março 26, 2011

FLÁVIO TAVARES

O DIA EM QUE O GUERRILHEIRO CHE GUEVARA DECRETOU : “VOCÊS, BRASILEIROS, FAZEM MILAGRE…”

che-com-brizola-0439_0441.jpg

Brizola com Che Guevara: diálogo uruguaio (Foto: Flávio Tavares)

A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS (com reprise no domingo, ao meio-dia e meia), a entrevista que o locutor-que-vos-fala fez com um brasileiro que viu, ouviu e fotografou o guerrilheiro Ernesto Che Guevara durante a conferência pan-americana promovida no Uruguai, em 1961. O brasileiro se chama Flávio Tavares. É jornalista dublê de fotógrafo. Deve publicar, no segundo semestre, um livro que reúne todas as fotos que tirou naquela expedição uruguaia – e as lembranças que guardou do Che. A revolução dos barbudos já tinha triunfado em Cuba. Nomeado ministro da Indústria e Comércio, o argentino Che Guevara desembarcou no Uruguai como estrela da conferência. O então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, fazia parte da delegação brasileira. Flávio Tavares tinha um bloco de anotações na mão e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Atuou como intermediário de um encontro entre os dois. Não imaginava que Che Guevara iria se transformar em mito – hoje, aliás, submetido a uma revisão histórica que corrige uma quimera: o Che não é apenas o jovem médico que um dia sai de casa, na Argentina, romanticamente, para semear revoluções pelas serras e cordilheiras da América. Era, também, um comandante “implacável” que participou de execuções de adversários. Flávio faz uma ressalva: ali, naqueles encontros no Uruguai, Che ainda era, aos olhos de um jovem como ele, apenas o “herói” que se embrenhou nas montanhas para combater uma ditadura que transformara Cuba em quintal dos EUA. Um trecho da entrevista:

Qual foi o comentário mais surpreendente que você ouviu de Che Guevara ?

Flávio Tavares: “Perguntei o que era importante para um combatente, na guerrilha. O Che disse assim: “Os pés!”. E começou a bater nas botas e a descrever a importância dos pés para um combatenbte: os pés que nos levam para a frente, os pés que nos fazem retroceder, os pés que nos animam, os pés que nos fazem correr, os pés que nos fazem esperar. Faz este elogio e esta espécie de elegia aos pés.

Um detalhe estranho coincide com esta visão surpreendente: a de um comandante guerrilheiro que, como ministro de Estado, estava naquela conferência internacional como o grande astro - e dizendo que os pés é que eram importantes. Quando Che já estava na Bolívia, na travessia de um rio, a balsa é levada pela correnteza e ele perde as botas guerrilheiras..Não havia botas de reposição. Os guerrilheiros, então, matam um animal do campo e ele faz, com o couro cru, uma espécie de “sandália romana” que enrola nos pés. E é com estes pés, enrolados numa “sandália romana”, que ele é capturado na guerrilha. Porque ele tenta saltar de uma rocha para outra mas, traído pelos pés, ele cai. Ou seja: ele tinha razão. O fundamental eram os pés. Surpreendente mas concreto”.

Como se deu o encontro que você organizou entre Leonel Brizola e Che Guevara ?

Flávio Tavares: “O presidente do Uruguai oferece, em casa, em Punta Del Este, um churrasco para Che Guevara, com toda a delegação uruguaia. Convida só um estrangeiro: o jovem governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que, ali, era o conselheiro especial da delegação brasileira, nomeado pelo presidente Jânio Quadros. O presidente uruguaio queria reunir os gaúchos: Uruguai, Argentina, Rio Grande do Sul. Brizola perguntou a Che como era Cuba, onde é que ficavam as minas de níquel sobre as quais Che Guevara se referia. Che explica de uma maneira engraçada. Brizola pergunta “Ficam no norte ou no sul? “. Che Guevara diz: “Cuba não tem nem norte nem sul. Cuba é como uma lingüiça espichada no mar Caribe….”. Dias depois, Brizola me chama. Diz : “Só quero me despedir uma pessoa: traga o comandante Che Guevara !”. Fui encontrar Che Guevara num hotel, numa crise de asma. Eu me lembro: cheguei a entrar no quarto, a contragosto da segurança cubana, que não queria deixar. Mas,como já me tinham visto com o Che, não iriam cair em cima de alguém que já tinham visto com o “comandante”. Quando entrei, o Che estava sentado na cama, com a bombinha de asma. Era uma cama de solteiro. Havia no quarto duas camas. Explico a ele que o governador do Rio Grande do Sul ia deixar a conferência. Che Guevara, então, sobe no nosso carro – do governo do Rio Grande do Sul. Vamos à sede da conferência, que era muito próxima. Os dois se encontram. Brizola, ao fim, me faz o seguinte comentário: “Isso não é uma conferência dos povos da América Latina. É uma conferência das oligarquias latino-americanas ! ”. Naquela época, 1961, aquele frase não era de Brizola: era de Che Guevara – que ele incorporou. Isso foi em torno do dia dez de agosto. Quinze dias depois, o presidente Jânio Quadros renuncia. Os ministros militares vetam a posse do vice-presidente João Goulart – que estava na China comunista, em missão oficial. O veto militar era um golpe de estado. Brizola se rebela, literalmente, no Rio Grande do DSul, a tal que ponto que o III Exército adere à rebelião e passa a exigir a posse de João Goulart. Agora, eu pergunto, como conclusão deste encontro: Brizola,até então, não tinha tido nenhum ato revolucionário. 1961 foi um ato revolucionário – até de rebelião armada. Se Brizola não tivesse tido aquelas conversas com Che Guevara; se não tivesse conhecido o Che; se não tivesse sido influenciado pela mística do Che; se não tivesse, sob certos aspectos, tentado copiar ou imitar aquele mística do Che, bem ou mal, não teria havido aquela rebelião de 1961 no Rio Grande do Sul. Não teria havido o Movimento da Legalidade que faz, agora, cinqüenta anos. Digo: a influência de Che Guevara pode ter sido por nada do que ele tenha dito a Brizola. Mas pela figura do Che, o revolucionário. E é preciso ver isso com os olhos de 1961, não com os olhos de hoje, quando as revoluções perderam o sentido”.

CHE-RINDO-0439_0661.jpg

Che sobre o Brasil: "Vocês, brasileiros, fazem milagre..."(Foto:Flávio Tavares)

O que é que Che Guevara disse sobre o Brasil ?

Flávio Tavares: “O Brasil tinha tido uma posição dúbia: apoiava Cuba e apoiava os Estados Unidos. Estava em cima do muro, numa espécie de “milagre”. Ou seja: não ficava com os Estados Unidos,mas não ficava com Cuba, numa reunião feita para isolar Cuba do continente. Chego para fotografar.. Che pergunta: “Mas você não tem flash ? “.Era noite. Devo ter dito: “É, sim,sem flash !”. E ele: “Ah, vocês, brasileiros, fazem milagre…”. Já era algo ironia do Che: dizia “vocês, brasileiros, são exímios fazedores de milagres. Sabem fazer milagre como ninguém….” Com aquele comissura dos lábios, parecia que estava sempre sorrindo”.

(Dois anos e meio depois daquela viagem ao Uruguai, Brizola e Flávio Tavares vêem os militares tomarem o poder no Brasil. Era 1964. Brizola volta ao Uruguai- agora como exilado. Num primeiro momento, o ex-governador contemplou a possibilidade de optar pela luta armada contra o regime militar. Logo abandonou a ideia. Mas impressionou Flávio. Os dois tiveram longos diálogos. De volta ao Brasil, Flávio termina preso sob acusação de subversão. Parte para o exílio depois de ter entrado na lista de presos políticos que deveriam ser libertados pelos militares em troca do embaixador americano Charles Elbrick. As aventuras e desventuras de Flávio Tavares estão descritas num belo livro: “Memórias do Esquecimento”)

Você chegou a ver Brizola treinando pessoalmente para a guerrilha ?

Flávio Tavares: ” Brizola treinou pessoalmente para guerrilha : ele próprio me contou. Numa das vezes em que cheguei ao Uruguai, ele me ganha e me convence para a guerrilha. Era algo para o qual toda a minha geração queria ser convencida. Brizola nos convenceu de algo do qual já estávamos convencidos. Uma das coisas que ele me disse: ” Já estou treinando com o coronel Átilo tiro ao alvo; já estou treinando combate com baioneta”. O coronel Átilo era um coronel da Brigada Militar que tinha sido membro da Casa Militar quando governador”.

É verdade que você testemunhou uma discussão sobre quem deveria ser fuzilado no Brasil se houvesse uma vitória da guerrilha ?

Flávio Tavares: “Estamos num apartamento em Atlântida, onde Brizola estava internado: não podia sair daquela cidadezinha do litoral do Uruguai. Eu tinha chegado do Brasil. Tinha começado a contar o que estava acontecendo no país. Faço um relato jornalístico. Lá pelas tantas, o deputado Neiva Moreira, exilado e cassado, que era do estado-maior da luta armada de Brizola, diz: “Quando chegarmos ao poder, vamos executar toda esta gentalha! “. Brizola,então, se rebela: “Não ! Todos não! Mem de Sá não!”. Mem de Sá era ministro da Justiça de Castelo Branco. Era do Partido Libertador do Rio Grande do Sul. Tinha sido uma espécie de mentor intelectual de Brizola quando Brizola foi deputado estadual, em 1947. Era um liberal no governo Castelo Branco. Mas não era pelo lado liberal. Era o velho laço histórico. Acontece aquele discussão. Neiva Moreira: “Que Mem de Sá nada! Vamos executar toda essa gentalha, botar no paredã !”. E Brizola: “Mem de Sá não!”. Os dois começam a discutir. A terceira pessoa exilada, ali, em Montevidéu, o coronel Dagoberto Rodrigues, o único que sabia de armas, porque nós todos éramos civis, me olha como quem diz: “Que bobagem esta discussão…”. Nós dois nos levantamos. E só os dois ficaram discutindo: Brizola e Neiva Moreira. São as agruras do exílio. Porque o exílio tira as pessoas do conteúdo existencial concreto para nos levar a um mundo de devaneio, a uma “realidade” que não é concreta. Existe, mas existe na nossa ideia e na fantasia. Isso explica esta discussão”.

Posted by geneton at 11:57 AM

FLÁVIO TAVARES

O DIA EM QUE O GUERRILHEIRO CHE GUEVARA DECRETOU : “VOCÊS, BRASILEIROS, FAZEM MILAGRE…”

che-com-brizola-0439_0441.jpg

Brizola com Che Guevara: diálogo uruguaio (Foto: Flávio Tavares)

A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS (com reprise no domingo, ao meio-dia e meia), a entrevista que o locutor-que-vos-fala fez com um brasileiro que viu, ouviu e fotografou o guerrilheiro Ernesto Che Guevara durante a conferência pan-americana promovida no Uruguai, em 1961. O brasileiro se chama Flávio Tavares. É jornalista dublê de fotógrafo. Deve publicar, no segundo semestre, um livro que reúne todas as fotos que tirou naquela expedição uruguaia – e as lembranças que guardou do Che. A revolução dos barbudos já tinha triunfado em Cuba. Nomeado ministro da Indústria e Comércio, o argentino Che Guevara desembarcou no Uruguai como estrela da conferência. O então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, fazia parte da delegação brasileira. Flávio Tavares tinha um bloco de anotações na mão e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Atuou como intermediário de um encontro entre os dois. Não imaginava que Che Guevara iria se transformar em mito – hoje, aliás, submetido a uma revisão histórica que corrige uma quimera: o Che não é apenas o jovem médico que um dia sai de casa, na Argentina, romanticamente, para semear revoluções pelas serras e cordilheiras da América. Era, também, um comandante “implacável” que participou de execuções de adversários. Flávio faz uma ressalva: ali, naqueles encontros no Uruguai, Che ainda era, aos olhos de um jovem como ele, apenas o “herói” que se embrenhou nas montanhas para combater uma ditadura que transformara Cuba em quintal dos EUA. Um trecho da entrevista:

Qual foi o comentário mais surpreendente que você ouviu de Che Guevara ?

Flávio Tavares: “Perguntei o que era importante para um combatente, na guerrilha. O Che disse assim: “Os pés!”. E começou a bater nas botas e a descrever a importância dos pés para um combatenbte: os pés que nos levam para a frente, os pés que nos fazem retroceder, os pés que nos animam, os pés que nos fazem correr, os pés que nos fazem esperar. Faz este elogio e esta espécie de elegia aos pés.

Um detalhe estranho coincide com esta visão surpreendente: a de um comandante guerrilheiro que, como ministro de Estado, estava naquela conferência internacional como o grande astro - e dizendo que os pés é que eram importantes. Quando Che já estava na Bolívia, na travessia de um rio, a balsa é levada pela correnteza e ele perde as botas guerrilheiras..Não havia botas de reposição. Os guerrilheiros, então, matam um animal do campo e ele faz, com o couro cru, uma espécie de “sandália romana” que enrola nos pés. E é com estes pés, enrolados numa “sandália romana”, que ele é capturado na guerrilha. Porque ele tenta saltar de uma rocha para outra mas, traído pelos pés, ele cai. Ou seja: ele tinha razão. O fundamental eram os pés. Surpreendente mas concreto”.

Como se deu o encontro que você organizou entre Leonel Brizola e Che Guevara ?

Flávio Tavares: “O presidente do Uruguai oferece, em casa, em Punta Del Este, um churrasco para Che Guevara, com toda a delegação uruguaia. Convida só um estrangeiro: o jovem governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que, ali, era o conselheiro especial da delegação brasileira, nomeado pelo presidente Jânio Quadros. O presidente uruguaio queria reunir os gaúchos: Uruguai, Argentina, Rio Grande do Sul. Brizola perguntou a Che como era Cuba, onde é que ficavam as minas de níquel sobre as quais Che Guevara se referia. Che explica de uma maneira engraçada. Brizola pergunta “Ficam no norte ou no sul? “. Che Guevara diz: “Cuba não tem nem norte nem sul. Cuba é como uma lingüiça espichada no mar Caribe….”. Dias depois, Brizola me chama. Diz : “Só quero me despedir uma pessoa: traga o comandante Che Guevara !”. Fui encontrar Che Guevara num hotel, numa crise de asma. Eu me lembro: cheguei a entrar no quarto, a contragosto da segurança cubana, que não queria deixar. Mas,como já me tinham visto com o Che, não iriam cair em cima de alguém que já tinham visto com o “comandante”. Quando entrei, o Che estava sentado na cama, com a bombinha de asma. Era uma cama de solteiro. Havia no quarto duas camas. Explico a ele que o governador do Rio Grande do Sul ia deixar a conferência. Che Guevara, então, sobe no nosso carro – do governo do Rio Grande do Sul. Vamos à sede da conferência, que era muito próxima. Os dois se encontram. Brizola, ao fim, me faz o seguinte comentário: “Isso não é uma conferência dos povos da América Latina. É uma conferência das oligarquias latino-americanas ! ”. Naquela época, 1961, aquele frase não era de Brizola: era de Che Guevara – que ele incorporou. Isso foi em torno do dia dez de agosto. Quinze dias depois, o presidente Jânio Quadros renuncia. Os ministros militares vetam a posse do vice-presidente João Goulart – que estava na China comunista, em missão oficial. O veto militar era um golpe de estado. Brizola se rebela, literalmente, no Rio Grande do DSul, a tal que ponto que o III Exército adere à rebelião e passa a exigir a posse de João Goulart. Agora, eu pergunto, como conclusão deste encontro: Brizola,até então, não tinha tido nenhum ato revolucionário. 1961 foi um ato revolucionário – até de rebelião armada. Se Brizola não tivesse tido aquelas conversas com Che Guevara; se não tivesse conhecido o Che; se não tivesse sido influenciado pela mística do Che; se não tivesse, sob certos aspectos, tentado copiar ou imitar aquele mística do Che, bem ou mal, não teria havido aquela rebelião de 1961 no Rio Grande do Sul. Não teria havido o Movimento da Legalidade que faz, agora, cinqüenta anos. Digo: a influência de Che Guevara pode ter sido por nada do que ele tenha dito a Brizola. Mas pela figura do Che, o revolucionário. E é preciso ver isso com os olhos de 1961, não com os olhos de hoje, quando as revoluções perderam o sentido”.

CHE-RINDO-0439_0661.jpg

Che sobre o Brasil: "Vocês, brasileiros, fazem milagre..."(Foto:Flávio Tavares)

O que é que Che Guevara disse sobre o Brasil ?

Flávio Tavares: “O Brasil tinha tido uma posição dúbia: apoiava Cuba e apoiava os Estados Unidos. Estava em cima do muro, numa espécie de “milagre”. Ou seja: não ficava com os Estados Unidos,mas não ficava com Cuba, numa reunião feita para isolar Cuba do continente. Chego para fotografar.. Che pergunta: “Mas você não tem flash ? “.Era noite. Devo ter dito: “É, sim,sem flash !”. E ele: “Ah, vocês, brasileiros, fazem milagre…”. Já era algo ironia do Che: dizia “vocês, brasileiros, são exímios fazedores de milagres. Sabem fazer milagre como ninguém….” Com aquele comissura dos lábios, parecia que estava sempre sorrindo”.

(Dois anos e meio depois daquela viagem ao Uruguai, Brizola e Flávio Tavares vêem os militares tomarem o poder no Brasil. Era 1964. Brizola volta ao Uruguai- agora como exilado. Num primeiro momento, o ex-governador contemplou a possibilidade de optar pela luta armada contra o regime militar. Logo abandonou a ideia. Mas impressionou Flávio. Os dois tiveram longos diálogos. De volta ao Brasil, Flávio termina preso sob acusação de subversão. Parte para o exílio depois de ter entrado na lista de presos políticos que deveriam ser libertados pelos militares em troca do embaixador americano Charles Elbrick. As aventuras e desventuras de Flávio Tavares estão descritas num belo livro: “Memórias do Esquecimento”)

Você chegou a ver Brizola treinando pessoalmente para a guerrilha ?

Flávio Tavares: ” Brizola treinou pessoalmente para guerrilha : ele próprio me contou. Numa das vezes em que cheguei ao Uruguai, ele me ganha e me convence para a guerrilha. Era algo para o qual toda a minha geração queria ser convencida. Brizola nos convenceu de algo do qual já estávamos convencidos. Uma das coisas que ele me disse: ” Já estou treinando com o coronel Átilo tiro ao alvo; já estou treinando combate com baioneta”. O coronel Átilo era um coronel da Brigada Militar que tinha sido membro da Casa Militar quando governador”.

É verdade que você testemunhou uma discussão sobre quem deveria ser fuzilado no Brasil se houvesse uma vitória da guerrilha ?

Flávio Tavares: “Estamos num apartamento em Atlântida, onde Brizola estava internado: não podia sair daquela cidadezinha do litoral do Uruguai. Eu tinha chegado do Brasil. Tinha começado a contar o que estava acontecendo no país. Faço um relato jornalístico. Lá pelas tantas, o deputado Neiva Moreira, exilado e cassado, que era do estado-maior da luta armada de Brizola, diz: “Quando chegarmos ao poder, vamos executar toda esta gentalha! “. Brizola,então, se rebela: “Não ! Todos não! Mem de Sá não!”. Mem de Sá era ministro da Justiça de Castelo Branco. Era do Partido Libertador do Rio Grande do Sul. Tinha sido uma espécie de mentor intelectual de Brizola quando Brizola foi deputado estadual, em 1947. Era um liberal no governo Castelo Branco. Mas não era pelo lado liberal. Era o velho laço histórico. Acontece aquele discussão. Neiva Moreira: “Que Mem de Sá nada! Vamos executar toda essa gentalha, botar no paredã !”. E Brizola: “Mem de Sá não!”. Os dois começam a discutir. A terceira pessoa exilada, ali, em Montevidéu, o coronel Dagoberto Rodrigues, o único que sabia de armas, porque nós todos éramos civis, me olha como quem diz: “Que bobagem esta discussão…”. Nós dois nos levantamos. E só os dois ficaram discutindo: Brizola e Neiva Moreira. São as agruras do exílio. Porque o exílio tira as pessoas do conteúdo existencial concreto para nos levar a um mundo de devaneio, a uma “realidade” que não é concreta. Existe, mas existe na nossa ideia e na fantasia. Isso explica esta discussão”.

Posted by geneton at 11:57 AM

março 03, 2011

ATENÇÃO, SENHORES DEPUTADOS : É HORA DE FAZER HISTÓRIA, EM NOME DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO. JOGUEM NO LIXO O PODER ABSURDO DADO A BIOGRAFADOS ( E HERDEIROS!)

Avante, ó vítimas da intolerância e do obscurantismo : nós, leitores proibidos de ler biografias que nem foram escritas…

Estão em tramitação na Câmara dos Deputados dois projetos de lei que acabam com uma excrescência brasileira : um artigo do Código Civil que dá, a biografados ou a seus herdeiros (!), o absurdo poder de vetar a publicação de biografias não-autorizadas.

Não há outra palavra : quem teve a brilhante ideia de introduzir este artigo no Código Civil deveria receber, por unanimidade, o Oscar da Estupidez. Porque o artigo que transforma herdeiros e biografados em pequenos ditadores é um atentado absurdo à liberdade de expressão. O Brasil é o único país democrático do mundo em que herdeiro (ou biografado) pode fazer, impunemente, o papel de censor nazista. Lixo,lixo, lixo.

Nem há o que discutir : em qualquer país civilizado do mundo (e, certamente, até em republiquetas que, ao contrário do Brasil, não toleram tais abusos), as prateleiras das livrarias estão abarrotadas de biografias não-autorizadas de personalidades públicas. Não é “força de expressão” : as prateleiras estão abarrotadas. Quem por acaso se julgar prejudicado por alguma informação publicada em tais biografias recorre ao mais óbvio dos instrumentos: a Justiça. É o bê-a-bá da civilização. Sempre foi assim. É tão simples e tão cristalino.

Mas é claro que o Brasil teria de destoar : aqui, qualquer biografado ou herdeiro de uma figura pública pode pedir a proibição de um livro, amparados nos argumentos mais esdrúxulos. Eis uma aberração indefensável. Chegou a hora de devolver esta excrescência ao lugar de onde ela jamais deveria ter saído: a lata de lixo.

É impossível calcular o prejuízo que o artigo estúpido já causou à cultura , ao jornalismo e à memória brasileira : há “n” casos de editoras ( e autores ) que simplesmente desistiram de levar adiante projetos de biografias porque não iriam correr o risco de investir tempo, trabalho e pesquisa num trabalho que poderia ser embargado por um herdeiro de mau humor ou um biografado temperamental. Ou seja: há livros, livros e livros que deixaram de ser publicados.

Agora, finalmente, a Câmara dos Deputados, palco de tantos escândalos e tantos absurdos, ganha uma grande chance de prestar um serviço histórico ao país : jogar no lixo – de uma vez por todas – o poder estapafúrdio que foi dado a biografados e a herdeiros. O Brasil não pode ter leis de republiqueta bananeira.

A liberdade de expressão ( e, igualmente, o respeito aos direitos alheios) são valores intocáveis. Os dois – tanto a liberdade de expressão dos biógrafos quanto os direitos dos biografados – podem, devem e haverão de coexistir sem qualquer problema. Por que não ? É assim no mundo civilizado. Por que não poderia ser no Brasil ? O que é incompatível com a democracia é a existência de um artigo porco que transforma biografados e herdeiros em pequenos policiais, donos de um indefensável poder de veto. “No pasarán”. Os tempos de censura prévia já acabaram !

Os autores dos projetos que acabam com a violência são a deputada Manuela D´Ávila (PC do B)e o deputado Newton Lima (PT). Palmas para os dois. A deputada desarquivou um projeto que, originalmente, tinha sido apresentado por Antonio Palocci,0 atual ministro-chefe da Casa Civil. O projeto que acaba com a censura chegou a obter parecer favorável do relator, o hoje ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, mas acabou engavetado, por uma desses mistérios dos bastidores do parlamento.

Os leitores estão perdendo a chance de se informar. As editoras estão deixando de publicar livros importantes. Os biógrafos estão desistindo por antecipação de produzir obras que, com certeza, contribuiriam para a memória brasileira. Chegou a hora de estancar esta sangria.

É hora de entupir as caixas de e-mails dos senhores parlamentares com apelos maciços em favor da liberdade de expressão.

Atenção, deputados de todos os partidos : não é possível que a Câmara dos Deputados vá desperdiçar a grande chance de corrigir um absurdo que transforma o Brasil em motivo piada.

Não quero parecer pomposo ou “panfletário” , mas, se quiserem honrar de verdade os votos que receberam dos eleitores, os deputados haverão de votar pela derrubada da censura.

Chega ! Basta! Fora ! Ao lixo o que é do lixo !

Posted by geneton at 12:05 PM

março 02, 2011

A CENA QUE DEMOROU 79 ANOS PARA ACONTECER SÓ DUROU QUARENTA SEGUNDOS, NUMA MANHÃ DE VERÃO EM MOSCOU (OU: O DIA EM QUE UM MUNDO DESABOU, NÃO COM UM ESTRONDO, MAS COM UM SILÊNCIO ENIGMÁTICO)

Mikail Gorbachev completa oitenta anos de idade neste início de março de 2011. Faz parte da história do Século XX. Eis um relato do dia em que este repórter teve a chance (rara!) de ver a História acontecendo : pela primeira vez, a Rússia fazia uma eleição direta para eleger um presidente. Numa cena que, em outras épocas, seria catalogada como absurda e improvável, um ex-líder da União Soviética disputava uma eleição direta. O ano era 1996. Vi a última cena da glasnost (a abertura política) acontecer a, literalmente, um passo de onde eu estava: o momento em que Gorbachev entrou na cabine para votar. O que vi e ouvi (*) :

GORBACHEV-image0011-300x226.png

Mikail Gorbachev: Dia D em Moscou (ao lado, o locutor-que-vos-fala)

Chega o grande dia. Moscou assiste a uma cena jornalisticamente improvável . As pesquisas apontam como campeões de votos o comunista arrependido Boris Yeltsin e o comunista renitente Gennady Ziuganov. Mas para onde correm os repórteres ? Que Yeltsin que nada. Que Ziuganov que nada. Todos querem testemunhar um pequeno gesto que carrega um imenso peso simbólico : o instante em que o último líder da já extinta União Soviética – Mikail Gorbatchev – se encaminhará para a cabine de votação. Quando Gorbachev depositar o voto na urna, um longo, tumultuado e surpreendente processo estará concluído.

Meninos, eu vi. Mikhail Gorbachev, o estadista que provavelmente será lembrado daqui a cem anos por ter iniciado a abertura da cortina de ferro comunista para a democracia, foi personagem de uma cena histórica no início da tarde de um domingo, um dia de céu azul em Moscou : era exatamente meio-dia e quarenta e nove minutos quando Gorbachev, candidato a presidente, caminhou em direção a uma urna eletrônica instalada numa sala do primeiro andar do Instituto de Química e Física da Academia de Ciências da Rússia, num bairro chamado Colina dos Rouxinóis.

A cena que demorou setenta e nove anos para acontecer durou apenas quarenta e cinco segundos - tempo que Mikail Gorbachev precisou para cumprir o ritual do voto na cabine. Quem estava naquela sala do Instituto de Química testemunhou uma cena inédita : jamais um líder máximo da União Soviética participou de uma eleição direta. Nenhum dos antecessores de Gorbatchev no comando do hoje extinto império soviético (Lenin, Stalin, Kruschev, Brejnev, Andropov e Tchernenko) encarou o teste das urnas.

Sobriamente vestido, com um paletó escuro e uma camisa azul-clara, acompanhado pela mulher, Raisa Gorbachev, o homem que chamou a atenção do mundo para a glasnost exibia um sorriso protocolar de candidato quando chegou ao Instituto de Física e Química. Antes de depositar o voto na urna, posou para os fotógrafos, com ar confiante de quem espera um milagre — mas, no íntimo, certamente sabia que eleição não se ganha com milagre, mas com voto. A campanha se encerrara. Já não haveria tempo para operar o milagre da multiplicação dos votos.

Todos os levantamentos indicavam que os votos de Gorbachev eram extremamente escassos na Rússia pós-soviética. Ficam em torno de um por cento – um vexame eleitoral. Admirado no exterior como estadista, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, eleito pela revista Time como “o homem da década”, Mikhail Gorbachev virou sinônimo de candidato impopular. A maioria do eleitorado joga sobre os ombros de Gorbachev a culpa pelo colapso da União Soviética e pela condução de reformas econômicas que afundaram o país numa crise.

A História pode ser impopular, como agora, mas atrai todas as atenções. Quando finalmente entra na sala de votação, Gorbachev – um dirigente que quebrou a tradição de carrancas no Kremlin – exibe um ar sisudo. Deixou lá fora o sorriso protocolar. Não há traços daquele rosto jovial que, para espanto dos seguranças , sorria para fãs nas ruas de Nova Iorque durante uma visita aos Estados Unidos, como se fosse um improvável popstar.

O Gorbachev que agora caminha rumo à cabine de votação é outro homem. Era como se, por um instante, o peso do iminente naufrágio eleitoral fosse maior do que a certeza de que um ciclo histórico se fechava ali. Ou como se o último capítulo de uma saga prenunciasse novos dramas. A ex-primeira-dama acompanha, discreta, a caminhada de Gorbachev em direção à cabine. O ex-homem-forte da URSS traz um fotógrafo à tiracolo – aparentemente,encarregado de registrar para a posteridade os passos públicos do chefe,como se já não houvesse uma miríade de objetivas apontadas para o homem.

O alvoroço é inevitável. Cinegrafistas e fotógrafos levantam a voz. Raísa assiste a tudo, impassível. Já perdeu a conta de quantas vezes assistiu ao ritual selvagem de fotógrafos e cinegrafistas disputando espaço físico em busca de um bom ângulo. Gorbachev deposita o voto na urna em câmera lenta, para não frustrar os caçadores de imagens. Ao fundo,com uma folha de papel na mão esquerda, Raísa Gorbachev testemunha a cena ao lado do fotógrafo particular do homem.

Sou um intruso em meio aos fotógrafos. Por ter chegado ao lugar da votação com duas horas de antecedência, me transformo em posseiro de um posto de observação privilegiado : instalo-me a dois passos da cabine de votação com minha máquina fotográfica e meu gravador (quem sabe se, num acesso de generosidade,o homem não brindaria tantos repórteres impertinentes com uma declaração histórica ?).

Aos poucos, cinegrafistas, fotógrafos e repórteres vão ocupando cada centímetro quadrado disponível da sala. Ganho uma recompensa : fotógrafo improvisado, tenho a chance de captar uma imagem histórica – o exato instante em que,pela primeira vez na História, um ex-dirigente máximo da União Soviética vota numa eleição direta. É o último gesto da glasnost – o surpreendente e acidentado processo de abertura política.

Quando Gorbachev sai da sala, é abordado por repórteres que disputam no grito o privilégio de uma declaração. Mas ele parece não querer perturbar os trabalhos da seção eleitoral. Faz de conta que não ouve as perguntas feitas em inglês. Perdida em meio ao alvoroço dos jornalistas internacionais,há uma pequena troupe de jornalistas brasileiros – formada por Francisco Câmpera (livre-atirador disposto a cavar notícias na Moscou),Cláudia Varejão (enviada especial do serviço brasileiro da BBC de Londres),Gustavo Moraes(tradutor onipresente) e pelo locutor-que-vos fala.

Diz a lenda que Gorbachev é perfeitamente capaz de responder a perguntas em inglês,mas faz questão absoluta de falar russo quando responde a indagações de forasteiros. Pergunto – em inglês – quem ele vai apoiar no segundo turno. Gorbachev pede, com um gesto, um tradutor. Já do lado de fora do prédio da Escola de Química, diante de uma grossa coluna branca, Gorbachev finalmente faz uma parada estratégica para atender aos jornalistas, sob o sol forte do verão moscovita, ao lado de seguranças que dirigem olhares inquisidores a quem se aproxima da estrela máxima. Raísa Gorbachev abre uma sombrinha para se proteger do sol.

Em meio ao tumulto formado pelo empurra-empurra de fotógrafos, repórteres, cinegrafistas e seguranças, consigo me aproximar do homem. Pergunto se ele vai ficar na oposição de qualquer maneira, qualquer que seja o vencedor da eleição — Boris Yeltsin ou o comunista Zyuganov. Sempre falando em russo, Gorbachev dá uma resposta de candidato: “Se eu passar para o segundo turno, vou ganhar, sem dúvida nenhuma. Por que é então que a gente vai falar de oposição agora? Isso fica para depois!”.

Adiante, deixa de lado o papel de candidato para reassumir as funções de estadista:

– A realização destas eleições significa que já obtive uma vitória !. Porque fui eu que propus as eleições neste país.

Os repórteres seriam brindados com frases épicas, apropriadas para a ocasião. O homem que mudou o curso da história do século XX enfrentava com estoicismo a iminência de um naufrágio eleitoral :

- A primeira vitória eu já obtive: é a realização das eleições. Uma batalha só é considerada perdida quando o próprio comandante renuncia a ela.

– Nada pode me humilhar - nem as pesquisas, nem o poder. Nenhuma força pode humilhar um homem se ele se sente confiante, mantém a dignidade e a defende. Vocês têm diante de si um homem assim.

A muralha de cinegrafistas,fotógrafos e repórteres impede que Gorbachev avance. O homem que, naquele instante, simbolicamente dava por encerrada a revolução da glanost faz uma nova pausa na caminhada para falar aos jornalistas. Eis as palavras que Gorbatchev diz àquele punhado de jornalistas russos e estrangeiros,transformados em “testemunhas oculares da História” .Meu velho gravador guarda para a posteridade a voz firme do último líder soviético :

- “As reformas feitas na Rússia (sob o governo de Yeltsin) visam aos interesses de uma minoria. Minha Fundação acredita que sejam dez a doze por cento da população. Todas as outras faixas tiveram perdas. Cinqüenta por cento estão na linha de pobreza – ou abaixo. O meu programa quer desenvolver reformas para a maioria. Se não for assim, não superaremos o abismo profundo. Temos que fazer tudo para que, por meio de uma nova política e reformas, a população sinta que alguma coisa mudará. Mas o ponto principal é pôr em ordem o poder, com urgência. Sem isso não podemos fazer nada, nem desenvolver as reformas para a maioria dos russos”.

Se perdesse a eleição – o que acabaria acontecendo – quem Gorbatchev gostaria de ver no poder ?

– “De todos os pretendentes, não vejo nenhum que nesta época difícil fosse capaz de solucionar a situação sem aprofundar as divisões na Rússia. Aqueles que estão hoje no Governo já passaram por tudo : pelo sangue e pelas reformas cínicas. Não posso confiar. Durante muito tempo, estudei a situação do Partido Comunista da Rússia. Observei o grupo de Ziuganov. Pergunto : o PCR, a exemplo dos partidos da Europa Oriental e Central que já passaram por renovação, pode assumir esta responsabilidade? Para mim, essa é uma questão importante. A resposta interessa não a apenas à Rússia,mas a mim, pessoalmente”.

“O poeta Tiutchev tem razão : a Rússia não pode ser medida com uma só medida”.

“Tive poucos recursos – menos do que todos os outros candidatos. Mas vejo que as pessoas querem mudanças”.

Adiante,Gorbatchev dá uma resposta bem humorada sobre que candidato ele apoiaria no segundo turno :

– “Depende do demônio que lá estiver”.

- “Boris Nikolaievitch Yeltsin não perdeu a cabeça. Enquanto o presidente defendia as eleições presidenciais, assessores aconselhavam : “Não, Boris Nikolaievitch ! Para que realizar eleições ? Vamos sentar e dividir a mala !” . Viu só que democratas ? Ainda assim, levou o país até as eleições. Trabalhou como um Presidente deve”.

Termina a entrevista improvisada. Os repórteres se dispersam. Cinegrafistas recolhem suas câmeras. Fotógrafos e repórteres voltam aos carros de reportagem . Insisto em seguir – a uma pequena distância – os passos de Gorbatchev. Quero testemunhar até o fim a aparição pública do homem que mudou a História do século XX.

Tenho, então, a chance de assistir a uma cena comovente. Livre do assédio dos repórteres, Gorbatchev começa a caminhar – cabisbaixo - por uma alameda em direção a um portão de ferro. Quando cruzar o portão de ferro, sumirá de vista. O homem que já comandou uma superpotência vive, ali, naquela pequena caminhada, um momento de intensa solidão. Parece entregue a pensamentos insondáveis.

Depois de percorrer uns trinta metros, ele apressa o passo, separa-se da comitiva. Permanece cabisbaixo. Um observador rigoroso flagraria ali,nas feições de Gorbatchev, aquela “dor atônita dirigida contra todo o ordenamento das coisas” que o dom Fabrizio de “O Leopardo “ notou no olhar de um coelho abatido. Aproximo-me o máximo que posso, com minha máquina fotográfica. É tudo o que posso fazer. Registro o momento. As feições de Gorbatchev exibem um ar grave.

O dia é de festa ,a Rússia vai se lembrar dessas eleições, mas, ali, naquela alameda, o homem que,em última instância, tornou possível a reviravolta vive um momento de melancolia. Em que ele estaria pensando, enquanto caminhava, silente, com o olhar voltado para o chão ? Àquela altura, que diferença faria saber ? A História já tinha mudado de rumo, independentemente do que Gorbatchev poderia pensar.

Quem sabe, num momento fugaz de abatimento, ele poderia ter a tentação repetir o que disse no dia em que a União Soviética deixou formalmente de existir, no final de dezembro de 1991. Exausto, Gorbatchev teve tempo responder, no fim de noite no Kremlin, a uma pergunta do repórter Ted Koppel, enviado especial da rede de tevê americana ABC : “o que é que se passa na alma do senhor agora ?”

-“Respondo com a parábola de um rei que encarregou os sábios de descobrirem qual é o segredo da sabedoria. Depois de passarem a vida viajando e de redigir quarenta volumes, os sábios finalmente trazem a resposta para o Rei. Mas o Rei estava morrendo. Para não perder tempo, eles resumiram tudo em apenas uma frase : “O homem nasce, sofre e morre”. (Andrei S. Gratchev,assessor e porta-voz de Gorbatchev,registrou a cena no livro “L’Histoire Vraie de La Fin De L’Urss” – “A História Real do Fim da União Soviética”) .

Ao votar na primeira eleição presidencial na Rússia pós-soviética, Gorbatchev pingou um ponto final numa saga que se iniciou quando ele pronunciou pela primeira vez a palavra “glasnost” (abertura política) à sombra das muralhas do Kremlin.

Um mundo desabava ali – não com um estrondo nem com um suspiro , como poderia imaginar o poeta, mas com um silêncio enigmático.

(*)Texto publicado no livro “DOSSIÊ MOSCOU”

Posted by geneton at 12:11 PM