do Brasil”.

GMN: Que argumento usaram para evitar o embarque do senhor no Galeão?

Saldanha: “O argumento da força! Nenhum outro. É o argumento da ditadura. Porque a ditadura faz a lei: “A Lei sou eu”.

GMN: Não houve, então, explicação alguma?

Saldanha: “Não. Dizem: “Não pode ser; o senhor foi barrado”. Digo: “Mas estou preso?”. E eles: “Não”. Ora, eles já me puseram nu no Aeroporto do Galeão duas vezes. Uma vez em 1968, quando fui para o Uruguai e lá visitei amigos que eram exilados políticos. Um foi exilado para o Uruguai junto com meu pai, há coisa de quarenta anos. Casou, ficou por lá. Não era nem exilado! Era um homem que morava no Uruguai. Mas morava embaixo do apartamento de Brizola. Era Brizola no sexto e ele no quinto. Um nem via o outro!

Almocei também com João Goulart – que tinha convidado toda a imprensa para ir almoçar com ele. Ninguém foi. Havia uma mesa para trinta pessoas, mas ninguém apareceu. Só nos dois: eu e João Goulart.

Nós estávamos com uma seleção brasileira, em Montevidéu. João Goulart disse: “Vamos almoçar lá em casa!”. Nunca tinha visto João Goulart na vida; nunca tinha falado com ele. Mas, como eu tinha dito a ele que ia, fui. Aquela foi a primeira vez em que falei com ele, quando fui almoçar, uma conversa trivial. Quando voltei, me botaram nuzinho no Aeroporto, no Brasil. Arrancaram a sola do sapato, descoseram minha camisa, mexeram numa maleta vagabunda que eu tinha levado. Como eu só ia passar dois, três dias, não tinha levado bagagens. E me puseram nu. Fiquei lá horas e horas; cinco ou seis horas”.

GMN ; Nesta viagem, o senhor nem era ainda técnico da seleção, viajava como jornalista …

Saldanha: “Eu era jornalista da Rádio Globo e da TV Globo. Fui lá fazer a cobertura do jogo. Mas, como conversei com João Goulart, o presidente da República. . . Ele era presidente porque tinha sido eleito e foi posto para fora. O Estado não era ele e deu o que deu. Paciência. Tenho 40 anos de janela. Tiro esse troço de letra”.

GMN: O que é que ficou desse encontro com João Goulart, já que foi o primeiro?

Saldanha: “João Goulart no Uruguai nadava que nem peixe na água. Era um grande fazendeiro; o mais rico fazendeiro do Uruguai. Era de uma famosa firma de fazendeiros do Rio Grande do Sul. Sou gaúcho. Conheci a firma de nome. João Goulart tinha uma grande fortuna. Ia e vinha para o Brasil no dia que queria, num avião particular. Descia numa fazenda, no Brasil. Tinha uma fazenda em Goiás, Ilha do Bananal. Era um grande fazendeiro. Batemos um papo alegre e informal. Política? O que é que adiantava entrar em política? “Eu penso isso. . .” Não adiantava pensar! A ditadura estava no Brasil – como até hoje existe uma meia-ditadura. Eu é que te pergunto agora: vai ter eleição direta ou não? Aposto que não vai ter; você aposta que vai ter, sei lá! Por que é que se faz assim? Porque não temos Constituição nem lei nem nada “.

GMN: Ainda a respeito do problema do envolvimento do futebol com política: já apareceram dezenas de sociólogos e antropólogos para tentar explicar o fascínio que o futebol brasileiro provoca no povo. O futebol – afinal de contas – o que é que representa, fora do gramado, para o Brasil?

Saldanha: “O futebol é um ramo da arte popular. O Brasil é um país eminentemente pobre. Para o futebol, basta uma bola. O menino descalço pode jogar. Uma rua, uma bola de pano ou de borracha, uma bola qualquer e pronto: o menino joga. Como esporte de pobre, é evidente que o futebol tem uma transa bem maior com o Brasil do que com a Dinamarca … É só. É uma expressão da arte popular. Todo mundo tem necessidade de expandir a vocação artística em qualquer coisa. Há cantor de banheiro às dúzias e jogador de futebol aos milhões. Poucos, entretanto, conseguem atingir o estrelato”.

GMN; O que é que o senhor diz das teorias de intelectuais que dizem que o futebol no Brasil é um fator de alienação do povo?

Saldanha: “É errado. Futebol não é alienação nem nada: é lazer. E lazer faz parte da vida. O homem precisa -para viver – de casa, comida, roupa; são indispensáveis ao ser humano. Para manter essas coisas, precisa de trabalho. Para viver, precisa de lazer. Precisa caminhar, passear, namorar, se divertir e tudo o mais. O futebol é um lazer que tem uma expressão de arte, como o tênis.

O futebol tem dois aspectos: um, daquele que o pratica – o artista; outro, daquele que o vê – é o torcedor no lazer. O Brasil é um país pobre e tropical, o que permite que este esporte seja praticado o ano inteiro, o que não é o caso da Suécia, norte da Europa nem Inglaterra nem o norte da França, onde não se pode jogar porque faz frio. Mas no Brasil pode-se jogar o ano inteiro- inclusive no Rio Grande do Sul – o lugar mais frio. Lá na Europa não dá, por causa da neve e do gelo. Isso cria uma massa de milhões de admiradores.

Por outro lado, nossa formação etnológica e a etnográfica deu, coincidentemente, ao brasileiro, condições para a prática do futebol. Os músculos flexíveis e aquecidos naturalmente são da nossa própria formação biológica. O negro veio da África como uma das raças mais primitivas: só tinha os braços e as pernas … Você vai dizer: “E o índio?”. O índio já não é primitivo; é anterior ao primitivismo… Então, nossa formação, essa etnologia toda nos permite os músculos e a vivacidade para executar bem esse ramo da arte. Veja bem que digo vivacidade. Nada tem a ver com outro ramo importante da vida que é a cultura. Nós somos paupérrimos em cultura, embora riquíssimos em esperteza e vivacidade. Quando Euclides da Cunha disse “o sertanejo é antes de tudo um forte”, ele deveria ter dito “o sertanejo é antes de tudo um esperto”. . . Não é tão forte não, porque morre cedo”.

GMN: Durante a época do técnico Cláudio Coutinho, a imprensa publicou matérias que falavam na “militarização dos esquemas de trabalho na seleção “. Isso aconteceu?

SaIdanha: “Claro que aconteceu. Quando fui convocado, chamaram também Coutinho, Bonetti e uma série de militares. Tentaram impor um esquema militarista de vigilância e segurança, algo policial. Depois, de fato, quando fui posto para fora, havia seguranças, leões de chácara da seleção. Eram esquemas de homens armados com metralhadoras e o diabo a quatro. E foi ridículo na Argentina, onde deram rajadas de metralhadora num barulho de fundo de quintal que nada mais era do que uma cadela no cio e um monte de cachorro atrás. . . Gritavam:”Pára! Pára! Pára!”. A cadela não entendeu e eles metralharam…. Houve um monte de coisas ridículas assim. Isso ainda existe. Dentro de vários clubes existe este esquema policial. É um derivativo do próprio sistema.

É um sistema policial em que qualquer terceiro escalão aí, qualquer sub-gerente de finanças do subnitrato do pó de mico tem dois, três seguranças. Você olha, vê três homens do tamanho de um armário guardando um cara e, quando você vai perguntar quem é, dizem: “Ah, é o caixa não sei de onde”. . . Bolas! Isso faz parte do sistema – que parece, e felizmente – vem melhorando. Não sei. Ainda estou em dúvida se vamos ter eleições diretas ou se vão ser eleições palacianas de bolso de colete “.

GMN: Quem é o maior responsável pela conquista do tricampeonato mundial de futebol: João Saldanha – que deixou o time pronto – ou Zagalo – que completou a festa?

Saldanha: “Os responsáveis são: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson, Jair, Pelé, Tostão e Rivelino. A minha participação: foi coincidente. Tive a felicidade de encontrar no Brasil uma fertilidade tamanha de jogadores que me obrigava a deixar Ademir da Guia, Edu e outros cracões sem possibilidade de serem convocados. Quem é que eu ia botar para fora, para chamar Ademir da Guia? O Gérson? Rivelino? Clodoaldo? Tostão? Pelé? Quem? Não tinha jeito”.

GMN: Ainda se compram juizes e jogadores no Brasil?

Saldanha: “Só em nível bem apodrecido de fim de carreira é que acontece. O fator corrupção vem desde os mais altos escalões da vida nacional até os mais subalternos. Futebol não é exceção, porque é uma parte da vida social brasileira. O que existe na vida social brasileira existe no futebol também. O tóxico, o homossexualismo e a corrupção existem em proporção igual”.

GMN: Pelé foi sacana quando não apareceu na morte de Garrincha?

Saldanha: “Não, porque Pelé aí ia ser um agente funerário: qualquer jogador que morresse, ele ia ter de comparecer. Pelé até se manifestou da maneira mais simpática, porque estava lá longe, com uma série de compromissos. Tinha de pegar um avião e vir correndo ao Brasil, sem nem saber a hora, o dia nem coisa nenhuma? Se fosse assim, seria um ato demagógico. Não sei, porque eu não estava nem presente. Não fui.
Garrincha era um amigo meu. Fomos companheiros de clube anos e anos. Amigo íntimo, amigo de problemas os mais íntimos. Não pude comparecer nem ao enterro nem à missa nem coisa nenhuma, porque eu não estava no Brasil. Vontade não me faltou- se bem que, particularmente, não goste de enterro. Não tenho vocação de agente funerário. Prefiro a imagem dos amigos vivos.

Pelé foi apenas sincero. Ia vir da caixa-prego para chegar ao Brasil? Então, não seria enterro de Garrincha; seria a vinda de Pelé. Acontece um bocado em enterro de vedetes. Outro dia, durante quarenta e oito horas, no velório de Clara Nunes – que foi velada mais do que o comum – houve um desfile e um show de exibicionismo podre e sujo. A morte seria mais respeitada. . . A morte, não: a vida. A morte…. Morreu, dane-se, acabou, para mim…. Então, a vida seria mais respeitada com uma saudação póstuma, uma manifestação de tristeza através de um pronunciamento discreto, coisas que não são chocantes.
Mas não: a morte de uma vedete hoje em dia é um show de televisão, uma palhaçada. Pelé fez bem em não parti- cipar de palhaçada”.

GMN: Os críticos de Pelé dizem que ele é um gênio dentro do campo e um desastre fora, pelas coisas que ele diz, etc. O senhor – que foi técnico de Pelé – o que é que diz da figura de Pelé fora do campo?

Saldanha: “Concordo em parte. Dentro de campo, Pelé foi um gênio, o maior que conheci. Fora do campo, é um homem comum. Querem que ele seja fora do campo o que ele foi dentro do campo. Isso talvez não seja compatível. Digo francamente, porque não tenho nenhum problema com jogador e ex-jogador nenhum. Nunca tive. Sempre os tratei com respeito e exigi respeito. A vida particular de cada um? Só me preocupava uma coisa: se joga bem, entra no time. Mas, se é homossexual, se é ladrão, se é isso ou aquilo, não sou nem nunca fui crítico de moral para dizer. Sempre entendi que eles fazem parte de uma sociedade tal qual ela é e não tal qual eu desejava que fosse.

Claro que eu desejaria que fosse uma sociedade boa e eles fossem bons em tudo. Não são. Paciência. Não conheci Pelé fora, uma vez ou outra comemos juntos e batemos papo à toa. Toda vez que a gente se encontra é aquilo: “Como vai, chefe?” – ele me chama de “chefe” e eu chamo “ôi, negão”. É papo informal sem maior intimidade.

A crítica que se faz a Pelé traz um bocado de inveja. Um crioulo no Brasil que fica rico é “besta”. Mas com branco rico não existe problema. Paulo César dá uma resposta boa quando perguntam por que é que todo crioulo rico pega logo uma loura. E aí ele diz: “Vamos inverter a posição: por que é que toda loura pega sempre um crioulo rico?”. Então, pombas, vamos ser realistas e enfrentar a vida com a naturalidade que ela tem. Pelé só deve ser tratado como um grande gênio de uma arte popular. O resto não é um problema social, positivamente”.

GMN: Como é aquela história da miopia famosa de Pelé, antes da Copa?

Saldanha: “Pelé, a meu ver, nunca teve problema de vista. Ele enxerga mais do que nós”.

GMN: Como é que surgiu, então, aquela história?

Saldanha: “Ah, não foi minha! Aquela história deve ter surgido dentro do SNI … Quem tinha problema de vista na seleção era Tostão e, ainda assim, fiz Tostão ser convocado à força. Quando ele foi se operar em Houston, no Texas, eu convoquei só vinte e um – e não vinte e dois jogadores, porque sabia que na operação de Tostão havia mais charlatanismo e publicidade do que propriamente uma lesão.

Quanto a Pelé, não tive nenhum problema. Os retrospectos estão aí. Todas as partidas em que fui treinador ele jogou. Nunca fiz um pronunciamento daqueles sobre a vista de Pelé por duas razões. Uma é que seria injusto: sou leigo e não entendo. Nós só tínhamos uma preocupação quanto à boa visão: com os goleiros. Dos goleiros, a gente exige que tenham uma visão igual aos exames que são feitos com os aeronavegadores, os pilotos de aviação. Quanto aos demais jogadores, o campo visual é tão vasto que nós nunca nos preocupamos. O importante é que enxerguem a bola. E Pelé enxergava!

A segunda razão é que não sou burro. Se eu vejo o cara jogar e ser o melhor jogador do mundo, eu vou dizer “não”? Nunca ele foi barrado por mim. Ao contrário: eu o defendia. Houve uma época em que Pelé não era tão querido nem tão publicitário. Era um simples jogador do Santos. E o Santos não “vendia” em São Paulo. Quem vende lá é Palmeiras, é Corinthians, é São Paulo. O Santos, não. É um time de cidade pequena. Então, ele não era bem visto lá.

A onda não era em cima de mim: era em cima de Pelé. Eu e Pelé já conversamos sobre essa coisa e rimos. Digo: foi um troço torpe. Desafio qualquer um que jamais tenha lido ou ouvido de mim qualquer coisa a esse respeito! “Nós tivemos vários jogadores homossexuais da melhor qualidade.Craques que dormiam com homem” Não sou idiota. E por que eu iria fazer algo tão gratuito, se ele não me devia nem eu a ele? Somos bons amigos”.

GMN: A torcida até hoje não engoliu aquela derrota de 3 a 2 para a Itália na Copa do Mundo de 82 na Espanha, os famosos três gols de Paolo Rossi – nem jamais vai engolir. A culpa foi do técnico Telê Santana, foi dos jogadores ou foi de Paolo Rossi?

Saldanha: “Nós jogamos doze copas do mundo. Ganhamos três. A proporção é de uma para quatro. Nossa chance ali na Espanha foi aquela. Nós poderíamos ganhar, mas este é um julgamento subjetivo. Se tivéssemos um time melhor – que contasse com alguém que soubesse jogar pela direita, não tivesse um goleiro tão frágil e tivesse um ataque mais poderoso… Isso tudo são conjecturas subjetivas. Nós não somos obrigados a ganhar todas as Copas do Mundo. É bom que o brasileiro saiba que ele não é absoluto. É bom que o brasileiro saiba que lá fora há times tão bons quanto os nossos – e às vezes melhores. É bom que o brasileiro saiba que a Europa se atrasou perante nós por causa de uma guerra que dizimou quase toda a juventude entre 15 e 45 anos. Isso não se refaz com decreto-lei nem com planos qüinqüenais. É preciso esperar que nasçam outros, formem-se e reaprendam.

A Europa teve grandes prejuízos com a Guerra, o que nos permitiu um avanço enorme. Quando pegamos a Europa em 58 e 62, ela estava, exatamente, num período de decadência esportiva, porque lhe faltou a juventude que tinha morrido na guerra. E foi uma vantagem que nós tivemos.
Nosso futebol, no entanto, é do melhor nível. Nós estamos na primeira turma do futebol mundial, junto com Alemanha, Itália e Inglaterra. Qualquer um dos quatro é primeira turma. Os outros vêm em segundo escalão”.

GMN; Tinha algum perna-de-pau na seleção brasileira de 82, na Espanha?

Saldanha: “Tinha vários “.

Quem são?

Saldanha: “Não gosto de citar. Não adianta nada. Deixe para o critério de cada um. Quando digo que tinha “vários” pernas-de-pau é que tinha mais de três (ri). Se não, eu diria: “Tinha dois ou três! “. Digo: tinha vários, mais de três, a meu ver. Mas, se digo três, acham que havia seis. Se digo cinco, acham que são três. É subjetivo. Havia jogadores ali que não têm nada a ver com seleção brasileira”.

GMN: O senhor conhece algum caso de jogador profissional que tenha sido prejudicado por ser homossexual?

Saldanha: “Nós tivemos vários jogadores homossexuais da melhor qualidade. Quem é que vocé chama de homossexual? O que faz papel de homem ou o que faz papel de bicha? Homossexual é o homem que transa com homem; é a mulher que transa com mulher. Homem que dorme com homem quatro, cinco anos, quem é a bicha? Não. Eu conheci vários craques que dormiam com homem há não sei quanto tempo. Foram vários – e craques! Não estou ligando. Como apreciador e crítico do futebol, deixo para o “Caderno B” – que aprecia o outro lado da coisa”.

GMN: Em que circunstância João Saldanha voltaria a ser técnico da seleção brasileira?

Saldanha: “Em nenhuma. Quando foi um desafio, eu topei. Deu certo, felizmente. Não perdemos e não atrapalhei. Eu saí oito dias antes da ida para o México. Não mexeram no time, as concentrações já estavam arrumadas. Nós chegamos dois meses antes da Copa ao México. Aliás, Copa no México é uma grande vantagem para nós – que podemos parar a vida do país e mandar um time para lá dois meses antes. Quando os europeus chegam, na véspera da competição, já estamos aclimatados e adaptados. Os europeus não.
Além de tudo, contávamos com um elenco maravilhoso. Para mandar 22 jogadores, tínhamos 40. Se eu errasse e, em vez de mandar Rivelino, mandasse Ademir da Guia, não era um erro. Era uma escolha. O nível era igual. O que sobrava de gente… Era uma época de ouro e de apogeu.

Não era vantagem nenhuma, não. Eu achava sempre que era uma barbada, pelas vantagens que nós tínhamos. O Brasil não perderia. Quando o nosso embaixador no México me disse: “Olhe, se não ganhar, você não volta para o Brasil”, eu disse: “Embaixador, é uma barbada… “. O embaixador João Pinheiro me chamou na Avenida Paseo de la Reforma, número 400, para me dizer: “Se o Brasil não ganhar, acho bom que você não volte para o Brasil”.

É que eu tinha dito que havia no Brasil três mil e tantos presos políticos e tinham sido assassinados mais de quatrocentos rapazes e moças, durante a ditadura Médici. Eu disse e saiu no “Observer” da Inglaterra; saiu no “Le Monde”, saiu em um monte de jornais de milhões de exemplares. O governo não gostou. Se o Brasil perdesse eu estava fuzilado (ri). Não voltaria. Não tinha importância: eram mais alguns anos fora do Brasil. Já passei vários e não era mal nenhum”.

GMN: A imagem do general Médici naquela época, com o radinho de pilha no ouvido para ganhar popularidade, incomodava João Saldanha?

Saldanha: “Devia incomodar a ele aquele rádio desligado. Pois, segundo as pessoas próximas, tratava-se de um rádio sempre desligado, o que era demagógico. Isso podia incomodar a ele, porque é chato ficar com o braço levantado fingindo que ouve rádio… E, francamente, não acho que seja atraente. Mas me incomodar, não. Eu estou pouco me incomodando. Não tenho nada pessoalmente com ele. Nem o conheço! Só o vi de longe. Não sei direito como é a cara. Nunca falei com ele nem ele comigo. Quando houve uma reunião em Porto Alegre com ele, chamaram a cúpula da seleção, mas não compareci.

Eu não teria prazer em apertar a mão de um homem que tinha matado vários amigos meus – ou mandado matar ou deixado matar. Não sei nem se foi ele que mandou ou deixou. O caso é que, coincidentemente, trezentos e tantos morreram naquele governo, o mais assassino da história do Brasil”.

GMN: Hoje, nem convocado ou numa situação especial o senhor voltaria à seleção?

Saldanha: “Não vejo no que eu possa acreditar. Prefiro o meu trabalho, em que me dirijo diretamente ao público e com ele converso. Eu iria ficar lá dentro: “Olhe, fulano, jogue aqui ou jogue ali…” “devia jogar fulano e não beltrano!”… É um troço opcional. Para que vou ficar me aporrinhando com essas coisas? Aqui está bom” (olha para a redação do ‘Jornal do Brasil’, no Rio, onde foi feita esta entrevista).

GMN: Mas a torcida sente falta de um técnico como o senhor – que chega e vai logo dizendo qual é o time titular…

Saldanha: “A torcida tem uma opinião internacional. Não pense que fui original, não. Fui um copista, um reles copista. O que fiz é feito em todos os países civilizados do mundo. Nenhum mistério: os homens que dirigem as seleções são homens civilizados; não vão morrer. . . A Inglaterra, desde a guerra até hoje, teve apenas três treinadores. A Alemanha – duas vezes campeã do mundo – teve dois treinadores até hoje, desde o tempo da guerra. E a guerra acabou em 1945! Teve três treinadores; um morreu. A Itália teve dois treinadores até hoje e foi três vezes campeã do mundo. A não ser esses paisezinhos da América do Sul e esses clubinhos aí que trocam de treinador todo dia …

Eu agora fui viajar, passei um mês fora e, quando chego de volta, vejo que mudou todo mundo. O Botafogo agora é um triunvirato; o outro é não sei o quê. . . é um troço ridículo – que expressa bem o sistema”.

Quem é o melhor jogador brasileiro hoje?

Saldanha: “É Zico”.

E Falcão? Também é um jogador completo?

Saldanha: “Um grande jogador. Mas como Pelé e Garrincha, não. Pelé e Garrincha são extra-série. Como Falcão e Zico tivemos muitos: muitos Zizinhos, muitos Gérsons, muitos Didis, Carlos Alberto, Djalma Santos, Nílton Santos, vários magníficos e notáveis jogadores. Só vi, como Pelé e Garrincha, talvez o Di Stéfano, um monstro sagrado. E depois, mais próximos, Puskas, Zizinho, Cruiff. Mas Pelé, Garrincha e Di Stéfano são os três extra-série. Vi Di Stéfano pela primeira vez em 50, 51; vi jogando dez, doze anos. Vi Pelé jogando dez, doze anos. Vi Garrincha uns quinze anos. Tenho opinião firmada e confirmada sobre eles: são monstros sagrados do futebol internacional. Formam na linha dos fora-de-série. Depois, você vem aí com trezentos: Antonioni, Ferrari, Beckenbauer, Shultz, Overheit, Rumenningue, Stanley Mathews…”

GMN: O senhor já disse que a Fifa – um órgão que reúne um número de países-flliados maior do que o da ONU – tem um papel de distensão política a nível internacional. O senhor pode dar um exemplo de como essa “distensão” funciona na prática?

Saldanha: “Ah, posso. A China era isolada do resto do mundo em matéria esportiva. O jogo de pingue-pongue – e aí não era a Fifa – deu uma certa abertura. Depois, em troca de Coca-Cola… São quase um bilhão de chineses. Se cada um tomar meia Coca-Cola por dia, são 450 milhões de Coca-Cola diariamente. Vende mais do que no Brasil no ano inteiro. Então, quando a Fifa botou a China no negócio, vendeu Coca- Cola. A Fifa tem mais facilidade de abertura do que os compromissos políticos, econômicos e de grupos dos países”.

GMN: Dizem as más-línguas que João Havelange foi intermediário da entrada da China na Fifa, porque era intermediário -também – da venda de Coca-Cola. É verdade ou delírio?

Saldanha: “Delírio não é. Mentira também não é. Coincidentemente, dizem que Havelange é representante ou diretor da Coca-Cola e, a um só tempo, presidente da Fifa. Não há mal nenhum. O que o sujeito não pode é ser ladrão. A China entrou e foi bom, porque o isolamento da China, não só esportiva, mas econômica e politicamente, como o de qualquer país, não é bom no contexto mundial”.
GMN: O centroavante Reinaldo – do Atlético Mineiro – diz que a estrutura do futebol brasileiro é fascista, porque beneficia, em primeiro lugar, os patrões. Quais são as propostas de João Saldanha para melhorar esta estrutura?

Saldanha: “Eleições livres e um governo democrático, porque essa estrutura é um reflexo do Brasil. Os desejos de Reinaldo coincidem com o meu. Pinochet fez igual no Chile. É a estrutura da América Latina – não digo que é fascista, porque nós não somos fascistas nem imperialistas. Nosso país não exporta capital. Somos apenas um país de ditadores, os famosos “ditadores da América Latina “. As coisas estão melhorando, há certas aberturas, mas aberturas dimensionadas e controladas.
Quando você pensa que pode dizer tudo, não diz. Determinadas coisas que eu quiser escrever aqui onde você está (N: redação do “Jornal do Brasil”) não saem. Não é que eles vão cortar; eu é que já nem ponho, porque sei que não vai sair. O que Reinaldo quer eu também quero”.

(Entrevista gravada no Rio de Janeiro, 04/07/1983)

Posted by geneton at 11:20 AM

junho 03, 2010

NÉLSON RODRIGUES

ESPECIAL / “AO CRETINO FUNDAMENTAL, NEM ÁGUA”: RELATO DE UM ENCONTRO COM O GÊNIO NÉLSON RODRIGUES (EM DIA DE JOGO DA SELEÇÃO BRASILEIRA !)

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O repórter de 21 anos diante do gênio: ao final da entrevista, um autógrafo num exemplar de "O Reacionário" (Foto:Wilson Urquiza)

Primeiro movimento : o encontro

Meu primeiro, único e último encontro com o gênio Nélson Rodrigues começou com uma dúvida devastadora : por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira ? Não é possível,deve ter havido algum engano – eu pensava “com meus botões”, enquanto caminhava pelas calçadas do Leme,na beira- mar,no Rio de Janeiro,em direção ao apartamento do homem.

Se Nélson Rodrigues escrevia aquelas crônicas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvio que ele não iria dar uma entrevista a um forasteiro pernambucano no exato momento em que a seleção brasileira entrava em campo,no Maracanã,com transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é que ele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguinte ? Não,deve ter havido um grande equívoco. É melhor que eu desista. Nélson não iria dar entrevista alguma num momento tão inoportuno. Ou iria ?

Mergulhado num poço de constrangimento, aperto a campainha.A entrevista tinha sido marcada por telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo, vejo a imagem de Nélson Rodrigues esparramado numa poltrona. Os pés estão fora dos sapatos . Não faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de mangas curtas. Pende na parede da sala uma foto emoldurada de Nélson Rodrigues em companhia de Sônia Braga e de Neville de Almeida – atriz e diretor da versão cinematográfica de “A Dama do Lotação” .

Quando a mulher avisa em voz alta que “o repórter de Pernambuco” estava na porta da sala, Nélson ergue os braços,agita as mãos,saúda o ilustre desconhecido com uma exclamação calorosa,como se reeencontrasse um amigo de infância : “Conterrâneo ! Conterrâneo ! “.

O cumprimento efusivo não afasta o temor de que Nélson tenha cometido um pequeno equívoco : ao marcar a entrevista para aquele horário,ele bem que pode ter se esquecido de que a seleção brasileira iria entrar em campo dentro de instantes. A hipótese pode parecer absurda, mas quem sou eu para menosprezar as possíveis excentricidades de nosso herói ?

Tento uma solução alternativa para escapar de um vexame : digo que posso voltar depois para gravar a entrevista ;não quero importuná-lo na hora do jogo. Teatral, Nélson Rodrigues repousa a mão direita sobre o peito,como se sugerisse uma pontada no coração. Olha para a televisão, pede à mulher : “Tirem o som desse aparelho ! Tirem o som desse aparelho !.O Brasil me faz mal ! O Fluminense me faz mal !”.

A mulher e a irmã de Nélson riem da cena teatral.Hiperbólico,épico,exagerado,o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de que acabo de me transformar em solitário e privilegiadíssimo espectador de um espetáculo teatral chamado Nélson Falcão Rodrigues,encenado pelo próprio autor.

A ordem de Nélson – “tirem o som desse aparelho ! “- é imediatamente atendida. O aparelho de TV fica mudo. A seleção entra em campo : Leão; Toninho,Oscar,Amaral e Edinho; Batista,Toninho Cerezo e Rivelino;Zé Sérgio,Nunes e Zico. Assim,este forasteiro se vê de repente na condição de coadjuvante de uma cena surrealista : diante de uma TV sem som que transmitia o jogo da seleção brasileira contra o Peru, o autor das mais brilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasileiro simplesmente tira os olhos do vídeo para responder ao interrogatório de um visitante que chegou em hora inconveniente,munido de um gravador e um bloco de anotações.

Improvisado como fotógrafo,o também pernambucano Wilson Urquisa vai flagrando,com uma velha Olympus,as poses teatrais de Nélson Rodrigues.Se houvesse justiça nesta República,uma lei deveria determinar que,depois de Nélson Rodrigues,ninguém deveria escrever sobre futebol no Brasil. Porque é extremamente improvável que um candidato a sucessor consiga igualar o brilho do texto deste pernambucano que passou quase toda a vida exilado no Rio de Janeiro.

A coleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia. Rui Castro organizou,para a Editora Companhia das Letras,um volume que reúne,sob o título de “Flor de Obsessão”,as “mil melhores frases” do homem. Se quisesse, reuniria três mil, como estas vinte :

“O brasileiro é um feriado “.

“O Brasil é um elefante geográfico. Falta-lhe, porém, um rajá, isto é,um líder que o monte”.

“Sou a maior velhice da América Latina.Já me confessei uma múmia, com todos os achaques das múmias”.

“Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes,ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf”.

“O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”

“Na vida,o importante é fracassar”

“A Europa é uma burrice aparelhada de museus”.

“Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar.O repórter mente pouco,mente cada vez menos”.

“Daqui a duzentos anos,os historiadores vão chamar este final de século de “a mais cínica das épocas”.O cinismo escorre por toda parte,como a água das paredes infiltradas”.

“Sexo é para operário”.

“O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História”.

“A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”.

“Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos”.

“As grandes convivências estão a um milímetro do tédio”.

“Todo tímido é candidato a um crime sexual”.

“Todas as vaias são boas,inclusive as más”.

“O presidente que deixa o poder passa a ser,automaticamente,um chato”

“Não gosto de minha voz.Eu a tenho sob protesto.Há,entre mim e minha voz,uma incompatibilidade irreversível”.

“Sou um suburbano.Acho que a vida é mais profunda depois da praça Saenz Peña.O único lugar onde ainda há o suicídio por amor,onde ainda se morre e se mata por amor,é na Zona Norte”.

“O adulto não existe.O homem é um menino perene”.

Fui testemunha ocular de uma verdade inapelável : Nélson Rodrigues era um cronista tão perfeito que nem precisava ver o jogo. O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores,os esquemas táticos,todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio. A Nélson Rodrigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de beques ou atacantes no retângulo verde. O relato dessas banalidades é tarefa que cabe aos “idiotas da objetividade” – estes pobres seres que só são capazes de enxergar a rala superfície dos fatos.

A missão que Nélson Rodrigues outorgou a si mesmo era outra : traduzir em palavras a dimensão épica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que,então,perder tempo com miudezas ? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV ? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru ? Para que saber se o meio-de-campo do Brasil estava ou não estava inspirado ?

- “Em futebol ,o pior cego é o que só vê a bola.A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana.Às vezes,num córner bel ou mal batido,há um toque evidentíssimo do sobrenatural”, ele escreveu uma vez.

Nélson Rodrigues preferia se ocupar de questões metafísicas – como,por exemplo,a inapetência de nossos escritores brasileiros em tratar do futebol.Numa de suas tiradas clássicas,reclamou :

- Nossa literatura ignora o futebol -e repito : nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral.

A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados em nossos jornais. Virou lugar-comum dizer que Nélson Rodrigues reclamava de que nossos escritores não sabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão. A implicância de Nélson era com literatos incapazes de cobrar um lateral. Mas, a bem da verdade, os que deturpam a queixa de Nélson não estão inteiramente errados : não apareceu ainda um escritor brasileiro capaz de bater um escanteio ou um lateral…

Alheio a esta fraqueza nacional,Nélson parece distante da disputa que se desenrola,ali,diante de nós,no vídeo da TV,entre a seleção brasileira e o escrete peruano. Faz ao repórter uma pergunta incrível : “Quem é o nosso adversário hoje ? “. Informo que é o Peru.

Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário.Quando Zico faz um a zero,aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo,Nélson interrompe a entrevista para inaugurar,aos brados,uma nova expressão exclamativa :

- Que coisa beleza ! Que coisa beleza !

Depois, pede à família : “Pessoal, com licença dos nossos visitantes, vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso”. Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que “fechar a máquina” significa desligar a televisão – o que, aliás, não foi feito.

Nélson dispara, então, um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho :

- Mas esses rapazes são uns gênios ! Uns gênios !

O repórter seria novamente surpreendido. Nélson já perguntara quem era “nosso adversário”. Agora,ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto : “Mas já houve dois gols ? “. Digo a ele que não : é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah,sim !”.

Teria dois outros motivos para vibrar : o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes – faria dois gols,aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo,para fechar o placar : Brasil 3 x O Peru. (Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nélson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver ? Eis :

- Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz.Mas não quero ter fantasias esplêndidas.O jogo Brasil x Peru,ontem,no Mário Filho,não assustou a gente.Diz o nosso João Saldanha : “O Brasil fez seu jogo,jogo brasileiro”. Vocês entendem ? Não há mistério.O brasileiro é assim.Quando um de nós se esquece da própria identidade,ganha de qualquer um.Outra coisa formidável : na semana passada,um craque nosso veio me dizer : “Nélson,é preciso que você não se esqueça : ao cretino fundamental,nem água”. O jogo foi lindo”.

O homem não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotas da objetividade” se encarregariam de registrar,nas páginas esportivas,o jogo real. Porque o jogo de Nélson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais ? “Aos cretinos fundamentais, nem água”. A lista de surpresas nessa tarde no Leme não se esgotaria aí.

Quando deu por encerrada a entrevista,Nélson pergunta ao repórter :

“E então,você me achou muito reacionário ? “.

Não,claro que não. Em seguida,pega o telefone,liga para a cozinha do Hotel Nacional,identifica-se e faz uma pergunta a um maitre provavelmente atônito :

- Companheiro,aqui é Nélson Rodrigues. Qual é o prato do dia ?

Ouve a resposta em silêncio,desliga o telefone. Recolhido ao sossego do lar,no fim de tarde de um feriado,já parcialmente debilitado por doenças que lhe encurtavam o fôlego, Nélson jamais se animaria a ir até o Hotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fez questão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê ?

As cenas que Nélson Rodrigues protagonizou nesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista. Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dispensa ao repórter um tratamento afetuoso : chama-me de “meu bem”. Alheio ao eventual cansaço de Nélson, estico a conversa até o limite máximo. Não quero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as tiradas do cronista inigualável.

A irmã do gênio é que, delicadamente, interrompe o questionário no instante em que Nélson fez uma pausa para engolir uns comprimidos.Ao autografar o exemplar do livro de crônicas “O Reacionário” – consultado durante a entrevista – Nélson Rodrigues oferece-me uma dedicatória dúbia : “A Geneton,amigo doce e truculento – Nélson Falcão Rodrigues”.

A entrevista foi gravada no dia 1 de maio de 1978. Ouço novamente a fita, releio a transcrição da entrevista. Confirmo que Nélson Rodrigues é um caso raríssimo de escritor que falava como escrevia. Só há outro caso : Gilberto Freyre. Transcritas, as entrevistas dos dois em certos momentos se assemelham aos textos que escreviam, o que é uma façanha : a linguagem falada normalmente é mais pobre que a linguagem escrita.Mas a regra – guardadas as naturais diferenças entre o que se fala e o que se escreve – nem sempre valia para os dois.

A entrevista foi embalada por citações ao livro “O Reacionário”, lançado por Nélson meses antes. Durante toda a entrevista, Nélson fez, repetidas vezes,citações a histórias e personagens descritos em “O Reacionário”.

De vez em quando, entre uma resposta e outra, ele mudava repentinamente de assunto; parecia afogado em divagações. Chegou a reclamar : “Eu estou tendo lapsos lamentáveis….”. Assim, frases de “O Reacionário” complementam,nesta entrevista,as respostas gravadas por Nélson Rodrigues.Os melhores momentos do diálogo improvável entre Nélson Rodrigues – o gênio que se intitulava “a flor da obsessão” – e o repórter intruso :

Segundo movimento : a entrevista

GMN : Quando foi que Nélson Rodrigues descobriu que nascera para escrever ?

Nélson : “A coisa é a seguinte : escrever para mim,muito mais do que uma decisão profissional,é um destino.Escrever é o meu destino ! Não é um caso de opção.Eu só tinha esta opção,uma vez que nasci assim”.

GMN : O senhor se considera um escritor por vocação ?Nélson : “Digo que,no meu caso,eu nem precisava de vocação,porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante ! Eu tinha de ser aquilo. Se você chegasse junto de mim e pedisse para eu ter outra profissão,podia até dar dinheiro para que eu tivesse outro destino,não seria absolutamente possível”.

GMN : O início foi com ficção ou com jornalismo ?

Nélson : “Eu estava no quarto ano primário na Escola Prudente de Morais. Uma dia, a professora – que mandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estampa,para que nós,alunos,fizéssemos em torno da vaca toda uma história – disse : “Olhem aqui : Hoje,vocês vão ter de escrever da próprio cabeça. Agora não é mais sobre a vaca pintada”. E então deixou que cada um de nós fizesse o seu drama,o seu projeto dramático.
Duas histórias tiveram o primeiro lugar.A do meu adversário era um a história de um daqueles magnatas que davam passeios.Ele descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito.E pronto.A minha foi inteiramente diferente.Eu fiz a história de uma moça que era uma fera.Quase uma dama do lotação.Um dia,o marido chega em casa mais cedo e,quando empurra assim (imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta) . Entra em casa,segura o amigo traidor e enfia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empatamos.O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma concessão ao convencional.Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista.Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobre adúltera que morreu de maneira tão melancólica.O traidor morreu também de maneira melancólica : direi,a bem da verdade,que a minha história causou um horror deliciado.Eu era,para todos os efeitos,um pequeno monstro.
Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter : esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça…”.

GMN : Para o senhor – que é considerado um mestre nesse ofício – o que é necessário para retratar, num texto teatral, o mundo desses personagens suburbanos das nossas cidades?

Nélson : “Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcionista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro chamamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Não é apenas uma facilidade, mas um destino” (pronuncia em tom dramático esta palavra)

GMN : A inspiração é uma entidade que existe para o senhor?

Nélson : “O negócio da inspiração é o seguinte : eu considero a inspiração,ao contrário de Valèrie, que só via a máquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisa que o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com a experiência”.

GMN :Dentre as peças que escreveu, qual a que o senhor considera como definitiva, como a obra acabada do dramaturgo Nélson Rodrigues?

Nélson : “O mais importante para mim,até o momento,é o dramaturgo. Volta e meia, me sinto muito perplexo diante de certas manifestações que me induzem ao teatro, embora o teatro tenha um defeito : tenho de vez em quando vontade de fazer certas experiências não teatrais dentro da área de literatura, mas sem ter nada de dramático”.

GMN : Dentre as peças já escritas,qual é a predileta?

Nélson : “ Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo que são todas as prediletas.Não tenho prediletas(ri). Todas são favoritas. Já pensei muito em querer discriminar qual a minha melhor peça, mas não sei”.

GMN : Que autores brasileiros de hoje o senhor considera como verdadeiros artistas do teatro?

Nélson : “Vou pular esta,porque tenho autores que são inimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Um autor que é um amigo tem todos os defeitos…”

GMN :O senhor diz sempre que “a admiração corrompe”. É o caso ?

Nélson :“É isso, é o caso. A admiração corrompe. O amigo que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa nenhuma, porque, ele próprio, não consegue se prender. Então,começa a fazer insinuações e etc…Como eu sinto, evidentemente, o nosso amigo, o inimigo, com a maior facilidade, então eu prefiro o inimigo” (ri).

GMN : Se o senhor fosse levado a fazer uma hipotética opção entre o teatro e o jornalismo, qual dos dois preferiria?

Nélson : “O teatro ! E não é um problema de qualidade intelectual não”.

GMN : O jornalismo brasileiro continua padecendo de objetividade? – que o senhor considera uma “doença grave”?

Nélson :“O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental”.

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Nélson Rodrigues se queixa, na entrevista: "Ninguém quer morrer, ninguém quer se suicidar" (Foto:Wilson Urquiza)

GMN : Quais foram as causas da ocorrência desse culto à objetividade que, no conceito do senhor, corresponde à falta de emoção?

Nélson : “Pois é, é esse o negócio (ri de novo). É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. Olhe aí (e mostra a crônica “A Desumanização da Manchete”):O “Diário Carioca” não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy-desk, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do “Jornal do Brasil”. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o “Jornal do Brasil” e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete”.

GMN : A ausência de um ponto de exclamação numa manchete faz falta ao leitor comum?

Nélson : “Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância,havia primeiro o “Correio da Manhã”, um jornalaço. E havia “A Noite” – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. “A Noite” era um jornal amado (acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava “A Noite” disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: “Morreu cantando” (a essa altura, Nélson Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer.
A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira”

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Nélson Rodrigues: "O bom do brasileiro é que, sem saber de nada, ele diz coisas horrendas" ( Fotos: Wilson Urquiza)

GMN : Que fatos ou situações brasileiras o senhor contemplaria com um ponto de exclamação numa manchete de jornal?

Nélson : (pensativo, com olhar distante) – “Deixe-me ver… O negócio é o seguinte: houve num desastre uma coisa atroz que foi uma explosão. Morreram seiscentos sujeitos, segundo as manchetes da ocasião. Todo mundo fazia coro… E outro caso de repórter que não era idiota da objetividade: o sujeito foi fazer a cobertura de um desastre de trem. Geralmente, em desastre de trem, morria gente pra burro. Agora, morre muito menos, não sei porque.Mas qual é o fato ? Deixe-me ver…Ah, o suicídio de Getúlio Vargas foi de uma brutalidade incrível. Uma coisa bonita é que foi uma coisa misteriosa, aí é que não entrou objetividade nenhuma. Morreu, então o cara passa a ser um deus. O que é que você pode fazer contra o cara? Deu um tiro no peito, ia ser deposto. E só porque ia ser deposto ele se mata.Veja só: no princípio da minha infância havia o pacto de morte. Havia sujeitos que se amavam tanto que já não suportavam mais o próprio amor. Então, o que fazia ele? Propunha à pequena o suicídio, um pacto suicida. Rara era a pequena que duvidava. O lindo era a vontade, o encanto com que esse par de amorosos se matava e cumpria o seu destino. Esse é que é o caso”.

GMN : Quer dizer então que na história recente do Brasil o suicídio de Getúlio Vargas seria o último grande fato que mereceria um ponto de exclamação do senhor numa manchete de jornal?

Nélson – “Olhe: quando eu digo merecer a manchete de jornal… (interrompe, olha para a televisão, comenta a iminência de um gol da seleção brasileira, distrai-se, retoma a conversa de um ponto anterior). Você compreendeu como é o caso? Antes de certo tempo aí, achavam que era uma coisa gravíssima o sujeito se matar, era uma covardia. E nem ele nem a menina acreditavam que isso fosse um defeito, o defeito de se matar: alguém ter o direito de destruir o próprio amor e o amor do outro. Mas os dois se destruíram. O sujeito achava que era uma maneira de coroar o próprio amor.
Agora, a nossa realidade está realmente muito pobre, muito vazia, sem um certo apelo dramático. Ninguém hoje quer morrer, ninguém quer se suicidar ! . Ali o sujeito só queria destruir o amor. E aí a sogra ia cuspir na morte do sujeito que lhe matara a filha”.

GMN : O senhor lê a chamada imprensa alternativa?

Nélson – “Alternativa o quê?”

GMN : A imprensa alternativa, esses novos jornais que têm surgido, o senhor lê ?

Nélson : “Eu leio de vez em quando mas não faço questão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal não é o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leio um jornal que não seja rigorosamente o jornal da véspera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do próprio dia. São fatos da véspera , figuras da véspera. O fato do dia não existe e ou só existe para rádio e as TVs. No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal. E assim o marido que matava a mulher e a mulher que matava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o dramatismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia, entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ou privada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de moda do que charleston, do que o tango”.

GMN :Não há nenhum fato do dia…

Nélson – “Pelo menos a gente tem essa impressão. O que nós chamávamos antigamente de furo não existe mais. Todos hoje acham que podem viver sem o furo, ao passo que, no meu tempo, quando eu era garoto, um furo de reportagem era tudo. Era o grande momento da carreira.Agora, para falar de manchete, outro fato formidável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São Francisco era o local próprio para o sujeito se manifestar. E quando havia muitos interessados em se manifestar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fizeram uma coisa qualquer com o chefe de polícia. E o chefe de polícia – que era um santo – assinou uma portaria proibindo os estudantes não sei de quê nem ninguém sabe. Tudo que houve foi por conta da falta de bossa, da falta de inteligência dos nossos queridos estudantes. E então os estudantes resolveram fazer um “enterro” do chefe de polícia – que era um velho general, sujeito que acreditava em honra, num tempo em que ninguém sabia o que era honra. O general era um santo homem e então achou que aquilo era brincadeira de estudante. E lá foi ele dizendo aos queridos investigadores que não queria machucar ninguém. Nada de bala, nada de punhal, dizia o nosso general. E no dia do “enterro”, os estudantes carregavam o caixão, todos levando uma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polícia, furiosos com a questão, simplesmente acharam de matar três estudantes. Aí foi aquela coisa tremenda. Houve então uma manchete, a manchete mortal da imprensa brasileira. Um jornal descobriu uma manchete fantástica (muda a flexão de voz, entusiasmado). A manchete quase derruba a presidência da República, a vice-presidência, o chefe de polícia imediatamente se demitiu, foi embora, não quis mais nada, achando-se culpado. Inventaram uma manchete que até hoje eu gosto de ouvir…”

GMN : Qual foi?

Nélson : “Era assim: “Primavera de Sangue” (pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quase derruba o presidente da República, o ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete. Quero dizer que, se você quiser, com uma frase bem trabalhada, você resolve o caso.”

GMN : De quando foi essa manchete?

Nélson : “Eu era garoto, tenho agora sessenta e cinco anos. E foi na altura dos meus dez anos. Agora, eu sei disso tudo pelas informações do pessoal. O cara que fez esta manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil réis. Só o Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião (ri)”.

GMN :O senhor se interessa por política partidária?
Nélson : “Eu não sou ninguém para dizer certas coisas, mas o bom no brasileiro é que ele, sem saber de nada, diz coisas horrendas”.

GMN : Quais são os políticos brasileiros que o fascinaram ou fascinam hoje? Existe algum nome que o senhor queira citar?

Nélson (Pausa de alguns minutos, ele está pensando) : “Num desses momentos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado, porque para achar um sujeito, poder dizer um político interessante… Eu acho que só Napoleão Bonaparte ! (ri)”.

GMN : O senhor já disse que um dos traços do caráter nacional é o fato de que o brasileiro adere a qualquer passeata. Quais seriam os principais traços do nosso caráter nacional?

Nélson : “O brasileiro é um tipo gozadíssimo. O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque, senão, cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério porque este negócio de viúva vocacional é um fato. Há realmente um repertório sensacional de casos. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Houve um tempo em que nem o Departamento de Pesquisa do “Jornal do Brasil” sabia quem era o brasileiro.Mas se um sujeito se apresentava como brasileiro, as pessoas de bem respondiam: “Não te conheço!”. E muitos duvidavam que o Pão de Açúcar ou o poente do Leblon fossem brasileiros. Olhe: houve tempo em que a mulher mais séria do mundo, mais digna, mais respeitável se deixava envolver por um poeta, se abandonava por um soneto. Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorou da minha tia Yayá. E se você perguntar “Qual foi o maior homem que você viu no mundo?”, eu acho que esse tio está no segundo ou terceiro lugar, porque o desgraçado, ele amava a minha tia Yayá. Ele já não precisava mais beber para estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso, fazia uma considerável economia de dinheiro… Em minha família houve um bêbado indubitável, foi este meu tio Chico. Como sujeito que bebe muito, ele durou pra burro. Morreu com oitenta e tantos anos, sempre bêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigo o meu horror ao bêbado. Mas ele me ensinou também uma série de coisas lindas. Por exemplo: o amor. Meu tio Chico me ensinou a amar. Embriagou-se em cada minuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante e depois. Yayá costurava para o casal não morrer de fome. Mas eu, menino, queria amar e ser amado como esse alcoólatra enlouquecido. Era um amor que hoje não existiria. A minha tia Yayá deu graças a Deus que ele tivesse se apagado. Agora ninguém ama mais, eis o que comecei a descobrir desde os treze anos de batalha. Você ponha aí: o meu tio Chico e sua bem amada Yayá. Era um negócio impressionante.”

GMN : Por que é que o senhor diz, desse jeito, que hoje ninguém ama mais ?

Nélson : “Meu bem, se a evidência objetiva e espetacular vale alguma coisa, o homem não ama mais. E não ama mais porque o nosso cenário se povoa de sujeitos que são débeis mentais absolutos. O sujeito já não acredita em amor, pra começo de conversa. Não acredita em amor. O sujeito acha que todo mundo é a mesma coisa, e apesar disto, se diz marxista. É uma coisa esterilizante que há na vida brasileira, sobretudo carioca. O carioca é esse sujeito fascinante só na base dos defeitos que tem. Arranja logo casamento e é uma besta. E todo mundo diz: “Oh, que coisa, que amor!”. E eu me lembro de uma menina grã-fina mesmo… Aliás, diga-se de passagem que eu não acredito na existência da grã-fina nem do grã-fino. Dou-lhes este nome. Mas é incrível esse negócio da mulher moderna (fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento). Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco feminina. Eu tive um cachorro, o nosso querido Boogie-Woogie, que ficava diante da minha casa amando sua querida cachorra. Ela ficava lá, digníssima, empinada, recebendo as homenagens. Os carros passavam e achavam o cachorro louco. E esse nosso amigo, o cachorro, era muito mais humano que a mulher dos nossos tempos. Elas se meteram a bestas”.

GMN : O brasileiro continua sendo um “Narciso às avessas que cospe na própria imagem”, como o senhor dizia?

Nélson – “Continua, continua !”.

GMN : Qual é o remédio para isso?

Nélson : “O remédio para isso? Nunca. Para isso não há remédio. Veja que o Brasil ganhou três vezes o campeonato mundial. Se ganhou três vezes, e se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo, tudo salvo. Ganhou três vezes no futebol, feito como esse ninguém teve e não se conhece isso.
O brasileiro tem virtudes. É bom fazer uma ressalva nesses defeitos que digo. Isso o torna extremamente simpático. Aquela volubilidade… O sujeito ora ama aqui, ora ama ali… Vai lá pra chegada do trem elétrico, vai arranjando os seus amores que, aliás, duram geralmente vinte e um dias, quando duram. Há pessoas que casam e lá na sacristia estão os convidados fazendo apostas sobre a duração daquele casamento. E você pode ficar sossegado porque aquele casamento está inteiramente liquidado antes do começo. Há amores, entendeu, que o sujeito traz consigo e realmente são sinceros. Mas evidentemente, não existe este amor, porque o nosso querido Brasil…Olhe: em 1958, quando o nosso querido Brasil voltou campeão da Copa, foi o maior futebol que jamais se viu…” Diga-se de passagem que eu considero o brasileiro o maior sujeito do mundo. O europeu já está esgotado. O europeu tem na casa dele pires de mil anos. Escadas de mil anos. Tudo é velho pra burro. Já com o brasileiro é inteiramente diferente. É como se ele estivesse sempre há quinze minutos do fato. Um negócio genial. (Nélson tinha mudado de assunto;volta ao futebol) Basta o sujeito passar quinze minutos assistindo a um jogo importante desses camaradas. Esses rapazes são uns gênios. Mas o sujeito pensa que isso não é importante e sai, nem liga. Mas quando o negócio vai se transmitir em forma de gorjeta, aí então o brasileiro é um feroz…”

GMN : O senhor diz também que a paisagem dos países desenvolvidos é triste sem imaginação…

Nélson : “É. Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, costumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. É trágica a falta de imaginação da paisagem no país desenvolvido. O desenvolvimento é burro, ao passo que o subdesenvolvimento pode tentar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida.O diabo é que o Burle Marx, no Brasil, faz o que nem o europeu faria lá. O nosso Burle Marx retira a flor da paisagem. Dizem que o Amazonas é a coisa mais gigantesca do mundo. O nosso Burle Marx só usa uma cor, a verde, e danem-se as outras cores. Fiz esta anotação e ele me disse numa entrevista dele que o teatrólogo Nélson Rodrigues, com certeza, não estava olhando para a paisagem, não viu outra cor, se não a verde. Fui espiar lá e, realmente, o único paisagista do Aterro do Flamengo é o Exército, porque acrescentou, ao Monumento dos Pracinhas, algumas flores, umas dezessete flores. O paisagista foi o ministro da Guerra. O nosso querido Burle Marx, a quem muito admiro, não pôs flores no Aterro, e com a maior tranqüilidade do mundo. Não precisa prestar atenção… O negócio das cores… (Nesta altura da conversa, ele ri e confessa: “Eu estou tendo lapsos lamentáveis…”).Você sabe o que é o sujeito fazer uma bobagem e negar a verdade? Se ele aceitar o erro, está bem. Agora, quando o sujeito fica impune… A impunidade faz de um São Francisco de Assis um canalha. Ele comete um ato e ninguém o prende, ninguém o ameaça, sequer.É este o caso de Burle Marx. Como ele está faturando cada vez mais, não liga por ter feito um jardim onde só existe uma cor e onde não tem uma violeta. Ele está cada vez faturando mais, e mais fiel aos seus erros, porque descobriu que o erro está muito mais perto do êxito. Já falei pra burro, agora você está satisfeito, não é? E vai querer continuar…”

GMN : Agora, uma explicação para as causas do rancor e da ironia feroz que o senhor cultiva diante de seus personagens, como por exemplo, “as verdadeiras grã-finas”

Nélson : “O que eu acho é que a gente diz “grã-finas” sem achar que elas tenham obrigação de agir como grã-finas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonieta podia dizer: “Ah, eu sou grã-fina…”. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácio e ela disse: “Se não tem pão, comam brioche”. Então, a Maria Antonieta é que poderia bradar: “E, portanto, eu posso dizer que sou grã-fina”. Ela derrubou um erro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina do mundo é a Maria Antonieta. De então para cá nunca mais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina paulista que é gorducha, porque tem dinheiro à beça para comer. E come. Mas não existe. A nossa querida grã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro, e está furiosa porque não tem, então assume diversas atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: ”Na minha casa, só as criadas vêem televisão”. As grã-finas não existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.”

GMN : E as “estagiárias de calcanhar sujo”?

Nélson : “Já as estagiárias têm uma existência feroz…(ri, acentua o tom de voz). Sobre nossa querida estagiária, eu vou te dizer o seguinte: é incrível. Meninas que não serviriam para babá nem poderiam entrar num cinema para ver filme francês ou meu próprio filme, a “ A Dama do Lotação”, fazem atitudes que os bocós consideram geniais.O que assombra na estagiária não é a sua graça pessoal, mais discutível, menos discutível, segundo cada caso. O que me assombra são as suas perguntas e repito: são as perguntas que tornam a estagiária um ser tão misterioso e absurdo como certas imagens de aquário. Uma dessas meninas irreais de redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster ou um santo ou, simplesmente, uma dessas velhas internacionais que embarcam em todos os aeroportos. E perguntar: “Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pílula?”Você veja: uma delas foi incumbida de entrevistar um milionário. Ligou para a casa do milionário, disse: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. Do outro lado, uma voz responde: “Dr. Fulano não está passando bem”. E a menina insiste: “Então, pergunta a ele se…”. Desligam e a estagiária disca novamente, não com o dedo, mas com o lápis: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. A pessoa diz, desatinada: “Minha senhora, o Dr. Fulano acaba de ter um enfarte. Enfarte, minha senhora, enfarte. A senhora quer que eu diga mais do que estou dizendo?”. E a estagiária: “Vai lá e pergunta a ele o que é que ele acha da pílula. Eu espero”.A família do enfartado toda se descabelando… o que, aliás, é raro, porque, no nosso tempo, a família chora muito pouco. O inimigo da morte – que é o clínico – dá logo um furioso calmante.
A estagiária então liga novamente. Dá sinal de ocupado. Continuou, com uma obstinação fatalista. E sempre ocupado. Uma hora depois, atendem. Era uma mulher que ou estava gripada ou chorando. A estagiária diz: “Por obséquio, eu queria falar com o Dr. Fulano”. Responde a voz feminina: “O Dr. Fulano acaba de falecer”. E a estagiária: “A senhora diz a ele que é só uma perguntinha”… e etc.Agora, há um dado que me parece essencial. As entrevistas das estagiárias têm uma virtude rara: nunca saem. Falo por experiência própria. Quase todos os dias, uma estagiária me caça pelo telefone. E eu falo sobre todos os temas e personalidades. Opinei sobre os Kennedy, João XXIII, o Kaiser, Gandhi. No dia seguinte, abro o jornal e vejo que não saiu uma linha. Mas uma coisa curiosa: não só as estagiárias. Profissionais da melhor qualidade estão seguindo a mesma linha. Posso dizer que a nossa imprensa criou o novo gênero de entrevistas que não serão publicadas nem a tiro”.GMN : O que é que o Recife significa para o senhor hoje?Nélson : “Eu gosto do Recife pra burro. Vim de lá aos cinco anos de idade. Fiquei lá até o ano de 1929. Você veja: me dá pena estar pensando no Recife e nunca ir lá. Tenho, em minha memória profunda, um apelo de pernambucano pelo Recife”.

GMN : O senhor não pensa em voltar?Nélson : “De vez em quando eu faço evocações……(Um dos textos de “O Reacionário” traz lembranças da cidade ) Toda a minha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir”.

GMN : O senhor não volta ao Recife porque tem medo de avião?

Nélson : “Acho chato viajar de avião, não quero voar, a não ser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil”.

GMN : Qual foi a última vez que o senhor esteve no Recife?

Nélson : “Em 1929. Tenho um sadio horror de avião”.

Posted by geneton at 11:20 AM