março 31, 2004

PAULO FRANCIS : "...QUANDO, ENFIM, VOLTAMOS, COMPULSORIAMENTE, À TERRA DA QUAL NUNCA DEVERÍAMOS TER SAÍDO"

"A MORTE É UMA PIADA.A VIDA É UMA TRAGÉDIA. MAS,DENTRO DE NÓS,MESMO NO MAIOR DESESPERO,HÁ UMA FORÇA QUE CLAMA POR COISAS MELHORES. OS ARTISTAS ESTÃO SEMPRE AÍ NOS LEMBRANDO DISSO.EXISTE UM PARAÍSO,POIS BEETHOVEN OU GAUGUIN JÁ NOS DERAM MOSTRAS CONVINCENTES.É INATINGÍVEL PERMANENTEMENTE,MAS DEVEMOS SER GRATOS PELAS SOBRAS QUE NOS COUBEREM"

"SOU UM CORRESPONDENTE ESTRANGEIRO,EM SÍNTESE,ESTOU SEMPRE NO ESTRANGEIRO E ME CORRESPONDO,SEM ESPERAR RESPOSTA.NÃO HÁ,TALVEZ RESPOSTA.SÓ HÁ PERGUNTAS, ATÉ QUE A ENERGIA E A LUZ SE APAGUEM,QUANDO,ENFIM,VOLTAMOS,COMPULSORIAMENTE,À TERRA DA QUAL NUNCA DEVERÍAMOS TER SAÍDO"

PAULO FRANCIS,EM "UMA COLETÂNEA DE SEUS MELHORES TEXTOS JÁ PUBLICADOS"

Posted by geneton at 12:25 PM

IVAN LESSA ESPERNEIA CONTRA DUAS MANIAS HORROROSAS DO BRASILEIRO : ENTRAR ASSOVIANDO NO ELEVADOR E FICAR PEGANDO UM NO OUTRO.O PESADELO : O SUJEITO QUE TODO DIA,AO SE ENCONTRAR COM VOCÊ, APERTA A MÃO NA CHEGADA E NA SAÍDA...


Posted by geneton2 at 12:06 PM

março 29, 2004

CHICO BUARQUE CONFESSA : "HÁ NO ATO DA CRIAÇÃO MOMENTOS EM QUE VOCÊ PARECE ILUMINADO. DE REPENTE,VEM UMA IDÉIA.É COMO SE O CORPO RECEBESSE UMA LUZ REPENTINA INEXPLICÁVEL"


Posted by geneton2 at 12:40 PM

CHICO BUARQUE CONFESSA : "HÁ NO ATO DA CRIAÇÃO MOMENTOS EM QUE VOCÊ PARECE ILUMINADO. DE REPENTE,VEM UMA IDÉIA.VOCÊ SE PERGUNTA : DE ONDE VEIO ? É COMO SE O CORPO RECEBESSE UMA LUZ REPENTINA INEXPLICÁVEL"


Posted by geneton2 at 12:40 PM

JOSÉ SARAMAGO

O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA DIZ QUE VAI MORRER SEM ENCONTRAR A RESPOSTA PARA A PERGUNTA "SIMPLES" QUE O ATORMENTA



Um dos primeiros mandamentos do Manual de Boas Maneiras Jornalísticas diz que repórter que se preza não deve escrever na primeira pessoa. Por que não ? Peço licença aos Guardiões da Profissão para cometer um pequena confidência,na primeira pessoa do singular : sempre alimentei o desejo de entrevistar um Prêmio Nobel de Literatura.

Se eu vasculhasse minhas florestas interiores em busca de uma explicação razoável para esta pequena obsessão,certamente voltaria da expedição de mãos vazias. Não encontro nenhuma justificativa para o desejo de entrevistar um Nobel ,além da óbvia curiosidade jornalística. Quem sabe, o que me movia era a curiosidade de ouvir a palavra desse espécime raro : um intelectual milionário.Afinal,a conta bancária dos felizardos agraciados pelo Prêmio Nobel recebe uma injeção substancial – algo em torno de um milhão de dólares.Mas este é um motivo inconfessável, além de tolo : não há notícia de nenhum Nobel de Literatura que,depois embolsar a grana, tenha de repente se transformado num desses novos- ricos semi-analfabetos que povoam as páginas de revistas como a Caras com seus sorrisos de mil dentes,pele bronzeada pelo ócio da Côte D’Azur e prataria cuidadosamente exposta na sala de estar para as lentes dos fotógrafos. É gente que juraria de pés juntos que Ezra Pound é nome de creme de beleza. Para felicidade geral da Literatura,a Academia Sueca não provocou,até agora,nenhuma transmutação dessa espécie.

De qualquer maneira, lancei-me ao mar,em busca de um Nobel (milionário) que pudesse ditar belas sentenças ao meu velho e alquebrado gravador. Minhas duas primeiras tentativas,no entanto, resultaram em clamoroso fracasso. (os dois fracassos foram prontamente mantidos em sigilo,como faz todo repórter que se preza.Assim caminha a Humanidade).

Primeiro alvo de minha caçada : Saul Bellow,o canadense de ar entediado que conquistou uma vaga no primeiro time da literatura americana com livros como Herzog e O Legado de Humboldt . Uma voz afável – como convém a uma secretária encarregada de erguer muros de proteção entre uma celebridade e o resto do mortais – sugeriu que o pedido de entrevista fosse feito por escrito.Cumpri o pequeno ritual. Fiz a primeira tentativa através de uma carta enviada ao escritório que Bellow - Prêmio Nobel de Literatura de 1976 – mantinha num certo Commitee on Social Thought,na Universidade de Chicago. Além de incensado pela crítica ,Bellow volta e meia se mete em polêmicas com seus pares,o que soava como garantia de boas declarações. Mas Mister Bellow disse não.Deve ter descartado com um muxoxo o pedido de entrevista feito por um vago repórter de um país remoto chamado Brasil. Quem leu “Os Eleitos”, livro que Tom Wolfe,desafeto de Bellow,escreveu sobre os pioneiros da corrida espacial deve se lembrar da cena em que emissários da Nasa,como se fossem corvos bem-vestidos e delicados,batem na porta das viúvas de astronautas acidentados para dar a elas a notícia fatal.Os corvos sempre agiam em dupla.

Sem saber,o carteiro,emissário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos,ECT,fez dupla com a secretária de Saul Bellow no papel de corvos encarregados de soterrar meu projeto de entrevista. Uma escreveu; o outro entregou. Uma disse : mata !.O outro : esfola ! .A secretária concebeu uma desculpa de poucas linhas (“O senhor Bellow me pediu que eu respondesse a carta que você lhe enviou. Infelizmente,ele não poderá conceder a entrevista que você solicitou. Eu espero que você entenda que as demandas feitas a ele são numerosas.Além de tudo,o senhor Bellow precisa de tempo para executar seus próprios trabalhos.Por favor,aceite as desculpas do senhor Bellow.Receba os melhores votos”).

Em outras palavras,a mensagem dizia,como o corvo de Edgar Alan Poe : entrevista com Mister Bellow? Never more,never more. Restou-me grunhir um “thank you,miss Janis Freedman”- é este o nome da megera.

O corvo voltaria a roçar a porta do minha casa,travestido de carteiro da ECT,com um envelope branco de bordas vermelhas nas mãos.Remetente : a secretária de outro Nobel de Literatura,o russo naturalizado americano Joseph Brodsky. O nome de Brodsky tinha despertado minha atenção desde que um resenhista entusiasmado escrevera
que os leitores poderiam fazer uma experiência : quem abrisse aleatoriamente o livro de ensaios “Menos De Um”,publicado por Brodsky nos anos oitenta, poderia ter a certeza de que aprenderia algo de útil,não importa a página escolhida. Mister Brodsky dispensou delicadamente a convocação que lhe fiz para que reverenciasse meu gravador Sony portátil. Uma vez,ele escreveu : “Em matéria de fracassos,a tentativa de recordar o passado equivale à pretensão de entender o sentido da existência.As duas coisas nos fazem sentir como um bebê que segura uma bola de basquete : ela escorrega constantemente das mãos”. Quem sabe, conceder a milésima entrevista sobre a infância passada na União Soviética poderia soar, aos ouvidos de Mister Brodsky, como um exercício inútil ,comparável ao esforço de um bebê para manter nas mãos a tal bola de basquete – elusiva ,escorregadia,”incapturável”,como o o passado. A assistente do Prêmio Nobel,a megera número dois,uma certa Ann Kjellberg,respondeu-me que o homem estava viajando,pelo exterior. Assim que fosse possível ,ela levaria a ele o pedido de entrevista. Mas um espesso silêncio desabou sobre a linha direta que,por um curtíssimo espaço de tempo,mantive com o escritório de Mr.Brodsky por carta e por telefone.

Demorou,mas fisguei um peixe da família dos Nobel,quem diria,na beira da piscina de um hotel de luxo. Acomodado no hotel pela editora,o português José Saramago tinha acabado de gravar uma entrevista no quarto para uma tevê educativa. Lá vem o homem. Traja um paletó protocolar. Trata os que o abordam com cortesia profissional. Quando fala,fica olhando para algum ponto misterioso na toalha da mesa. Não fita os olhos do interlocutor o tempo todo.

O espírito de porco que quiser irritar o Prêmio Nobel de Literatura (e comunista de carteirinha) José Saramago já sabe o que fazer : basta chamar o homem de "dinossauro político em vias de extinção" . Quando ouve a insinuação político-zoológica,o cordato Saramago imprime um tom incisivo à resposta. Diz que,um dia,no futuro,quem quiser entender o que se passou no mundo talvez tenha de revirar os ossos dos dinossauros políticos, assim como os arqueólogos reviram os ossos dos dinossauros de verdade,em busca de indícios que expliquem o que aconteceu no planeta.

Bela resposta. Minha tática de agente provocador funcionou : quando se sente confrontado,o dinossauro Saramago reage com um punhado de frases afiadas,o que não deve ser difícil para quem se notabilizou como exímio esgrimista das palavras.

Quando se dirigia para a mesa onde se faria a entrevista, o Prêmio Nobel de literatura passou cem por cento desapercebido pela piscina do hotel. De bermudas,o músico brasileiro Sérgio Mendes sorvia uma xícara de café expresso à beira da piscina. Alheio ao mundo exterior, nem nota quando Saramago passa.Os cabelos de Sérgio Mendes,excepcionalmente negros graças à eficiência de uma boa tintura,com certeza seriam mais capazes de chamar a atenção de um eventual observador de paisagens capilares do que os já escassos fios de Saramago - cem por cento grisalhos.Para alívio de Mendes,nenhum membro da Tribo dos Observadores Capilares,essa confraria excêntrica, trafegou naquele fim de tarde à beira da piscina.Mas eles existem.

Desde que o Prêmio Nobel o transformou em notícia no mundo todo, Saramago se tornou refém da própria fama - uma sensação nem sempre agradável para quem passou a vida se dedicando ao solitário ofício de escrever. Antes de começar a entrevista,confessa que de vez em quando gostaria de ficar invisível quando sai às ruas – um desejo que,lastimavelmente,os cientistas ainda não puderam atender.

Atenção,arqueólogos literários e políticos : é assim que um dinossauro fala.

1
GMN : Qual é o maior incômodo que um Prêmio Nobel enfrenta,além do fato de ser sempre importunado por jornalistas,como o senhor agora ?
Saramago : “Eu poderia responder que o outro maior incômodo é ser importunado por fotógrafos,por exemplo.Mas não.Incômodo não há nenhum.O que acontece é que se perde a invisibilidade depois que se ganha o Prêmio.É o pior.Evidentemente que é agradável ser reconhecido na rua e em qualquer parte,no aeroporto ou no restaurante.É agradável ver um leitor se aproximar para nos dizer uma palavra amável sobre o que leu.Em todo caso,não é que eu preferisse voltar ao anonimato,mas não há dúvida de que há momentos em que eu gostaria de me tornar invisível.Só não quero ser ingrato.Todos me tratam com tanto carinho e tanta atenção que qualquer palavra minha nesse sentido poderia parecer de algum modo uma ingratidão.Não é.Apenas que vez em quando sinto a necessidade de recolher-me à minha própria privacidade – que,enfim,já se perdeu”.

2
GMN : O senhor é até hoje filiado ao Partido Comunista Português.Não tem medo de ser visto como um animal político em vias de extinção ?
Saramago : “Há muitas coisas em vias de extinção que deveriam preocupá-lo mais : profissões que se acabam,culturas que desaparecem,línguas que perdem sentido porque já não têm ninguém que as fale,um planeta que estamos destruindo.Deixemos lá os dinossauros políticos.Porque acontece uma coisa curiosa : é preciso ter cuidado com a expressão “dinossauro político”. Pode chegar o momento em que,tal como acontece com os dinossauros autênticos,os estudiosos andem à procura dos ossos dos dinossauros políticos,para tentar reconstituí-los tal como eles teriam sido.Talvez um dia se venha a necessitar dos ossos dos dinossauros políticos que nós somos para que se entenda o que acontecia no mundo”.

3
GMN : O senhor tem uma visão essencialmente pessimista diante do mundo.O pessimismo é bom para a literatura ?
Saramago : “O pessimista não é bom nem mau para a literatura,mas não tenho uma visão pessimista do mundo.Ao contrário : o mundo é que está como está.Num momento como esse,pareceria,a mim,um pouco surpreendente que alguém se atrevesse a ser um otimista.Quem,diante do espetáculo oferecido pelo mundo em que vivemos,veja razões para ser otimista,é uma pessoa que ou não percebe aquilo que se passa ou então faz de conta que não entende.O melhor,então,é deixarmos de falar em otimistas e pessimistas.Os fatos são os fatos.Não há otimismo ou pessimismo que faça com o que um fato deixe de ser um fato.A interpretação do fato é que pode variar.Mas o fato continua lá.Penso que os fatos desse mundo,dessa vida,desse planeta,dessa sociedade humana,são fatos suficientemente sérios e graves.Temos de enfrentá-los não para divagar sobre o otimismo e o pessimismo com que poderíamos considerá-los mas para pelo menos compreendê-los e,se possível,tentar resolvê-los”

4
GMN : Mas há dois fatos que são aparentemente indiscutíveis no mundo de hoje.Primeiro : o fato “otimista” de que nunca tantas pessoas em todo o mundo viveram tão bem e tiveram acesso a tanta riqueza.O fato “pessimista” é que nunca foi tão grande a diferença entre pobres e ricos.Diante desse quadro,o senhor não tiraria nenhum motivo para enxergar o futuro com algum otimismo ?
Saramago : “Não.Se a parte negativa não existisse,então eu diria : uma vez que nunca houve tanta gente vivendo tão bem,pode-se presumir que,no futuro,haja ainda mais gente que vai viver igualmente bem.Mas,como você mesmo acaba de dizer,nunca foi tão grande a diferença entre os que têm e os que não têm.Tudo indica que a diferença vai ampliar-se.Não vem se reduzindo.
É evidente que há mais pessoas que estão vivendo bem.Mas também há mais pessoas vivendo mal.Como a população da terra vem se multiplicando, pode-se dizer que,se alguma parte vai se integrar à minoria que vive bem ou razoavelmente bem,muito mais gente vai se incorporar à parcela dos que vivem mal.Além de tudo,não se deve esquecer que há uma tendência para a pauperização das classes médias.Há uma parte mínima da classe média que ascende,passa para o outro grupo.Mas há uma parte da classe média que vai se aproximando cada vez mais da parte desfavorecida.Volto a dizer que não há pessimismo nem otimismo.Repito : os fatos são os fatos. Noto também que o problema já não é ter ou não ter.O problema – não menos importante – é saber ou não saber.É cada vez maior o número de pessoas que não sabem.Ou sabem mal aquilo que julgam saber.É cada vez menor o grupo de pessoas que detém todo o conhecimento – e de certa forma usa-o para levar o mundo para onde o mundo vai”.

5
GMN : Se o senhor fosse fazer hoje o papel do escrivão Pero Vaz Caminha,quinhentos anos depois,qual seria a primeira frase que escreveria sobre o Brasil ?
Saramago : “Depende do lugar onde eu desembarcasse.Se eu desembarcasse em Copacabana,quando se arrebentaram os esgotos nas praias no Rio de Janeiro,eu diria ao rei Dom Manuel que aqui não poderia viver ninguém,porque o lugar cheira mal.Imagine se,pelo contrário,eu desembarcasse numa praia limpa,coberta não de índias despidas,mas de lindas moças quase despidas. Eu diria que aqui é um sítio para viver,uma terra linda.Se,no entanto,eu começasse a encontrar as favelas,eu diria : “Mas o que é que se passa aqui ? Eu julgava que os índios viviam de outra maneira !”.

6
GMN : Usa-se no Brasil a expressão “comunista de carteirinha”. O senhor anda com a carteirinha do Partido Comunista Português ?
Saramago : “Não ando com ela.Tenho cartões e carteirinhas de várias e várias instituições com quem mantenho relações.Não ando com as carteirinhas de todos.Mas pago a minha cota ao PC”.

7
GMN : O dirigente comunista Álvaro Cunhal entregou ao senhor uma carta que não deveria ser aberta.Que segredo essa esse ?

Saramago :”Álvaro Cunhal na verdade escreveu uma carta que nunca li,porque a carta só me seria entregue se ele não tivesse sobrevivido a uma intervenção cirúrgica a que foi submetido na União Soviética.O que sei,pelo que me foi dito,é que ele escreveu algumas cartas que seriam entregues a vários destinatários se ele não tivesse sobrevivido.De qualquer forma,não é o Terceiro Segredo de Fátima : ele próprio me comunicou,depois,ter dito,na carta,que esperava que eu nunca saísse do Partido Comunista Português.Não saí.Não sairei.Em todo caso,a carta nunca me foi entregue”.

8

GMN : Independentemente do apelo que seria feito nessa carta,jamais passou por sua cabeça a idéia de largar o Partido Comunista ?
Saramago : “Não tenciono efetivamente –para usar a expressão que você usou – “largar” o Partido Comunista,a não ser que ele me largue .Quero dizer : se amanhã o Partido se transformar em outra coisa,como aconteceu com a maioria dos partidos comunistas europeus,posso não reconhecer o Partido a que aderi.Nesse caso,é possível que eu saia.Mas espero que não aconteça”.
9
GMN : O senhor já disse que o Brasil é um país de luzes e sombras.Aos olhos do mais famoso escritor português de hoje,qual é a grande luz e qual é a grande sombra que o Brasil projeta ?
Saramago : “Uma pergunta dessas não é fácil de responder.Países de luzes e sombras de uma maneira ou de outra todos o são.O que digo em relação ao Brasil é que o país poderia ser,por suas riquezas naturais e pelas características do seu povo, um país em que as luzes predominassem.Não digo que as sombras é que predominam.O que quero dizer é que as sombras poderiam ser menores e menos graves”.

10
GMN : O senhor ainda se sente “como uma Miss Universo”,com a agenda atolada de compromissos depois do Prêmio Nobel ?
Saramago :”Fiquei com a sensação de que
as agendas de uma Miss Universo e a de um escritor premiado eram bastante parecidas.Mas hoje posso dizer que não se parecem em nada.As obrigações e responsabilidades de uma Miss Universo duram um ano.
Haverá,então,outra Miss Universo,não só com a coroa na cabeça,mas também com o dever de fazer tudo aquilo que a predecessora fez.Mas,no meu caso – eu,que,não sei se feliz ou infelizmente, não pareço em nada com a Miss Universo - essas obrigações não cessaram pelo fato de em 1999 Gunter Grass ter ganho o Prêmio Nobel.
Diga-se que o Prêmio Nobel não impõe rigorosamente nenhuma obrigação. O sujeito chega lá,recebe o Prêmio e vai para casa. Depende da vontade do escritor o uso que ele fará do tempo – o emprego que fará de suas possibilidades de comunicação,se vai continuar a escrever,se vai ter contatos com os leitores.
Como o Prêmio Nobel foi atribuído a um escritor de língua portuguesa,é claro que minhas obrigações e responsabilidades se multiplicaram.Eu entendi que deveria assumi-las”.

11
GMN : Por que os escritores brasileiros são tão ausentes de Portugal e os escritores de Portugal tão ausentes do Brasil ?
Saramago : “Pode-se pensar,por exemplo,que leitores de um país não dêem atenção suficiente àquilo que se publica no outro. Pode-se pensar que os temas que tratam os escritores de um país não interessam aos leitores de outro.Mas também se pode pensar que não há um trabalho de fundo para aproximar os dois.É certo que os escritores portugueses vêm aqui.É certo que os escritores brasileiros vão a Portugal.Mas há algo que se passa que não sei explicar. Temos de pensar no seguinte : o leitor também tem suas razões para preferir ou não preferir.Quero crer,no entanto,que seria bom se houvesse um trabalho mais contínuo de ajuda à edição – evidentemente,é preciso ver até que ponto tal ajuda é economicamente viável.O que é lamentável é que seja assim.Eu sou uma exceção.Eu próprio me pergunto por quê.Não sou capaz de dar uma explicação.
Talvez o que se devesse fazer seria perguntar aos leitores : por que não os interessa a literatura portuguesa ? Por que não os interessa a literatura brasileira ? Como é que poderiam se interessar ? Por que os interessa um determinado autor – e não outro ? Fernando Pessoa é muito lido no Brasil.Cem anos depois,Eça de Queiroz também o é.Já Machado de Assis não é tão lido em Portugal como Eça de Queiroz é no Brasil. Faça-se um inquérito para que se chegue a alguma conclusão”.

12
GMN : O primeiro escritor brasileiro com quem o senhor teve contato deixou alguma influência em sua formação ?

Saramago : “Não posso jurar,porque foi há muitos e muitos anos.Mas o primeiro pode ter sido Raul Pompéia,com esse livro extraordinário que é “O Ateneu”. Você me pergunta se ficou alguma influência da leitura.Claro que não,porque eu era muito novo.Ainda não pegava essas coisas.O resto foi a aprendizagem.Uso essa palavra propositadamente,porque o que houve comigo foi a aprendizagem de uma literatura escrita em minha própria língua,mas criada e imaginada em outro lugar - o Brasil -,com tudo o que para mim representou a descoberta não só dessa literatura,mas também das realidades sociais e culturais que estavam por trás dos livros”.

13
GMN : Por que é que o Prêmio Nobel de Literatura não gosta de falar de literatura ?
Saramago : “...Mas eu nunca disse que não gosto de falar de literatura ! O que disse foi que cada vez menos me interessa falar no assunto.Não é que não goste.Se é meu trabalho,como é que eu não iria gostar ?
Quando se publica um livro,ou por qualquer outro motivo,ligado ou não ligado a mim,falo de literatura,evidentemente.O que acontece é que considero que os problemas do mundo não se esgotam na literatura.São tão graves e tão importantes que,se tenho a oportunidade,até quando trato de literatura trato de abordá-los.Isso não é dizer que não gosto de falar de literatura”.

14
GMN : Uma crítica publicada numa revista brasileira sobre o livro “A Caverna” diz que “a literatura refinada de Saramago dessa vez dá lugar a um sermão”.O senhor acha que a denúncia das mazelas do mundo pode eventualmente comprometer a qualidade literária ?
Saramago : “Tenho que dizer que nunca comento qualquer crítica.É um princípio meu.Eu escrevo o que entendo.O crítico escreve o que entende.
Comentários meus sobre uma crítica ninguém encontrará,em toda a minha vida”.

15
GMN : Uma velha pergunta : o senhor escreve para fugir da morte ?
Saramago : “Não,porque ninguém foge da morte.É uma ilusão.O que pode acontecer é pensarmos – e devo ter pensado – que se escreve porque não se quer morrer.Parte-se do princípio de que a obra vai ficar,não se sabe por quanto tempo.
Hoje não sou tão ambicioso.Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas”.

16
GMN : A que escritor brasileiro vivo ou morto o senhor concederia o Prêmio Nobel de Literatura ?
Saramago : “A um vivo e a dois mortos.Não me importaria nada dar a eles o Prêmio,se eu fosse membro da Academia Sueca.O vivo é Jorge Amado.Os que já não estão vivos são Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.Sem nenhuma dúvida,eu,membro da Academia Sueca,atribuiria o Prêmio a qualquer um dos três.Não foi assim que aconteceu”.

17
GMN :O senhor escreveu,no livro “A Caverna”,que as frases de efeito são “uma praga maligna”.Qual é a sua frase de efeito predileta ?
Saramago :”Tento evitar,o mais que posso,as frases de efeito.Mas nem sempre consigo fugir à tentação de escrever uma.Só espero é que,se elas são só frases de efeito,as pessoas que as leiam ou as ouvem não as tomem demasiado a sério”.

18
GMN : Se o senhor fosse definir o Brasil numa só palavra,que palavra o senhor usaria ?
Saramago : “Como é que se pode definir numa só palavra ? Se pudesse usar nem que fossem duas palavras,talvez eu conseguisse.Dê-me três palavras...”.

19
GMN : Quais seriam,então,as três palavras ?

Saramago : “Eu definiria assim o Brasil : “Quando se decidem ?”.

20
GMN : Quase aos oitenta anos,qual é a grande pergunta que o escritor José Saramago não conseguiu responder até hoje ?
Saramago : “A pergunta que não consigo responder é muito simples :para quê ? Para que tudo isso ? Vou morrer sem encontrar a resposta.Creio que ninguém nunca encontrou”.

(2001)


Posted by geneton at 12:30 PM

março 28, 2004

O NOME : VERNON WALTERS.MAS PODEM CHAMÁ-LO DE CAPETA,DIACHO,MEQUETREFE

Se nomes próprios pudessem ser traduzidos , qual seria o significado de Vernon Walters ? Quem se opôs ao golpe militar de 1964 responderia de bate-pronto : Vernon Walters quer dizer o cafute, o cambito,o capeta, o coisa-ruim, o diacho, o esconjurado, o mequetrefe,o mofento,o tinhoso. Em uma palavra : o demônio.

O coronel que,durante a conspiração que derrubou João Goulart,desempenhava o papel de adido militar da embaixada dos Estados Unidos entrou irremediavelmente para a história do movimento militar de 1964 como símbolo de conspiração.

Procuro o general Vernon Walters para uma entrevista que seria gravada num cenário apropriado : um salão da Biblioteca do Exército,no prédio que já foi sede do Ministério da Guerra,no centro do Rio de Janeiro.

O general tinha feito uma viagem-relâmpago ao Brasil,para divulgar um livro autobiográfico(“Poderosos & Humildes”). Imagino que a figura lendária do esconjurado,o mofento,o cafute de 1964 vá se materializar em minha frente com o peito ornamentado de condecorações de todo tipo. Afinal, é assim que ele aparece,impávido,na capa do livro.

Surpresa : o homem desembarca na porta de entrada do prédio numa cadeira de rodas, embalada por um sobrinho. Problemas na articulação dos joelhos tinham nocauteado os movimentos do militar que um dia fez carreira nos campos de batalha : Walters lutou na Europa durante a Segunda Grande Guerra e esteve no Vietnam,na década de sessenta.

Os trajes civis do mequetrefe são discretos : a farda deu lugar a um paletó marrom,uma camisa amarela,uma gravata estampada. Poliglota que falava francês,espanhol,italiano,alemão,holandês e russo, Walters fazia questão de conduzir a conversa em português.

O forasteiro que tentasse arrancar de Walters segredos sobre os bastidores do movimento que tirou o presidente João Goulart do poder era brindado com uma frase de efeito. O cafute trazia no bolso do colete uma frase de efeito : dizia que um “coronel americano inexperiente em golpes de estado” (como ele se auto-intitulava) não teria grandes lições a dar a generais brasileiros razoavelmente habituados a derrubar presidentes.

Insisto. Walters abre um flanco . Mas é parcimonioso na hora de ceder a pressões de bisbilhoteiros profissionais. Tira uma cena do fundo do baú da memória : reconhece que meteu o bedelho em “assuntos internos” brasileiros durante um almoço com um militar , nos dias que se seguiram à quartelada de 1964. O militar – que, na lembrança de Walters, era Emílio Garrastazu Médici - deu-lhe uma notícia quentíssima : o ex-presidente Juscelino Kubitscheck iria ser cassado. Walters contra-argumentou : a repercussão da cassação seria desastrosa no exterior,porque,fora do Brasil,”Juscelino é a imagem de Brasília”. Mas a cassação,disse-lhe o militar de alta patente,estava “assinada”. Era irreversível. Lá estava o adido militar da embaixada americana exercendo plenamente a função extra-oficial de palpiteiro. Deve ter cumprido o papel em outras situações – que preferiu manter em segredo. Não se deve esquecer que Walters passou a vida manuseando segredos : chegou a ocupar,por anos a fio,o posto de vice-diretor-geral da CIA,depois de deixar o Brasil. Depois de ouvir o vozeirão do general descrever a história da cassação de JK, São Gutemberg,o Santo Protetor dos Repórteres,sopra no meu ouvido : “A história é boa,mas este general deve estar escondendo o jogo. Seja insistente. A insistência é a alma do negócio. Segredo só é a alma do negócio para empresários e generais. Para um repórter,a alma do negócio é outra . Avante, soldado desarmado !”.

Vou colhendo pequenas vitórias no campo de batalha verbal. O cafute faria outra concessão à minha insistência : diria que manteve segredo durante décadas sobre uma impressão que guardou do presidente João Goulart depois de uma audiência,no Rio de Janeiro,em companhia do então embaixador americano,Lincoln Gordon. Os dois – adido e embaixador – relataram ao presidente a gravidade da crise dos mísseis cubanos : fotos aéreas comprovavam que a União Soviética poderia usar Cuba
como base de lançamentos de mísseis contra os Estados Unidos. Goulart fez com a mão um gesto que Walters interpretou como uma indicação de apoio a uma rápida ação americana contra a ameaça soviética. Que ação seria esta ?
Walters diz que,no carro,na viagem de volta à embaixada,imaginou que o gesto de Goulart poderia ser traduzido como “bomba atômica”.

Fica o registro : informações importantes – sobre até onde iria o apoio de um presidente brasileiro a uma eventual reação americana contra a instalação de mísseis soviéticos em solo cubano – nem sempre são cristalinas,indiscutíveis,pétreas. Podem depender da interpretação de um simples gesto com a mão. Política pode ser mímica. Assim caminha a humanidade.

O general de pijama – ou de terno – reconhece que os Estados Unidos iriam, sim, fazer “alguma coisa” se a crise de 1964 descambasse para uma situação de guerra civil no Brasil. Bastaria que os soviéticos tentassem, por exemplo,”abastecer um dos lados em luta”.

Como não estava aqui em 1964 para ir passear no Maracanã, Walters tratou de reunir informações sobre a crise política brasileira. Diz-me que tinha “quase certeza” de que o movimento militar seria deflagrado no dia 31 de março de 1964. A suspeita era tanta que ele aconselhou o embaixador americano a cancelar de última hora uma viagem ao Recife para inauguração de casas populares construídas com dinheiro americano . Assim foi feito : o embaixador desistiu da viagem ao Recife. Goulart terminaria partindo para o exílio em Montevidéu, derrubado pelos militares.

Walters faria reminiscências pessoais sobre o amigo Castelo Branco. Os dois se conheceram nos campos de batalha na Itália,na Segunda Guerra. O primeiro militar a ocupar o poder depois do golpe de 64 chamou Walters para um almoço – a dois - no dia em que assumiu a Presidência da República. A deferência dá uma idéia da proximidade entre os dois. Quando Castelo deixou o governo, chamou Walters para um jantar. O adido faz uma pequena confissão : diz que ouviu Castelo Branco dizer que um dos problemas do Brasil eram os Presidentes que,depois de aboletados no Poder,relutam em entregar o cargo. O primeiro presidente da linhagem militar cumpriu o que disse : passou adiante o Poder – obviamente, a outro militar,o general Costa e Silva. O povo, como se sabe, não era chamado a opinar.

Quando estava na Guerra do Vietnam, Walters soube da morte de Castelo Branco,num acidente de avião. Não teve dúvida : ordenou ao capelão que rezasse uma missa pelo brasileiro,numa base militar, em meio ao conflito no sudeste asiático.

Termina a entrevista. O general desliza a bordo de uma cadeira de rodas pelos corredores da antiga sede do Ministério da Guerra. Cumpriu o ritual a que se habituara há décadas : concedeu a um repórter migalhas das toneladas de informações que armazenou numa memória freqüentemente citada como “prodigiosa”.

O sobrinho de Walters precisa da ajuda de dois soldados para tirar o homenzarrão da cadeira de rodas para o banco traseiro de um carro. O militar que povoa a galeria de personagens de 1964 como a face oculta do “imperialismo americano” despede-se com um aceno. Já escureceu no Rio.
A batalha verbal deixa pequenas escoriações no repórter – que, como sempre, sai de cena certo de que não conseguiu tudo o que queria. Recolho as armas : o gravador,a máquina fotográfica, o bloco de anotações. Bato em retirada. A fortaleza do general permanece tecnicamente intacta.

Dez dias depois, na segunda semana de fevereiro de 2002, o cafute, o cambito,o capeta,o coisa-ruim,o diacho,o esconjurado,o mequetrefe,o mofento,o tinhoso do imaginário de 1964 estava morto, num quarto do Good Samaritan Medical Center, em West Palm Beach, Flórida.

Tinha 85 anos de idade, quase dois metros de altura.

E uma montanha de segredos.

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(2004)

Posted by geneton at 12:16 PM

março 25, 2004

ALBERT CAMUS : "ERA COMO SE DESSE QUATRO BATIDAS SECAS NA PORTA DA DESGRAÇA"

"O GATILHO CEDEU,TOQUEI O VENTRE POLIDO DA CORONHA E FOI AÍ,NO BARULHO,AO MESMO TEMPO SECO E ENSURDECEDOR,QUE TUDO COMEÇOU.SACUDI O SUOR E O SOL. COMPRENDI QUE DESTRUÍRA O EQUILÍBRIO DO DIA,O SILÊNCIO EXCEPCIONAL DE UMA PRAIA ONDE HAVIA SIDO FELIZ.ENTÃO,ATIREI QUATRO VEZES AINDA NUM CORPO INERTE,EM QUE AS BALAS SE ENTERRAVAM SEM QUE SE DESSE POR ISSO.E ERA COMO SE DESSE QUATRO BATIDAS SECAS NA PORTA DA DESGRAÇA"


"COMPRENDI,ENTÃO,QUE UM HOMEM QUE HOUVESSE VIVIDO UM ÚNICO DIA PODERIA SEM DIFICULDADE PASSAR CEM ANOS NUMA PRISÃO. TERIA RECORDAÇÕES SUFICIENTES PARA NÃO SE ENTEDIAR".

"TAMBÉM EU ME SINTO PRONTO A REVIVER TUDO.COMO SE ESTA GRANDE CÓLERA ME TIVESSE PURIFICADO DO MAL,ESVAZIADO DE ESPERANÇA,DIANTE DESTA NOITE CARREGADA DE SINAIS E DE ESTRELAS,EU ME ABRIA PELA PRIMEIRA VEZ À TERNA INDIFERENÇA DO MUNDO. POR SENTI-LO TÃO PARECIDO COMIGO,TÃO FRATERNAL,ENFIM,SENTI QUE FORA FELIZ E AINDA O ERA. PARA QUE TUDO SE CONSUMASSE, PARA QUE EU ME SENTISSE MENOS SÓ,FALTAVA-ME DESEJAR QUE HOUVESSE MUITOS ESPECTADORES NO DIA DA MINHA EXECUÇÃO - E QUE ME RECEBESSEM COM GRITOS DE ÓDIO".

(ALBERT CAMUS,"O ESTRANGEIRO")

Posted by geneton at 11:44 PM

PAREM AS MÁQUINAS ! O RECLUSO,O TÍMIDO PROFISSIONAL,O DISCRETÍSSIMO,O SILENCIOSO CHICO BUARQUE DE HOLLANDA FALA !


Posted by geneton2 at 11:12 PM

CHICO BUARQUE

CHICO BUARQUE,O EX-"MOTORISTA" DE GARRINCHA,CRIA UMA TESE PARA EXPLICAR POR QUE JÁ NÃO COMPÕE TANTO :
"TALVEZ A MÚSICA POPULAR SEJA UMA ARTE DE JUVENTUDE"


“(....)O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
num fundo de armário,
na posta-restante,
Milênios,milênios
No ar

E quem sabe então
o Rio será
alguma cidade submersa.
Os escafandristas virão
explorar sua casa,
seu quarto,suas coisas,
sua alma,desvãos

Sábios em vão
tentarão decifrar
o eco de antigas palavras,
fragmentos de cartas,poemas,
mentiras,retratos,
vestígios de antiga civilização”

( “Futuros Amantes”)

Somente um poeta inspiradíssimo escreveria versos assim. Mas o autor desses versos não se considera poeta.Nem inspiradíssimo.O que dizer desses versos :

“Mesmo que você fuja de mim
por labirintos e alçapões
saiba que os poetas,como os cegos,
podem ver na escuridão.
E eis que menos sábios do que antes
os seus lábios ofegantes
hão de se entregar assim :
-Me leve até o fim
-Me leve até o fim
Mesmo que os romances sejam falsos
como o nosso
são bonitas,
não importa,
são bonitas as canções.
Mesmo sendo errados os amantes
seus amores serão bons”

(“Choro Bandido”)

Não,não adianta.O compositor de música popular Chico Buarque de Holanda não se declarará Poeta. Mas até as pedras do calçadão do Leblon – por onde ele transita de vez em quando em passo apressado para se livrar dos chatos e queimar calorias - sabem que os versos de Chico Buarque não se enquadram na mera definição de “letras de música”. As rimas que o poeta Chico Buarque engendra há uns bons trinta e cinco anos (!) teriam vida própria se,desgarrados da música,pousassem nas páginas do livro que ele,provavelmente , jamais lançará. Para todos os efeitos , o livro já foi escrito (é só reunir o caminhão de rimas inesperadas,achados brilhantes,metáforas belíssimas que ele foi armazendo pelo caminho). Mas permanecerá inédito, em forma de páginas soltas nas faixas dos discos. O próprio Chico Buarque se encarregou de esclarecer, no site que mantém na Internet (chicobuarque.com.br) : “Nunca publiquei nem creio que venha a publicar um livro de poemas.Não escrevo poemas”.
Assim caminha a humanidade.
A fábrica de versos de Chico Buarque pode ter, com o tempo,reduzido o volume de produção. O dono da fábrica é o primeiro a reconhecer essa evidência estatística. Mas a qualidade dos versos se manteve intacta. Basta pegar um ou outro exemplo recente. Em “ Xote da Navegação”,letra que escreveu sobre música de Dominguinhos , Chico Buarque devaneia como se fosse o passageiro de uma barcaça que vai passando por vilarejos na beira de algum rio brasileiro. Aos olhos de quem viaja na barcaça, a paisagem é que se move :

“(...) Para quem anda na barcaça
tudo, tudo passa
Só o tempo não.

Passam paisagens furta-cor
Passa e repassa o mesmo cais
Num mesmo instante eu vejo a flor
que desabrocha e se desfaz

Essa é a tua música
é tua respiração
mas eu tenho só teu lenço
em minha mão

Olhando meu navio
o impaciente capataz
grita da ribanceira
que navega para trás.

No convés,eu vou sombrio
cabeleira de rapaz
Pela água do rio
Que é sem fim
E é nunca mais”

O primeiro sinal de vida de Chico Buarque em 2001 veio nas letras que escreveu para as músicas de Edu Lobo em “Cambaio”,musical de João e Adriana Falcão. Os tietes podem respirar aliviados : o Padrão CBH de Qualidade brilhou de novo. Um trecho de “Canção Que Existe”, pérola da nova safra :

“Deve haver algum lugar
um confuso casarão
onde os sonhos serão reais
e a vida não.
Por ali reinaria meu bem
com seus risos,seus ais,sua tez
E uma cama onde à noite
sonhasse comigo
talvez

Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
onde os sonhos extraviados
vão parar
entre escadas que fogem dos pés
e relógios que rodam para trás.

Se eu pudesse encontrar meu amor
não voltava
jamais”.

Quem tentar extrair do entrevistado Chico Buarque de Holanda circunvoluções teóricas sobre a Música Popular Brasileira ou sobre a Poesia ou sobre a Política certamente voltará para casa de mãos abanando. Porque Chico Buarque, tímido profissional, usará a timidez como escudo para escapar pela tangente. O homem não é dado a digressões – nem um pouco. Diante de jornalistas em geral, Chico é um caso clássico de Síndrome do Silêncio Compulsivo : em situações normais,prefere se calar. Só fala – provavelmente incomodado – quando enfrenta a rodada de entrevistas programadas pela gravadora para badalar um novo lançamento. Fora daí, o assessor de imprensa de Chico Buarque, Mário Canivello , trabalha dobrado para ir se livrando dos incontáveis pedidos de entrevistas. Estrela de primeira grandeza, Chico Buarque pertence à constelação de personalidades que despertam atenção em qualquer época, sob qualquer circunstância – não apenas quando lança um disco. Ninguém precisa ser psicólogo profissional para constatar que Chico Buarque dispensaria de bom grado essa honraria.
A palavra unanimidade já foi escrita inúmeras vezes ao lado do nome de Chico Buarque de Holanda. Mas um crítico cri-cri poderia,se quisesse,repetir em relação a Chico Buarque o que o poeta e crítico Mário Faustino disse de Carlos Drummond de Andrade : a presença de Chico Buarque de Holanda na vida brasileira – assim como a de Carlos Drummond – seria ainda maior se ele usasse o enorme prestígio de que é dono para intervir com maior frequência no debate cultural.
-“A poesia de Carlos Drummond – disse Faustino,em célebre artigo publicado no suplemento literário do Jornal do Brasil -é documento crítico de um país e de uma época (no futuro,quem quiser conhecer o geist brasileiro,pelo menos entre 1930 e 1945,terá de recorrer muito mais a Drummond do que a certos historiadores,sociólogos,antropólogos e “filósofos” nossos...) e um documento humano “apologético do Homem”. Não parece restar dúvida de que Carlos Drummond de Andrade é um dos nossos raros masters,ao lado de Camões,Fernando Pessoa,Jorge de Lima.Já apontamos aquilo que consideramos o seu grande pecado de omissão : o não se ter nunca realmente interessado(e hoje em dia ainda menos) pelo desenvolvimento da poesia brasileira como forma de cultura.O não propagar.O não ensinar,por um de tantos meios.O não lutar abertamente contra os inimigos de nossa poesia : a facilidade,as falsas glórias,a caótica escala de valores”.

Diante de tal cobrança – se um dia lhe fosse feita -, o master Chico Buarque poderia responder que já disse em suas músicas tudo o que tinha a dizer - assim como Drummond fez em seus poemas e crônicas. Quem discordar que atire a primeira pedra.

Fora dos palcos e estúdios, tenta levar uma vida que nem de longe lembra a de uma estrela. Observadores sortudos podem flagrar o Poeta empenhado em fazer caminhadas solitárias pelo calçadão da praia do Leblon – cenário que escolheu para manter a forma desde que se mudou do Jardim Botânico. Volta e meia é personagem de uma cena tipicamente carioca,como esta,testemunhada pelo locutor-que-vos-fala : Chico Buarque chega sozinho para almoçar em um self-service do Jardim Botânico, o Fazendola. Como qualquer mortal, enfrenta a fila do caixa com a bandeja na mão. Depois, flana pelo salão em busca de uma mesa vazia. As testemunhas da cena cumprem com louvor o papel que lhes cabe : todo mundo faz de conta que Chico Buarque não é Chico Buarque.Deve ser um sósia. Assim,a estrela pode almoçar em paz,sem ser importunado por estranhos. Em outro território, certamente a presença de Chico provocaria compreensível alvoroço. Não aqui. A aparente indiferença faz parte do Código de Conduta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Quando já se dirigia ao portão de saída do self-service , Chico Buarque foi abordado pela primeira vez desde que chegou para o almoço. Quatro moças pedem autógrafo. O pedido é atendido em guardanapos.

Se um dia resolvesse escrever um livro de memórias – remota possibilidade que ele,no entanto, não descarta inteiramente – Chico Buarque teria assunto para encher mil páginas. Se quisesse,reuniria cenas incontáveis da convivência com gente que,como ele,virou mito. O que dizer da amizade com Garrincha no exílio,na Itália ? Chico serviu de motorista de luxo para o gênio das pernas tortas.Enquanto circulavam, Garrincha ia confessando uma surpreendente admiração por João Gilberto.

Nesta entrevista, Chico revisita cenas marcantes como estas –em companhia de Garrincha. Fala da primeira e única vez em que viu o então ditador Emílio Garrastazu Médici. Desmente um mito : o de que teria escrito os versos “você não gosta de mim,mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel. Diz qual é a música de outro compositor que lhe desperta um sentimento parecido com a inveja.

Repórter que se preza deve evitar manifestações de tietagem explícita. Não faz bem à profissão. É recomendável que se mantenha um mínimo de “distanciamento crítico” em relação ao entrevistado. Caso contrário, a entrevista corre o sério risco de se transformar numa dessas conversas televisivas em que entrevistador e entrevistado parecem duas comadres plantando abobrinhas – um prova insuportável para a paciência dos senhores espectadores. Devo confessar, no entanto, que cometi um pequeno pecado : terminada a entrevista em que Chico,receptivo e simpático,disfarçou com extrema habilidade o incômodo de encarar um repórter, pedi ao Poeta um autógrafo numa foto que descobri,empoeirada,em meus Arquivos Implacáveis. Tirada no já remotíssimo ano de 1972, no camarim do Teatro Santa Isabel, no Recife,a foto mostra o locutor-que-vos-fala em início de carreira,aos 16 anos de idade,importunando Chico Buarque com um pedido de entrevista – felizmente atendido. Lá se vão (quase) vinte e nove anos. O autor da foto – acredite quem quiser – foi um soldado da polícia chamado Chateaubriand – que, nas horas vagas, saía do quartel para dar expediente como free-lancer no Departamento Fotográfico do Diário de Pernambuco. Dois detalhes inesquecíveis.Primeiro : Chateaubriand se locomovia numa velha lambreta que exibia, nas laterais,um adesivo com a palavra “reportagem” - sinal de que exigia respeito onde quer que chegasse. Segundo : ia trabalhar fardado de soldado. Deve ter causado estranheza a figura de um soldado com uma máquina fotográfica nas mãos nos camarins do Teatro Santa Isabel na noite do show de Chico Buarque – uma figura detestada pelo regime militar. Em todo caso, cumprimos a missão a contento. Voltei à redação do Diário com um punhado de frases,ditas por um Chico que curava o nervosismo antes de entrar no palco com goles de uma bebida que não levava gelo. Devia ser uísque. Chateaubriand fotografou o astro. Ao ver a foto, tanto tempo depois, Chico Buarque diz, assustado : “....Mas é você ? !!!”.
Desgraçadamente, era. O autógrafo sobre o flagrante diz : “Para o jovem Geneton, um abraço do jovem Chico Buarque”.

O Poeta que prefere não falar vai responder, a partir de agora, a quarenta perguntas. São lembranças inéditas - um capítulo do livro de memórias que,possivelmente,jamais será escrito.
Gravando !


GMN : Que música de outro compositor você daria tudo para ter feito ?

Chico Buarque : “Eu não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor.Mas existem músicas que amo.Gosto mais do que as minhas.Eu não gostaria de ter feito uma música alheia.É uma coisa que não me ocorre.Porque o maior prazer da música está exatamente no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa.Quando você ou repete nos shows, não vive a mesma sensação. Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro,então,sentir o prazer que sinto a cada composição minha,por menor que seja”.

GMN : Você poderia,então,citar uma música de outro autor que você inveja ?

Chico Buarque : “Um milhão de músicas.Não tenho uma preferida,mas agora que você falou,me bateu uma na lembrança : “Águas de Março” – de Tom Jobim. É uma música que eu não diria que gostaria de ter feito,porque é impossível que eu fizesse uma música dessa.É outra cabeça.Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação,assim como músicas de Noel Rosa,Cartola,Caetano Veloso,Gilberto Gil,Milton Nascimento. Recorro a um recurso : tenho parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio Tom.Ao me fazer parceiro,eu crio a música com eles.Ao fazer a letra para uma música alheia,eu estou me apropriando um pouco dessa música - que não é minha”.


GMN : Depois de fazer “Paratodos”,você passou anos sem lançar um disco com músicas inéditas.Disco de Chico Buarque agora é feito Copa do Mundo – só de quatro em quatro anos ?

Chico Buarque : “Pior ! Agora é de cinco em cinco. Os lançamentos vão se espaçando.O trabalho vai ficando mais difícil mas também mais prazeroso.Quando termina,você se sente cansado,mas satisfeito.As músicas saem,talvez,com menos espontaneidade,com mais intensidade” .

GMN : A que você atribui o espaçamento cada vez maior entre um disco e outro ?

Chico Buarque : “Talvez a música popular seja uma arte de juventude.Imagino que seja,porque o consumidor de música popular é,sobretudo,o adolescente,o jovem de vinte a trinta anos.Depois,começa a diminuir. Já o autor de música popular tende a ser mais seletivo com o tempo. Faz uma coisa ou outra,mas não com a exuberância que tinha aos vinte anos de idade. Quando você tem vinte anos,você tem um baú de música inéditas. Depois,as músicas vão escasseando.Você fica mais exigente.Chega,então,um tempo em que a gente começa a fazer música popular com o resto de juventude que se tem.Depois,o melhor a fazer talvez seja imitar Dorival Caymmi – que se recolheu aos seus pincéis e suas tintas.Talvez seja melhor procurar outro afazer,outra ocupação”.

GMN : Não é o que você vem fazendo nos últimos anos,com a dedicação cada vez maior à literatura ?

Chico Buarque : “A literatura é uma alternativa. Talvez eu tenha me inspirado em Caymmi ao pensar nisso : ter um recurso para continuar criando sem depender da juventude - que é o motor da música popular”.

GMN : Você diz que o futebol tem momentos de improviso e genialidade que nenhum artista consegue repetir.Mas em alguma de duas músicas você teve o sentimento de improviso que você só encontra no futebol ?

Chico Buarque : “É possível encontrar algo semelhante ao futebol no jazz,na música instrumental.Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador.De qualquer forma,há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente,vem uma idéia. Você se pergunta : de onde veio ? É o que acontece com o futebol : é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável”.


GMN : Que música ou que verso despertou em você,na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible ?

Chico Buarque : “Você vai trabalhando,trabalhando,trabalhando em cada música,até que há um “clique” : aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz” .É como se fosse algo que viesse de fora”.

GMN : Quando estava exilado na Itália,você teve contato com Garrincha.É uma página pouco conhecida da biografia de Chico Buarque. Vocês conversaram sobre futebol ou sobre música ?

Chico Buarque : “É óbvio que eu falava sobre futebol – e ele falava de música....Acontece também com Pelé – que adora música.Mas Garrincha era muito musical.Tive um contato maior com ele em Roma.A gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol.Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes.Gostava de João Gilberto.Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória,mais ingênua,talvez.Mas não ! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto”.

GMN :Que tipo de comentário ele fazia sobre João Gilberto ?

Chico Buarque : “Garrincha comentava gravações,se referia a detalhes,lembrava de como João Gilberto cantava uma determinada música. Para me mostrar,Garrincha cantarolava – não muito bem – mas mostrava que tinha a lembrança das músicas de João Gilberto.Referia-se à maneira como João Gilberto cantava as músicas. João é um inventor.Não é um compositor.Talvez seja mais do que compositor,porque inventa a partir de uma música alheia.E Garrincha falava exatamente disso : a maneira como João Gilberto cantava -talvez uma cantiga mais conhecida que ele tivesse reinterpretado,como “Os Pés das Cruz”. Garrincha salientava a maneira como João Gilberto reiventava um samba”.

GMN : É verdade que você dirigia automóvel para Garrincha na Itália ?

Chico Buarque : “Eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma.Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat.Era impressionante.As pessoas paravam na rua.Garrincha era muito popular.Isso aconteceu entre 1969 e 1970.Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo.Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962.Mas ele ainda era muito conhecido na Itália”.

GMN : “Se você pudesse escolher entre ser um grande nome da Música Popular Brasileira e um grande craque da seleção, qual das duas profissões você escolheria ?

Chico Buarque : “Nunca escolhi sem músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos quatorze,quinze anos de idade,eu quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão.Mas eu tinha essa ilusão,na época,com bastante segurança.Tornei-me músico um pouco por acaso.
Devo dizer que o sonho de ser um craque
permaneceu na minha cabeça.Ainda hoje acredito que seja”.

GMN : Você chegou a tentar ser um jogador de futebol profissional ?

Chico Buarque : “Eu,que jogava tanto,um dia fui ao Juventus,na rua Javari,em São Paulo,para fazer um teste.Mas eram milhões de candidatos fazendo o teste....Comecei a perceber que ia não dar para mim. Depois de esperar,esperar e esperar,fui embora.Não cheguei nem a ser chamado para fazer o teste,porque acharam que eu não tinha físico para ser jogador”.

GMN : Mas por que você escolheu logo o Juventus para fazer um teste – e não um time grande,como o Palmeiras,o Corinthians ou o São Paulo ?

Chico Buarque : “Porque eu achava que,num time mais fraco,eu teria uma vaga na certa....(ri)”.

GMN : “Você,como especialista em futebol,jogador amador,técnico de um time de futebol de botão chamado Politheama,poderia escalar a seleção brasileira de tods os tempos de Chico Buarque de Holanda ? Qual é o grande time ?
Chico Buarque : “É impossível.A brincadeira de escalar times de diversas épocas é apenas uma brincadeira.Porque você não pode comparar o futebol que se joga hoje com o futebol que se jogava há dez anos.Imagine vinte anos ! A comparação é falsa. Não se imagina o que seria Garrincha hoje nem se imagina o que seria Romário há vinte anos.É uma comparação absurda”.

GMN : Você tem no futebol ídolos que não são tão populares quanto Pelé e Garrincha,como Canhoteiro,por exemplo....

Chico Buarque : “Canhoteiro,Pagão.Fiz uma música chamada “O Futebol” dedicada a uma linha utópica – Mane Garrincha,Didi,Pagão,Pelé e Canhoteiro. Temos nossos ídolos particulares,aqueles que a gente pensa que são só nossos,porque ninguém conhece.Pelé e Garrincha todo mundo da minha idade viu jogar.Quando eu morava em São Paulo,via jogadores como Canhoteiro e Pagão.Não havia televisão em rede nacional. O pessoal do Rio,então,não conhecia esses jogadores.Quando falo de Canhoteiro e Pagão,nem sempre conhecem,aqui no Rio.Outros ídolos aqui do Rio nem sempre eram conhecidos em São Paulo. Quando eu voltava para casa em São Paulo,depois de passar férias no Rio,por volta de 1955,antes da Copa,portanto,eu falava de Garrincha – e ninguém sabia quem era”.

GMN : Quando criança –ou adolescente- você era daquele tipo de torcedor que vai ver o jogador descendo do ônibus na porta da concentração ?

Chico Buarque : “Eu fazia isso tudo,porque morava perto do estádio do Pacaembu.Eu me lembro de ter visto a seleção de 1958 concentrada.Fui lá peruar,ficar com cara de bobo olhando para as “figurinhas”.Porque eu conhecia os jogadores dos álbuns de figurinhas- muito pouco de televisão.Não tinha televisão em casa.A gente não via futebol pela TV : ia ver no estádio.Eu os jogadores de longe,durante os jogos.Ver de perto um jogador era um acontecimento”.

GMN : De qual dos jogadores que você viu de perto você guardou a lembrança mais forte ?

Chico Buarque : “De Almir,o Pernambuquinho – que ficou olhando para mim depois que entrou no ônibus.Eu estava ali de boca aberta,com cara de babaca,olhando os jogadores.Almir,então,começou a caçoar de mim.Depois de ter sido chamado na primeira convocação,num grupo de quarenta e quatro jogadores,Almir terminou nem indo para a Copa da Suécia”.

GMN : Você,ainda criança, viu a famosa seleção brasileira de 1950 jogar em São Paulo contra a Suécia,nas vésperas da grande derrota contra o Uruguai,no Maracanã. A derrota de 1950 deixou algum trauma em você ?

Chico Buarque : “Trauma não posso dizer que tenha deixado,porque eu tinha seis anos de idade.Mas me deixou assustado,porque ouvi o jogo pelo rádio.O Maracanã,”o maior estádio do mundo”,era um sonho na minha cabeça.Eu me lembro exatamente de que o locutor,chamado Pedro Luís,disse assim quando o Brasil fez um a zero contra o Uruguai : “Gol de Friaça ! Quase que vem abaixo o Maracanã !”. Eu pensei que o estádio viesse abaixo mesmo ! Pensei que o estádio estivesse caindo,com duzentas mil pessoas.Não prestei atenção ao jogo.Fiquei pensando no Maracanã tremendo com aquelas pessoas todas ali dentro”.

GMN : Quem levou ao estádio ,em São Paulo,para ver o jogo do Brasil contra a Suiça pela Copa de 50 ?

Chico Buarque : “Quem levou foi minha mãe,porque meu pai não gostava muito de futebol”.

GMN : O futebol tem uma presença enorme na vida do brasileiro,mas aparece pouco como tema de músicas.É desproporcional a relação entre a importância do futebol e a quantidade de músicas que tratam do tema. Por que ?

Chico Buarque : ”Não sei.O futebol é próximo da fita do brasileiro,assim como os jogadores sempre foram muito próximos dos músicos.Jogador de futebol tem mania de batucar,canta na concentração.Isso não é de hoje,existia já nos anos cinqüenta.Hoje,o pessoal de pagode se encontra com o pessoal da seleção para gravar”.

GMN : Se a gente for contar as músicas suas que tratam de futebol,vai ver que são poucas. Qual é a dificuldade em tratar de futebol ?

Chico Buarque : “Não é só música.Há pouca literatura tratando de futebol,há pouco cinema. Dá para entender por que há pouco futebol no cinema : é difícil reproduzir com imagens o que já é tão forte na vida real. Teoricamente,traduzir o futebol em palavras ou em música seria fácil do que em cinema.Prometo fazer mais umas duas ou três”.

GMN : Você jogaria pelo Fluminense hoje ?
Chico Buarque : “Claro que jogaria ! Tenho vaga naquele time”.

GMN : Quando joga futebol,que posição você ocupa ?

Chico Buarque : “Jogo em todas.Mas sou mais de preparar o gol. Sou um centro-avante recuado”.

GMN : Por que é que você se apresentava como jogador da seleção brasileira numa viagem que você fez ao Marrocos ? Alguém desconfiou da mentira ?


Chico Buarque : “Quando você diz que é brasileiro no exterior,o pessoal começa a falar de futebol.
É uma maneira de ganhar ponto com eles.Numa conversa com motorista de táxi,por exemplo,o assunto futebol logo aparece se você diz que é brasileiro.Então,eu assumia a identidade de jogador de futebol até que um estrangeiro disse : “Ex-jogador,não é ? “....Eu disse que tinha sido convocado para a seleção de 82 : tinha sido reserva de Sócrates”.

GMN : O pessoal acreditava ?

Chico Buarque : “Não !” (rindo)

GMN : Você quebrou o perônio e rompeu os ligamentos jogando futebol. Disse,então,que não estava conseguindo compor porque não sabe fazer música parado. Você só compõe andando ?

Chico Buarque : “Não apenas compor – eu também só sei pensar andando. Se você ficar parado,não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo.Se você tem qualquer problema,dê uma caminhada -porque ajuda,inclusive a ter idéias. Se a música ficou emperrada ou se a idéia para um livro não vem ,a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama.Eu não conseguia ter idéias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdido pela imobilidade”.

GMN : Você então associa o ato de andar ao ato de compor ?

Chico Buarque : “Associo o ato de andar ao ato de pensar,criar e compor”.

GMN : Você já teve o “estalo” para alguma música jogando futebol ?

Chico Buarque : “Fazer música jogando futebol não dá,porque durante a partida você fica empenhado em suas jogadas geniais.Mas caminhando tive a idéia de várias coisas.A verdade é a seguinte : você compõe com o violão,mas quando o momento em que o processo fica encrencado,você tem de sair andando. Não pode ficar parado,com o violão,a vida inteira. Então,para resolver impasses,o melhor é caminhar”.

GMN : Diz a lenda que você escreveu aquele refrão “você não gosta de mim/mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel – que tinha uma filha.Somente você pode tirar essa dúvida : é verdade ?

Chico Buarque :”Eu nunca disse isso.As pessoas inventam. O engraçado é que a invenção passa a fazer parte do anedotário. Nunca imaginei que pudesse fazer uma música pensando num general ! A gente não faz isso. Você pode fazer uma música com raiva de alguma coisa : acontecia na época da ditadura militar,porque,com a censura,a política interferia na criação,o que nos incomodava.Mas você não ia dedicar uma canção a um pessoa. Quando se falava “você”,não se estava referindo a um general.Era uma generalidade”.

GMN : Por falar em generais : o general Garrastazu Médici freqüentava estádios no tempo em que você sofria os horrores da censura. Alguma vez você cruzou com ele num estádio de futebol ?

Chico Buarque : “Vi uma vez,porque eu estava chegando ao portão que dá nas cadeiras do Maracanã.De repente,chegou uma turma de batedores,com sirenes,com a truculência que é um pouco própria de autoridades,mas na época,era muito mais acentuada.”Afasta todo mundo ! “. Médici desceu do carro.Fiquei vendo de longe aquele figura”.

GMN : Você já era famoso.Algum dos batedores do general reconheceu você por acaso ?

Chico Buarque : “Batedor não reconhece ninguém : não olha para a cara de ninguém na hora de sair abrindo espaço”.

GMN : Em 1978,você participou da campanha do então candidato ao senado Fernando Henrique Cardoso,em São Paulo. Numa declaração publicada em 1998 em livro,Fernando Henrique diz que você é um crítico repetitivo.Como é que você recebeu essa crítica ?

Chico Buarque : “Achei engraçado no começo. Mas não dei a importância que às vezes dão.Parece que fiquei ofendido.Não. É normal,é natural que um político tenha opiniões políticas até a respeito de artistas. Diz o que interessa naquele momento.É da natureza de um político.Fernando Henrique sabe o que diz e tem o direito de gostar de quem quiser.Nunca imaginei que ele gostasse de mim. Achei divertida e engraçada a ênfase com que ele gosta de uma pessoa e pode deixar de gostar.Mas é a opinião de um político.Fernando Henrique diz que não gosta mais de mim.Antes,gostava”.


GMN : É verdade que você tem um irmão alemão ?
Chico Buarque : “Eu tenho um meio- irmão alemão.Não sei se ainda tenho.Mas tive. O meu pai teve um filho alemão antes de se casar.Depois,perdeu de vista,porque voltou para o Brasil,onde se casou.Não se relacionou mais com a mulher nem com o filho que teve na Alemanha.A última notícia que ele teve foi durante a guerra. A mulher pediu que o meu pai enviasse documentos provando que não tinha sangue judeu até a segunda ou terceira geração.O meu pai providenciou.Depois da guerra,não teve notícias”.

GMN : Você chegou a procurar esse irmão ?

Chico Buarque : “Uma vez,quando fui a Berlim,tive a impressão de estar vendo um irmão sempre em alguma parte – alguém que pudesse parecer comigo ou com meu pai. Tive a impressão de que ele poderia estar ali. Não sei explicar o que aconteceu.Não se a mãe não contou a ele quem era o pai.A mulher pode ter mudado de nome depois de se casar de novo.Um pai alemão pode te-lo adotado.O engraçado é que sempre perguntavam ao meu pai – que era muito branco de pele : “Por acaso o senhor é filho de alemão ? “. E ele dizia : “Não.Sou pai de alemão”.

GMN : O seu pai disse,num artigo,que você,quando era estudante,gostava de desenhar cidades.Havia sempre uma fonte no meio da praça,nas cidades que você desenhava. Você,que já foi estudante de arquitetura,ainda hoje desenha ou imagina alguma cidade nas horas vagas ?

Chico Buarque : “Desenho cidades enormes,gigantescas,com fontes,com praças,com nomes,com ruas.Quando não desenho,penso.Sonho muito com cidades. Os meus sonhos misturam cidades que conheço.Também sonho com cidades que não conheço e com cidades que imagino.São as melhores de todas”.

GMN : Você batizou o seu time de futebol de campo de Politheama – que era o nome do seu time de futebol de botão. Que nomes você dá às suas cidades imaginárias ?

Chico Buarque : “Não vou contar.
As cidades têm nomes.Mas não posso nem pronunciar aqui.Vou passar vergonha” .

GMN : Por quê ?

Chico Buarque : “Porque são nomes que têm consoantes que nem existem.São idéias bobas”.

GMN : Você tem a fama – falsa- de tímido e a fama – verdadeira – de arredio.Você não é de estar todo dia nos jornais ou na televisão. Qual é o maior incômodo que a fama traz ? É o assédio dos fãs,a invasão de privacidade ou a curiosidade da imprensa ?

Chico Buarque : “Assédio de fãs,no meu caso,não existe,porque não ando cercado nem de óculos escuros. Ando naturalmente na rua. As pessoas não perturbam muito.Se você andar como uma pessoa qualquer,você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem,dizem “olá,Chico,tudo bem ? “.Não passa disso.Não vou dizer que é mau.É bom,é simpático,é gostoso.Não tenho nada contra”.

GMN : Mas a imprensa incomoda você de vez em quando...

Chico Buarque : “Quando quer,a imprensa incomoda” .

GMN : É por isso que você dá tão poucas entrevistas e fala tão pouco com os repórteres ?

Chico Buarque : “Eu falo bastante.Falo mais do que devia.Já estou falando aqui há meia-hora com você ! Mas é que não tenho tanto assunto.Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras coisas”.


GMN : “Se você fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda numa enciclopédia de música popular,qual seria a primeira frase ?

Chico Buarque(rindo) :”Êpa !. Não sei.Podia ser “ êpa”....

GMN : Com interrogação ou com exclamação ?

Chico Buarque : “Com interrogação.A primeira palavra seria : êpa ? “.



(1998/2001)

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Posted by geneton at 11:06 PM

março 24, 2004

LAMPEDUSA :"UMA DOR ATÔNITA DIRIGIDA CONTRA TODO O ORDENAMENTO DAS COISAS"


...."AS ÁGUAS,SOPRADAS PELAS CONCHAS DOS TRITÕES E DAS NÁIADES,PELAS NARINAS DOS MONSTROS MARINHOS,IRROMPIAM EM ESGUICHOS FINOS,SALPICAVAM COM UM SUSSURO AGUDO A SUPERFÍCIE ESVERDINHADA DO LAGO,PROVOCAVAM RICOCHETES, BOLHAS, ESPUMA, ONDULAÇÕES, FRÊMITOS, TORVELINHOS ALEGRES ; EMANAVA DE TODA A FONTE,DA ÁGUA TÉPIDA,DAS PEDRAS COBERTAS DE MUSGO AVELUDADO,A PROMESSA DE UM PRAZER QUE JAMAIS PODERIA MUDAR-SE EM DOR ".


...."....ARGUTO DEPÔS AOS PÉS DO PRÍNCIPE UM ANIMALZINHO AGONIZANTE.ERA UM COELHO : O HUMILDE CASACO COR DE BARRO CINZENTO NÃO TINHA SIDO SUFICIENTE PARA SALVÁ-LO.O FOCINHO E O PEITO HAVIAM SIDO RASGADOS POR HORRÍVEIS GOLPES.DURANTE MOMENTOS DOM FABRIZIO VIU-SE FIXADO POR GRANDES OLHOS NEGROS,INVADIDOS RAPIDAMENTE POR UM VÉU GLAUCO,QUE O OLHAVAM SEM REPROVAÇÃO; CHEIOS,PORÉM,DE UMA DOR ATÔNITA DIRIGIDA CONTRA TODO O ORDENAMENTO DAS COISAS"

LAMPEDUSA,EM "O LEOPARDO"

Posted by geneton at 02:27 AM

O COMANDANTE FIDEL SUSPIRA,DIANTE DA IMENSIDÃO DA FLORESTA AMAZÔNICA : "QUE GRANDE PAÍS ! AQUI É QUE DEVERÍAMOS TER FEITO A REVOLUÇÃO !"


Posted by geneton2 at 02:13 AM

ITALO CALVINO : "O PESADUME,A INÉRCIA,A OPACIDADE DO MUNDO"

...."LOGO ME DEI CONTA DE QUE ENTRE OS FATOS DA VIDA,QUE DEVIAM SER MINHA MATÉRIA-PRIMA,E UM ESTILO QUE EU DESEJAVA ÁGIL,IMPETUOSO,CORTANTE,HAVIA UMA DIFERENÇA QUE EU TINHA CADA VEZ MAIS DIFICULDADE EM SUPERAR.TALVEZ QUE SÓ ENTÃO ESTIVESSE DESCOBRINDO O PESADUME,A INÉRCIA,A OPACIDADE DO MUNDO - QUALIDADES QUE SE ADEREM LOGO À ESCRITA,QUANDO NÃO ENCONTRAMOS UM MEIO DE FUGIR A ELAS"

(Italo Calvino em "Seis Propostas para o Próximo Milênio")

"

Posted by geneton at 02:00 AM

PEDRO NAVA :"DESPEDAÇADO PELAS BESTAS DA DESOLAÇÃO"

..."MANUEL BANDEIRA,QUE ERA AMIGO DO REI,IA-SE EMBORA PRA PASÁRGADA. AI ! DE MIM,SEM REI NEM AMIGO REI,QUE QUANDO CAIO NO FUNDO DA FOSSA,QUANDO ENTRO NO DESERTO E SOU DESPEDAÇADO PELAS BESTAS DA DESOLAÇÃO,QUANDO FICO TRISTE,TRISTE (..."MAS TRISTE DE NÃO TER JEITO..."),SÓ QUERO REENCONTRAR O MENINO QUE JÁ FUI"

(Pedro Nava em "Baú de Ossos")

Posted by geneton at 01:51 AM

março 23, 2004

CENA DE REDAÇÃO.DIANTE DO REPÓRTER JOEL SILVEIRA, O GÊNIO NELSON RODRIGUES RESUME EM UMA PALAVRA O DESTINO DE TODOS NÓS : "PATÉTICO !"

Posted by geneton2 at 01:34 AM

CABRERA INFANTE

O MAIS IMPORTANTE EXILADO CUBANO ATACA TODAS AS FORMAS DE LITERATURA ENGAJADA : "A POLÍTICA MATOU A LITERATURA LATINO-AMERICANA"


LONDRES - A barbicha que ornamenta o queixo do mais famoso exilado cubano,o escritor Guilhermo Cabrera Infante,dá a ele um certo ar de
Leon Trotsky,o revolucionário abatido a golpes de picareta por ordem da
patrulha stalinista. Sisudo na hora de tirar fotos, Cabrera Infante exerce,no
entanto,uma fina ironia na hora de falar de suas três grandes paixões -
a literatura,o cinema e a atriz Melanie Grifith. Logo transforma-se num
guerrilheiro verbal na hora de atacar os seus três grandes desafetos : Fidel
Castro,Fidel Castro,Fidel Castro - uma reconhecida obsessão.

Aos 67 anos de idade,pai de duas filhas,autor de livros como ''Tres Tristes Tigres'',''La Habana para un Infante Difunto'' e ''Mea Cuba'',Cabrera Infante chegou a dirigir o conselho de cultura da recém-instalada revolução cubana,no início dos anos sessenta,mas escolheu o caminho do exílio ao desconfiar da vocação tirânica do comandante Fidel.

Vive na Inglaterra desde 1966,num apartamento térreo em Gloucester Road. Nesta entrevista,concedida em meio ao caos em que se transformou a sala do apartamento em obras,Cabrera Infante bate forte em Gabriel Garcia Marques,revela o que ouviu de Fidel Castro durante um sobrevôo na floresta amazônica e confessa por que preferiu perder a chance de ouro de conhecer Melanie Grifith pessoalmente. Dramático,sentencia : a política é a maior inimiga da literatura.
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GMN : O senhor diz que perdeu o interesse pela obra de Gabriel Garcia Marquez quando um personagem começou a levitar,logo nas primeiras páginas. Como já tinha visto a serie da TV ''A Noviça Voadora'',não se animou a continuar a leitura.A hostilidade que o senhor exerce em relação a Gabriel Garcia Marquez não tem também razões políticas,já que ele apóia um governante que o senhor detesta - Fidel Castro?

Cabrera Infante :..''Mas a adesão de Garcia Marques a Fidel
Castro é posterior à leitura que fiz de ''Cem Anos de Solidão'' ! Se me
interesso tanto por Jorge Luis Borges,não poderia me interessar por ''Cem Anos de Solidão'',um livro folclórico.Se o problema é encontrar um livro que
trabalhe com elementos sul-americanos surpreendentes,então prefiro ''Grande
Sertão : Veredas'' - de Guimarães Rosa - uma obra que,lamentavelmente,ninguém
conhece. Além de ser um livro genuíno,''Grande Sertão Veredas'' faz
contribuições extraordinárias à língua literaria.Vejo em Guimarães Rosa uma
solidez e uma consistência extraordinárias.Aquele mundo é realmente mágico ! .Nada a ver com ''realismo mágico'' e todas essas porcarias. É um mundo mágico que afeta a linguagem.Isto é que é importante.

Outros cultores do realismo mágico na América do Sul,como Isabel Allende,por exemplo,seguem fórmulas.Em Guimarães se encontra a verdadeira magia.Isto se encontra tambem em livros brasileiros anteriores,como Macunaíma - uma obra extraordinária.Já li mais de uma vez.

Minha primeira negação em relação à obra de Garcia Marquez vem de 1967.Sempre considerei seus livros de um folclorismo e um exotismo realmente desnecessários''.

GMN : ...Mas este desprezo por Garcia Marquez não teria também bases políticas,além das razões puramente literárias ?

Cabrera Infante :''A adesão de Garcia Marquez a Fidel Castro,tão pública e tão clamorosa,veio depois de ele ter ficado famoso como
escritor.Há antecedentes parecidos.Quando Hitler subiu ao poder em 1933,um escritor norueguês premiado com o Nobel,Knut Hamsun,foi a Berlim,para dar a ele a medalha de presente.Eis um exemplo de um escritor se manifestando de maneira imprópria diante de um tirano.Hoje,este escritor é virtualmente desconhecido. Hitler perdeu a guerra.Deixaram o escritor numa espécie de quarentena,em que ele permanece até hoje.O gesto de se associar tão de perto a um tirano é perigoso para um escritor.Porque tiranos têm finais violentos.Isto não é novo.Ja' acontecia na Roma dos césares,com Nero e Petronio. Grande cortesão,autor de Satiricon,Petronio sofreu justamente por
estar tão perto do tirano''.

GMN : Mas o senhor enxerga alguma virtude literária em Gabriel Garcia Marquez ?

Cabrera Infante :'' Não conheco a obra que Gabriel Garcia
produziu depois de ''Cem Anos de Solidão''.Fiquei vacinado.Toda essa pseudo-mitologia sul-americana se manifestava através de uma prosa que não me interessa.É a prosa da ''belle ecriture''.A mim me parece absolutamente detestável''.

GMN : Alguém que não conhece a obra de Garcia Marquez poderia esperar que um simpatizante do ''socialismo real'' produzisse um obra que seguisse os parâmetros do ''realismo socialista'', mas acontece que os livros de Garcia Marques apontam exatamente para a direção contrária - rumo ao delírio do chamado ''realismo mágico''....

Cabrera Infante(interrompendo) : ''...Mas os que
professaram o realismo socialista estavam todos sob uma tirania ! O realismo socialista foi produto da tirania de Stalin.Escrevia realismo socialista quem
era obrigado.Mas há escritores comunistas,como Jorge Amado,que não escrevem realismo socialista porque não são obrigados a tal,não existe uma tirania no Brasil.Pelo contrário : Jorge Amado também escreveu realismo mágico - e mais socialista não pode ser ! Apoiou Fidel Castro!

É preciso fazer uma distinção.O que aconteceu com escritores que produziram o realismo socialista aconteceu também com escritores que viveram sob Mussolini,na Itália : tiveram de seguir os ditados estéticos do fascismo.Outra coisa - muito diferente - é viver fora da órbita de um tirano,seja socialista ou fascista. Gabriel Garcia Marquez nao é um escritor cubano.O que acontece é que escritores cubanos são obrigados a seguir as várias formas que o realismo socialista pode assumir no trópico.É o caso de um escritor eminente,Alejo Carpentier.Tinha uma obra grande quando vivia fora de Cuba.Ao chegar lá,os livros que produziu,como ''A Sagração da Primavera'',''O Recurso do Método'' ou ''Concerto Barroco'',foram feitos para aprovação pelo Comitê Central do Partido Comunista Cubano''.

GMN : Jornais sempre citam o senhor como ''o mais importante exilado cubano''....

Cabrera Infante(interrompendo de novo ): ''Eu preferiria que me considerassem o mais importante escritor cubano - não o mais importante exilado,porque não tenho atividade política ! Sou um escritor.Projeto-me como um escritor.Vivo como um escritor.Meu problema com Fidel Castro é de ordem moral.Não tenho aspirações políticas para quando Fidel Castro desaparecer.Sequer contemplo a possibilidade de regressar a Cuba depois de queda de Fidel.A diferenca é esta.Há exilados eminentes que sao políticos praticantes''.

GMN : O sentimento de inveja é comum entre escritores.Gabriel Marquez é famoso também por ter ganho o Premio Nobel de Literatura. Se alguem imaginar que existe um sentimento de inveja entre vocês dois estará exagerando ?

Cabrera Infante : ''Não de minha parte ! A inveja é
genética.Ou se nasce invejoso ou se nasce desinteressado.Não tenho nenhuma
inveja literária.É algo que tenho de agradecer aos meus gens - mais do que à providência.Não entendo o que é a inveja literária.Outra coisa seria dizer que eu preferiria viver melhor ou que esta é uma casa modesta ou que eu gostaria
de ganhar milhões de dólares.É outra coisa.Mas inveja literária não !''

GMN : O senhor diz que Machado de Assis ''não tem rival''.Qual foi exatamente o livro que despertou tanta admiração ?

Cabrera Infante : ''Uso um trecho das ''Memorias Póstumas de Brás Cubas'' no epílogo de um dos meus livros - ''A Twentieth Century Job'',um volume de críticas de cinema.Isto aconteceu quando não muita gente se ocupava de Machado de Assis,pelo menos na órbita espanhola. A gente ve toda esta onda espanhola sobre romancistas do seculo XIX - que teriam sido grandes escritores. Se a medida for Machado de Assis,digo : não são !''
GMN : A condição de "dissidente" e "exilado" incorporou-se à vida a ao nome do senhor como um título.É uma maldição ou é uma bênção ter trocado Havana por Londres ?

Cabrera Infante :''Há uma inexatidão aí : não sou
dissidente.Sou exilado.Os dissidentes vivem no país de que dissentem.Há outros em Cuba que se encarregam desta tarefa.Sou simplesmente um exilado.Se eu levar em conta que aqui em Londres vivo uma vida
inteiramente livre,poderia considerar uma bênção o fato de ter chegado à gloria depois de ter escapado do inferno. Mas o exílio traz problemas.Um
exilado sempre carregará consigo a terra de onde veio.Terá sempre a idéia de
voltar.Tal como Havana,Londres é capital de uma ilha - mas Inglaterra não é
Cuba.A Inglaterra tem problemas graves de luz. Sobretudo no inverno,eu padeço dessa falta de luminosidade,dessa ausência de sol.Em Havana,o sol parecia sobrar,sempre.Para mim,hoje,esta é a maior diferença entre viver no trópico e viver em um clima destes.

De qualquer maneira,a gente precisa reimplantar a vida em
outro destino.Aqui em Londres trabalho à vontade.Você vê esta sala ? Eu me sento aqui para trabalhar,vejo atraves da janela toda essa gente agasalhada passar pela rua,com seus abrigos e seus guarda-chuvas.E eu aqui dentro -
de camisa - escrevendo.Não preciso ir para lugar nenhum para trabalhar.Assim,sou um privilegiado em relação a estes ingleses que passam lá fora,na rua.Simplesmente,eu me levanto,tomo o café da manhã e começo a escrever.A minha casa é o meu lugar de trabalho.É meu escritorio.É minha fábrica''.
GMN : Exilados cultivam o idioma como o único grande vinculo com o país de onde vieram.O senhor,no entanto,já escreve em inglês,depois de trinta anos na Inglaterra.Não teme se transformar num apátrida literário - um escritor de língua espanhola escrevendo em inglês ?

Cabrera Infante :''Um fenomeno interessante acontece aqui em casa.A TV fala em inglês.Os jornais que leio,os filmes que vejo,é tudo quase sempre em inglês.Mas tenho dentro de casa um reservatório de língua espanhola - a minha mulher,Mirian Gomes.Sempre conversamos em espanhol.Minhas filhas se comunicam entre elas em inglês,mas nós sempre nos comunicamos em espanhol .De qualquer maneira,também escrevo bastante
em espanhol,nos artigos que publico toda semana na imprensa espanhola ou mexicana.

Não aconteceu comigo o que acontece com escritores que aprendem um idioma estrangeiro mas já não falam a língua nativa.Não.A mim me interessa escrever em espanhol.Vejo como uma grande vantagem o fato de ter conquistado a língua inglesa sem ter perdido a língua espanhola''.

GMN : O senhor já descreveu o exílio como ''uma estrada sem chão''.Mas,sob o ponto de vista estritamente literário,o exílio pode ser fértil ?

Cabrera Infante : ''Há escritores que se realizam no
exílio,assim como há escritores que se destróem.Devo dar gracas a Fidel Castro por ter me convertido em escritor ! . Eu era um jornalista que fazia sucesso numa revista como crítico de cinema.Ao sair de Cuba,tive de inventar uma carreira de escritor.Porque nunca me interessara escrever livros.Eu gostava era do imediatismo do jornalismo.Mais ainda : eu gostava -e gosto- do ambiente de redação de jornal.Trabalhar numa redação de jornal é como estar próximo do paraíso.

Aqui em casa criei um ambiente mais ou menos parecido com o de uma redação.O telefone vive tocando.Fico escrevendo.Minha mulher chega para dizer que vai sair.Há ruidos. A televisão fica ligada. E eu escrevendo.É certamente igual a uma redação de jornal''.

GMN : O senhor já se considera um inglês ?

Cabrera Infante : ''Tenho um passaporte inglês.Pago meus impostos.Há um ditado que diz que a gente pertence ao lugar onde paga os impostos...Vivo aqui desde l966.Mas não me considero um inglês.Além de tudo,a literatura que me interessa na Inglaterra é a litetatura do passado - não a do presente.Interessa-me Josef Conrad.Ou H.J.Wells.Eu sinto admiração ate' George Orwell.Mas agora não sinto admiração por nenhum escritor inglês.O único escritor inglês que eu realmente admirava morreu há pouco : era Anthony Burgess - culto e interessante''.

GMN : Numa entrevista que fiz com ele,Antohny Burgess reclamava de que nós,latino-americanos,nos preocupávamos obsessivamente com política.O senhor concorda ?

Cabrera Infante : ''A política causou grandes danos a
escritores.Julio Cortazar,antes de se envolver tão ativamente com política cubana e nicaraguense,era outro.A partir do envolvimento,comecou a decair. O ''Livro de Manuel'',eminentemente politico,é muito inferior a obras anteriores.A política tem atrativos.Se você se entretém com a política,não sobrará espaco para nada mais.A literatura é exigente.

Faço uma previsão : a próxima literatura de importância no mundo de fala espanhola vai se produzir na Espanha.Porque os escritores espanhóis,uma vez morto Franco e uma vez passada a euforia da liberdade,se dedicaram completamente à literatura,enquanto que na América espanhola - não posso falar especificamente do caso do Brasil porque não conheço - todos os escritores jovens estavam preocupados em mostrar e demonstrar suas credenciais políticas.Isto foi fatal ! Não há um escritor interessante na América hispânica nos últimos tempos ! Todos se referem sempre a Garcia Marquez,Julio Cortazar,Juan Rulfo,Carlos Fuentes...todos já na faixa dos sessenta,setenta anos. Morto Borges,o grande exemplo literário,não havia outro na América hispânica''.

GMN : Escritores engajados dizem que exercem a militância política porque uma ditadura deve ser combatida
também pela literatura.O senhor acha que este sacrifício estético deve ser feito ?
Cabrera Infante : "Tenho combatido -e muito- Fidel Castro publicamente.Mas meus textos são sempre concebidos a partir de um ponto-de-vista literário. Não pode haver ataque mais direto e mais contundente à ditadura de Fidel Castro do que os que faco em ''Mea Cuba'',mas sempre em
termos literários.A escritura é essencialmente literária : nao é política nem panfleto. O maior inimigo da literatura é a política''.

GMN : O senhor se declarou apaixonado pela atriz Melanie Grifith...

Cabrera Infante (num suspiro) : "Ah,sim.....''

GMN : Já teve a chance de dizer pessoalmente que era apaixonado por ela ?

Cabrera Infante : ''Os dois - ela e Antonio Banderas(N: ator espanhol casado com a atriz) - me convidaram para almoçar.Eu disse que não estava me sentindo bem.A verdade é que não queria conhecê-la. É extraordinária.Naquele filme de Brian de Palma,''Dublê de Corpo'',a cena em que ela comeca a gritar sozinha numa estrada,sem se dar conta de que corre risco de vida,é um grande momento de Melanie Grifith como atriz''.

GMN : O senhor não foi ao almoço porque teve medo de sentir ciúmes ou porque não queria correr o risco de sofrer uma decepção ao vê-la pessoalmente ?

Cabrera Infante : "'Não fui porque prefiro tê-la na
imagem -não ''na carne'',como se diz em inglês.Prefiro guardar comigo a imagem da Melanie Grifith que vi nas telas''.

GMN : Entre suas admirações,alguém lhe decepcionou quando visto pessoalmente ?

Cabrera Infante : ''Uma das pessoas com quem tive uma enorme decepção depois de vê-lo pela televisão e pelos jornais foi Fidel Castro. Tivemos contato íntimo.Em abril de 59,fomos a Washington,Nova Iorque,Montreal e ao Brasil,antes de seguirmos para Montevideu e Buenos Aires.A intimidade de estar num avião para apenas vinte pessoas em companhia de Fidel Castro durante tantos dias me convenceu de que aquele indivíduo era um horror.Era um avião de hélice.Em direção ao Rio,o avião baixou para que víssemos a floresta amazônica.O piloto disse :''Comandante,estamos voando sobre a floresta ! ''.Eu estava sentado no banco logo atrás de Fidel Castro.O que foi que aconteceu ? Fidel ficou olhando a floresta nao sei por quanto tempo. De repente,disse : ''Que grande país !''. Eu pensava que era admiração pelo Brasil. Mas ele disse :''Aqui é que deveríamos ter feito a nossa Revolução !''.
Neste momento,entendi que Cuba era pequena para ele. Fidel se achava um lider tão grande que necessitava de um continente ;não de uma ilha..''

GMN : Se,num acaso digno de uma das páginas de Garcia
Marquez,o senhor se encontrasse com Fidel Castro hoje,num saguão de aeroporto,o que é que o senhor diria a ele ?

Cabrera Infante : ''Eu só diria uma frase : ''Você não
acha que já chega ?''.


(1997)


Posted by geneton at 01:02 AM

março 22, 2004

CHANCE RARA : O REPÓRTER VÊ UM JOGO DA SELEÇÃO
BRASILEIRA AO LADO DO GÊNIO NELSON RODRIGUES

Posted by geneton2 at 01:50 PM

O DIA EM QUE O REPÓRTER VIU UM JOGO DA SELEÇÃO
BRASILEIRA AO LADO DO GÊNIO NELSON RODRIGUES

Posted by geneton2 at 01:22 PM

março 20, 2004

JACINTO DE THORMES


O DIA EM QUE O CRIADOR DO MODERNO COLUNISMO SOCIAL ENGANOU A RAINHA DA INGLATERRA NO MARACANÃ !


Quem foi o único brasileiro que teve o privilégio de trocar cochichos com a Rainha da Inglaterra ? (aos que duvidam de tal façanha,recomenda-se que consultem nos arquivos públicos o exemplar do jornal Última Hora do dia onze de novembro de 1968,uma segunda-feira : uma seqüência de três fotos,publicadas com destaque na primeira página,registra a façanha).

Quem foi o visitante curioso que o dramaturgo Tennesse Williams,autor do clássico “Um Bonde Chamado Desejo”, conduziu até um quarto todo vermelho,numa mansão em Nova Iorque,não se sabe com que intenções ?

Quem foi o jornalista atrevido que,aos vinte e dois anos de idade,criou,nas páginas do Diário Carioca,no já remotíssimo ano de 1945,”a primeira coluna social moderna do jornalismo brasileiro”,como bem diz o verbete dedicado a ele na mini-enciclopédia “Ipanema de A a Z” ? Antes,a chamada “crônica social” era entulhada de registros empolados de jantares,viagens e outros acontecimentos menos votados.A partir do Diário Carioca,a coluna social ganhou vivacidade : passou a registrar,em notas curtas,grandes negócios,casos de amor,conchavos políticos. O modelo não se esgotou até hoje.

O único brasileiro que falou ao pé do ouvido da Rainha Elizabeth,o repórter curioso que testemunhou a paisagem vermelha do quarto de Tennesse Williams e o jornalista atrevido que lançou,no Brasil,a base do colunismo moderno são um homem só : Manoel Bernardez Muller.

Aos pouco familiarizados com a biografia do jornalismo brasileiro,diga-se que ele ficou famoso como Maneco Muller. Se,ainda assim,o nome soar estranho,o que é improvável,acrescente-se que Maneco Muller tornou-se célebre sob um pseudônimo : Jacinto de Thormes (nome roubado de um personagem do romance de Eça de Queiroz ”A Cidade e as Serras “).

Depois de aceitar de bom grado o pseudônimo que lhe foi sugerido pelo jornalista Prudente de Morais,Neto - um dos grandões do Diário Carioca -, Maneco Muller dedicou-se ao trabalho de criar,sob a marca Jacinto de Thormes,um personagem que o acompanharia,como uma sombra,por toda a vida. Aos olhos do público,Jacinto de Thormes era um homem sofisticado que aparecia fumando um imponente cachimbo,com ares de lorde inglês,nas “fotos oficiais” que ornavam suas colunas.

Confessava-se usuário de um pijama listrado que ficou famoso - sinal de que cultuava a elegância até na hora de dormir.Pronunciava nomes estrangeiros com sotaque britânico.Tinha um cão chamado William Shakespeare Júnior,personagem (real) de suas andanças. O cão chegou a merecer foto de página inteira numa revista de moda, em que aparecia usando um boné que cairia bem numa partida de críquete numa tarde de verão nos arredores de Wimbledon. O fato de criar uma celebridade canina dá a dimensão do poder de fogo de Jacinto de Thormes .

Além de circular nas “altas rodas”,Jacinto de Thormes era um infatigável fabricante das Listas das Dez Mais Elegantes. Criou um modismo. As Listas passaram a ser publicadas em todo o País,em versões adaptadas ao gosto dos cronistas locais – os Jacinto de Thormes que se multiplicavam nas províncias. Igualmente,lançou a expressão “colunável”. Por merecimento,Jacinto de Thormes entrou para a seleta confraria dos jornalistas que são notícia.Virou um “colunável” clássico.

Aposentado depois abandonar as colunas sociais para se dedicar à crônica esportiva (o futebol é uma de suas paixões),Jacinto de Thormes sumiu de circulação.

Por onde andaria,hoje,o cronista dos Anos Dourados ? O que estaria pensando,neste começo de século,o escriba que documentou em suas colunas os tempos em que o Rio de Janeiro era um território idílico,nos idos da década de cinquenta ? Que sentimentos teria Jacinto de Thormes diante da uma sociedade povoada por novos ricos,os “emergentes” que,dentro ou fora da Barra da Tijuca,fazem questão de exibir suas posses nas revistas de celebridades ? Que confidências ele teria a fazer,hoje,sobre cenas indiscretas que não publicou,na época,por pudor ou excesso de zelo ?

O Jacinto de Thormes da vida real – o cidadão carioca Maneco Muller – confessa-se surpreso por ter sido procurado para uma entrevista. Porque é um personagem tecnicamente fora de combate. O encontro fica marcado para o apartamento da filha. Chega britanicamente no horário marcado. A devoção à pontualidade pode ser herança inconsciente dos anos em que viveu sob a tutela de uma governanta inglesa. Maneco Muller é bem nascido. Vem de uma família de diplomatas. A governanta entrou em cena porque os pais de Maneco se separaram quando ele tinha apenas três meses de idade. A mãe partiu para a Europa,em companhia de um marquês. Coube à governanta a tarefa de zelar pelo menino.

Nosso personagem aparece para a entrevista elegantemente metido num blaser azul-marinho,camisa social abotoada nos punhos,calça cinza. Vai fazer setenta e oito anos em breve. É avô de quatro meninas. Orgulha-se de se manter em forma : “Não tenho barriga”. Há duas décadas,instalou no peito quatro pontes de safena que funcionam perfeitamente bem. Quando desce do táxi, é personagem de uma pequena trapalhada : toca a campainha do prédio vizinho ao da filha,para espanto do porteiro.Desfeita a confusão, engana-se de novo ao apertar o botão errado dentro do elevador. As miudezas do mundo aparentemente confundem o coração cosmopolita de Jacinto de Thormes.

Do alto do décimo-quarto andar deste prédio no Flamengo,zona sul do Rio,o quase octogenário Jacinto de Thormes contempla,deslumbrado,a paisagem. Só há um adjetivo para definir a vista : é “cinematográfica”.Nunca um lugar-comum caiu tão bem. Quantas mil vezes ele terá vasculhado com os olhos os contornos do morro do Pão de Açúcar ? Já perdeu a conta. Mas, ainda hoje,é capaz de soltar exclamações como “não existe nada parecido no mundo.Que vista,meu Deus do céu !”.

Primeira conclusão : trata-se de uma alma irrevogavelmente carioca.Segunda conclusão : qualquer outra generalização é perigosa. Porque Jacinto de Thormes é,como bem definiu a revista Vogue,um caso único,”um espécime em extinção,pertencente a uma fidalguia carioca,aquela elegância natural,autêntica,intrínseca”.

Quem apostar que o Jacinto de Thormes aposentado é hoje um dinossauro que vive ruminando nostalgia dos tempos em que o Rio era a capital da Corte se enganará redondamente.Porque,retirado da cena,ele vê com curiosidade a ascensão dos “emergentes”. Diz que,hoje,uma palavra resume tudo : velocidade. Acabou-se o tempo em que os sobrenomes de famílias tradicionais desfilavam pelas colunas. Hoje,gente que enriqueceu depressa brilha depressa nas colunas - mas desaparece depressa também. Neste mundo,Jacinto de Thormes se sentiria deslocado. Mas não faz as vezes de saudosista ranzinza.

O homem vai revisitar cenas inacreditáveis que viveu ao lado da Rainha da Inglaterra.Falará de Tennesse Williams. Descreverá o encontro que marcou com Gilberto Freyre porque queria saber quem chegaria primeiro à presidência da República no Brasil : um negro ou uma mulher.Fará uma radiografia dos novos tempos do soçaite.

Jacinto de Thormes volta a atacar.
Gravando !


GMN : Os nomes tradicionais das colunas sociais foram substituídos pelos chamados “emergentes” – os novos ricos que,no caso do Rio de Janeiro,moram na Barra da Tijuca. O que é que os emergentes despertam no senhor : enfado,asco ou curiosidade jornalística ?

MM : “Tenho uma idéia formada. Precisamos olhar essa questão não como um simples fato,mas como conseqüência da velocidade do que acontece hoje. Em Botafogo,existe uma padaria que exibe uma inscrição : Fundada em mil oitocentos e não sei quantos. A tradição dava prestígio,dava credibilidade.Mas acabou ! As pessoas precisam imaginar que uma “emergente” é fruto do momento que vivemos hoje,dominado pela velocidade.Como o mundo muda,numa grande velocidade,se a mesma pessoa aparecer duas ou três vezes numa revista,dirão : “Mas que chato ! De novo ? “.

GMN : Antes,valorizava-se a tradição.Hoje,o que é que se valoriza : é a riqueza rápida ?

MM : “O sucesso hoje é esse.A Corte acabou ! A diferença é essa : quem aparece hoje é gente que surge rapidamente e ganha dinheiro depressa.Não interessa o nome. O jogador de futebol que faz sucesso também vai para a Barra da Tijuca,porque,lá,ele compra,ele se faz,ele é importante.
Mas não sou contra.Porque as pessoas não têm culpa.Não sou o sujeito esnobe que diz “imagine você....”. Não!
A época atual pede que se faça tudo rápido,para durar pouco”.

GMN : Qual era a dúvida que o senhor quis tirar com Gilberto Freyre ?

MM :”Eu queria fazer alguma coisa diferente,além da coluna.Matérias que representassem alguma coisa.Procurei um banqueiro famoso.Mas o sujeito só falava de dinheiro e política.Não publiquei nada.Já Gilberto Freyre era o tipo da pessoa que sabia falar.Expansivo.Perguntei a ele: quem chegará primeiro à presidência da República - a mulher ou o negro ? Gilberto Freyre achou ótimo.Disse,primeiro,que “o brasileiro não é uma raça,muito menos uma sub-raça ou meia-raça,como os subantropólogos querem,mas,sim,uma meta-raça”.
Depois de muita habilidade e inteligências,acabou dizendo que o negro chegaria primeiro à Presidência”.

GMN : A Rainha Elizabeth desperta,à primeira vista,um sentimento de tédio,até entre os admiradores.O senhor –que teve o privilégio de conhecê-la como intérprete,na visita que ela fez ao Brasil em 1968,teve essa sensação também ?

MM : “A Rainha é uma funcionária pública perfeita.Um dos compromissos que ela cumpriu aqui foi ver,no Maracanã,um jogo da seleção de São Paulo,comandada por Pelé,contra a seleção do Rio,comandada por Gérson.Vi o jogo sentado ao lado da Rainha,perto do governador Negrão de Lima,que falava francês. Samuel Wayner me disse para aceitar o convite para ser intérprete da Rainha.O pessoal do Itamaraty,meus amigos,tinham me convidado.Você sabe que não se chama a Rainha de Sua Majestade,a não ser em cerimônia.Chama-se de “madam”.

Houve um problema : fizeram uma placa de bronze que seria inaugurada no Maracanã para marcar a visita da Rainha.Mas,quando fui ler,vi que a placa tinha um erro de português.Tiveram de correr para mudar.Horrível.Quase não dava tempo.Primeiro,a Rainha perguntou sobre as orquídeas que tinham sido distribuídas na Tribuna de Honra.Eu disse que as orquídeas tinham vindo da Amazônia.Fiz uma onda.Amazônia coisa nenhuma.Eram daqui mesmo”.

. GMN : O senhor achou que seria “rústico” citar a Amazônia ali,para a Rainha ?

MM : “A Rainha entendeu que as orquídeas tinham vindo da Amazônia,mas eu,na verdade,disse que elas eram de um gênero amazonense,o que não deixa de ser verdade.Mas não sei,não entendo nada de flores. A Rainha achou ótimo.A gente tem de fazer essas coisas : é gentileza.

De repente,ela me perguntou : “você não acha que esse jogo está um pouco lento ? “. Não é boba. Eu disse : “Madam,o que acontece é que o jogador que a senhora se acostumou a ver no estádio de Wembley são ingleses fortes e robustos,correm muito,são verdadeiros touros.O nosso jogador ,madam,é uma cobra.Aliás,chamamos de cobra o nosso grande o jogador. Porque ele de repente dá um bote”. A Rainha ficou me olhando impressionada. Para minha sorte,poucos minutos depois Pelé,que estava fingindo que o jogo não era com ele,de repente viu a brecha,gritou “dá”,driblou um,cortou o outro e quase fez um gol maravilhoso.A Rainha se virou pra mim e disse : “Isso é que é cobra ? “.Eu disse : “Yes,madam,precisely”.O que ela fez? Olhou para o Príncipe Philip e perguntou : “Você sabe qual é a diferença entre os nossos jogadores e os brasileiros ? “. Começou a contar ao marido a minha história,sem me pagar royalties”.

GMN : A Rainha lhe deu a impressão de sofrer de uma certa falta de brilho pessoal ?

MM : “A impressão que a Rainha dá é a de que é uma pessoa triste.Aquilo deve ser muito,muito chato”.

GMN : A Rainha,em situações,normais é inacessível aos jornalistas – inclusive os ingleses.A que o senhor atribui o fato de ter sido escolhido para atuar como intérprete ? Bastou a amizade com o pessoal do Itamarati ?

MM: “Eu era cronista esportivo. Falava inglês- bem ou mal. Era um sujeito que não ia cuspir no chão nem fazer nenhuma grosseria.

Antes do início do jogo, quando o juiz Armando Marques entrou,a torcida começou a gritar “bicha ! bicha ! bicha !”. A Rainha me perguntou o que era aquilo.Que história era aquela de “bicha” ? Eu disse que a torcida estava aplaudindo o juiz – que era muito popular no Brasil....

Você veja o que é uma profissional. Quando,depois do jogo,se encontrou com o juiz Armando Marques,a Rainha disse : “Gostei de ver sua popularidade...”.

Mas o Príncipe Philip soube o que queria dizer o coro da torcida,porque disseram a ele”.

GMN : Lygia Fagundes Telles diz que,quando esteve em São Paulo,o escritor William Faulkner abriu a janela do hotel e perguntou : “Isso aqui é Chicago ? “. Bêbado,ele não sabia nem onde estava. O álcool entrou também nos contatos que o senhor teve com escritores americanos como Truman Capote e Tennesse Williams ?

MM : “Não entrou outra coisa,além de álcool. A entrevista com Truman Capote eu nem cheguei a escrever.Para dizer a verdade,achei-o murcho,sem significação alguma. Fiquei com raiva.Decepcionado.Não dava para escrever nada. Eu também estava numa fase ruim.Não vou culpar os outros. Eu estava em Nova Iorque,pela revista O Cruzeiro. Fiz também entrevistas com Tennesse Williams e Salvador Dali. O verdadeiro Salvador Dali era Gala,a mulher que o dirigia em tudo. Houve uma cena que considero terrível : Salvador Dali sentou-se ao lado de uma senhora brasileira que estava em nosso grupo.Disse a ela : “Que mãos lindas ! Eu poderia pintar as suas mãos ? ”.A mulher ficou encantada. Quem não quer ? Dali ficou de telefonar. A secretária de Salvador Dali realmente ligou no dia seguinte : “O senhor Dali gostaria muito de marcar uma data.Por falar no assunto : gostaria de dizer que o preço é.....”.E falou em não sei quantos mil dólares.Que negócio terrível....

Já o Tennesse Williams me fascinava. Quando cheguei para a entrevista,encontrei cinqüenta milhões de pessoas.Gim puro.Um porre sem tamanho.Bebe-se muito em Nova Iorque. Quando essa gente se expande,não é brincadeira.A primeira coisa que Tenesse Williams fez comigo foi : “Deixe-me mostrar minha casa”. A gente nem conseguia ver a casa,em meio a tanta gente sentada por todo canto. Quando ele abriu o quarto,era tudo vermelho e dourado lá dentro.Por que o sujeito vai me mostrar um quarto onde não havia ninguém ? Para que me mostrar um lugar todo vermelho que,para ele, era a parte fundamental da casa ? Eu estou associando coisas. Não houve nenhuma insinuação.
Quando contei umas histórias,ele me perguntou : “Mas era sexo normal ou diferente ?”. Respondi que comigo era tudo normal.De repente,toca a campainha.Abre-se a porta.Aparece um rapaz lindo,bonitão,rosado,com uns dois metros de altura.Ficou parado.Visivelmente,não conhecia ninguém.Tennesse viu o rapaz de longe,correu até onde ele estava : “Mas o que é que você veio fazer aqui ? “. O rapaz estranhou : “Você não disse para vir ? “. E Tennesee : “É amanhã,seu burro !.Não vê que hoje a casa está cheia de gente?”.

GMN : Tarso de Castro escreveu : “O jornalismo se divide mais ou menos assim : no início,é uma conquista maravilhosa,uma briga para ver uma coisa que se escreveu sair no jornal.Depois,chega o tempo de ser o competente cara de jornal.Por esse tempo,há um dia em que se descobre que não temos nada de super-homens.Por fim,chega o tempo em que o cansaço se arrasta diante do fato de que,afinal,não éramos tão importantes”. Jacinto de Thormes viveu essas três estações ?

MM : “Quanto a ser importante ou não,é relativo.Porque,na época,eu fui importante,sim. Fui importante porque,para começar,não me levei a sério.Prudente de Morais,Neto me chamou para ser o que era antigamente “cronista social”. Era tudo muito francês – “tout en bleu”,”tout en rouge”. Eu achava aquilo uma frescura,mas,como precisava ganhar dinheiro,não pude recusar. Só não queria botar meu nome.Afinal,eu fazia esporte,freqüentava academia de boxe.Iam me chamar de sei lá o quê se me vissem falando de vestido. Digo : vou levar esse negócio na brincadeira.Preciso de um pseudônimo.Prudente de Morais disse :”Jacinto de Thormes !”
Eu não tinha lido ainda Eça de Queiroz. O que me impressionou,depois,é que o Jacinto de Thormes do romance de Eça de Queiroz “A Cidade e as Serras” é precisamente um camarada que vive em Paris mas permanece apegado ao lugarejo de onde veio. Já Eça de Queiroz viveu em Paris e em Londres.Não gostava de viver em Portugal.Era um sujeito esnobe,um grande escritor que escrevia numa língua que infelizmente não tinha a repercussão que ele gostaria que tivesse”.
GMN : O senhor é apontado como o criador da primeira coluna social moderna do jornalismo brasileiro.De onde surgiu esse estalo ? Você criou a coluna sob influência americana ?
MM : “O personagem que criei tinha um cachorro chamado William Shakespeare Júnior – que me acompanhava de verdade.Fomos a boates juntos.Era um cão muito educado. O personagem Jacinto de Thormes era uma maneira de me defender,porque o que eu queria era ser escritor.
O Rio de Janeiro era capital da República.Comecei a freqüentar o Senado e a Câmara dos Deputados,os homens de negócio.Passei a incluir esse mundo dentro das brincadeiras,as coisas mais suaves que eu fazia na coluna.A lista das dez mais elegantes era coisa americana. Mas as listas dos americanos não tinham a dimensão que as listas ganharam aqui no Brasil.Quando eu saía,as pessoas me paravam na rua para discutir a lista”.

GMN : A criação desse formato de coluna foi influência americana ?

MM : “Mas claro ! Eu lia sobretudo o New York Times e o Washington Post e –de vez em quando – os jornais de Los Angeles,porque traziam a cobertura de cinema. As colunas que me influenciaram eram publicadas por esses jornais.Mas eu não podia fazer igual. Tinha de adaptar. Porque nos Estados Unidos havia colunistas que tinham um poder terrível : derrubavam fábricas,derrubavam shows,derrubavam pessoas.
Aqui, fiz a brincadeira de inventar Jacinto de Thormes . As colunas americanas já tinham o formato de notas sincopadas.Devo dizer que o Rio de Janeiro tinha uma personalidade. Se estivessem no Rio,aqueles colunistas não escreveriam como escreviam nos Estados Unidos . O Rio era uma das cidades mais divertidas do mundo,como disse a revista Time. A cidade tinha,além da praia,os cassinos,os grandes shows e um lado que faço questão de citar : a cultura. Basta lembrar que Getúlio Vargas convidou Gustavo Capanema para ser ministro da Educação e Cultura. Capanema simplesmente pediu a Carlos Drummond de Andrade que fosse chefe de gabinete.
O Modernismo –que foi paulista- veio explodir no Rio. Todos os grandes escritores, os Portinari,os Villa-Lobos,não apenas atuavam no Rio : a gente convivia com eles. É a diferença.Não era o intelectual lá e o social aqui. Evidentemente,havia na sociedade coisas fúteis.Mas eles participavam das revistas,havia o costume de todos irem ao Municipal para ver balé,ver ópera”.

GMN : O senhor,que escolheu tantas elegantes,pode citar qual foi a figura mais deselegante que conheceu ? Qual é o
sinal de deselegância que mais incomoda você ?

MM : “Quando eu ia fazer a lista,eu levava em conta também a inteligência. O que me incomoda ? É a bonita e burra.Tenho horror a esse tipo de coisa.É a pessoa que se preocupa demais com a aparência,a ponto de não saber fazer outra coisa.Sempre digo : uma grande dama é sempre uma grande dama sem querer.De propósito,não é nunca ! Porque não conseguirá comprar elegância,não conseguirá adquirir essa qualidade fazendo divulgação de si mesmo.
Uma pessoa não elegante pode ter boas maneiras.É outra coisa.Pode ser educada.É outra coisa.Pode ser culta.É outra coisa.Mas elegância reúne quase que todas essas qualidades – inclusive cultura !”.

GMN : Qual foi a personalidade mais surpreendente que você conheceu ? Alguém que tenha surpreendido você no bom ou no mau sentido ?
MM : “Vou dizer : Ibrahim Sued. Começou como fotógrafo.Era um sujeito humilde,com pouca escolaridade.Conseguiu uma coisa formidável. Eu,que comecei dez anos antes de ele surgir no jornalismo,percebi que ele tinha um fato jornalístico incrível.Podia ser ignorante.Mas de burro não tinha nada.Um dia,olhou para minha biblioteca.Perguntou : “Diga-me uma coisa : para que serviram,na sua carreira,esses livros todos ? “.
Sob o ponto-de-vista de Ibrahim,era uma pergunta excelente. Uma vez,eu disse a ele : “Você fatura até erro de concordância”. Ele me respondeu : “Você sabe Português mas não fatura nada”.
Ibrahim tinha toda razão. Era um camarada surpreendente”.

GMN : Quem freqüenta a alta sociedade,como o senhor freqüentou,inevitavelmente ouve e vê segredos impublicáveis.Que segredo impublicável o senhor poderia contar hoje,tanto tempo depois ?

MM : “É difícil falar. São coisas tão grandes que os nomes vão acabar vindo à tona. Fatos verdadeiramente nacionais.Não quero fazer autobiografia,porque ou falo das coisas ou não falo.Não dá para contar pela metade.
Havia um presidente da República,casado com uma mulher muito bonita,que,um dia,saiu de carro com alguém.Os dois deviam ter bebido um pouco. O presidente tinha dado o automóvel novinho à moça. Os dois estavam usando o carro pela primeira vez.Imagine : um presidente e uma moça. Lá pelas tantas,ela disse : “Você sabe que eu acho esse carro uma porcaria ? “ . O presidente respondeu : “Então,bata aí”. A moça bateu numa árvore,com o presidente dentro. Quebrou o carro”.

GMN : Presidente casado com primeira-dama bonita só existiu um ....

MM : “Pelo amor de Deus ! Para que eu fui falar nesse troço !!!”.

GMN : Darcy Ribeiro dizia que a gente tem aqui no Brasil uma das elites mais cruéis do mundo.O senhor –que conviveu com nossa elite no que ela tem de bom e de ruim - assinaria embaixo desse julgamento ?

MM : “É preciso ver nossa história. Os ingleses que saíram para os Estados Unidos foram formar um lugar,um país.O patriotismo americano é impressionante.Vê-se bandeira por todo lado. Já os jesuítas vieram ao Brasil por uma questão de ordem. Os portugueses não vieram fundar nada.Vieram tirar o que era possível tirar,assim como os espanhóis.A diferença é essa : em vez de dar,tiraram.
Nós também não conseguimos tomar certas decisões nacionais que exigem personalidade. Falta igualmente uma unidade. São Paulo trabalha,o nortista emigra,a Bahia se diverte,o Rio Grande do Sul comanda,o Rio de Janeiro vive e Minas Gerais conspira.As diferenças podem até ser fantásticas.Mas não há no Brasil uma união de idéias – o que termina se tornando uma grande dificuldade brasileira.A elite brasileira não é uma só.São várias as elites.De vez em quando,são péssimas.Em áreas importantes sob o ponto de vista popular,como no futebol,por exemplo,a elite não pode ser pior do que é agora”.

GMN : Se Maneco Muller,fosse escrever hoje sobre Jacinto de Thormes,qual seria o primeiro parágrafo ?

MM : “Jacinto de Thormes foi uma farsa,um mentiroso,não era nada aquilo. Criou aquele negócio.O pior é que pegou.Todo mundo veio atrás.
Fico contente com o que fiz. Jacinto de Thormes carregou Maneco Muller nas costas. Mas sem Maneco Muller,seus erros,seus pecados,seus vícios e algumas qualidades,o Jacinto de Thormes não teria existido”.

GMN : O senhor considera o Jacinto de Thormes pai dos colunistas sociais que estão aí hoje ?

MM : “Não sei de pai nem mãe.Mas fui o primeiro”.


(2001)

Posted by geneton at 01:55 AM

março 18, 2004

MINO CARTA

OS MANDAMENTOS DE JORNALISTA,SEGUNDO MINO CARTA : FIDELIDADE CANINA AOS FATOS,ESPÍRITO CRÍTICO,FISCALIZAÇÃO DO PODER

A bem da verdade, diga-se com todas as letras que não existe na imprensa brasileira texto tão elegante quanto o de Mino Carta. A palavra é esta : elegante.
Pouquíssimos currículos exibem um portfolio tão reluzente : como em jornalismo não existem propriamente criações individuais, o mais justo seria dizer que Mino Carta foi o co-criador de publicações que fizeram história na imprensa brasileira, como Veja, Jornal da Tarde, Quatro Rodas, Istoé,Carta Capital. Houve um fracasso, até hoje lamentado : o Jornal da República, trucidado no final dos anos setenta por um inimigo mortal - o déficit de caixa.

Nestes últimos tempos, o jornalista Mino Carta vem dividindo espaço com o romancista Mino Carta. O escritor noviço lançou em 2000 um romance parcialmente autobiográfico – “O Castelo de Âmbar’. Aqui, um Mino Carta que – lastimavelmente - não se animou até agora a publicar uma autobiografia emerge na pele de um personagem chamado Mercúcio Parla. Agora, o romancista Mino Carta lança o segundo – e último – volume da odisséia de Mercúcio Parla , o romance “A Sombra do Silêncio”,publicado no selo Francis da W11 Editores.

Procuro o quase novato romancista na Livraria da Travessa, em Ipanema, palco do lançamento carioca de “A Sombra do Silêncio”. Cadê o homem ? A mesa destinada à sessão de autógrafos, no primeiro andar deste supermercado de livros, permanece enigmaticamente vazia. Um porta-voz da livraria apressa-se a dizer que não, nenhum motivo de força maior impediu o lançamento. Mino Carta se instalou numa mesa do café da livraria, para regar com champagne a garganta presumivelmente já cansada de tantos embates.

De repente, Mercúcio Parla se materializa na mesa de autógrafos, na pele de Mino Carta, em companhia de uma taça de champagne . A procissão de leitores em busca de um autógrafo não faria inveja a nenhum santo : são poucos os fãs que se aventuraram ao ritual de beija-mão nesta catedral de livros erguida na zona sul do Rio. É provável que o grosso do eleitorado de Mercúcio Parla se concentre em São Paulo.

Camisa azul-claro,paletó quadriculado,cabelos grisalhos aparentemente intocados por tinturas,Mino Carta distribui adjetivos afáveis nas dedicatórias,posa para fotos,cumpre o ritual de romancista sem dar sinais de enfado.

“Quero logo dizer duas coisas”,avisa Carta,na entrevista telefônica que me concedeu quando já tinha voado para São Paulo,na tarde seguinte. ”Primeira : jornalismo é trabalho de equipe.Não existe herói solitário no jornalismo.O que existe é aquele pequeno grupo formado por gente que carrega o piano – e sabe tocá-lo.Segunda : digo,com absoluta sinceridade,que tive sorte na vida profissional,porque estava no lugar certo,na hora certa.Nunca trabalhei num órgão de imprensa que existisse antes do meu comparecimento.Isso tornou minha vida profissional estimulante.Não tive a chance de me entediar na profissão”.

Fica a dúvida : por que diabos Mino Carta não se despe dos recursos ficcionais para escrever logo uma autobiografia descarada ? Os bastidores de momentos importantes da moderna imprensa brasileira escapariam do castigo de serem exilados para sempre na Terra do Esquecimento – o destino irrecorrível de tudo o que não é registrado em papel.

“Em primeiro lugar,uso nomes fictícios para personagens reais”- vai explicando o criador de revistas travestido de criador de romances.”O primeiro livro nasceu como uma reação espontânea – e talvez irritada demais – ao livro “Notícias do Planalto”. Mário Sérgio,o autor,sustenta a tese de que a figura de Collor foi criada pelos jornalistas.Mas a figura de Collor foi criada pelos patrões dos jornalistas !. Além de tudo,”Notícias do Planalto” terminou valorizando as versões patronais a meu respeito.Por exemplo : a de que a Editora Abril me demitiu.Não é verdade.Eu me demiti.Se a Abril me tivesse demitido,eu teria levado uma belíssima grana.Não levei – até porque não queria levar.Queria ter a satisfação de não levar um único e escasso tostão dos senhores Civita – que comigo se portaram como pulhas que cederam a pressões do senhor Armando Falcão”. (ministro da Justiça do governo Geisel).

Um dos capítulos de “O Castelo de Âmbar” traz um aperitivo explosivo do que seria uma autobiografia do autor. Num intrigante jogo de espelhos, o imaginário Mercúcio descreve, como se fosse um repórter, os bastidores da traumática saída de Mino Carta da direção da revista Veja – à época submetida à censura. É Mino Carta escrevendo,com a pele de Mercúcio Parla, um capítulo descaradamente autobiográfico . Os nomes dos bois estão lá : Golbery do Couto e Silva,Ernesto Geisel, Victor Civita.

Tido como vaidoso, Mino Carta faz uma declaração modesta sobre por que recorreu à ficção para fazer uma quase autobiografia :

- Não tenho estatura para chegar e dizer : eis o meu livro de memórias.Não me sinto à vontade.

Os registros da imprensa sobre as expedições de Mino Carta ao território das ficção foram, na melhor das hipóteses, modestíssimos, se confrontados à fama do autor . Por que terá sido ? O silêncio – quase ensurdecedor – é intrigante.

- O Castelo de Âmbar – queixa-se - foi boicotado claramente pela chamada “grande imprensa” : com exceção do Jornal do Brasil,o livro não mereceu nenhum tipo de cobertura – menos ainda de crítica por parte de Globo,Folha,Estado de S.Paulo,Veja,Istoé,Época. Mas vendeu cerca de 20 mil exemplares.A Sombra do Silêncio acaba de ser lançado.Não sei o que vai acontecer.

A lista de possíveis desafetos do jornalista Mino com certeza não seria suficiente para condenar ao limbo o romancista Mino – um italiano de nascença que adotou o País Tropical como pátria no final dos anos quarenta,quando aqui desembarcou em companhia do pai,também jornalista. A intimidade com a língua portuguesa foi adquirida com a leitura de Machado de Assis (a quem chama de gênio),Camões, Gil Vicente, Eça de Queiroz, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Guimarães de Rosa – um escrete de primeiríssima.

Um crítico mal-humorado poderia reclamar : de tão sofisticado e elegante, o texto do romancista Mino corre eventualmente o risco de pecar por rebuscamento excessivo. Mas pobre do país em que um texto seja passível de condenação por excesso de qualidades.

Se lhe fosse dado o direito de escolher que destino teria neste vale de lágrimas, Mino Carta cravaria a opção “jornalista” em terceiro lugar. Porque, antes de se dedicar à nobre tarefa de passar a vida dedilhando vogais e consoantes num teclado, Mino pensou em ser, pela ordem,santo e pintor.

Já disse que, jovem,sonhava em ter um cartão de visitas em que estivesse escrito,no espaço dedicado à profissão,a palavra “santo”. Logo viu que faltava-lhe vocação para um dia ser entronizado nas paredes da Capela Sistina.
Pintor nunca deixou de ser. Mas terminou se rendendo ao determinismo genético : neto e filho de jornalista,virou jornalista.

Numa das passagens de “A Sombra do Silêncio”,o personagem Mercúcio Parla/Mino Carta faz ao avô,também jornalista,indagações sobre a natureza do Jornalismo. Pergunto ao nosso personagem : e se, por um truque dramatúrgico , o Mino Carta quase setentão pudesse se encontrar com o Mino Carta de vinte anos de idade,que conselhos o Mino Carta experiente daria ao Mino Carta noviço,candidato a jornalista ?

- Tenho três mandamentos, além da crença de que é fundamental respeitar o texto e não aviltar a língua. Os três mandamentos para um jornalista são os seguintes : primeiro,a fidelidade canina à verdade factual. Segundo : o exercício desabrido do espírito crítico – sempre. Terceiro : fiscalizar diuturnamente o Poder,onde quer que se manifeste – não somente no Palácio do Planalto ou no Congresso.

O jornalista e escritor Mino Carta conseguiria definir,em apenas uma só palavra,o jornalista e escritor Mino Carta ?

- Não.Eu diria que,profissionalmente,tive a sorte que não tive em minha vida como indivíduo.

“Sortudo”, então, poderia ser uma palavra razoável ?

- Por que não ? Sortudo como jornalista que sempre teve bons colegas e equipes ótimas. Mas o escritor sofre muito.

(2004)
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MINO NOS LIVROS

“O jornalismo tem encanto para quem o pratica com um mínimo de empenho : preserva a juventude. Sabe por quê ? Porque um dia é igual a outro e as personagens a serem relatadas são sempre as mesmas,embora mudem de nome.E os enredos se repetem à exaustão.A certa altura, você acha que o tempo não passou e jamais passará,inclusive para você” (fala de um dos personagens de A Sombra do Silêncio,o avô do narrador Mercúcio Parla).

“Jornalistas como ele conhecem de cor e salteado a gravidade da sua empreitada e a cumprem com ceticismo na inteligência e otimismo na ação,reservando-se o direito de manterem aceso o espírito crítico,como lâmpada votiva.Homens de muita fé,certamente,porque dispostos a viverem hora a hora uma contradição brutal- uma tragédia.Trata-se de fiscalizar o poder,controlá-lo,criticá-lo,denunciar os seus abusos e mazelas.Mas as empresas jornalísticas gravitam na órbita do poder,são o próprio poder” (O Castelo de Âmbar)

“Um bom amigo me sugeria : ponha por escrito o que pretende dizer.Pus.Assim todos vocês terão a oportunidade de verificar que pronuncio mediocridades tanto de improviso quanto por escrito” (O Castelo de Âmbar)

“Ainda verá a ponta dos sapatos sobre a calçada de uma cidade remota e antiga, estaca diante do faiscar de uma moeda contra a pedra lívida. Recolhe-a,traz relevos em caracteres árabes,no verso o valor,no anverso um veleiro.O veleiro da infância,transfigurado no espaço absorto,sem tempo e sem dimensão,sem ponto de fuga”. (A Sombra do Silêncio)







Posted by geneton at 07:53 PM

PAUL JOHNSON


OS PETARDOS DO HOMEM QUE NUNCA FOI A UM SHOW DE MÚSICA POP,NUNCA ASSISTIU A UM JOGO DE FUTEBOL E SE RECUSA A VER NOVELA DE TV
Defensores da mentalidade politicamente correta,tremei.Paul Johnson vem aí.Os fãs da fera o consideram um dos mais brilhantes historiadores britânicos.Os detratores ficam horrorizados quando lêem os freqüentes petardos que ele dispara contra,por exemplo,a arte moderna.Colunista da revista Spectator,colaborador do Daily Telegraph,Paul Johnson pode ser acusado de tudo,menos o de ser um historiador pouco ambicioso : depois de escrever “A História dos Judeus”,mergulhou na fundo tarefa de produzir “A História do Cristianismo”,recém-lançado no Brasil.
Paul Johnson é um caso clássico de intelectual que nunca teve medo de nadar contra a corrente. Minorias que se julgam perseguidas devem ou não ser criticadas ? Devem,sim,responde a Fera do Tâmisa. Picasso é um grande artista ? Não é não – brada Johnson,autor de um livro de ensaios chamado “To Hell With Picasso” (algo como “Que Picasso vá para o Inferno”).Picasso – garante ele - não passa de um stalinista que apoiou um regime totalitário. A flexibilidade de conceitos morais é uma conquista do pensamento do século XX ? Não é,nunca foi nem poderia ter sido – rebate o impaciente Johnson.O relativismo moral –diz ele - é uma praga que faz os ingênuos acreditarem que não existe nada que seja absolutamente condenável.

Aos 73 anos de idade, conservador assumido,crítico feroz da arte moderna,pintor nas horas vagas,religioso praticante e alpinista amador, Johnson é um polemista profissional. Faz parte de uma tribo minoritária: a dos intelectuais que não temem dar opiniões aparentemente fora de moda, fora de lugar e fora dos manuais de “bom comportamento” ideológico.Johnson já foi chamado de reacionário, direitista, manipulador, antiquado, intransigente, preconceituoso: é uma espécie de Paulo Francis às margens do Tâmisa.Horrorizado com o que chamava de “sociedade filistina”,Paulo Francis disse uma vez que se sentia “tecnicamente morto” em meio à vulgaridade generalizada.O incômodo que Francis sentia deve ser igual ao sentimento de inadaptação que abastece a ira de Johnson contra a mediocridade,as nulidades e a empulhação.


As universidades, tidas por tantos como templos intocáveis do saber, se transformaram em centros de intolerância, irracionalidade, extremismo e preconceito. São fábricas de ignorantes, uma empulhação custosa, na avaliação devastadora de Johnson.Orgulha-se de jamais ter-se dado ao trabalho de ver um show de música pop ou um jogo de futebol. Opiniões assim renderam a ele uma farta coleção de críticos e detratores. Mas ele não parece disposto a dar trégua.


Paul Johnson vem se ocupando da morte de Deus, o grande fato que não aconteceu no século vinte. Grandes tragédias do século XX, como o extermínio de seres humanos em escala industrial nos campos de concentração, poderiam ter contribuído para abalar a fé dos homens em Deus. Mas Paul Johnson diz que a ocorrência de tragédias terminou, paradoxalmente, reforçando a fé. Os descrentes procuraram proteção e consolo na idéia de Deus, porque o culpado de tudo é, como sempre, o homem.

"Ao contrário do que se esperava – festeja Johnson -, este não foi o primeiro século do ateísmo".

Quando o século XIX acabou, todo mundo esperava que a ciência iria tomar, de uma vez por todas, o lugar da fé. O avanço do conhecimento científico destruiria a idéia de que um Deus,seja qual for, existe. Um século depois,essa previsão falhou.

Nesta entrevista,feita em Londres,a Fera do Tâmisa ruge contra a mentalidade politicamente correta,a arte moderna e o relativismo moral.
Gravando !

GMN : Qual foi o pecado capital do século XX?

Paul Johnson : “É o que chamo de relativismo moral : a negação de que haja valores absolutos.Acontece que há coisas que são absolutamente certas e outras que são absolutamente erradas,sim !. O relativismo moral afirma –pelo contrário - que todo bem ou todo mal é relativo.Todos os valores seriam relativos,portanto.
Vejo o relativismo moral sob toda maldade totalitária e todo tipo de pecado do século XX. Precisamos voltar -acho que já estamos voltando- a cultivar valores absolutos”.


GMN : O senhor diz que já não há uma idéia absoluta sobre o que é errado e o que é certo.Pode dar um exemplo do que é certo e do que é errado,no mundo de hoje ?

Paul Johnson : “O exemplo mais comum é o da sexualidade humana. A maioria das pessoas da minha geração - que viveu a década de trinta - foi educada para acreditar que havia certos e errados absolutos na sexualidade humana. É um fato que o relativismo moral esconde e ofusca.Crianças de hoje não aprendem que há certos e errados ! Aprendem que devem fazer o que os outros fazem. Isso é relativismo moral ! É um grande mal. Devemos lutar contra ele”.


GMN : O senhor se declara um combatente na guerra das idéias.Qual foi a pior e a melhor idéia política do século XX?

Paul Johnson : “A pior idéia - que começou antes da Primeira Guerra,ainda por volta de 1910 - é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos. Mas há poucas coisas em que o Estado é melhor que o indivíduo. A verdade é que a idéia de que o Estado age bem é a pior de todas. Aprendemos agora esta lição.A melhor idéia é a seguinte : sempre que possível, os indivíduos devem ser deixados sós para fazerem o que puderem com os próprios recursos. Quanto maior a liberdade, maior a justiça, maior a eficiência e maior a felicidade humana.

O Brasil é um desses países que têm um futuro incrível.Chegará a esse futuro,dourado e glorioso,se acreditar mais em liberdade individual e menos no Estado”.

GMN : Por que o senhor diz que a mentalidade politicamente correta é uma nova forma de totalitarismo?

Paul Johnson : “Não gosto que venham me dizer como pensar,que palavras e expressões devo ou não usar.Para mim, esta é a origem do totalitarismo. Hoje,o totalitarismo vem começando de novo,no campus das universidades,nos Estados Unidos,sob o disfarce politicamente correto. Temos de lutar – muito ! - contra este fenômeno,antes que o totalitarismo disfarçado de posições politicamente corretas se estabeleça de verdade”.


GMN : Quanto o senhor pagaria por um quadro de Picasso? Por que o senhor é tão rigoroso na hora de julgar mestres da arte moderna, como Picasso e Cézanne?

Paul Johnson : “A arte precisa ter um propósito moral. Acontece que nunca pude detectar qualquer propósito moral claro na obra de Picasso. Era um homem perverso e imoral.Não vejo,em nenhuma de suas obras,um esforço para mostrar a arte com um propósito moral.Tal esforço é a essência do grande artista. Então,desconsidero Picasso completamente”.

GMN : A obra mais famosa de Picasso, "Guernica", é uma denúncia contra a violência do totalitarismo. Por que é,então,que o senhor diz que não havia nenhum sentido moral na obra de Picasso?

Paul Johnson : “Porque Picasso não lutava contra o totalitarismo ! Picasso não era comunista : era stalinista ! . Ficou do lado da União Soviética totalitária,durante quase toda a vida. É um escândalo ! Não acreditava na liberdade, exceto para si próprio”.

GMN : O senhor diz que a religião aprendeu a absorver todos os impactos da ciência. Agora que até seres humanos podem ser criados em laboratório, o senhor acredita que a fé religiosa vai sobreviver?

Paul Johnson : “A rapidez no avanço da ciência, especialmente nas ciências da vida – aquelas que afetam os seres humanos – vem tornando a religião mais importante do que nunca. Porque,em cada estágio do avanço da ciência,devemos trazer Deus à discussão. Devemos dizer: "Isso é moral? É Justo? É algo que se encaixa no plano divino para a Humanidade? Ou é algo que vai contra ele?". O fator "Deus" na ciência é,hoje,mais importante do que nunca”.

GMN : Um astronauta, que é um homem da ciência, diz que procurou sinais de Deus numa viagem pelo espaço, mas não encontrou nada. Que argumento o senhor usaria para convencer este astronauta de que,por trás do vazio do espaço,existiria um Deus?

Paul Johnson : “Quando nos deparamos com um evento científico supremo, o modo de reagir a ele é uma questão de imaginação. Quando Robert Oppenheimer viu a primeira Bomba H explodir, em Alamos, ele citou Bhagavad Gita: "Eu me tornei a morte, o destruidor de mundos". Um homem pode ver algo miraculoso ou científico,sem que tenha reação alguma. Se ele for um homem de grande imaginação, pode ter uma enorme reação. Quando,a bordo de um avião,a cerca de doze mil metros de altura,vejo o amanhecer,esta cena,para mim,é uma revelação da existência de Deus.De qualquer maneira,não preciso estar no espaço para fazer esta constatação. A maioria das pessoas,igualmente,não precisa : basta que tenham imaginação para que Deus venha à tona”.

GMN : O senhor consegue irritar as feministas e os esquerdistas com suas opiniões. Os dois são seus inimigos prediletos?

Paul Johnson : “Não sou,certamente,um inimigo das feministas. Sou pró-mulher : acredito que o século XXI será o século das mulheres. Dei palestras em Londres para milhares de senhoras japonesas : disse que elas têm o dever de tomar o poder que hoje parece disponível para elas no Japão – que era uma sociedade muito machista. Sou muito a favor das mulheres. Quanto à esquerda, não gosto de dividir pessoas em setores rígidos - esquerda e direita. Posso até dizer que sou radical - especialmente nas questões femininas,por exemplo.O meu ponto de vista é o de que todos os assuntos devem estar abertos à discussão. Não estou do lado da esquerda ou da direita : estou do lado da razão e da justiça”.


GMN : Por que o senhor diz que a esquerda tenta deixar os outros deprimidos? O senhor tem tomado Prozac?

Paul Johnson : “Não estou de forma alguma deprimido! O século XX foi,como um todo, um fracasso horrível. Mas aprendemos muitas lições. Aguardo ansioso pelo século XXI. Não estou nem um pouco deprimido : penso que vai ser um grande século. Tenho uma imensa confiança : previa-se que Deus desapareceria da vida das pessoas.Mas Deus estará forte e vivendo nos corações de bilhões de homens, mulheres e crianças. É uma constatação que me torna o contrário de um deprimido: eu estou otimista”.

GMN : Se é verdade que a idéia de Deus sobreviveu, quais são os três argumentos que o ssenhor usaria para convencer um ateu a acreditar em Deus?

Paul Johnson : “A primeira razão é a verdade. Deus existe - e a verdade é mais importante do que tudo. A segunda é a felicidade: com Deus,estamos mais felizes, mais satisfeitos, mais seguros do que sem Deus. A terceira razão : sob o ponto de vista puramente social, um mundo em que Deus fosse amplamente acreditado e respeitado seria um mundo muito mais seguro e melhor”.


GMN : O senhor diz que o ex-primeiro ministro britânico John Major é um político de segunda categoria. O senhor compraria um carro usado de John Major?

Paul Johnson : “Quando estou viajando no exterior,sempre me pergunto : “Tenho ou não orgulho de ser inglês ?". Quando Margaret Thatcher era nossa primeira-ministra,eu achava que tinha orgulho de ser inglês.Andava de cabeça erguida em qualquer país.Quando John Major estava no governo,eu andava encolhido. Não tinha orgulho de ser inglês. O que espero é que,com Tony Blair,eu possa andar de cabeça erguida como fazia com Margaret Tatcher.É um homem de personalidade,dono de convicções fortes.Crê que há coisas que são certas e há coisas que são erradas sob o ponto de vista moral.É um homem religioso : acredita que crenças religiosas podem ser transformadas em ações políticas. É jovem, idealista, vigoroso”.

GMN : O senhor - que é um conservador - hoje apóia o Partido Trabalhista, na figura de Tony Blair. Por que essa mudança?

Paul Johnson : “Não acredito muito em partidos políticos.Não sou um homem que tenha fé em partidos.Não estou,portanto,preocupado com o Partido Trabalhista ou com o Partido Conservador.Acredito em líderes.Se o político é um bom líder,com fortes convicções morais,força de vontade e senso de justiça,para mim não faz diferença se ele ou ela é trabalhista ou conservador.Thatcher – líder do Partido Conservador - tinha esses atributos.Por essa razão,eu a apoiava.Por ter também esses atributos,o trabalhista Tony Blair merece o meu apoio.O que eu busco é uma liderança”.

GMN : O senhor diz que a moda é uma conspiração de costureiros para ver até onde eles podem forçar as mulheres a fazer macaquices. A moda é um sintoma da decadência?

Paul Johnson : “Não há nada de novo nesse fenômeno.A “alta moda de Paris” existe desde 1850 : é um século e meio de vida.Os estilistas –principalmente porque,na maioria,são homossexuais - sempre transformam as mulheres em macacas.Acham que as mulheres aceitarão o que eles fazem.As mulheres - não apenas as ricas - compram as roupas oferecidas pelos estilistas.Há coisas idiotas.Como essas roupas são fabricadas em massa – e levadas às lojas - não apenas as mulheres ricas,mas também as mulheres comuns,usam o que esses estilistas produzem.As mulheres é que escolhem.Ninguém faz uma mulher vestir roupas idiotas se ela não quiser”.


GMN : Quem será a próxima vítima de Paul Johnson ?

Paul Johnson : “Quero levar ao Parlamento uma lei de privacidade que impeça a mídia de invadir a privacidade alheia.Ingleses e americanos não têm essa lei.Quero que a Inglaterra tenha”.


GMN : É possível resumir o Século em uma só palavra?

Paul Johnson : “Não em uma palavra, mas em uma frase: "O Século XX foi um desastre total,suavizado pela capacidade humana de aprender lições da História".

(1997)

Paul Johnson por Paul Johnson :

“De todas as calamidades que se abateram sobre o Século XX,além das duas guerras mundiais,a expansão da educação universitária nos anos cinquenta e sessenta é a mais duradoura.É um mito a crença de que as universidades são o berço da razão.São o abrigo de todo tipo de extremismo,irracionalidade,intolerância e preconceito;um lugar onde o esnobismo intelectual e social é propositadamente instilado e onde professores passam para os estudantes os seus próprios pecados de orgulho”.

“A nova forma de totalitarismo – a Mentalidade Politicamente Correta – é,inteiramente,uma invenção universitária”.

“O que me provoca reflexões sombrias é a lembrança de todo o desperdício produzido pelo modernismo.Perdemos duas gerações – meio-século- na busca pela feiúra.Talentos da pintura,desenho e escultura se perderam”.

“Nunca fui a um concerto de música pop ou a um jogo de futebol,nunca acompanhei novela de TV,nunca vi “A Ratoeira” ou “E o Vento Levou”,nunca concluí a leitura de “Em Busca do Tempo Perdido”,nunca li a revista “The Economist” ou “Time Out”,nunca tive um carro,nunca passei do limite da conta bancária,nunca compareci a tribunal.Ninguém nunca me ofereceu drogas,convidou-me para uma orgia ou me vendeu um contraceptivo.Jamais tive a menor vontade de possuir um quadro de Picasso,ter uma Ferrari,vestir um Armani ou morar em Aspen”.

“Jamais matei um peixe,caçei uma raposa ou esmaguei uma aranha – se bem que,uma vez,tentei esmagar uma tarântula no Recife”

“Já fiz Charles de Gaulle se benzer,Churchill chorar e o Papa sorrir”

“Considero-me um típico inglês do meu tempo,classe e idade,cujos pontos-de-vista,simpatias e antipatias são compartilhadas com multidões.Posso estar errado a esse respeito.Quando perguntada o que pensa sobre mim,minha mulher Marigold respondeu : “Difícil”.


(Trechos de “To Hell With Picasso”;Editora Weidenfeld & Nicolson,Londres)

Posted by geneton at 12:53 PM

março 17, 2004

JOEL SILVEIRA

O DINOSSAURO JOEL SILVEIRA EVOCA O POETA : "DEUS EXISTE,MAS NÃO FUNCIONA"
Eis a víbora : foto de JOANA PASSI DE MORAES
esparramado numa poltrona na sala deste apartamento na rua Francisco Sá,quase no limite entre Copacabana e Ipanema,Joel Silveira acompanha com um certo ar de enfado o telejornal da TV a cabo.O peso dos oitenta e três anos é visível no olhar mortiço. O aparente cansaço diante do desfile de horrores planetários e provincianos no telejornal não impede o velho repórter de soltar imprecações contra –por exemplo – o Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Quando o presidente FHC aparece no no vídeo,Joel não resiste :

- É o tipo do presidente que sabe falar mas não sabe dizer .Fala mas não diz.Nunca vi falar tanto,sobre qualquer assunto.Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola.Tenho a impressão de que todo dia,ao acordar,logo de manhã,Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta : “Por favor,qual é o mote de hoje ?”. O assessor diz -por exemplo- “indústria siderúrgica”.E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo.Um dia depois,muda de mote.Assim por diante,até o fim dos tempos.

Desde o ano passado , Joel brinda os leitores da “Continente Multicultural” com as tiradas ferinas do “Diário de uma Víbora”. .Não foi por acaso que Joel recebeu de Assis Chateaubriand o título de “víbora” : um de seus esportes prediletos sempre foi destilar veneno e ironia em doses industriais. Em artigo que entrou para a história do jornalismo brasileiro, pintou,com palavras elegantes e irônicas,um retrato devastador das grã-finas paulistas,na década de quarenta.

Num país em que tantos títulos são injustamente atribuídos , o rótulo inventado por Chateaubriand para definir Joel é um exemplo de justiça. Além do apelido de “víbora”,Joel carrega também um título que o acompanha há décadas – o de “maior repórter brasileiro”. Se algum entrevistador fizer menção a este título honorífico ,Joel balançará a cabeça como se estivesse contrariado com o possível exagero,mas,na hora de dormir,quando for trocar confidências com o travesseiro,terá de admitir que a homenagem não soa de forma alguma despropositada.

Pouquíssimos repórteres já cultivaram, como Joel,uma paixão tão inabalável pela reportagem. Nunca quis ocupar os cargos –eventualmente bem pagos – que se ofereciam,tentadores,na retaguarda das redações. Sempre fez a opção preferencial pelo “mundo exterior” . Porque desde cedo aprendeu que a boa reportagem precisa ser caçada na rua,feito touro bravio. Faz mea culpa quando se lembra dos períodos de tempo que extraviou na retaguarda das redações,como burilador de textos escritos por outros repórteres :
- Os chefes mandavam que eu transformasse cinco laudas em dez linhas. Tinha de cumprir a ordem. Eu deveria ser preso : já fui assassino de textos alheios.

Poucos terão –como Joel - um texto que reúne com tanta maestria Jornalismo e Literatura. A nossa víbora descreveu assim a cena que viveu depois de sair do Palácio do Catete,no Rio de Janeiro,ao fim de uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas :
- "Lá para a meia-noite,entrei no Danúbio Azul,um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas,desde que existem mundo e manhãs de abril".

Pergunta-se : em que jornal ou revista se lêem hoje textos dessa qualidade ? A resposta é um silêncio ensurdecedor.Joel pode exercer aqui e ali um lirismo que já rendeu páginas memoráveis,mas nunca abandonou o gosto pela maledicência.Adora falar mal de da fauna humana – aí incluídos personagens perfeitamente inofensivos,como,por exemplo,os alpinistas,os turistas e os tocadores de cavaquinho.
É pura implicância.Cheio de certeza,constata :
-“O cúmulo do ridículo, beirando o grotesco,é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”....

Adiante ,pergunta,a sério :
-Pode existir coisa mais idiota do que um alpinista ? Por que é que eles não pegam um avião,meu Deus do céu ? Por que não vão de helicóptero ? Pra que subir naquelas montanhas,se eles poderiam ver tudo da janela de um avião,no maior conforto ?

Provoco a víbora. Quero saber quem ele não levaria sob hipótese alguma para uma ilha deserta,se fosse condenado a passar o resto da vida isolado do mundo :
- Eu não levaria João Gilberto de forma nenhuma,com aquele violãozinho,uma coisa horrorosa. Aliás,o melhor talvez fosse deixá-lo numa ilha deserta,sem violão ! Assim,eu poderia ir embora. Não entendo o fenômeno João Gilberto : é um dos mistérios que minha inteligência não consegue alcançar. Eu até me esforço para entender tanta idolatria,porque ,como sou repórter, gosto de saber das coisas.Mas confesso que não consigo.

Joel nunca morreu de amores por um ex-colega de redação que entraria para a galeria dos brasileiros notáveis do Século Vinte :
- Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues.Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação.Gosto da peça “Vestido de noiva”,mas a verdade é não nos entrosávamos. Uma vez,eu estava escrevendo alguma coisa - escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo.De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção,fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: “Patético !”. Em seguida,foi embora,em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever.Depois,disse,simplesmente : “Dramático ! ”. Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – “patético” e “dramático”.

Depois de seis décadas de jornalismo, que outros tipos a víbora Joel incluiria na galeria nacional do ridículo,além dos tocadores de cavaquinho gordos e alpinistas ?
- Eu incluiria o turista numa Galeria Internacional do Ridículo.Porque o turista é de um ridículo sem par. De bermuda, cheio de máquinas penduradas no pescoço,suando em bicas, é roubado a toda hora nos restaurantes. Ridículo é também o velho que quer parecer moço- aquele que pinta cabelo, rebola e faz uma operação plástica por mês.

Joel vai fazendo confidências nesta tarde em Copacabana. Diz,por exemplo,que ouviu uma confissão de fraqueza de um dos maiores cronistas já surgidos no Brasil,Rubem Braga - um amigo do peito que até hoje lhe dá saudade. Os dois – Joel e Braga – foram correspondentes de guerra na Europa. Joel resolveu dar de presente a Rubem Braga um exemplar de um livro clássico de Stendhal – “O Vermelho e o Negro” . Semanas depois,Braga confessa a Joel que não conseguira de forma alguma passar da página noventa e dois do livro.O motivo :

- Rubem me disse que tinha interrompido a leitura porque o livro tinha personagem demais.E ninguém ficava parado....

Joel confessa que nunca conseguiu chegar ao final de “Os Irmãos Karamazov”,a obra-prima de Dostoievski. Agnóstico,alista-se entre os que concordam sem vacilar com o que disse o poeta Murilo Mendes :
-Deus existe,mas não funciona.

Cinco da tarde. É hora de dar um descanso ao guerreiro.Depois de tanta pergunta,peço que a víbora responda a um mini-interrogatório.São apenas cinco as dúvidas que quero tirar. É claro que ele aceita a proposta.Lá vai:


1
GMN : Quem foi a celebridade mais idiota que o senhor conheceu ?
Joel : “Deus me perdoe,mas foi o Papa Pio XII.Fui a uma audiência com ele no Vaticano.Diante do nosso grupo ,ele disse :”Brasileiros ? O português é uma bela língua. “Sabia” é do verbo saber. “Sábia” é uma mulher inteligente.”Sabiá” é um pássaro”. Que idiotice !”.
2
GMN : Se fosse escrever uma autobiografia,que fato vexaminoso o senhor faria questão de esconder ?
Joel : “Uma vez,em Roma,depois da guerra,vi Ernest Hemingway tomando conhaque sozinho num bar que ele costumava freqüentar.Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo.Fui ao banheiro remoendo a dúvida.Quando voltei,ele já tinha ido embora.É um dos meus grandes fracassos profissionais.O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway.Nesse caso,pelo menos o lead estaria garantido”.
3
GMN : Se o senhor fosse nomeado ditador de Sergipe,qual a primeira providência que tomaria ?
Joel : “Proibir a entrada de João Gilberto no Estado. Já seria um bom começo.Não existe nada tão chato quanto a Bossa-Nova”.

4
GMN : Qual a cena mais grotesca que o senhor já testemunhou ?
Joel : “Não precisa ir longe.Basta desembarcar num boteco qualquer do Rio numa noite de sábado.Repito : não existe nada mais grotesco do que um sujeito barrigudo e suado tocando cavaquinho”.
5
GMN : De quem o senhor não compraria um carro usado ?
Joel : “Não quero parecer ranzinza,mas alguém pode me dizer para que servem os alpinistas ? Por que aqueles idiotas não pegam um avião para olhar as montanhas do alto,em vez de tentar a subida ridiculamente amarrados em cordas ? . Eu jamais compraria um carro de um alpinista.Não se pode confiar em seres que não têm senso de ridículo”.

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(2002)

Posted by geneton at 11:31 AM

março 16, 2004

JOÃO CABRAL DE MELO NETO E O REPÓRTER : UM FESTIVAL DE VEXAMES,DESENCONTROS E CONFUSÕES


Já se disse que o melhor jornal é aquele que jamais chega ao conhecimento do leitor. O que acontece nos bastidores de uma reportagem pode ser tão interessante quanto o que sai nas páginas dos jornais. Se os jornais publicassem tudo o que se fala numa redação(ou, pelo menos, tudo o que os repórteres vêem mas não escrevem), nossa imprensa certamente não mereceria o julgamento que um dia Paulo Francis fez :
- “Nossa imprensa : acadêmica, empolada, previsível, chata. Meu Deus, como é chata”.
Ponto. Parágrafo.
Minha pequena coleção de entrevistas com o super-poeta João Cabral de Melo Neto foi marcada por desencontros, vexames, incidentes e mal-entendidos - sem maior gravidade, mas suficientes para fazer ruborizar qualquer tímido que se preze.


Vexame 1. Cenário : saguão do Aeroporto Internacional dos Guararapes. Ano : 1973. Dou meus primeiros passos como repórter. O chefe de reportagem me despacha para o Aeroporto. Missão : cobrir a chegada do mais ilustre dos poetas pernambucanos. O diplomata João Cabral vivia no exterior, na época. Lá fomos nós, em busca da celebridade . O único problema é que o fotógrafo não sabia que João Cabral era pernambucano. Assim que o poeta desembarca, o fotógrafo o convoca a posar em frente a um painel turístico que mostrava uma imensa foto do Recife. A pose em frente ao painel provaria que o poeta esteve na cidade...Pouco à vontade ,o poeta concorda em posar. Lá pelas tantas, o fotógrafo quer saber se o poeta por acaso já conhecia a capital. João Cabral responde com algum som inaudível.

Vexame 2. João Cabral aceita receber o repórter na casa do irmão, à beira-mar, em Olinda. Horário da entrevista : onze da manhã. O repórter chega vinte minutos atrasado. Formalíssimo, João Cabral nem parece estar de férias. Aparece no portão metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola. Primeira frase que pronuncia : “Você chegou com uma pontualidade nada britânica...”. O repórter quase estreante procura, em vão, um buraco no chão para se esconder. Não encontra. Entre mortos e feridos, todos se salvam : a entrevista segue adiante.

Vexame 3. De volta ao Brasil depois de se aposentar da carreira diplomática , João Cabral escolhe o Rio de Janeiro como endereço . O repórter que, anos antes, cometera o pecado de chegar com uma “pontualidade nada britânica”, telefona em busca de uma nova entrevista. Quem sabe, agora consiga fazer uma entrevista sem incidentes. João Cabral se desculpa : “Vamos marcar outra hora... Minha mulher morreu ontem”. Já não tão estreante, o repórter procura de novo um buraco no chão para se esconder – em vão. Um silêncio que parece durar uma eternidade se instala nos dois lados da linha telefônica. O que dizer numa situação dessas ? Nada. Meus pêsames. Desculpe. Eu sinto muito. Socorro !

Vexame 4. O homem marca a entrevista : vai receber o repórter em casa - um apartamento na Praia do Flamengo . Por coincidência , o jornal O Globo marca, para a mesmíssima hora, uma sessão de fotos de João Cabral com Ferreira Gullar . Os dois poetas aguardam a chegada do fotógrafo do jornal. Aperto a campainha . “Pode entrar” . Cabral e Gullar vão para a janela do apartamento . A vista, ao fundo, é bela. Fazem pose. Ficam olhando para as minhas mãos, à espera de que eu saque a máquina fotográfica . Pensam que eu sou o fotógrafo que estavam esperando. Mas não tenho máquina nenhuma . Carrego apenas meu gravador . “Não quer fazer a foto agora ? “.Dois dos maiores poetas brasileiros estavam ali,diante de mim,à espera da impossível foto. Não, não quero, não sei , não posso fazer. Deve ter havido algum engano. Nunca fui fotógrafo em minha vida. Um buraco no chão, pelo amor de Deus !
Desfeito o equívoco, os dois desistem de esperar pelo clique de minha máquina inexistente. Cinco minutos depois, o fotógrafo (o verdadeiro) desembarca no apartamento. Os dois voltam a posar na janela. Livre da tarefa, João Cabral finalmente dá a entrevista pedida pelo locutor-que-vos-fala.
Lá pelas tantas, diz :
“A coisa simples que quero fazer com minha poesia não é uma coisa boba. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. É difícil traduzir as coisas de que falo de uma maneira acessível a todo mundo. Minha luta é esta : tentar exprimir uma coisa mais complexa na linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso”.

O poeta – um dos maiores que o Brasil já teve – confessava que o gosto do fracasso não lhe era estranho. Devo ter pensado, com meus botões : fracasso ? Se depender do meu histórico de fracassos nos bastidores das entrevistas com João Cabral, sou mestre nesse assunto.


(2002)







Posted by geneton at 02:47 PM

março 15, 2004

IDENTIFIQUE-SE NA PORTARIA, POR FAVOR

REDUZIDAImagem 266.jpg


Nome: Geneton Moraes Neto. Recife, 13/07/56.

Se o autor fosse uma celebridade, já teria prontas as primeiras frases da autobiografia : “Nasci numa sexta-feira 13, num beco sem saída, numa cidade pobre da América do Sul : Recife. Tinha tudo para fracassar. Fracassei”.

Quem sabe, a autobiografia poderia também começar assim :

“Em suma: fracassei. Aos fatos, pois”.

Acontece que o autor não é uma celebridade. Jamais escreverá uma autobiografia, por absoluta falta de assunto. Resolveu, então, gastar logo esses primeiros parágrafos - ou “leads”, na linguagem do submundo jornalístico.

Se fosse supersticioso - ou pelo menos previdente - , teria se recusado terminantemente a sair da maternidade, por ter nascido numa sexta-feira 13 do ano de 1956, num beco sem saída. Mas saiu.

Pressentiu desde cedo que não tinha a menor vocação para exercer profissões realmente importantes : por esse motivo,aos treze anos,em 1970, já era um praticante amador do jornalismo - em artigos que tentavam clonar o estilo bombástico de David Nasser , no suplemento infantil do "Diário de Pernambuco".

Entre 1975 e 1980,trabalhou -primeiro,no Diário de Pernambuco; depois, na sucursal nordeste de “O Estado de S.Paulo” – sempre como “repórter da geral”. Em Paris, para onde se mudou na esperança de um dia ver Charlotte Rampling andando na calçada num fim de tarde de inverno, foi camareiro do Hotel Mônaco, motorista de uma família rica e estudante de Cinema na Sorbonne.

Não fez carreira em nenhuma das três atividades : camareiro, motorista ou cineasta. Só veria Charlotte Rampling ao vivo e em cores vinte anos depois. Com irremediável ar de pateta, tirou uma foto ao lado da estrela. C’est la vie.

De volta ao Jornalismo, no Brasil, trabalhou na Rede Globo Nordeste como editor e repórter. Como milhões de nordestinos atraídos ao “Sul Maravilha” pela lei da gravidade, terminou caindo no Rio de Janeiro.

Entre idas e vindas, trabalha na Rede Globo/Rio desde 1985. Já foi editor-executivo do Jornal da Globo e do Jornal Nacional ; correspondente da Globonews e do jornal O Globo em Londres; repórter e editor-chefe do Fantástico por duas vezes.

Não troca por nada o exercício da reportagem - a única função realmente importante no jornalismo. Tenta aplicar, na
vida profissional, o mandamento de um velho jornalista do The Times. Toda vez que estiver entrevistando alguém, anônimo ou famoso, rico ou pobre, o repórter deve sempre fazer a si mesmo, intimamente, a seguinte pergunta: “Por que será que estes bastardos estão mentindo para mim ?".
Existencialmente, é adepto de um inerradicável sentimento de desconforto que uma vez Paulo Francis (que falta ele faz!) resumiu com brilho. Se fosse remotamente capaz de articular uma frase inteligível cinco minutos depois de nascer, Francis teria perguntado aos presentes, ainda na maternidade : “quem disse que eu queria vir pra essa joça ?”.

Há décadas o autor repete em tom inaudível a pergunta : “ quem disse que eu queria vir ?“.

Já que veio, faz jornalismo. É a melhor profissão para quem não consegue ser outra coisa na vida. Teve a chance de percorrer corredores da morte em prisões de segurança máxima americanas, ruínas de campos de concentração na Alemanha, além de entrevistar três astronautas que pisaram na Lua, duas sobreviventes do naufrágio do Titanic, o co-piloto do avião que jogou a bomba atômica sobre Hiroshima, o produtor de todos os discos dos Beatles , o assassino do líder negro Martin Luther King, o promotor britânico que comandou a condenação dos criminosos nazistas no Tribunal de Nuremberg, o agente secreto britânico que armou um atentado - frustrado - para matar Hitler , o golpista que engendrou o célebre Assalto ao Trem Pagador inglês.

Entre trancos e barrancos, o jornalismo pode valer a pena. Faz de conta que vale.

Próxima reportagem, por favor.

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Do autor:

1. “CADERNO DE CONFISSÕES BRASILEIRAS/DEZ DEPOIMENTOS,PALAVRA POR PALAVRA : ANTÔNIO CALLADO,ARIANO SUASSUNA,CAETANO VELOSO,CARLOS DIEGUES,FERNANDA MONTENEGRO,FERREIRA GULLAR,JOÃO CÂMARA,JOAQUIM CARDOZO,NÉLSON RODRIGUES,OSCAR NIEMEYER E FERNANDO GABEIRA” (Editora Comunicarte,Recife,1983)

2. “CARTAS AO PLANETA BRASIL/ENTREVISTAS COM ANTHONY BURGESS,ARNALDO JABOR,DANIEL COHN-BENDIT,FRANCISCO JULIÃO,GILBERTO FREYRE,GILBERTO GIL,GREGÓRIO BEZERRA,HENFIL,DOM HÉLDER CÂMARA,JOÃO CABRAL DE MELO NETO,JOÃO SALDANHA,LUIZ GONZAGA,PETE BEST,ROBERTO CARLOS,CAETANO VELOSO,RONALD EDWARDS” (Editora Revan, Rio de Janeiro,1988)

3. “HITLER/STALIN: O PACTO MALDITO / TUDO SOBRE O ACORDO QUE ESTARRECEU O MUNDO E SUAS REPERCUSSÕES NA ESQUERDA BRASILEIRA" (em parceria com Joel Silveira - Editora Record,Rio de Janeiro,1990 )

4. “NITROGLICERINA PURA / DOCUMENTOS QUE PASSARAM 50 ANOS ESCONDIDOS EM LONDRES E WASHINGTON TRAÇAM UM PERFIL DEVASTADOR DA ELITE POLÍTICA BRASILEIRA" ( em parceria com Joel Silveira - Editora Record,Rio de Janeiro,1992 )

5. “O DOSSIÊ DRUMMOND / A ÚLTIMA ENTREVISTA DO POETA” ( Editora Globo,São Paulo,1994; edição revista e atualizada : Editora Globo, São Paulo, 2007 )

6. ‘’DOSSIÊ BRASIL” ( Editora Objetiva,Rio de Janeiro,1997 )

7. “DOSSIÊ 50 / OS ONZE JOGADORES REVELAM OS SEGREDOS DA MAIOR TRAGÉDIA DO FUTEBOL RASILEIRO” ( Editora Objetiva,Rio de Janeiro,2000 )

8. "DOSSIÊ MOSCOU / UM REPÓRTER BRASILEIRO ACOMPANHA, EM MOSCOU, O DESFECHO DA MAIS FASCINANTE REVIRAVOLTA POLÍTICA DO SÉCULO XX :O DIA EM QUE COMEÇOU A BUSCA POR UMA NOVA UTOPIA" ( Geração Editorial, São Paulo, 2004)

9. "DOSSIÊ BRASÍLIA / QUATRO EX-PRESIDENTES DA REPÚBLICA REVELAM CENAS DOS BASTIDORES DO PODER" ( Editora Globo, São Paulo, 2005)

10. "DOSSIÊ HISTÓRIA : UM REPÓRTER ENCONTRA PERSONAGENS E TESTEMUNHAS DE GRANDES TRAGÉDIAS DA HISTÓRIA MUNDIAL :O 11 DE SETEMBRO, O ATENTADO ÀS OLIMPÍADAS DE MUNIQUE E O PESADELO NAZISTA. CAPÍTULO EXTRA : AS LIÇÕES DO REPÓRTER QUE DERRUBOU UM PRESIDENTE" ( Editora Globo, São Paulo, 2007)

11. "DOSSIÊ GABEIRA : O FILME QUE NUNCA FOI FEITO" ( Editora Globo, 2009)
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ORGANIZADOR :

1.O LIVRO DAS GRANDES REPORTAGENS / OS BASTIDORES DE ENCONTROS COM PERSONAGENS INESQUECÍVEIS ( Editora Globo, São Paulo, 2006)

2.JOEL SILVEIRA / DIÁRIO DO ÚLTIMO DINOSSAURO ( Travessa dos Editores, Paraná, 2004 )


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PARTICIPAÇÕES:

1."CIRO GOMES NO PAÍS DOS CONFLITOS" (Editora Revan, 1994)

2."GRANDES ENTREVISTAS DO MILÊNIO" (Editora Globo, 2009)

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Posted by geneton at 10:06 PM

março 12, 2004

PAULO FRANCIS

HORA DA SAUDADE. PAULO FRANCIS, RIO, 1994: RELATO COMPLETO DE UM ENCONTRO COM O "LOBO HIDRÓFOBO"

RIO - A presença de Paulo Francis intimida,porque ele é um caso clássico de "monstro sagrado" do jornalismo.Quando Jack Nickolson,no papel de âncora de telejornal de rede,vai visitar um escritório regional provoca em torno de si uma onda de silêncio reverente pontuado por olhares inquisidores,no momento em que,superior,entra na redação.A cena é do filme "Nos Bastidores da Notícia".

Paulo Francis não chega a tanto,mas,quando sai,deixa ecos atrás de si.Fiz uma entrevista com ele para o "Fantástico".Um dia depois do programa,Paulo Francis foi à redação,para,civilizadamente,dizer que tinha gostado do material.Fez uma cópia da entrevista em VHS.Ia levar para Nova Iorque.Segundos depois da saída de Francis,ouvi comentários de todo tipo.Um amigo,brincalhão,simpatizante do PT,saiu-se com essa :"Ok,agora só falta você fazer matéria com o outro Paulo - o Maluf" - uma referência enviezada às críticas contundentes que Paulo Francis passou anos fazendo à administração Erundina na Prefeitura de SÃo Paulo.Outro amigo veio correndo me cumprimentar:"Gostei de ver ! Paulo Francis veio bater continência !".Luiz Petry,excelente poeta que nas horas vagas é editor do Fantástico,confessa,ao lado,que aprendeu com Paulo Francis a escrever em estilo direto,com frases curtas.O que mais um jornalista pode querer,além de espalhar influências pelas redações ?

Hélio Fernandes rugiu na Tribuna da Imprensa :"Melancólica,humilhante,ridícula e até vergonhosa a apresentaÇÃo de Paulo Francis no Fantástico.É natural que ele queira iludir os espectadores para vender o seu livreco".Ninguém fica indiferente à fera.

Ao contrário de todas as aparências,Paulo Francis não late nem morde.É um "doce de pessoa" - dizem os que convivem profissionalmente com ele.Bem humorado,brincalhão,solta gargalhadas quando conta piadas sobre a aparição do "horto florestal" de Lílian Ramos no camarote de Itamar Franco,no Sambódromo.Parece sinceramente espantado quando lhe faço um breve relato das reações raivosas que provocou em Pernambuco quando deu uma pichada no suposto provincianismo do então ministro Gustavo Krause.Disse que depois elogiou a posição correta de Krause numa votação no Congresso.Além de tudo,chamou o Nordeste de região "desgraçada" - não os nordestinos.

"Desgraçado",entre outras coisas,quer dizer "muito pobre,miserável,indigente",informa o Dicionário Aurélio,nosso pai.Era,certamente,o que Paulo Francis queria dizer sobre o Nordeste.Por acaso é mentira ? Num comentário bem-humorado feito ao jornalista pernambucano George Moura - que o escolheu como tema de uma tese universitária - Francis disse,sorrindo,que o filme "Os Imperdoáveis" é sucesso em Pernambuco....

Provincianismo existe em Pernambuco e em Nova Iorque.Pausa para uma digressão na primeira pessoa do singular.Há pouco,convidado a escrever um punhado de linhas sobre um livro escrito,impresso e lançado no Recife,vi meu texto,reescrito,ser trucidado por erros de concordância.Pensei em comprar uma página inteira para dizer,em matéria paga,que Pernambuco é o único lugar do mundo em que você é convidado a fazer um elogio a um livro e o que acontece ? Suas palavras são reescritas,desarrumadas,distorcidas e,finalmente,impressas na orelha do livro. Pode existir caso maior de provincianismo ? Isso também é sintoma de desgraça. Não quer dizer que se deva condenar o Nordeste a arder no quinto dos infernos.Ponto.Parágrafo.

Francis começa a falar.Vai logo escolhendo um político pernambucano entre os pouquíssimos de quem seria capaz de comprar um carro usado. É sinal de armistício com Pernambuco ? Pode ser."Bandeira branca,amor".

Francis diz estar plenamente convencido de que nÃo tem influência alguma sobre o comportamento dos outros.Mas tem,sim.Ninguém precisa concordar com o que ele diz,é claro.Mas a gente aprende com Francis a -pelo menos- tentar ser independente,a marcar posições,a não avalizar a mediocridade,a não seguir o rebanho geral com a docilidade de um boi zebu cabisbaixo a caminho do matadouro,a não referendar as imposturas dos poderosos. Ok,nem precisa tanto. Aprender com Paulo Francis a tentar escrever simples,direto,já é uma grande coisa.É tudo o que um jornalista deve querer.

O lobo vai falar.Senhoras e senhores,com vocês,Paulo Francis,o lobo hidrófobo - de volta às paradas de sucesso nas páginas do livro recém-lançado "Trinta Anos Esta Noite",um texto que é um achado,porque mistura em doses certas a memória pessoal com a memória nacional.

1-De qual dos políticos brasileiros você compraria um carro usado ?

Francis - De vários.Tasso Jereissati,Fernando Henrique Cardoso - a quem dou um crédito de confiança grande,porque sei que é uma pessoa honesta,que vem fazendo o melhor que pode.Como é o nome daquele prefeito do Recife ? Jarbas Vasconcelos.Três já bastam.

2-Você é frequentemente criticado porque teria se transformado de revolucionário em conservador.Você aceita essas críticas ?

Francis - Passei de criança a adulto.Eu era uma criança que confundia desejo com realidade.Eu tinha certos desejos -que eram fraternais com relaçÃo à minha situação privilegiada e à situação desprivilegiada de outras pessoas.Mas descobri,ao ver o mundo aí fora,que a maneira de resolver esses problemas nÃo é a maneira pregada pelos principais grupos populares aqui do Brasil.A grande transformação foi esta.Vi que os países ricos são paises que se abrem para o capital e fazem iniciativa privada.Como é que você vai empregar os brasileiros sem iniciativa privada ? Vai fazer de todo mundo funcionário público ? As repartições públicas já estão falindo ! E com esses milhões que estão aí o que é que você vai fazer ? É preciso abrir desde botequim a fabrica.Isso só com capital privado !

3-Você confessa hoje que tem simpatias pela social-democracia.O caminho para o Brasil pode ser esse ?

Francis - Certamente.A social democracia é imperfeita -sem dúvida- mas é a coisa mais justa que há.Porque garante o mínimo necessário a quem não pode lutar pela sobrevivência e,ao mesmo tempo,permite que quem pode se expanda sem ditadura sem nada.Veja os países mais avançados do mundo : sÃo os escandinavos.A própria Alemanha é uma social-democracia,a França ... E os Estados Unidos são uma social democracia - desorganizada,mas,se você falar assim nos Estados Unidos,eles acham que você é comunista.O que tem de auxílio às pessoas necessitadas é igual a qualquer social-democracia européia.

4-Você se considera o último representante de um tipo de jornalista que tem opinião própria e ocupa espaço privilegiado na grande imprensa ? Hoje,você é um caso único no Brasil...
Francis - Há vários outros que estÃo por aí.A minha tendência -escrever,discutir,ter opiniÕes - caiu muito de moda.A tendência hoje é fazer tudo curto,tudo pequenininho - mas trabalho também no curto e no pequenininho.Tanto é que faço comentário de um minuto na televisÃo.Mas há um desequilíbrio hoje entre as duas tendências.O período da minha juventude foi um grande período jornalístico,com Carlos Lacerda,Joel Silveira,Moacyr Werneck de Castro,Paulo Silveira,Octavio Malta - são incontáveis.Todos eram pessoas com opiniões definidas que se expressavam.Não estou nem julgando tendências.Só estou falando da qualidade.Hoje,na imprensa brasileira,há uma falta grande de gente que discute e dá opiniÕes.Eu de fato sou um dos que vai contra a corrente.

5-Quando publicou o romance Cabeça de Papel,você ficou deprimido com a falta de repercussÃo cultural aqui no Brasil.Isso ainda assusta você ?

Francis - NÃo.Resolvi botar o freio nos dentes e ir em frente(rindo).Você deve fazer aquilo que quer."Trinta Anos esta Noite" é um livro que senti muito prazer em escrever.Afinal de contas,1964 foi o acontecimento decisivo na minha geração.Eu tinha a idade de Cristo - 33 anos.O mundo que eu imaginava era completamente diferente do que viria a acontecer.As gerações mais jovens - que não têm idéia do que foi l964 -sofreram sem saber uma influência profunda do acontecimento.Por isso,eu quis tornar público o meu depoimento,porque há poucas histórias de 1964. NÃo estou dizendo que a minha história seja a única.Mas é uma versÃo da história que eu conheÇo e testemunhei.Não pretendo saber o que estava na cabeÇa de A,B ou C.

6-Como é que você espera ver o Brasil nesses próximos anos ?

Francis - Eu li em sete de fevereiro de 1994 uma nota surpreendente -para mim,pelo menos - no Wall Street Journal : em 1992 e 1993,entraram mais de 50 bilhÕes de dolares no Brasil.Você sabe a que isso se deve ? A pequenas entreaberturas que o senhor Fernando Collor fez quando presidente,como baixar tarifas,por exemplo.Se o Brasil abrir,entram 500 bilhÕes de dólares ! Vai haver emprego e vai haver prosperidade.É essa a minha esperanÇa.

7-Em qual dos atuais presidenciáveis você apostaria uma ficha ?

Francis - NÃo cheguei ainda a uma conclusão.Certamente não apostaria em Lula.Não há a menor dúvida,porque ele quer um retrocesso quando fala em reestatizar.O maior problema brasileiro são as estatais ! A grande dívida interna brasileira,a razão central da inflação - não a única - é esta máquina estatal que devora os recursos e toma todo o capital.Você não pode abrir uma empresa porque os juros estão na lua ! Pela constituição,o governo nÃo pode imprimir dinheiro.EntÃo,ele tem de tomar dinheiro emprestado.Para emprestar a um governo desse,você tem de emprestar a juros altíssimos.Quanto mais diminui o dinheiro,mais aumentam os juros.

8-E se JoÃo Goulart tivesse resistido em 1964 ?

Francis - Você teria certamente o início de uma guerra civil,mas,dado o temperamento brasileiro,haveria um acordo,um armistício dos militares.Talvez se convocasse uma eleição.Nós estávamos a um ano de uma eleiÇÃo.A verdade era essa.Teríamos com toda certeza uma guerra civil,porque Jango tinha amplas condições de resistência.Quanto à guerra civil,tenho certeza.Quanto ao acordo,estou especulando - haveria um acordo entre os militares para o cessar-fogo.Haveria uma eleição que estava prevista para o ano seguinte,onde Carlos Lacerda defrontaria Juscelino Kubitscheck.

9-Jango estava mal informado sobre a conspiração ?

Francis - A meu ver,estava totalmente desinformado,porque ele nÃo tinha uma assessoria capaz,o que é um problema aliás muito de político brasileiro.A assessoria militar de Jango era especialmente fraca.Eu me refiro a Assis Brasil - que era um homem de grande coragem pessoal,general corajoso pra chuchu,mas um homem entediado.Não informava Jango da disposição de outros generais,como deveria informar.

Vou fazer uma revelação a você : participei como espectador de uma reuniÃo -nem contei no livro,é uma coisa confidencial,nÃo posso nem dar o nome das pessoas.Mas participei de uma reunuiÃo de generais
que me mostrou -a mim e a outros civis- como os quadros do Terceiro Exército que tinham empossado Jango estavam sendo pouco a pouco substituídos por generais hostis ao presidente.
10-Quem foi a vedete que ia ver João Goulart no exílio ?

Francis - Há uma frase em inglês que diz:"Kiss and tell"-beijar e contar.Sou inteiramente contra essa frase....(rindo).
11-Qual foi a melhor e a pior herança deixada por 1964 ?

Francis - A melhor foi a do crescimento econômico.Pela estrutura montada no governo Castelo Branco pelo senhor Roberto Campos e pelo senhor Gouveia de Bulhões,o Brasil nos períodos seguintes -no governo Médici- cresceu como nunca na história.A pior foi a despolitização total do nosso povo- uma espécie de névoa que caiu sobre a sociedade civil brasileira e arruinou várias gerações que poderiam ter sido líderes políticos e não vieram a ser.Hoje,estamos aprendendo duramente com esses líderes de quinta categoria que temos aí
12-Você diz que quando era criança parecia um cão hidrófobo .E hoje,você se parece com o quê ?

Francis - Que tal um lobo hidrófobo ?

13-O fato de ser imitado em programas de humor incomoda voce ?

Francis - De jeito nenhum.Acho que se voce e uma figura publica - como e o caso de um jornalista de televisÃo - voce tem de estar preparado para tudo.A imitaÇÃo e a mais expressiva forma de lisonja - esta e que e a verdade.

14-Qual o personagem mais interessante da história recente do Brasil ?

Francis - Acho que Getúlio Vargas inventou o Brasil moderno,o Brasil uniformizado.A influência de Getúlio Vargas é tão positiva quanto nefasta.Ele é contraditorio.Acho tambem que o sujeito mais difamado do Brasil é um homem que participou de todas as decisões econômicas importantes do Brasil.Chama-se Roberto de Oliveira Campos - que indiscutivelmente é uma presença intelectual fortíssima na vida brasileira,mas negada pelos seus inúmeros inimigos,tanto quando Getúlio Vargas foi uma presença política muito mais forte do que qualquer outra pessoa no nosso tempo.

15-Quando é afinal que o Brasil vai ser um pais rico e feliz ?
Francis - O Brasil só não é rico porque não quer.
Viajei para o Brasil com o diretor de uma grande empresa americana - que adora o nosso país.Vai se aposentar aqui.Fica estupefacto com as chances que nós perdemos de ficarmos ricos.Temos de vencer uma certa infantilidade que há no nosso temperamento,uma confusÃo de desejo com realidade.Mas felicidade é um conceito mais complexo.Ser rico não significa necessariamente ser feliz.Mas é claro que ficar rico ajuda bastante.O Brasil tem um dever consigo próprio de eliminar as necessidades básicas do ser humano - e o Brasil não cumpre isso,os governos não cumprem isso,a nossa sociedade não cumpre isso".

Posted by geneton at 08:59 PM

CARTA AOS MENINOS QUE CORREM ATRÁS DO ÔNIBUS DA SELEÇÃO BRASILEIRA

O autor da melhor definição já escrita sobre futebol é um ilustríssimo desconhecido. Seja lá quem for, merece ser entronizado quem resumiu em apenas doze palavras esta paixão tão avassaladoramente brasileira:
- Das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante...

Noventa e cinco por cento dos brasileiros devem ser adeptos desse mandamento.Os cinco por cento restantes não nasceram ainda.

Quero fazer uma confissão: eu estava banhado de suor no exato momento em que descobri que "das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante". Não, eu não estava disputando uma final de campeonato. Como um celerado, eu corria desembestadamente atrás do ônibus da seleção brasileira, na avenida Rosa e Silva, no Recife, no já remoto ano de 1969. Em minhas mãos, carregava uma folha de papel em branco. Não estava à procura de nenhuma declaração, não esperava por nenhuma entrevista. Nem sonhava em ser repórter. O que eu queria - como, provavelmente, todo menino brasileiro apaixonado por futebol - era um autógrafo de um dos meus ídolos. Fui a pé de minha casa até o estádio do Náutico, na avenida Rosa e Silva. Uma multidão de torcedores esperava pela chegada da seleção, para o treino. Lá vem o ônibus. Tumulto. Gritaria. Empurrões. Eu me lembro de ter visto Tostão e Clodoaldo acenando na janela. Ou terá sido Gérson? Quem sabe, Jairzinho.Não importa: os craques dos meus times de botão estavam ali, materializados, a dois palmos de distância.

O treino ia ser fechado. Mas eram tantos os torcedores correndo atrás do ônibus que a Federação resolveu abrir os portões do estádio. Aquele punhado de fanáticos teve, então, o privilégio de assistir a um treino da seleção que, meses depois, entraria para a história do futebol mundial nos gramados do México como o melhor time de futebol de todos os tempos.

O que diabos eu estava fazendo na arquibancada do estádio dos Aflitos, na manhã de um dia de semana?

Aos doze anos de idade, eu estava descobrindo que o futebol é a mais importante das coisas menos importantes da vida. Dizem que a gente só guarda na memória rostos, datas e nomes que, por um ou outro motivo, nos são realmente importantes.O trator dos neurônios soterra o resto. Pois bem: meu professor de desenho no Colégio São Luís - que Deus o perdoe - passou o ano tentando me fazer entender que "o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos". Eu passei o ano preocupado com outro problema: o Sport Clube do Recife, afinal de contas, ia ou não barrar a caminhada do Náutico rumo ao título de heptacampeão pernambucano? O meu time de botão ia ou não ganhar o dificílimo campeonato que a gente organizava na rua Dom Manoel da Costa, no bairro da Torre?

Enquanto o professor - com cara de zagueiro alemão - tentava me familiarizar com o fantástico mundo da geometria, eu ficava pensando com meus botões: quem é hipotenusa? O que significa cateto? Onde fica a saída, pelo amor de Deus? Cadê o meu timaço de botão?

Hoje, 33 anos depois, declaro-me formalmente incapaz de explicar o que significa a soma dos quadrados dos catetos. Mas sei de cor a escalação do time do Sport: Miltão; Baixa, Bibiu, Gílson e Altair; Válter e Vadinho; Dema, Zezinho, Acelino e Fernando Lima. Não preciso consultar nenhum jornal antigo para recitar de trás pra frente a escalação do meu time de botão - o Palmeiras de 1968: Perez; Scalera, Baldochi, Minuca e Ferrari; Dudu e Ademir da Guia, Gildo, Sevílio, Tupãzinho e Rinaldo. Eis uma prova matemática dessa verdade fundamental: das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante.Se não fosse, eu não teria guardado tantos nomes.

O meu exercício de memória, obviamente, não vale nada. Mas o que é a vida, se não uma coleção de gloriosas inutilidades? Sou igualmente capaz de recitar o meu time de botão do Botafogo de 1969: Cao, Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César. É pouco? Lá vai o time do Santos: Cláudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manoel Maria, Toninho, Pelé e Edu. Minha memória sepultou no cemitério dos esquecimentos todo o palavrório que meu professor mobilizou na inglória missão de me apresentar aos mistérios dos catetos e hipotenusas. Não tive coragem de dizer a ele, mas, desde o primeiro dia de aula, eu tinha certeza absoluta de que o futebol era mais importante do que a soma dos quadrados dos catetos. Não me perguntem por quê. Eu era um menino brasileiro. Não se deve pedir explicação a nenhum menino brasileiro apaixonado por futebol.

Esquecido das hipotenusas, guardei na memória duas cenas do dia em que corri desembestado atrás do ônibus da seleção brasileira. Clodoaldo saiu de campo chorando, machucado. Termina o treino. Nós, os desocupados meninos do Brasil que saímos de casa numa manhã de dia de semana para correr atrás do ônibus da seleção, tentávamos agora vislumbrar por uma fresta numa das paredes do estádio nossos craques se preparando para ir embora. Parecia filme de Fellini. Nós nos revezávamos no posto de observação. Cada um podia olhar por cinco, dez segundos o que estava acontecendo no vestiário dos nossos deuses. Quando chegou minha vez, o que vi? Clara, nítida, diante de mim, a imagem do Rei Pelé ensaboado da cabeça aos pés.O Rei estava nu.

Quando os jogadores voltaram para o ônibus, pararam para saciar nossa fome de autógrafos. Devo ter guardado em algum lugar esta relíquia. Onde estará este meu pequeno tesouro, pessoal e intransferível? Acabo de achar em meio a velhos papéis. Lá estão os autógrafos de Tostão, Rivelino, Brito, entre outros que terminaram ficando no caminho, na odisséia rumo ao México - como Paulo Borges,ponta-direita do Corinthians. A seleção que foi treinar no campo dos Aflitos trazia as estrelas que reluziriam na campanha do México: Félix, Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho,Tostão e Pelé. Quando o ônibus partiu, repetiu-se a gritaria, o tumulto, a vibração, os acenos. Nova correria atrás do ônibus.

O que terá acontecido naquele remoto ano na vida do menino brasileiro apaixonado por futebol? O meu professor de desenho me reprovou, é claro. Meu pai me deu uma bronca de dimensões bíblicas: disse que eu passaria os próximos meses proibido de ir ao estádio. O meu time do Palmeiras perdeu o campeonato da rua Dom Manoel da Costa na penúltima rodada. O juiz com certeza deve ter roubado. O Santa Cruz - tragédia - venceu o campeonato pernambucano. O Sport ficou a ver navios, na Ilha do Retiro.

O menino brasileiro - um entre milhões - aprendeu ali que a vida é feita também de derrotas, fracassos, reprovações. Mas é também feita de lembranças que só aparentemente são desimportantes. Minha paixão pelo escrete deve ter começado ali, na corrida atrás daquele ônibus.

Então, dou um conselho aos meninos brasileiros: corram atrás do ônibus da seleção, se tiverem a chance. Ou do carro de bombeiros no desfile da vitória. Quantas lembranças, quantas paixões pelo escrete não surgirão entre esses meninos que correrão, desembestados, com uma folha de papel em branco nas mãos?

Da matéria dessas lembranças se alimenta a mais bonita, a mais avassaladora, a mais incondicional paixão de um povo por uma instituição nacional: a do brasileiro pela seleção.


(2002)

Posted by geneton at 06:37 PM

MENINOS,EU VI !

Eis os personagens do livro que não foi escrito: Woody Allen, Mikhail Gorbachev, Margareth Thatcher, Paul McCartney, Yoko Ono, Princesa Diana.


Peço licença aos sócios do meu restritíssimo clube de leitores para escrever na primeira pessoa. Faço um passeio anárquico pelo Museu da Memória, em busca de personagens que cruzaram o caminho do repórter. Todos foram protagonistas de cenas de bastidores – que ficaram de fora das reportagens. Folheio mentalmente a minha Pequena Enciclopédia de Celebridades – um livro que jamais foi escrito. As imagens, nítidas, vão se sucedendo. Ei-las:

ALLEN,WOODY

A máquina de relações públicas da distribuidora encarregada de lançar um filme de Woody Allen oferece uma entrevista exclusiva com o ator e diretor, na suíte de um hotel plantado às margens do Hyde Park, em Londres. Tento ser britanicamente pontual: chego na hora. A assessora me leva para uma ante-sala. Vai embora. Um minuto depois, chega o astro. É igual ao que se vê no cinema: tímido, esfrega as mãos enquanto fala, olha para o chão, solta tiradas geniais. É pálido como um boneco de cera. Pergunto se ele admira algum brasileiro. Tenho certeza de que Woody Allen – fanático por esportes – vai citar Pelé ou Romário ou Ronaldinho. Quebro a cara. Allen se declara apaixonado por Machado de Assis. Ganhou de presente uma versão inglesa de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Lá pelas tantas, diz que precisa fazer um filme atrás do outro, para não olhar para a “nuvem negra” que paira vinte e quatro horas sobre seus ombros – a morte. Tento consolá-lo. Digo que os filmes que ele faz serão estudados daqui a 50 anos, nas cinematecas. Woody Allen responde que não quer a imortalidade no futuro. “Quero agora, já, no meu apartamento”. Infelizmente, não posso ajudar.

ONO,YOKO

Yoko Ono dá uma longa entrevista para falar sobre a exposição que fará em Brasília. São instalações de vanguarda – obras de arte que jamais serão degustadas pelo povaréu. O assessor (que também é namorado da viúva mais famosa do mundo) controla o tempo da entrevista. Fez-se um acordo prévio: nada de perguntas sobre vida pessoal. Deixo para o final uma pergunta sobre Lennon. Yoko Ono pousa a mão sobre minha perna, esboça um sorriso, diz que “numa próxima oportunidade” falará sobre o assunto. Gentilmente, dá por encerrada a entrevista. Não resisto à tentação de pedir um autógrafo. A única foto que encontrei mostra Yoko e John diante do Dakota – o prédio em que o ex-beatle foi assassinado na noite do dia 8 de dezembro de 1980. Quando vê a foto, Yoko suspira, baixinho, algo como God... (“Deus...”). Termina assinando. Por um instante, involuntariamente, devo ter trazido uma péssima lembrança à superviúva. Sorry about that.

GORBACHEV,MIKAIL

Pouquíssimos estadistas podem dizer que mudaram o mundo. Mikhail Sergueivich Gorbachev faz parte dessa confraria. Bem ou mal, ele deflagrou o processo de abertura política e econômica que virou a União Soviética de pernas para o ar. O mundo mudou a partir do dia em que Gorbachev pronunciou pela primeira vez as palavras glasnost e perestroika diante das muralhas do Kremlim.
Dizem que ele entende – e fala – perfeitamente o inglês. Mas, diante de repórteres estrangeiros, só fala russo. Faço a pergunta providencialmente traduzida por uma intérprete: “Os seus admiradores dizem que o senhor mudou o mundo”. Gorbatchev ouve com ar satisfeito. Quando a intérprete transmite a ele a segunda parte da pergunta – “mas seus detratores dizem que o senhor traiu os ideais do socialismo” – Gorbatchev franze a testa, como se estivesse fazendo um leve sinal de reprovação. Intimamente, espero pelo pior. Se estivesse de mau humor, Gorbatchev poderia acabar ali a breve entrevista. Mas não: prefere dar uma resposta aos detratores. Diz que a história, um dia, fará justiça aos que, como ele, apostaram na liberdade.
Tenho vontade de pronunciar um “absolutamente certo!” como complemento à resposta do homem, mas me contenho.

McCARTNEY,PAUL

O ex-beatle Paul McCartney, apontado pelo vetusto Daily Telegraph como o mais importante compositor de música popular do século vinte, vai dar uma coletiva no Royal Albert Hall, numa manhã gelada, em Londres, para falar sobre a peça clássica que estava lançando em disco. Faço uma combinação com o cinegrafista. Em vez de nos dirigirmos ao auditório que servirá de palco para a coletiva, ficaremos do lado de fora, próximos à entrada principal do Royal Albert Hall. Quem sabe, num golpe de sorte, não conseguimos uma declaração exclusiva do homem. Fãs capazes de qualquer sacrifício descobrem, não se sabe como, que Paul falará aos jornalistas. Lá estão elas, indiferentes ao frio de rachar, num canto da calçada, à espreita. De repente, noto que um magrelo vestido de preto começa a falar discretamente num walkie-talkie. Faço um sinal para o cinegrafista. A celebridade deve estar chegando. Um carrão preto, com vidros indevassáveis, se aproxima lentamente da entrada do prédio. Quando notam, as fãs se agitam. O carro pára. Quem desce do banco traseiro? Só podia ser: Sir Paul McCartney, recém-condecorado pela Rainha. Avanço em direção à presa, com o microfone em punho. Fãs soltam gritos. Os brutamontes – popularmente conhecidos como seguranças – entram em ação para afastar todo e qualquer intruso – eu, inclusive. Paul acena para a turba. A única declaração que consigo captar é um monossílado – Hi! – versão inglesa para “Olá!”

Em questão de segundos, ele desaparece dentro do prédio, cercado de seguranças por todos os lados. É uma luta inglória: enfrentar um daqueles brutamontes corresponde a desafiar Mike Tyson para um duelo, no meio da rua, numa manhã de inverno. Faltam-me proteínas para tanto.
Lá dentro, na coletiva, Paul aponta aleatoriamente para um ou outro jornalista – que, bafejado pela sorte, pode balbuciar uma pergunta. Supercelebridade é assim. O dedo indicador do beatle me desconhece solenemente. Fica para a próxima.
Além das declarações que o astro fez na coletiva, volto para a redação com a entrevista mais sucinta das tantas que tive a chance de tentar.
“Olá.”
E ponto final.

RAY, JAMES EARL

Depois de negociações via fax com a direção do presídio de segurança máxima, consigo uma entrevista com um dos assassinos mais célebres da história dos Estados Unidos – o homem que matou o pastor Martin Luther King. Chama-se James Earl Ray. Cumpria pena de prisão perpétua numa penitenciária em Memphis, Tennessee.
Uma pequena odisséia precede o encontro. Somos obrigados a fazer uma lista minuciosa de todo o equipamento que estamos conduzindo (fios, microfones, baterias). Depois, o guarda nos ordena que deixemos numa caixa todas as cédulas, moedas e talões de cheque que tivermos nos bolsos. O dinheiro é trancafiado num cofre. Vai ser devolvido na saída. Motivo: evitar que se faça qualquer pagamento ao prisioneiro em troca da entrevista. Depois, passamos por pelo menos cinco portões que isolam os detentos do resto do mundo. O próximo portão só se abre quando o anterior se fecha. Cercas eletrificadas completam o aparato. Penso comigo: é tecnicamente impossível escapar desse inferno. James Earl Ray chega para a entrevista mascando chicletes. Os olhos azulíssimos são espertos. O homem é articulado: fala bem, concatena com clareza suas idéias. Faço a pergunta que ele com certeza ouve há anos: você matou Martin Luther King? A resposta é sucinta: “Não”. Mas as provas são conclusivas: as impressões de James Earl Ray estavam no rifle usado para matar King em abril de 1968, na varanda de um hotel de Memphis.
Martin Luther King tinha um sonho: acabar com o preconceito racial. James Earl Ray tinha um rifle.
Termina a entrevista. Vacilo intimamente: devo ou não pedir um autógrafo ao assassino? Confesso que minha porção fútil venceu. Peço que ele autografe um livro sobre o assassinato.
James Earl Ray me deseja, por escrito, “os melhores votos”.
Resisti até hoje a vender o livro num desses leilões exóticos que povoam a Internet.

THATCHER, MARGARETH

A fila na noite de autógrafos é enorme. Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, que entrou para a história política como a primeira mulher a governar a Grã-Bretanha, tinha sido aplaudida de pé, por pelo menos cinco minutos, pela platéia que lotara o anfiteatro no centro de Londres para ouvir suas perorações contra a excessiva intromissão do Estado na vida dos cidadãos. Encerrada a conferência, ela desaparece nos bastidores, provavelmente para irrigar a garganta fatigada por tanto discurso. Mas volta logo ao palco, para uma sessão de autógrafos. Cercada por agentes de segurança, ela troca cumprimentos formais com os leitores enquanto assina os exemplares da autobiografia. Quem consegue o autógrafo é gentilmente convocado por uma assessora a desaparecer do mapa o mais rápido possível, porque ali não é lugar de puxar conversa com a Dama de Ferro.
Penso com meus velhos botões: a hora do autógrafo pode ser, quem sabe, a chance ideal de arrancar uma minientrevista. Fora dali, Margareth Thatcher é tecnicamente inacessível, pelo menos para repórteres vindos do Brasil, esta república que, aos olhos dos ingleses, é um território quente, distante e exótico.
Chega a minha vez. Vista a um palmo de distância, Margareth Thatcher é um monumento à palidez. A maquiagem só acentua a brancura. Faz movimentos espaçados com a boca, como se estivesse mastigando ar (um espírito de porco diria que os movimentos lembram o de alguém desprovido de dentes).
Faço um pedido no instante em que ela saca a caneta para pingar o autógrafo no calhamaço: “Se Margareth Thatcher fosse definir Margareth Thatcher em uma só palavra, qual seria ela? A senhora se importaria de escrever esta palavra junto do autógrafo?”
Por um instante, os olhos azuis da Dama de Ferro me fitam, inquisidores. A fera dá a impressão de estar vasculhando mentalmente o dicionário em busca da palavra mágica. Mas a palavra mágica não vem. A Dama de Ferro diz: “Desculpe, mas não posso me definir em uma palavra apenas. Vou lhe dar o autógrafo. Muito obrigado. Boa noite”.
A mão estendida é sinal de que minha miniaudiência com Miss Thatcher estava encerrada. Dos males, o menor: volto para casa com duas frases no meu caderno de anotações.
É um avanço considerável, se comparado com o “olá!” de Sir Paul McCartney.

DIANA

Não há outro pensamento possível: fico ruminando sobre o absurdo da vida ao ver o caixão passar a dois passos de onde estou, numa alameda nas proximidades do Palácio de Buckingham, numa manhã de setembro. Há apenas uma semana, a Princesa Diana, linda, ilustrava a capa de uma revista numa foto deslumbrante em preto e branco. Agora, a Princesa é um corpo – invisível – desfilando diante de uma multidão de súditos em estado de choque. Crianças pregam nas árvores folhas de papel com mensagens e desenhos que a Princesa jamais verá. Os príncipes William e Harry caminham em companhia do pai, o Príncipe Charles, herdeiro direto do trono, logo atrás do caixão. De vez em quando, o Príncipe Charles faz movimentos quase imperceptíveis com a cabeça, como se agradecesse a presença da multidão. Cabisbaixos, seus dois filhos não tiram os olhos do chão.
A multidão não emite um ruído sequer. Só se ouvem dois ruídos. Um é o som do trote dos cavalos que transportam a carruagem fúnebre. O outro é o badalo compassado do sino da Catedral de Westminster. Com intervalos regulares, o sino enche a manhã de um som solene, triste, trágico.
A visão da multidão em silêncio, o som compassado do trote dos cavalos e o toque estranhamente assustador do sino da Catedral dão à cena ares de uma tragédia shakespeariana.
Perto dali, uma cena inacreditável: um bêbado trajando luto pronuncia palavras incompreensíveis diante da estátua de Charles Chaplin, na Leicester Square.
São onze da manhã. A conversa do bêbado com Carlitos completa a sucessão de cenas absurdas naquele setembro inesquecível.
Que segredos o bêbado terá confiado ao Vagabundo?

BEST, PETE

Não pode haver ninguém tão azarado sob o sol da sede do ex-Império Britânico. Durante dois anos, um baterista de Liverpool chamado Pete Best tocou com Paul McCartney, John Lennon e George Harrison num grupo recém-formado chamado The Beatles.
Um dia, o empresário dos Beatles chama Pete Best para avisar que, a partir daquele momento, o grupo terá outro baterista, um certo Ringo Starr.
Ironia das ironias: enquanto os Beatles conquistavam fama mundial, Pete Best amargava os dias como funcionário público numa agência de empregos de Liverpool. As tentativas de fazer uma carreira solo naufragaram. É lá que vou encontrá-lo, depois de uma primeira abordagem telefônica.
O ex-beatle me faz uma surpresa. Quando já estou na Inglaterra, ele diz que costuma cobrar um cachê por entrevistas – exatas 500 libras, o que corresponde a 800 dólares. Cumpro a exigência, para não perder a viagem.
Durante a entrevista, ele comete confidências sobre as farras homéricas que fez em companhia dos outros beatles, nas excursões a Hamburgo, na Alemanha, no início da carreira. Em companhia de Lennon, tentou roubar a carteira de um marinheiro na saída de um show num clube noturno. Fãs afoitas freqüentavam em sistema de rodízio as camas dos Quatro Cavaleiros de Liverpool, num alojamento nos fundos de um cinema decadente.
Terminada a entrevista, Pete Best convida-nos para tomar um chope num pub na Mathew Street – a ruela de Liverpool onde os Beatles fizeram suas primeiras apresentações, no célebre Cavern Club.
Lá pelas tantas, depois de inspecionar o ambiente com um olhar demorado, faz uma confissão: assim que soube que tinha sido dispensado do grupo, dirigiu-se exatamente a este pub, para tomar um porre homérico. Trinta e tantos anos depois, ele revive a cena, em companhia de um forasteiro sul-americano.
Meninos, eu vi: por um breve fim de tarde, um ex-beatle afogou suas mágoas em minha companhia, diante de copos de chope morno.
Assim caminha a humanidade.

TAGUE, JAMES

O assassinato do presidente John Kennedy, ao meio-dia e meia da sexta-feira 22 de novembro de 1963, teve uma vítima desconhecida: um passante – que só parou para ver a passagem da comitiva porque o trânsito estava engarrafado – foi ferido na bochecha pelo estilhaço de uma das balas disparadas pelo ex-fuzileiro naval Lee Oswald contra o presidente. Nome da vítima: James Tague. É citado no relatório oficial sobre a morte do Presidente.
Hoje, ele é comerciante de carros usados. Dá uma resposta afirmativa ao meu pedido de entrevista, feito por telefone. O encontro fica marcado para o único endereço que conheço em Dallas: o célebre Depósito de Livros Escolares do Texas. De uma janela, no sexto andar do Depósito de Livros, Lee Oswald esperou com um rifle nas mãos a passagem da comitiva presidencial.
Chego ao encontro na hora marcada. Como identificar James Tague?
Noto que um texano típico – devidamente paramentado com botas de cowboy – caminha de um lado para outro na calçada do Depósito de Livros. De vez em quando, me olha, como se quisesse adivinhar quem sou. Fico imaginando se aquele cowboy é o meu personagem.
Faço a pergunta: “Mister Tague?”
O cowboy estende a mão, abre o sorriso, diz que estava desconfiado de que eu era o tal repórter brasileiro que marcara o encontro por telefone.
Depois de apontar para a janela de onde saíram os tiros, caminha até uma cerca – que, segundo os crentes em teorias conspiratórias, serviu de esconderijo para o segundo atirador, jamais encontrado.
O cowboy vendedor de carros usados engrossa o coro dos que dizem que Lee Oswald foi o único assassino, mas deixa em aberto um pequeno espaço para a dúvida.
Quando pergunto se ele acha que um dia o “Crime do Século” será definitivamente esclarecido, o cowboy responde com uma palavra: “Não”.
Depois, troca cumprimentos, diz que precisa voltar ao trabalho e desaparece no começo da tarde de Dallas. Por um desses acasos que só acontecem uma vez num século, o anônimo cowboy texano foi testemunha e coadjuvante de um dos maiores crimes da história.

FRANCIS,PAULO

Sábado à tarde numa livraria em Piccadilly Circus, no centro de Londres. Folheio ao acaso livros na seção de obras clássicas de uma livraria. De repente, um tapa nas costas me assusta. Viro-me. Ei-lo: Paulo Francis. Sorridente, diz que ficou satisfeito em me ver ali, porque eu estava na única “seção que presta”: a dos clássicos.
Fico pensando que fui salvo pelo gongo. Por puro acaso, estava na seção dos clássicos, entre gigantes da literatura universal. Minutos antes, estava folheando livros ilustrados sobre futebol – obras de peso intelectual zero. Devo ter dado a Francis a impressão – errônea – de que era um freqüentador habitual da seção das obras-primas de todos os tempos. Como o equívoco era a meu favor, não me animei a corrigi-lo.
Um dia antes, Francis tinha repassado comigo uma possível lista de entrevistas que ele poderia fazer para a TV. Já tinha gravado uma com Martin Amis. Agora, faria com a escritora de romances policiais P. D. James. Animado, citei vários nomes de escritores acessíveis. Por que não fazer com Paul Johnson? Que tal J. G. Ballard – que tinha publicado há pouco um livro de ensaios? Diante deste nome, reagiu com moderação.
Ao notar meu entusiasmo na escalação de possíveis entrevistados (eu não dizia, mas, na verdade, estava saboreando ali a chance de discutir pautas com um dos meus ídolos jornalísticos), Francis fez o seguinte comentário, típico de um velho lobo certamente desiludido com o Estado Geral das Coisas:
– Você viu aquele filme Se7en? Você se lembra do que o personagem de Morgan Freeman diz no final do filme? Depois de citar uma frase de Ernest Hemingway – “O mundo é um belo lugar para viver; vale a pena lutar por ele” – Morgan Freeman diz o seguinte: “Concordo com a segunda parte”. Pelo jeito, você parece que concorda também...
Aquele foi o penúltimo encontro com Francis, o autoproclamado “lobo hidrófobo”.
A última frase que ele escreveu, no último livro que publicou (Trinta Anos Esta Noite), foi tristemente profética:
– Nos esforçamos, contra a corrente, que nos traz incessantemente para o passado. Vemos a luz verde, o futuro orgiástico, que ano a ano reflui, sempre elusivo, sempre ao nosso alcance, intangível, até que no meio de uma frase nos dêem um ponto final...

Posted by geneton at 11:23 AM

março 11, 2004

OS BASTIDORES DA FÁBRICA DE "ESTRELAS"

LONDRES - Começa assim : num belo dia de primavera,o telefone toca 'as onze da manha.Do outro lado da linha,uma voz aveludada anuncia,em tom ligeiramente solene : ''Bom dia ! Voce foi indicado para....''. A palavra ''indicado''(''nominated'',em ingles) lembra,na hora,aquelas festas de entrega do Oscar: ''The nominated are....''.Por uma milesimo de segundo,voce pensa,com seus botoes : '' E' a gloria,ainda que tardia ! A Europa se curva diante do Brasil !''.O delirio se desfaz rapidamente,porque voce jamais passou diante de uma camera de cinema.A festa do Oscar ja' acabou ha' seculos.A voz aveludada esclarece que voce foi ''indicado'' para entrevistar Scott Wolf ao meio-dia e meia da quinta-feira na suite 1132 do Saint James Court Hotel,no numero 45 da Buckingham Gate - endereco nobre,a um passo do Palacio de Buckingham.Otimo.Mas uma duvida devastadora paira no ar : quem e' Scott Wolf,pelo amor de Deus ? Por cortesia,voce livra a moca de voz aveludada do constrangimento de ouvir a pergunta. Corre,entao,para o Dicionario de Cinema.Nada.Nem uma linha sobre nosso heroi. Voce se lembra daquele escritor ingles - G.H.Chesterton - que disse,no inicio do seculo :''O jornalisno consiste basicamente em dizer ''Lorde Jones morreu'' a pessoas que nunca souberam que Lorde Jones estava vivo''.Quem sabe nao tera' chegado a hora de adaptar a maxima 'as premencias deste final de milenio : fazer jornalismo e' entrevistar o famoso Scott Wolf sem jamais ter imaginado que Scott Wolf existisse.

Horas depois do telefonema,chega um novo convite : voce e' esperado para a avant-premiere de ''White Squall'',o novo filme de Ridley Scott(o ingles que dirigiu sucessos como ''Alien'',''Blade Runner,o Cacador de Andoides'' e ''Thelma e Louise'').O filme vai ser exibido para jornalistas na sala de projecao de uma produtora na Dean Street,uma transversal da Oxford Street,no centro de Londres.Um fax chega com os detalhes.O misterio comeca a se desfazer : Scott Wolf -um ator de vinte e sete anos - e' um dos astros do filme. Um dia depois da avant-premiere, o famoso Scott Wolf estara' 'a espera dos jornalistas ''indicados'' na suite do hotel nas vizinhancas do palacio da Rainha Elizabeth Segunda.

Martin Amis,o mais incensado escritor ingles da geracao que hoje transita pelos quarenta anos de idade rumo ao meio seculo de vida,viajou uma vez para Nova Iorque para entrevistar Madonna,mas a estrela nao quis recebe-lo.Amis nao desistiu.Primeiro,morreu de rir da pompa ridicula que cercou o lancamento daquele livro de Madonna em poses provocativas.Depois,produziu um longo artigo para dizer que o grande assunto hoje nao e' o artista,o cineasta ou o escritor - mas a maquina publicitaria que os cerca.Acertou na mosca.O publico nem sempre sabe,mas os bastidores,em geral,sao mais interessantes que as declaracoes da estrela da vez .O nome da estrela da vez e' Scott Wolf.
Se algum forasteiro ouvisse os cumprimentos trocados por jornalistas na sala de exibicao antes do inicio da avant-premiere certamente imaginaria que ali estavam legitimos representantes do jet set internacional : ''E ai ? Como e' que foi a Sharon Stone ?''.''Nao fui.Mas deu pra fazer Susan Sarandon - uma simpatia''.''E Robin Williams ? Vem ou nao vem a Londres ?''. Os jornalistas revivem ali a cena surrealista que encenam incontaveis vezes durante o exercicio da profissao : falam de celebridades como se fossem velhos intimos de cada uma. Nao sao,obviamente. Frequentam,na condicao de entrevistadores,suites presidenciais de hoteis de cinco estrelas em que jamais,sob hipotese alguma,poriam os pes em missao particular,por absoluta insuficiencia de fundos bancarios. A reciproca e' verdadeira : celebridades tratam os jornalistas como se fossem amigos de infancia. Astros diplomados no jogo sabem como conquistar simpatias imediatas : Paul McCartney faz questao de tratar os entrevistadores pelo primeiro nome,um sinal de intimidade que,em situacoes normais,os ingleses so' dispensam a velhos conhecidos.Ali McGraw -aquela atriz de ''Love Story'' - deu o endereco,pessoal,a um reporter brasileiro,na contracapa de um livro,depois de uma entrevista.Se o reporter,acometido de uma crise de otimismo,resolvesse pegar um aviao rumo ao endereco de Miss McGraw em busca de emocoes extra-jornalisticas seria,com toda certeza,enxotado por segurancas do porte de Adilson Maguila ainda na porta da mansao. E' tudo uma grande festa,feita de interesses mutuos.O jogo e' aberto : a distribuidora oferece ao jornalista ''indicado'' a chance de entrevistar um astro,porque quer ocupar espacos nos jornais ou tempo nas teves.O jornalista aproveita a chance porque,quem sabe,pode obter uma boa entrevista.Quem dispensaria a chance de um encontro exclusivo,sem a presenca de intrusos,com o genio Woody Allen,por quarenta cronometrados minutos,na suite de um hotel com vista para o Hide Park ? Ninguem.O problema e' que nem sempre os entrevistados sao do primeirissimo time no ranking dos campeoes de preferencia.Para cada Wood Allen que cai do ceu,ha' dez roteiristas ou produtores ou astros coadjuvantes que nem os proprios jornalistas conhecem.Mas o sentimento comum e' de que vale a pena arriscar.Quem sabe nao estara' ali um futuro Stanley Kubrick ou o Dustin Hoffmann do ano dois mil ?

O NOVO TOM CRUISE ENFRENTA
UM NAUFRAGIO EM ALTO MAR

Comeca -afinal- o novo filme de Ridley Scott.Minutos depois de iniciada a projecao,um dos jornalistas convidados dorme um sono solto.Morfeu ronda a sala. Mas as cenas de catastrofe na tela despertam os sonolentos.Ainda sem titulo em portugues,com lancamento previsto para o Brasil em junho,o filme conta a historia de dezesseis adolescentes que partem em viagem de instrucao em um barco comandado por um velho lobo do mar,vivido por Jeff Bridges.A historia e' baseada em fatos reais.Toda a experiencia do capitao nao impede que o barco va' parar em meio a uma tempestade cortada por raios e trovoes.''White Squall'' -o titulo do filme - e' o nome da tempestade.Filmadas em um grande tanque,em meio a ondas gigantescas provocadas por um motor,as cenas do naufragio sao de tirar a respiracao.Seis tripulantes - quatro alunos,um oficial e a mulher do capitao - morrem na tempestade.A tragedia vai para as manchetes.O capitao termina no banco de reus.O julgamento vira dramalhao tipico de Hollywood.E' a versao maritima de ''Sociedade dos Poetas Mortos'' ou de ''Brubaker'',aquele filme em que Robert Redford faz o papel do diretor que tenta humanizar uma penitenciaria. Agora,o heroi que enfrenta a incompreensao do sistema e' o capitao vivido por Jeff Bridges(uma curiosidade biografica : Jeff Bridges e' filho de Lloyd Bridges,o ator da serie de TV ''Viagem do Fundo do Mar''.Chegou a fazer pontas na serie.Nao e' estranho,portanto,ao mundo dos golfinhos,tubaroes e tempestades).Scott Wolf faz o papel de um dos adolescentes que vivem a aventura no mar.


O estudio poderia ter trazido Jeff Bridges - ator consagrado- ou o diretor Ridley Scott para a bateria de entrevistas na suite do hotel em Londres.Mas nao.A hora e' de apontar os refletores sobre o futuro astro Scott Wolf.Os jornalistas ''indicados'' deparam-se com um poster do filme na antesala da suite.Um garcom aparece para tirar as duvidas : em que posso servi-los ? Duas mesas repletas de croissants,sanduiches,cafe',cha' e leite estao a' disposicao dos convidados.Os mais famintos podem avancar sobre um bolo de chocolate,se quiserem.A moca de voz aveludada vai levando os jornalistas,em grupos de quatro,para o encontro com o futuro superstar.Ha' restricoes : ninguem deve levar maquina fotografica. Os jornalistas devem chegar pelo menos quinze minutos antes do horario previsto.Parece que um dos segredos usados pela maquina publicitaria para conceder um ar de importancia a qualquer acontecimento e' cerca-lo com um certo ar de solenidade.''Nada de fotos''.''Por favor,chegue na hora''.''Mister Wolf tera' trinta minutos para cada grupo''.Ha' poucas semanas,jornalistas passaram pelo ritual de ter as maos carimbadas com uma tinta especial para ter o direito de ouvir a entrevista coletiva dos renascidos Sex Pistols,em que a maior atracao foram os retumbantes arrotos do lider da banda.A engrenagem sabe como funciona.

Scott Wolf usa a tatica Paul McCartney para criar um clima de intimidade : repete o nome de cada um dos jornalistas,enquanto os recebe com um aperto de mao firme e um ''que bom ver voce''.Pela enesima vez,ele repetira' - sem demonstrar qualquer sinal de impaciencia - como foi dificil enfrentar aquelas ondas na filmagem da cena do naufragio.Dira',candidamente,que se surpreende ao ser reconhecido na rua ''tao longe de casa'' - gracas 'a exibicao na TV inglesa de seriados americanos em que atua,como ''Party of Five'' ou ''Saved by the Bell''. Fara' revelacoes biograficas curiosas : chegou a se formar em ''financas'' na universidade de George Washington,mas terminou,tardiamente,optando pela carreira de ator,gracas aos conselhos de um amigo.Nao,nao se considera ''simbolo sexual'' - quem se considera,no planeta Hollywood ? Os elogios vao,todos,para o diretor que o escolheu como estrela - Ridley Scott. Com que outro gostaria de trabalhar ? ''Meu Deus'',diz o futuro astro ao GLOBO,''sao tantos...''.Termina citando nomes : Barry Levinson,Martin Scorcese,Quentin Tarantino,Robert Redford,Francis Ford Coppola. Comete uma boa frase : ''Quero trabalhar com diretores que me ajudem a descobrir dentro de mim coisas que nem eu sei que existem''.

Enquanto fala,o novo Tom Cruise nao para de comer uvas,traca uma banana e consome copos d'agua.''E' o meu cafe' da manha...'',explica.Barba por fazer,olhos azuis,camisa de manga comprida preta,calca de veludo verde escuro,o novo ''simbolo sexual das adolescentes'' anuncia que nao quer criar limites para si proprio : depois de se recuperar da maratona de lancamento de ''White Squall'',aceitara' participar de qualquer projeto que lhe pareca um desafio.''O problema e' que a maioria dos scripts que a gente recebe e' lixo''. Numa mesa ao lado,uma agenda preve o que acontecera' nas proximas horas ate' o dia seguinte,quando, ''ás 6:55'' ,um carro estara' no aeroporto,em Los Angeles,para levar Scott Wolf para casa. E' tudo cronometrado.Trinta minutos depois de iniciada a entrevista,uma das funcionarias encarregadas de organizar a maratona abre discretamente a porta da sala e caminha sem produzir qualquer ruido para as proximidades da cadeira onde o novo Tom Cruise consome uvas e bananas entre uma e outra frase.E' o sinal de que o tempo acabou.Wolf ainda brinca.Depois de fazer pontas em filmes inexpressivos,ele confessa : ''e' a primeira vez que faco um filme capaz de reunir pessoas em torno de uma mesa''.

Os jornalistas recebem um pacote de informacoes sobre o novo filme : um texto de trinta e sete paginas com biografias de atores,diretor e produtores e a historia das filmagens,alem de slides coloridos e copias de reportagens publicadas em revistas sobre o futuro astro. Ha' material de sobre para encher paginas e paginas.A engrenagem publicitaria se move para lancar um novo nome nas fachadas de cinemas de todo o planeta. Quando o grupo de jornalistas deixa a sala,Scott Wolf repete o ritual com o grupo seguinte,formado por suecos,portugueses e espanhois : de pe' diante da porta,repete o nome de cada um,exibe um sorriso de gala.Vai comecar tudo de novo.O futuro astro ja' aprendeu a licao : nao exibe o menor sinal de enfado.E' provavel que,no intimo,esteja contando os segundos para se ver livre daqueles desconhecidos que fazem perguntas como se o conhecessem desde o berco.O futuro superastro cumpre o ritual com atuacao exemplar.Porque sabe que,em breve,aparecera' em publicacoes e em teves de todas as partes - em idiomas tao dispares quanto o arabe ou o sueco.Assim nasce uma estrela.
La' fora,uma camareira olha com curiosidade para o gravador do reporter,pergunta quem e',afinal, a figura importante que ocupa aquela suite. Voce tenta exibir um ar de intimidade : ''Scott Wolf !''.
Ok,lord Jones morreu.Mas a maxima de Chesterton talvez mereca uma nova -e ultima- correcao.De vez em quando,como agora,nesta manha clara de primavera nas vizinhancas do Palacio de Buckingham,fazer jornalismo e' dizer que Scott Wolf existe a camareiras que -exatamente como nos,pobres mortais - jamais suspeitaram que Scott Wolf um dia tivesse existido.

(1996)

Posted by geneton at 01:39 AM

março 09, 2004

IVAN LESSA

O AUTO-EXILADO IVAN LESSA DIZ BYE,BYE,BRASIL -PARA SEMPRE

Atenção,arrivistas,subliteratos,emergentes,
poetastros,politiqueiros,novos ricos,velhos baianos e poderosos em geral : já podeis respirar aliviados.Porque uma das mais ferinas penas já surgidas sob o sol da ex-Terra de Vera Cruz acaba de confessar,sem pompa nem solenidade : não voltará jamais ao Brasil.Acabou.Já era.Bye,bye Brasil - dessa vez é para sempre.O nome da fera ? Ivan Lessa,claro.A confissão foi feita em Londres.(Que confissao ? Que pompa ? Que Londres ? Que Brasil ? - perguntará,em silêncio,nosso inquieto personagem,enquanto caminha,circunspecto,por suas florestas interiores).
Que ninguém pense que Mister Lessa - uma das mais reluzentes estrelas de uma geraçã marcada por monumentos jornalísticos do porte de Paulo Francis e Millor Fernandes - foi acometido por algum surto extemporâneo de antibrasileirice aguda.Pelo contrário.Longe do país há ininterruptos vinte e um anos,desde que trocou o sol escandaloso do Rio de Janeiro pelo cinza made in Britain,Ivan Lessa cultua,a distância,suas paixões brasileiras.Todo dia dá uma navegada na Internet à procura de notícias da pátria-amada-idolatrada-salve-salve.E’ especialista em MPB.Provocado,é capaz de recitar horas sobre os tempos (áureos ? prateados ?) em que as ondas da Rádio Nacional embalavam o Gigante-pela-própria-natureza,ali pelos anos quarenta,cinquenta.(Que sol escandaloso ? Que cinza ? Que navegada ? Que gigante ? Leave me alone ! Deixem-me em paz ! - repetirá,levemente irritado,enquanto desliza pelos corredores da estação de Holborn).

Todo dia sai de casa,em Londres,para cumprir expediente no Servico Brasileiro da BBC.Depois de 7.665 dias sem rever o Brasil,deu-se conta de que não,não planeja voltar - nem em sonho.Deve estar,intimamente,se perguntando,como o poeta Drummond no verso famoso : ‘’Nenhum Brasil existe.E acaso existirão oa brasileiros ? ‘’.Mas o Brasil de Ivan Lessa existe,sim : é pessoal e intransferível.Dispensa o contato físico.(Que 7.665 dias ? Que sonho ? Que Brasil ? Que contato ? Leave me alone,please ! - bradará,por seus alto-falantes internos,enquanto passa a vista pela primeira página do Financial Times).

Uma vez por ano,Mister Lessa vai passar férias com a mãe,a cronista Elsie Lessa,em Portugal.A ponte aérea Londres-Lisboa,com eventuais escalas em Paris,lhe basta.
A visão de Ivan Lessa dedicado a fazer transmissões radiofônicas de Londres para o Brasil desperta uma dúvida inevitável : não será um caso escandaloso de desperdício de talento ? Quem conhece um ouvinte regular das transmissões da BBC,em português,para o Brasil ? Cartas à redação.Em todo caso,o sentimento de desperdício pode ser parcialmente atenuado : graças ao zelo da mãe - que guardou os originais das crônicas - e à dedicacao de uma colega de trabalho - que organizou o volume - os leitores saudosos do Ivan Lessa dos tempos do Pasquim ganharam de presente,neste final de 1999,um recem-lancado volume de crônicas,’’Ivan Vê o Mundo’’. Aos 64 anos,amarga,sem dramatizar,a ausência da alma gêmea,Paulo Francis.’’Eu estou tendo agora de lidar com um buraco enorme chamado Paulo Francis,que,de repente,sem mais nem menos,se abriu diante de mim.O estrangeiro é espantosamente real,irreversível.Não me há mais Brasil.Fim de papo.Nao tem mais ninguém do outro lado da linha’’ - escreveu na revista ‘’Veja’’ nos dias seguintes á morte do amigo de quase cinco décadas.Senhoras e senhores : com a palavra,Mister Lessa - ferino,inquieto,irônico,brasileiro como nunca.
(Que zelo ? Que desperdício ? Que alma gêmea ? Que brasileiro ? Um Valium,urgente ! - murmurará,enquanto se mistura,anônimo,aos frequentadores das livrarias da Charing Cross Road).

O DECáLOGO DE IVAN LESSA :

1.‘’EU ESTOU POR FORA DE ORIXÁ,ARAÇÁ AZUL,ODARA E MANDACARU VERMELHO !’’.

2.‘’O BRASIL DEVERIA ESQUECER O CINEMA.SOMOS RUINS’’.

3.‘’PATETA,MICKEY E O PATO DONALD SAO VIZINHOS MELHORES DO QUE O PESSOAL QUE INFESTA A BARRA DA TIJUCA’’

4.‘’NAO HA MOTIVO ALGUM PARA NOS SENTIRMOS ‘A VONTADE DO MUNDO !.OS ALIENIGENAS SOMOS NOS’’

5.‘’O CALOR DA SONO.O FRIO ME CIVILIZA’’

6.’’NAO QUERO ENTRAR COM MEU PLANGENTE VIOLAO DO SAUDOSISMO,MAS O NOSSO JORNALISMO PIOROU.MUITO MESMO’’.

7. ‘’SEMPRE FUI MUITO MAIS VELHO E MUITO MAIS CÉTICO QUE PAULO FRANCIS’’.


8.‘’AINDA ESTOU MOCO.SO TENHO 64 ANOS.PODE SER QUE A DEPRESSAO AINDA VENHA’’.

9.’’O QUE ACHO TRISTE E’ O FATO DE O MEU LIVRO SAIR !’’.

10.’’UMA DAS VANTAGENS DE ESTAR FORA E’ QUE SO RECEBO O DISCO DE CAETANO VELOSO : NAO SOU OBRIGADO A OUVIR AQUELAS TOLICES ENORMES E AQUELAS BOBAJADAS DAS ENTREVISTAS’’

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1-Voce diz numa cronica que o mundo é um lugar estrangeiro,’’assim que a gente bota os pés na rua,fora de casa’’.O sentimento de estranheza diante do mundo é indispensavel á vida intelectual ou é algo que voce sempre teve ?
Ivan Lessa : ‘’Voce me faz ficar serio...A gente vai ao Camus,a ‘’O Estrangeiro’’,o encontro com o outro.Mas olhe aqui : nasci em Sao Paulo; garoto ainda,a primeira vez que entrei em colegio foi nos Estados Unidos; quando voltei, fui para o Rio.Depois,garotao ainda,fui para Paris.Isso nao quer dizer nada,era viagem.Mas acho,sim,que o homem é estranho na terra.Deve manter,por uma questao de saude mental,essa sensacao de ser um estrangeiro aqui,no meio de arvores,pedras e seja la o que for.Os alienigenas somos nós ! E’ isso mesmo,e’ isso mesmo : manter a sensacao de ser um estrangeiro tem um lado muito saudavel.Nao ha motivo nenhum para voce ficar muito á vontade no mundo ! Nao ha motivo para que se diga ‘’estou á vontade’’.Nao,nao.Fique com uma certa timidez.Isso é bom : manter uma certa distancia’’.

2- A essa altura,a ausencia prolongada do Brasil (vinte e um anos) ja se transformou num acontecimento importante em sua biografia.Nao vou perguntar por que é que voce passou tanto tempo sem ir ao Brasil...

Ivan Lessa(interrompendo): ‘’Que bom ! ‘’.

Mas vou perguntar : voce planeja voltar um dia ?

Ivan Lessa : ‘’Nao planejo,nao planejo mesmo ! Nao digo que nao,porque ai parece implicancia.Mas simplesmente nao e’ algo que esteja em meus planos.O que planejo é passar novamente as minhas ferias de julho,no ano que vem,em Portugal,porque tenho um apartamento la.E’ uma coisa de rotina.Sou rotineiro.Gosto de rotina porque a rotina me ajuda a me situar no mundo e a me sentir menos estrangeiro.Eu sei que,em novembro,darei uma chegada a Paris.Disso tudo eu sei porque sao meus planos.Mas voltar ao Brasil nao está nos meus planos,simplesmente.Nisso nao vai birra nenhuma,querela nenhuma,disputa nenhuma.Nao estou reclamando da acustica da platéia,ao contrário de Joao Gilberto...’’.

3- Sao irritantes para voce essas teorias que se facam sobre ‘’porque é que Ivan Lessa nao volta ao Brasil’’ ? O motivo pode ser pessoal : sua mae mora em Portugal,voce vai passar as ferias la e ponto final...

Ivan Lessa : ‘’Sou ruim de numero.Quantos sao na diaspora brasileira ? Nos,que estamos no estrangeiro ? Quantos somos nos,agora ? Ha um milhao de brasileiros no estrangeiro ? Entao,pergunta a eles tambem ! Nao estou sendo desaforado com voce,voce sabe que nao.Eu sou apenas um imigrante a mais que foi tentar uma vida melhorzinha no estrangeiro.Ponto’’.


4- Uma das coisas que o fizeram sair do Brasil foi a mania do brasileiro de assoviar dentro do elevador.Qual é a outra mania brasileira que lhe ‘’dá nos nervos’’,como voce gosta de dizer ?

Ivan Lessa : ‘’Informalidade ! Pra resumir numa frase : pegar na gente.Voce sabe o que é que quero dizer ? Ingles nao pega em voce!.Mas se voce me encontra ou se eu encontro voce na rua e eu digo ‘’Ola,Geneton,como é que vai ?...’’e fico pegando,fico catucando...E’ como aquele camarada que,ao falar com voce,cola a boca no seu ouvido,como se voce fosse surdo.Dá para fazer toda uma galeria de tipos desagradaveis,num plano leviano...’’.

O ingles se limita a um aperto de mao,na primeira vez...

Ivan Lessa : ‘’Uma apresentacao,um aperto de mao,como diz o samba de Francisco Alves.Mas ás vezes apertam a mao outra vez,quando veem voce novamente.Frances é que aperta a mao o tempo todo.E’ um motivo para nao ir muito á Franca.Se eu trabalhasse com voce num escritorio e todo dia apertasse a sua mao na hora de chegar e na hora de ir embora...Há uma certa pegacao.E essa pegacao pode ser transcendental : podem querer pegar na sua alma tambem ! Pegar no seu pé,pegar na sua alma,voce pode estender a metáfora’’.

Uma das coisas que falam -bem- do brasileiro é esta efusao...

Ivan Lessa : ‘’Nunca vi ninguem falar bem ! Nao estamos saindo com as mesmas pessoas...’’.

Quando comparam o brasileiro com estrangeiro...

Ivan Lessa(interrompendo) : ‘’Mas efusao para mim
é barulho ! Um dos motivos por que saí -mesmo ! mesmo ! - é que eu nao podia nem conversar na sala com um amigo quando morava no decimo-primeiro andar na avenida Atlantica,esquina com a rua Bolívar,no Rio,em cima de um bar chamado,veja voce,Transa ! Isso que voce chama de ‘’animacao’’...Lúcio Alves ia cantar la em casa,eu tinha de fechar as janelas por causa do barulho - que criava um ‘’funil acustico’’ capaz de enloquecer qualquer Joao Gilberto ! E sem ter um Caetano para mediar !’‘ (Ivan Lessa se refere ao episodio da vaia sofrida por Joao Gilberto na inauguracao de uma casa de espetaculos em Sao Paulo,num show em que Caetano tentou conter a reacao da plateia).

5- De que maneira voce detectou,fora do Brasil,uma piora nos modos do brasileiro ? Isso foi através do telefone ?

Ivan Lessa : ‘‘Nestas novas geracoes de brasileiros com quem vou me encontrando por um motivo ou por outro,noto,cada vez mais,um excesso de informalidade.O cara que assoviava no elevador -e me irritava - hoje piorou muito mais.Hoje em dia,ele ja entra assoviando dentro da minha alma,nao apenas no elevador’’.

6- A vaia a Joao Gilberto criou um certo escandalo,porque abriu um precedente : um monumento da MPB levando uma vaia durante um show.Isso assustou voce ? Em que situacao voce justitificaria uma vaia a esses monumentos da MPB ?

Ivan Lessa :’’Nao me assustou.Com todos ‘’esses’’e
‘’erres’’,nao.Em 1958,eu,com vinte e tres anos,economizo meu dinheiro para ir ver Billy Ecstein cantar no Fredy’s,na esquina da avenida Princesa Isabel com Atlantica.Peguei uma mesa quase ao lado do palco.Entre mim e o palco,havia uma mesa com Abrahao Medina e Sonia Dutra.Nesta epoca,Abrahao Medina patrocinava nada mais,nada menos que o programa ‘’Noite de Gala’’,em que Billy Ecstein iria se apresentar na segunda-feira.Eles falaram o tempo todo ! Billy Ecstein,entao,parou de cantar e pediu para eles calarem.Delicadamente.Eu estava alivendo o Billy Ecstein fazendo aquilo,porque a importancia de Billy Ecstein para mim é uma loucura.Para quem tem vinte e tres anos e economizou para ver o show...Ele estava cantando ‘’Blue Moon’’.Se em 1958 este era o comportamento da plateia com um astro internacional,por que é que vao interromper o papo para um sujeito chamado Joao cantar ou tocar violao ? Nos somos muito mal-educados ! E’ o negocio do cara que entra assoviando no elevador.Ha gente que nao assovia no elevador,so assovia no show de Joao...’’.

Caetano Veloso deu,depois,uma entrevista irritada dizendo que eram cinquenta imbecis.....

Ivan Lessa(interrompendo) :’’Deu uma entrevista irritada,mas era uma daquelas falas demagogicas dele.Disse que os que vaiavam ‘’nao me estao no coracao’’ ou algo assim.Em vez de chamar de filhos da puta ! Rodou a baiana,mas rodou muito mal pra cima deles.Deveria ter dito assim :’’Respeitem ! Joao está reclamando da acústica ! Parem de fazer barulho!’’- e nao ficar falando ‘’meu coracao nao se alegra...’’.
Nao ! Respeitem o artista,deixem-no cantar,mesmo que fosse uma merda ! Mas deixem que ele cante.Fiquem quietos por cinco minutos.Nao demora mais do que cinco minutos uma música !’’.

Um caso que foi lembrado,porque envolvia gente da estatura de Joao Gilberto,foi a vaia que Tom Jobim e Chico Buaque levaram naquele festival em que cantaram ‘’Sabiá’’...

Ivan Lessa : ‘’Mas ali havia torcida,era festival no Maracanazinho,povao,todos eles insuflados,incentivados pela Globo.Aquilo vai adquirindo um clima de Fla-Flu,coisa que nao havia no Credicard Hall.Era um pessoal que pagou - ou nao - apenas para ver um cantor.O pessoal,no Maracanazinho,estava torcendo,’’eu torco por Tom Jobim’’...Nao era o ano de Geraldo Vandré ? Ele todo de preto,naquela epoca so ele e o violao.Mas aí é pra torcer.Se voce nao torcer num Fla-Flu,se quer ficar sentadinho,deve ter algo de errado com voce.E’ melhor vir para Londres,porra ! ‘’.

7- Quando publicou o primeiro romance,’’Cabeca de Papel’’,Paulo Francis ficou deprimido ao constatar a falta de repercussao cultural do que se faz no Brasil.Francis achava que o romance iria ter uma repercussao muito maior.Disse que ficou deprimido,deitado,olhando para o teto.Voce tem tambem tem essa sensacao ? Assim como Paulo Francis,voce acha que o Brasil vive num ‘’sertao cultural’’ ?

Ivan Lessa : ‘’Francis era meio ingenuo em certos trocos.Eu disse : ‘’Oh,rapaz,esse negocio de romance,livro,o pessoal fala pra burro,voce da entrevista de duas paginas pra Veja e pra Istoé,sai nos quatro jornais de sempre -Folha,Estadao,Globo e JB - e depois acabou ! E’ isso mesmo,porra !.Assim como aqui na Inglaterra,voce vai e escreve um novo romance ! Investe mais dois anos nisso !’’.
Mas Francis nao pegou isso.Nesse ponto,eu sempre fui muito mais velho e muito mais cético do que Francis : talvez por este motivo ‘e que ele tenha ido para Nova Iorque e eu para Londres’’.

...Paulo Francis teve sucesso como romancista...

Ivan Lessa : ‘’Mas ele tinha o ‘’post-romance-tristis...‘’.Adaptando o post-coitum tristis,é o que tinha.Ficava deprimido.Mas nao penso em sertao cultural nenhum nao.Eu acho que ha sertao cultural sim,mas nao por causa do livro de Francis.Ele estava partindo do livro que tinha lancado.Eu nao tenho porra nenhuma.O que acho triste é o fato de o meu livro sair ! Fiz as cronicas na esperanca de que fossem se perder no eter...Eu nunca guardei copia’’.

8-...Mas voce nao guarda o que voce escreve ?

Ivan Lessa : ‘’Nao ! Quem guarda isso é mae,tia...
9- Sua mae nao guarda ?

Ivan Lessa : ‘’...Mas essas cronicas so sairam porque minha mae guardou ! Eu escrevi entre 1978 e 1992 para o servico brasileiro da BBC.Revezava,nos primeiros anos,com Vamberto Morais.Num domingo era eu,no outro era ele.Depois,fiquei eu.Sao quatorze anos de cronica.Eu escrevia em casa,entrava no estudio,gravava,botava aquela fita amarela no comeco e a vermelha no fim e deixava la numa caixa azul,com uma copia para que o sujeito que fazia o transmissao da noite soubesse o comeco e o tempo.Depois,alguem arquivava la.Mas eu nunca guardei copia pra mim.Um dia,uma secretaria escocesa estava limpando la e me perguntou : ‘’Voce quer isso aqui ? ‘’.Era um punhado de cronicas,um cadernao daqueles grandes.Eu disse : quero.Por um acaso,era fim de ano,epoca em que minha mae vem para ca,passar o Natal.Botei tudo dentro da pasta de trabalho,chguei em casa e disse : ‘’Elsie,voce quer isso aqui ?’’.Entao,ela levou tudo com ela,para Cascais,Portugal.
Helena Carone - que estava preparando um livro baseado em contribuicoes que eu fazia sem script para a parte cultural das transmissoes do servico brasileiro da BBC - iria fazer a transcricao do que eu tinha falado com ela.Mas ai eu estava em Cascais,como todos os anos,monotonamente,passando minhas ferias,mexendo na caixa da Elsie depois do almoco.Terminei achando as cronicas.Desci,fui ao portugues la de baixo tirar xerox do que sobrou.Desses quatorze anos,sobraram umas oitenta cronicas,so.Trouxe para ca.Dessas oitenta,Helena selecionou quarenta.As menores,as que nao chegam a uma pagina,evidentemente nao eram cronicas : eram transcricoes da minha colaboracao com o programa cultural’’.

Numa gravacao que fez com voce,na BBC,Paulo Francis disse que,diante da sociedade de massas,filistina e mediocre,ele se sentia ‘’tecnicamente morto’’...

Ivan Lessa : ‘’Agora eu me lembro...’’...

10- Voce tem tambem essa sensacao de ser um peixe fora do aquario ?

Ivan Lessa : ‘’Absolutamente ! Absolutamente ! Talvez porque Francis vivesse muito mais no Brasil e dependendo do Brasil.Repare que o dinheiro de Francis vinha do Brasil.Entao,muito corretamente,ele tinha de ir la para regar a flor da carreira dele.De seis em seis meses,Francis estava no Brasil,nao so para rever os amigos - e ele os tinha,muitos - mas para se acertar com o pessoal da Folha e,depois,o Estadao.Francis ganhava em dolar,mas era dinheiro que deixava o país.Eu,nao.Eu ganho aqui mesmo,em Londres.O dinheiro quem paga é o contribuinte britanico.A verba da BBC é do ministerio do interior.Em resumo : o que quero dizer é que nao tenho necessidade de regar a flor da minha profissao.Como ia ao Brasil,Fancis talvez sofresse com esse deslocamento.Dava o choque de ida e vinda.A cada vez que descia no Galeao,sentia uma emocao,possivelmente.A cada vez que descia no Aeroporto Kennedy de Nova Iorque,tambem.Eu,nao.Meus aeroportos sao o Charles De Gaulle,o de Heatrow e o da Portela,em Lisboa,onde me mexo mais’’.

Mas quando Francis se declarava ‘’tecnicamente morto’’ nao estava se referindo apenas ao Brasil,mas a uma situacao geral...

Ivan Lessa :’’Francis tinha uma variacao nos
‘’moods’’.Eu nao traduzi essa.Tinha as suas ruas.Como ‘e que que se diz quando alguem sobe e baixa...’’

Era ciclotimico...

Ivan Lessa : ‘’Tecnicamente era ciclotimico.Eu,nao.Eu estou na media ponderada.Nao sou muito entusiasmado,mas nao tenho depressoes,gracas a Deus.Tambem estou muito moco ainda: so tenho sessenta e quatro anos.Pode ser que venha ainda’’.

Eu me lembro que voce me disse uma vez que quer é ficar na arquibancada - olhando o jogo...

Ivan Lessa :’’Agora,nem na arquibancada !
Quero ver o jogo pela TV a cabo’’.

Em breve,a TV brasileira vai chegar ‘a Inglaterra,por assinatura....

Ivan Lessa :’’Tomei contato com o Brasil agora nas minhas ferias em Portugal,porque tinha o GNT e o Canal Brasil.Vi filme que nao acabava mais.Tudo o que podia.Fico muito tempo em casa,na piscina.Depois que saio da piscina,entro no apartamento e faco questao de ver,tanto a programacao do GNT como,principalmente,os filmes.Honestamente,pra ver chanchadas,essa coisa toda,eu nao morria de saudades.Nao tive surpresa nenhuma em constatar que eram muito ruins.Eu,na epoca,ja achava ruim,mas via e gostava de ver.Já os filmes mais pretensiosos,esses foram uma luta para ver.Puta que o pariu!
Eu acho que,em cinema,a gente é ruim.Cinema a gente deveria esquecer.Com uma excecao.Voce vai brigar comigo : gostei muito de todos os filmes que vi do Julio Bressane.Vi ‘’Bras Cubas’’,’’Tabu’’,’’Matou a Familia e Foi ao Cinema’’ e ‘’Cara a Cara’’.Eu nao tinha visto quando estava no Brasil.Quando morava no Brasil,eu nao via filme brasileiro porque achava um saco.Gostei muito,achei muito pessoal’’.

Julio Bressane tem um estilo...

Ivan Lessa : ‘’Exatamente ! Um estilo urbano,safado - de citacao.Eu sinto que ele faz para seis pessoas,seis entendidos,no bom sentido’’.

Voce escreveu que aqui no Brasil sao trinta pessoas vendo um o que o outro faz...

Ivan Lessa :’’Num artigo sobre 68,eu disse que eram quarenta pessoas fazendo coisas para quarenta pessoas assistirem : teatro,cinema,bossa-nova.Eram so quarenta pessoas.Alias,eram quarenta fazendo e quarenta consumindo.De vez em quando,havia um troca-troca’’.

Um dos dos problemas do cinema é industrial.Se o Brasil nao tem uma industria de ponta,nao vai ter um cinema.Se voce nao tem equipamento de ultima geracao,nao vai fazer,porque cinema nao cai do ceu..Vai haver sempre um problema tecnico...

Ivan Lessa :’’Isso tudo completa o que estamos falando.Nos estamos ligadissimos a tudo o que é americano.Entao,a narrativa vai ser a convencional americana,com comeco,meio e fim americano.Voce pega um filme frances : eles tentam escapar.O nocivo que vem dos Estados Unidos nao e’ que a Barra da Tijuca que sofre nao.E’ o proprio Central do Brasil.

11- O Brasil aparece como sonho ou como pesadelo em suas noites londrinas ?

Ivan Lessa : ‘’Eu estou fora do Brasil ha vinte e um anos enfileirados.Mas sonho é sempre desinteressante,é sempre bobagem.De vez em quando é ruim,é pesadelo.Hoje,segunda,por exemplo,eu entro na Internet para imprimir colunas de Elio Gaspari,Carlos Heitor Cony,Janio de Freitas.Em resumo : passando os olhos,fico horrorizado com o Brasil.Claro que fico.Acho o jornalismo de muito baixa qualidade.O nosso jornalismo piorou muito.Muito mesmo.Nao quero ai entrar com meu plangente violao do saudosismo,mas piorou mesmo.Quanto a sonho e pesadelo,digo o seguinte : até os dez,quinze anos de ausencia do Brasil,um e outro ocontecem.Depois,quando voce completa dezoito anos fora,o Brasil fica longe,no tempo e no espaco.Nesta hora,voce tem de botar Einstein na equacao,porque o negocio fica totalmente imponderavel.O Brasil fica mais distante do que um assunto como o trafico de escravos e a Gra-Bretanha,tema de um documentario que gravei em video ontem e hoje na tv.
Por incrivel que pareca,e’ um assunto que fica mais proximo de mim e dos problemas atuais que vivo no sentido de sair de casa,pegar o metro e ir para o trabalho’’.

12- Voce reclama de que o calor ‘’prega pecas em nossa sensibilidade,inteligencia e discernimento’’.Voce faz alguma relacao entre calor e incivilidade ? Historicamente,parece que existe alguma...

Ivan Lessa : ‘’O calor dá sono.Voce dorme,fica de calcao ou ate pelado.Fica ali pelo Rio,dá uma porrada no peixe.Mas o frio obriga voce a ter roupa,a sair para matar um urso.E’ mais complicado matar urso do que matar peixe.’’Matar urso’’ quer dizer fazer um guarda-roupa de inverno mais adequado.Com o frio,voce tem de fazer casa,é obrigado a produzir calor.Nao adiantar estender a carne no sol- Pernambuco que me desculpe.Entao,vou naquela que diz que o frio civiliza.Qual é o outro lugar comum ? ‘’Nunca houve uma civilizacao abaixo dos tropicos’’.Nao discordo muito.A mim,pelo menos,num aspecto pessoal,o frio me civiliza’’.

Ha o lado estetico tambem : o frio obriga as pessoas a se vestirem melhor...

Ivan Lessa : ‘’Exatamente ! Eu,como estou engordando,disfarco melhor a barriga com roupa de frio’’.

13 - Voce escreve que desenhos e caricaturas de seus amigos,pendurados na parede de casa,parecem dizer : ‘’era uma vez,era uma vez,era uma vez...’’. E’ natural achar o passado sempre mais interessante que o presente ?

Ivan Lessa : ‘’Nao é questao de ser interessante.Ha no livro - o que sobrou das cronicas que faco na BBC - um nitido saudosismo.Quem escrever cronica tem a tendencia a se autobiografar,no sentido de se entender.Eu procuro evitar a babaquice,a nostalgia pela nostalgia,o saudosismo pelo saudosismo,mas e’ uma maneira de a gente se entender e se autobiografar.Todo mundo,numa certa altura da vida,quer se botar em ordem.Já que vimos,neste fim de milenio,que o sofa de Freud nao deu certo,queremos nos botar em ordem,entao.
Mas ha um detalhe que acho importante na ligacao com o passado.E’ uma coisa muito,mas muito importante mesmo.Poucas pessoas entenderam o que vou dizer agora : o passado nao so ajuda voce(nos,a gente,um povo) a se entender,mas tambem nos ajuda a compreender aquilo a que aspirávamos ! Isso é muito importante !.Se voce pegar a arquitetura do Recife ou da Bahia ou do Rio ou de Sao Paulo,ha uma aspiracao ali ! Vamos para Brasilia : ha uma aspiracao naquela arquitetura.Um dia,possivelmente,vao derruba-la para fazer outra coisa em cima.Entao,nao e’ endeusar o repertorio de Orestes Barbosa ou de Noel Rosa...
Alias,devemos endeusar sem esquecer jamais que aquilo e’ uma contribuicao á cultura.Mas a conexao com o passado é tambem a conexao com a nossa aspiracao como um povo,como um todo’’.
O lugar comum é aquele : voce vai ao passado para se entender.Mas é para entender aquilo a que a gente um dia aspirou,rapaz ! ‘’

Quem olhar para a Barra da Tijuca,daqui a trinta anos,vai ver que aquilo é uma copia de Miami,nos Estados Unidos.Hoje,entao,existe um Brasil que aspira a ser Miami...

Ivan Lessa : ‘’Eu li,no New York Times,um artigo excelente sobre a Barra,escrito por um americano,dizendo exatamente isso.O autor do artigo vai enfileirando desde a arquitetura até os nomes dos lugares,feito este Credicard Hall.Eu acho até que ele errou um pouco,ao dizer que o Leblon e Ipanema estavam mais ligados á Franca.Dá como exemplo aqueles edificios do Sergio Dourado,já nos anos setenta,com nomes franceses.Mas ai ele errou,porque nossa influencia francesa é muito anterior,pode ser vista no Teatro Municipal - que é o Opera’’.

14 - Quando a Disneylandia Paris foi inaugurada,os franceses disseram que aquilo era o Chernobyl cultural.Ariano Suassuna escreveu que aquele era o maior monumento á imbecilidade humana.Voce,que esteve la,concorda com essas duas avaliacoes ?

Ivan Lessa : ‘’Sem duvida nenhuma ! Mas acontece que,como tudo o mais,vai ficando natural.Os japoneses devem ter ficado muito mais chocados que os franceses,mas aceitaram docilmente.Os franceses ja aceitaram tambem.Devem rir um pouco das pessoas que vao la.Mas acabam aceitando,como parte da paisagem.Hampstead,aqui em Londres, é um bairro metido a besta,intelctual,mais ou menos como Ipanema nos anos sessenta.Nao tinha McDonald’s la.Para conseguirem abrir um McDonald’s lá,foi uma luta.Entao,fizeram uma fachada meio disfarcada,mas abriram um McDonald’s em Hampstead,sim.Voce acaba aceitando.Vai em frente ! E’ a globalizacao,rapaz,a escrotidao ! E’ essa Barra da Tijuca.O artigo do New York Times lembra que a California tambem aparece na Barra da Tijuca’’.

E’ americana nesse sentido : para viver e se deslocar na Barra da Tujuca,voce tem de ter carro...

Ivan Lessa : ‘’Como na costa oeste americana ! Se a policia ve voce andando,em Los Angeles ou Beverly Hills,
ela para imediatamente para pedir documento.E’ o que estou dizendo : qual é a diferenca entre a Barra da Tijuca e a Disneylandia ? Apenas que a Disneylandia é mais organizada.Pateta,o camundongo Mickey e o Pato Donald sao vizinhos melhores do que o pessoal que infesta a Barra da Tijuca’’.

....Onde havera uma replica da Estatua da Liberdade...

Ivan Lessa :’’A historia da replica da Estatua é que motivou a reportagem do New York Times...’’.

As agencias do Banco do Brasil exibem placas dizendo ‘’personal banking’’ junto dos caixas eletronicos.Sem patriotada : por que nao escrever em portugues ?

Ivan Lessa : ‘’Isso e’ grotesco.Eu abro o jornal.Todo mundo tem ‘’personal trainer’’.Nao ! E’ demais ! Voce aceita,na lingugem da economia,um ‘’over’’aqui,ou uma ‘’net’’,ou palavras como ‘’deletar’’.Mas o presidente da Republica falar em ‘’cenario’’ no sentido de hipotese,nao !
Eu acho um absurdo ! A Academia Brasileira de Letras foi criada para proteger a lingua e para ajuda-la a lidar com inovacoes.Entao,ao inves de ficarem se premiando,deveriam dar uma maozinha,porque supostamente sao alfabetizados ! Nao digo forcar a barra como os franceses tentaram,ao baixar uma lei para que quarenta por cento de toda musica tocada tem de ser francesa...Computador na Franca é ‘’ordinateur’’.O software é ‘’logiciel’’.Pelo menos tentaram.E essas duas palavras pegaram.O aparelho de gravar é ‘‘magnetophone’’.O quero dizer e’ o seguinte : deve haver um esforco no sentido de tentar traduzir.O jornalismo entra aí...’’.

Um deputado brasileiro vem tentando criar uma lei que limite o uso de expressoes inglesas em locais publicos...
Ivan Lessa : ‘’Nao dá.Legislar a lingua nao pode.A Academia Brasileira,ja que é um dos poucos lugares onde ha supostamente intelectuais reunidos,e com algum poder,poderia tentar sugerir.Antonio Houaiss nao estava la com um projeto de reforma ortografica que era uma besteira enorme ? A Folha,o Estado de S.Paulo nao tem manual de estilo ? Sempre que possivel,deveriam tentar traduzir as palavras,porque elas pegam...’’.


15- Voce -que é especialista em musica popular brasileira dos anos quarenta e cinquenta - acha que a MPB daquele tempo era melhor do que a de hoje ?

Ivan Lessa :’’Nao estou no Brasil para acompanhar,mas acho que,em materia de musica popular,a gente é danado de bom.O ultimo que ouvi foi Ginga;qualquer coisa
que Aldir Blanc faz eu acho sensacional.Honestamente ! Outros nunca ouvi.Anunciaram um concerto enorme aqui em Londres com a turma de sempre -Caetano,Gil,Chico Buarque- e uma de quem nunca ouvi falar : Virgínia Rodrigues.O que quero dizer,entao,é que nao estou acompanhando.
Caetanices á parte,eu tiro o chapeu para Caetano Veloso e Gilberto Gil,porque nao sou idiota.Brinco com eles,mas nao sou idiota para nao ver o extraordinario talento que existe ali.Eu acho que estamos melhor em música do que em futebol.Vi trechos do Brasil e Holanda...
Há o lugar comum que diz nos,brasileiros,sempre fomos bons de futebol e bons de música.Somos bons ! Entao,acho que a musica nao piorou...’’.

Houve brigas com os baianos,heranca da epoca do Pasquim,principalmente com Caetano Veloso...

Ivan Lessa : ‘’Jaguar chamava de baiunos...’’...

As brigas eram com Millor Fernandes,o proprio Paulo Francis...

Ivan Lessa : ‘’Os baianos enchiam muito o saco,com muita autopromocao.Era odara,oxala’,como é aquele negocio azul ? Araca azul ! Uma fase de Caetano Veloso.Entao,Caetano tem aquele negocio de se reiventar.E’ a formula de David Bowie, a de ter ‘’personas’’ artisticas.Eu implico um pouco com a parte promocional,mas o produto final,o que me interessa, é o disco.Uma das vantagens de nao estar no Brasil é que so me chega o disco;nao tenho de acompanhar as entrevistas,ver aquelas tolices enormes e aquelas bobajadas que as pessoas sao obrigadas a dizer para promover.
De certa maneira,estou dizendo minhas bobajadas aqui para ajudar a vender o meu ‘’disquinho’’,o livro.
Mas quanto ao produto final nao tenho dúvida nenhuma’’.

16 - Durante anos houve aquela briga do publico,entre aspas,entre Caetano e Chico Buarque,hoje inteiramente superada.Voce chegou a tomar partido ?

Ivan Lessa : ‘’Nao,porque era bobagem tomar partido.Eu poderia gostar mais do que Chico fazia.Meu Deus do ceu : eram anos em que Chico nao errava uma ! Com essa mania de fazer listas neste fim de milenio,se voce tiver de fazer uma lista de cinquenta albuns (vamos falar de albuns conceituais,com comeco,meio e fim),’’Construcao’’,o album de Chico Buarque,é uma loucura,rapaz ! Chico fazia uma atrás da outra.Pá,pá,pá ! Havia,em Chico Buarque,uma consistencia de qualidade que era absolutamente extraordinaria.Entao,eu apenas gostava mais de Chico,o que nao significava que eu fosse brigar com Caetano Veloso.Os dois davam concerto,cantavam juntos aquela ‘’Bárbara,bárbara...’’(cantarola a música do disco ‘’Chico e Caetano Juntos e ao Vivo’’,lancado em 1972).
Entao,essa briga,para efeitos de Pasquim ou de sacanagem no botequim da esquina ou na mesa de bar,tudo bem,acho que vale.Mas - falando serio mesmo - acho que nao vale nao !
Apenas Chico me falava mais.Sou mais urbano; estou por fora de orixá,aracá azul,odara e mandacaru vermelho ! Eu estou por fora dessas porras !
Letra de Aldir Blanc marca minha vida.Eu manjo o ‘’dois pra la,dois pra ca’’.Eu estive lá !’’.



17 - Voce constata que o folego literario brasileiro ‘e curto,com excecao de Euclides da Cunha.Enquanto o resto da America Latina produz escritores que voce chama de ‘’caudalosos’’,nos seriamos ‘’excelentes’’ no ping-pong do conto,com Machado de Assis,Dalton Trevisan,entre outros.Voce nao acha que um pais que,pelo menos grograficamente,tem vocacao para grandeza,como o Brasil,nao deveria produzir tambem uma literatura mais épica ?

Ivan Lessa : ‘’Se nao produzir,ha algum motivo.Cabe a pessoas mais bem qualificadas do que eu entender o por que.
Mas há o reverso do que falei.Eu citei o conto,mas me esqueci de citar os nomes de tres gigantes : Manoel Bandeira,Joao Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade.O que é a poesia se nao a linguagem em alta tensao ?
Voce tem ai tres poetas de estatura mundial em qualquer epoca ! Ja que vivemos esta febre de fazer listas neste fim de milenio,acho que,seguramente,voce pode botar essses tres em qualquer lista dos maiores poeta do seculo ! Voce sabe muito bem que nao sou ufanista nem nacionalista.Era apenas uma cronica o que escrevi.E cronica é para sair no jornal e,no dia seguinte,estar embrulhando peixe,aquela velha historia.Se voce parar e pensar,alem de Dalton Trevisan,Rubem Fonseca ou dos cronistas que nao citei,como Rubem Braga,basta citar estes tres poetas.Nossa Senhora !
O Brasil da um banho em poesia ! Do outro lado do Atlantico,voce tem Fernando Pessoa’’.

18- A presenca do Brasil no exterior se deve basicamente ao futebol - em primeiro lugar - e á musica popular,em segundo.O fato de o Brasil ser sinonimo de futebol e musica e’ sempre um motivo de orgulho ou e’ um incomodo para voce - que vive fora do pais ?

Ivan Lessa : ‘’Para efeito externo,eu faco assim (e sei que estou fazendo conscientemente de birra;se nao,teria enlouquecido ha muito tempo) :’’ah,esse time nao e’ de nada,e’ uma cambada de vagabundos,esse Ronaldinho nao vale porra nenhuma,vai perder para o franceses,eu torco pelo Zidane e essa coisa toda...Mas nao.O que me chateia é o torcedor !.O inimigo é o amigo.O inimigo é esse cara que vive dizendo ‘’somos os maiores,o Brasil ja ganhou,é o tetra,é o penta,Caetano Veloso é o maior do mundo,a musica brasileira é a melhor !’’.O inimigo é esse !’’.

19- Qual é a grande musica brasileira do seculo vinte ? Qual e’ a cancao que voce vai passar o resto da vida ouvindo ?

Ivan Lessa : ‘’O titulo do romance que nao escrevi seria ‘’Nos Astros,Distraido’’.Entao,por ai voce tem uma ideia (N: o titulo vem da letra da musica ‘’Chao de Estrelas’’,o classico de Orestes Barbosa e Silvio caldas).O livro que nao escrevi fala de um camarada que,em 1949,vivia de biscate,um tipo que conheci muito no Rio de Janeiro dos anos quarenta e cinquenta.Era um sujeito que escrevia para Radio Nacional,tentava escrever.Para cinema,ele estava tentando fazer uma daquelas cinebiografias terriveis da Atlantida,filmes de meio de ano,sobre Noel Rosa.Para radio,ele vai tentar fazer a de Orestes Barbosa.Entao,esse era o tema do romance : eu ia levando num tom de deboche.Resolvi escolher 1949 porque em 1949 nao existia ditadura : era Dutra.Ainda nao tinha Maracana e,principalmente,nao existia televisao.E’ por isso que o romance se passava em 1949.Era um tipo que tinha como influencia cultural os cinemas da praca Saenz Pena e o radio que ele ouvia...

Entao,quanto a musica,eu estou entre Noel e Orestes,entre asfalto e morro,se bem que,a rigor,Noel falava de morro mas nao subia morro nao.Era asfalto tambem’’.

20- Voce parou em que altura o romance ?
Chegou a escrever ?
Ivan Lessa : ‘’A sinopse do Noel foi publicada no primeiro exemplar da revista dos meninos do Casseta & Planeta.Eu dei pro Reinaldo’’.


21- Quase tao irritantes quanto as cobrancas sobre por que voce nao vai ao Brasil,deve ser a cobranca sobre por que voce nao escreveu ate agora o romance da sua geracao.Voce nao tem vontade ?

Ivan Lessa : ‘’Nao tenho nenhuma vontade mais.Eu escrevi alguns capitulos,porque tinha um negocio bolado.Mas veio a preguica.Bateu-me o Caboclo Macunaíma.Ai,que preguica(da uma gargalhada)...Pura preguica ! Nada mais brasileiro que Ivan Lessa.Preguica ! Macunaima !’’.

22- Voce confessa que sentiu mais uma manha de sol em Copacabana,num banco com a namorada,do que o suicidio de Ana Karenina de Leon Tolstoi.Isso quer dizer que,invariavelmente,a vida é superior á literatura ? Ou a literatura pode ter tambem o poder de marcar a gente pelo resto da vida,atraves de uma frase,uma passagem ?

Ivan Lessa :’’Eu,levianamente,escrevi essa frase numa cronica.Mas,para ficar pretensioso,qual é o subtexto do que eu escrevi ? E’ que talvez,ao ler Ana Karenina,voce se empolga,acompanha a mulher ate ela se jogar embaixo de um trem,mas,se voce se lembrar dessa meia hora na praca ou num jardim,evidentemente essas experiencias t^em,em voce,um impacto pessoal que a literatura jamais vai dar.Eu posso,agora,ler um poema terrivel,terrivel.Vamos ficar no Joao Cabral.Eu pego o poema O Rio,é um horror aquilo que ele narra,mas é tao bonito,é tao bem-feito que voce sai quase empolgado.Entao,esse é um velho problema de arte : voce pode despertar a atencao para uma coisa,mas termina filmando bonitinho...Tenho um tape guardado com o ‘’Morte e Vida Severina’’,dirigido por Avancini.Ha umas nuvens bonitas.Nunca vai ser o horror que é a vida real.O que quero dizer é que um livro pode me ajudar para que eu busque,em mim,os meus próprios dados para entender certos problemas basicos,como vida,copulacao e morte.Isso soa pretensioso.Minha cronica é leve’’.

23- Logo depois da morte de Paulo Francis,voce deu um depoimento obviamente desencantado dizendo que ja nao tinha interlocutores : ’’Eu so sei que de repente passei a me sentir mais sozinho do que nunca,mais distante ainda de um Brasil que deixou de existir,talvez nunca tenha existido.O estrangeiro e’ espantosamente real,irreversivel’’.A sensacao permanece ?

Ivan Lessa(depois de um breve silencio): ‘’Permanece.Permanece.Mas tudo bem’’.




Posted by geneton at 12:50 PM

MISSÃO VIETNAM EM BRASÍLIA

EX-EMBAIXADOR REVELA BASTIDORES DO DIA EM QUE OS ESTADOS UNIDOS CHAMARAM O
BRASIL PARA ENTRAR NA GUERRA DO VIETNAM

Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil durante o golpe militar de 1964,guardou segredo ,até esta semana,sobre os bastidores do dia em que o governo americano tentou fazer com que o Brasil participasse da Guerra do Vietnam.


”Não contei esta história no meu livro”, diz Gordon, autor do recém-lançado “A Segunda Chance do Brasil a Caminho do Primeiro Mundo”. Ao final de um depoimento gravado durante três horas ininterruptas no quarto 904 do Hotel Glória, no Rio, o ex-embaixador revelou detalhes inéditos sobre o dia em que entrou no Palácio do Planalto,em nome do presidente Lyndon Johnson, para pedir ao marechal Castelo Branco que o Brasil se engajasse numa guerra no sudeste asiático. Lincoln Gordon volta esta noite aos Estados Unidos,depois de cumprir um périplo por São Paulo,Rio de Janeiro,Brasília e Recife.

“Eu tive de manter segredo sobre o assunto na época” – explica Gordon.”Se o que aconteceu fosse divulgado,poderia criar um problema – mais sério para o Brasil do que para os Estados Unidos. O caso seria politicamente ruim para os dois países”.

Aos 89 anos de idade, este ex-professor de Economia da Universidade de Harvard e ex-subsecretário de Estado para Assuntos Latino-Americanos parece disposto a comprar uma briga com historiadores que,segundo ele,estão traçando um retrato distorcido sobre a postura que Castelo Branco – o primeiro presidente do regime militar - assumia diante dos Estados Unidos. O ex-embaixador diz que o fracasso da tentativa americana de atrair o Brasil para a guerra do Vietnam é uma prova de que os militares que assumiram o poder no Brasil não recebiam ordens dos Estados Unidos :

- Textos históricos esquerdistas ou anti-americanos descrevem Castelo Branco como se ele vivesse dizendo “sim,senhor”,”sim,senhor” e “sim,senhor” aos Estados Unidos.Um exemplo sempre citado é a concordância do Brasil em enviar militares brasileiros para participar da intervenção na República Dominicana,em 1965.Mas o que aconteceu em relação à Guerra do Vietnam é um exemplo de que Castelo Branco não era uma mera marionete dos Estados Unidos !.Agora,estou pronto a divulgar detalhes a respeito do caso,como uma demonstração de como Castelo Branco governava – avalia Gordon,no depoimento gravado.

Autor de “Presença dos Estados Unidos no Brasil” e “O Governo João Goulart : As Lutas Sociais no Brasil”,o historiador Moniz Bandeira contesta os argumentos de Gordon :

- O marechal Castelo Branco sempre foi considerado,sim,um títere dos Estados Unidos,não apenas por historiadores brasileiros,mas também por historiadores estrangeiros,como Ruth Leacock,autor de “Requiem for Revolution” ou Jan Black – que chegou a dizer que Castelo Branco proclamou a dependência do Brasil.O que Lincoln Gordon quer fazer agora é embelezar o golpe,é fazer maquiagem de 1964.

O ex-embaixador diz que o apelo para que o Brasil participasse da intervenção militar na República Dominicana foi feito a Castelo Branco pelo emissário do presidente Lyndon Johnson – o ex-ministro Averell Harriman,numa audiência testemunhada também pelo então ministro das relações exteriores brasileiro,Vasco Leitão da Cunha :

- O ministro nos disse que o envio de tropas brasileiras deveria ser feita dentro de uma ação latino-americana endossada por dois terços dos votos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Castelo Branco nos disse,então, que este detalhe faria uma vasta diferença para o Brasil.


Gordon reconstitui,assim,as palavras que ouviu de Castelo Branco :

- Castelo Branco me disse : ”Há quem pense em países vizinhos que assumi o governo ilegalmente – num típico golpe de estado latino-americano.Eu estou tentando restaurar a lei na democracia brasileira.Quero agir da mesma maneira no plano internacional.Então,diga ao Presidente Johnson que entendo o desejo americano,estou pronto a enviar tropas brasileiras para a República Dominicana,mas a decisão deve ser tomada por dois terços dos votos da OEA”.

O sucesso do esforço para envolver o Brasil na intervenção na República Dominicana – onde os Estados Unidos temiam o surgimento de um Estado marxista – abriu caminho para que,meses depois,os americanos jogassem outra cartada : e se o Brasil concordasse em participar da Guerra do Vietnam ?.

- Recebi um telegrama de Washington dizendo que a Guerra do Vietnam estava se tornando uma preocupação cada vez maior – diz Gordon. A Guerra tinha relação com a nossa moral – inclusive no plano internacional. Víamos o quadro como parte da guerra fria. O Brasil tinha mandado médicos para a Guerra da Coréia.Teve uma participação positiva.Agora,pedia-se algo parecido.

O segredo que o ex-embaixador guardou os termos do diálogo com o presidente brasileiro é compreensível : o episódio é a crônica de um fracasso. Gordon saiu do Palácio de mãos vazias. O ex-embaixador americano diz, hoje, que intimamente tinha dúvidas sobre a conveniência do pedido para que o Brasil se envolvesse no conflito no Vietnam :

- Eu tinha minhas reservas sobre se aquela atitude era a certa.A situação estava instável. Não me agradava a idéia de jogar gasolina na fogueira dos que diziam que o Brasil repetia “sim,senhor” aos pedidos dos Estados Unidos. Antes de ir para a audiência com Castelo Branco,cheguei a enviar um telegrama para Washington em que disse que,no caso brasileiro,não era uma decisão sábia fazer o pedido.Meu conselho não funcionou.O meu governo me mandou tentar.Eu fui. Apresentei o pedido a Castelo Branco o mais gentilmente possível....

Quando desembarcou no Palácio do Planalto,às vésperas do Natal de 1965,o embaixador tinha uma boa notícia a dar e um pedido incômodo a fazer ao presidente brasileiro.A boa notícia : o presidente Johnson autorizara a concessão de um empréstimo de 150 milhões de dólares ao Brasil.O pedido incômodo : diante da decisão de ampliar para 400 mil o número de soldados americanos mobilizados na “defesa do Vietnam do Sul” contra os comunistas do Vietnam do Norte,o governo Johnson queria saber se poderia contar com a ajuda do Brasil no esforço de guerra no sudeste asiático.

Depois de ouvir as explicações do embaixador americano,o presidente brasileiro avaliou a repercussão que o engajamento brasileiro no Vietnam teria no país :

- Castelo Branco me disse que, no caso do Vietnam, haveria uma resistência muito maior no Brasil. A participação não seria aceita rapidamente.Adiante, ele me disse :”Não sei como os meus companheiros de farda se sentirão,mas sei que haverá restrições no meio militar” .O que Castelo Branco fez foi me dizer “não” de uma forma gentil. Eu disse que a participação brasileira poderia até ser simbólica,porque o uso de tropas exigiria treinamento.Os combates eram travados em condições peculiares no Vietnam – com bombardeios aéreos e operações navais.


O ex-embaixador garante que “o que nós,os Estados Unidos,estávamos tentando era que o chamado mundo livre demonstrasse,o mais amplamente possível,que a operação era legítima”.

Gordon diz que os termos do diálogo com o presidente brasileiro foram preservados como “segredo de Estado”.Os Estados Unidos – obviamente- não tinham o menor interesse em divulgar um pedido que foi recusado pelo Brasil :

- Não queríamos divulgar o pedido,principalmente porque ele foi rejeitado – relata Gordon. Eu bem que tinha dito antes que seria melhor não fazer este pedido ao governo brasileiro. Mas fiz – de qualquer maneira. Previ que seria difícil. O pedido foi recusado. Quando mandei um novo relatório a Washington,não escrevi nada na linha do “eu não disse ? “. Mas Washington viu que a previsão que eu tinha feito estava certa.Os Estados Unidos desistiram.

A divulgação das circunstâncias em que se deu a recusa poderia provocar reações pouco simpáticas ao Brasil entre representantes da chamada “linha-dura” americana. Não se deve esquecer que,nas eleições de 1962,conforme cifras citadas pelo embaixador,a CIA tinha derramado no Brasil “cinco milhões de dólares” para ajudar a eleger deputados,senadores e governadores hostis a João Goulart.O próprio Lincoln Gordon se declara autor da idéia de mobilizar uma frota que se dirigiria ao Brasil para abastecer,com armas e petróleo,facções anti-Goulart,em caso de uma guerra civil. Por sugestão dos adidos militares da embaixada, um submarino seria despachado para o litoral de São Paulo, com armas que seriam entregues de mão beijada aos conspiradores que queriam ver Goulart no olho da rua. Não houve necessidade de deflagrar a operação.O submarino nem chegou a ser mobilizado.Quando os militares se instalaram no Poder, o socorro financeiro ao País não tardou a chegar. Os Estados Unidos tinham boas razões para se sentir credores de gestos de simpatia do novo regime.

Gordon se esforçou na época para evitar que o gesto de Castelo Branco recebesse uma indesejada publicidade,porque poderia criar embaraços políticos :

- Se o que aconteceu fosse divulgado, a “linha-dura” americana poderia dizer : “Meu Deus,estamos dando toda a ajuda ao Brasil.E eles não podem enviar nem ao menos médicos para o Vietnam ?!”.

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Lincoln Gordon

“DINHEIRO DA CIA NA ELEIÇÃO BRASILEIRA FOI UM ERRO”

O ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil não se recusa a tocar em temas que,a cada vez que são discutidos,provocam controvérsias de todo tipo – como,por exemplo,o dinheiro que o governo americano derramou no Brasil para tentar influenciar o resultado das eleições brasileiras de 1962.

A CIA – afinal – deu ou não deu dinheiro a candidatos simpáticos aos Estados Unidos nas eleições de 1962 no Brasil ?

Gordon : “Demos.Definitivamente.Com o passar do tempo,considerei que este foi um erro de nossa parte.Nós estávamos,na época,influenciados pelo que tinha acontecido na Itália logo depois da guerra : historiadores acham que o apoio aos anti-comunistas italianos – inclusive com dinheiro e propaganda – foi o que tornou impossível a vitória eleitoral dos comunistas”.

Quanto a CIA gastou no Brasil ?

Gordon : “A minha estimativa é de que foram cinco milhões de dólares ( N: a preços de 2002,30 milhões de dólares – ou cerca de 100 milhões de reais). Mas não se produziram resultados importantes,porque o Congresso que foi eleito em 1962 não foi diferente do Congresso anterior. Miguel Arraes- por exemplo- se elegeu governador em Pernambuco,o que foi um fato mais importante do que qualquer mudança no Congresso”.

Quem recebeu a ajuda ?

Gordon : “Houve um grupo de candidatos – geralmente,à direita do centro,simpatizantes dos Estados Unidos”.

O senhor pode citar nomes ?

Gordon : “Não me lembro.Nunca vi a lista. Eu não estava envolvido no processo. Era uma ação da CIA. Um dos objetivos seria suprir literatura sobre a economia liberal,para contestar a enorme quantidade de literatura de esquerda.O governo cubano – e,possivelmente,o governo russo - estavam fornecendo dinheiro para publicação de material no Brasil”.

Qual foi a participação dos Estados Unidos na queda do presidente João Goulart ?

Gordon : “A participação ativa foi zero.Mas,especialmente depois do comício do presidente Goulart na Central do Brasil,houve vários contatos,inclusive entre o adido militar da embaixada,Vernon Walters e o marechal Castelo Branco,em que se demonstrou o interesse numa oposição”.

É verdade que o senhor disse ao presidente John Kennedy,ainda em 1962,que talvez fosse preciso “destituir” o presidente Goulart ?

Gordon : “Eu disse que existia,a longo prazo,a possibilidade de que os acontecimentos evoluíssem até o ponto em que esta alternativa deveria ser considerada. Numa reunião na Casa Branca,a 30 de julho de 1962,um assessor de Kennedy,Richard Goodwin,disse : “Talvez devêssemos pensar em golpe num futuro próximo”. Eu disse : “Não.É fora de questão”. Nem eu nem o presidente John Kennedy tomamos a sugestão de Goodwin a sério,naquele momento.
A melhor solução seria manter a Constituição : que Goulart fosse mantido na Presidência até as eleições presidenciais previstas para 1965.Minha preferência era esta – até Goulart fez o Comício da Central do Brasil,quando vi que Goulart não chegaria até 1965. O melhor seria que Goulart,pacificamente,sem ações militares,sem golpes janguistas ou golpes anti-janguistas,fosse até o fim do mandato”.

Como surgiu a idéia de mobilizar uma frota americana que seria deslocada para o Brasil em 64 ?

Gordon : “A minha idéia foi que,na eventualidade de uma tentativa de derrubar João Goulart,um grupo militar brasileiro poderia ser contestado por outro grupo militar. Eu imaginei que poderia haver uma divisão do país – com militares em lados opostos. Numa tal eventualidade,os Estados Unidos evidentemente teriam uma preferência pelo lado anti-esquerdista,pelo lado anti-João Goulart.Naquele momento,considerei,então,a possibilidade de que uma frota armada,com a bandeira americana visível no litoral brasileiro,teria um resultado desencorajador para o lado pró-Goulart e encorajador para o lado anti-Goulart”.




Posted by geneton at 12:26 PM

NELSON RODRIGUES

CENAS DE UM ENCONTRO COM UM GÊNIO CHAMADO NELSON RODRIGUES :
“AO CRETINO FUNDAMENTAL,NEM ÁGUA”

As incríveis cenas dos bastidores de um encontro com Nélson Rodrigues,maior dramaturgo brasileiro,pernambucano exilado no Rio,estilista número um da crônica esportiva

Meu primeiro, único e último encontro com o gênio Nélson Rodrigues começou com uma dúvida devastadora : por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira ? Não é possível,deve ter havido algum engano – eu pensava com meus botões,enquanto caminhava pelas calçadas do Leme,na beira- mar,no Rio de Janeiro,em direção ao apartamento do homem.

Se Nélson Rodrigues escrevia aquelas crônicas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvio que ele não iria dar uma entrevista a um forasteiro pernambucano no exato momento em que a seleção brasileira entrava em campo,no Maracanã,com transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é que ele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguinte ? Não,deve ter havido um grande equívoco. É melhor que eu desista. Nélson não iria dar entrevista alguma num momento tão inoportuno. Ou iria ?

Mergulhado num poço de constrangimento, aperto a campainha.A entrevista tinha sido marcada por telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo, vejo a imagem de Nélson Rodrigues esparramado numa poltrona. Os pés estão fora dos sapatos . Não faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de mangas curtas. Pende na parede da sala uma foto emoldurada de Nélson Rodrigues em companhia de Sônia Braga e de Neville de Almeida – atriz e diretor da versão cinematográfica de “A Dama do Lotação” .

Quando a mulher avisa em voz alta que “o repórter de Pernambuco” estava na porta da sala, Nélson ergue os braços,agita as mãos,saúda o ilustre desconhecido com uma exclamação calorosa,como se reeencontrasse um amigo de infância : “Conterrâneo ! Conterrâneo ! “.

O cumprimento efusivo não afasta o temor de que Nélson tenha cometido um pequeno equívoco : ao marcar a entrevista para aquele horário,ele bem que pode ter se esquecido de que a seleção brasileira iria entrar em campo dentro de instantes. A hipótese pode parecer absurda, mas quem sou eu para menosprezar as possíveis excentricidades de nosso herói ?

Tento uma solução alternativa para escapar de um vexame : digo que posso voltar depois para gravar a entrevista ;não quero importuná-lo na hora do jogo. Teatral, Nélson Rodrigues repousa a mão direita sobre o peito,como se sugerisse uma pontada no coração. Olha para a televisão,pede à mulher : “Tirem o som desse aparelho ! Tirem o som desse aparelho !.O Brasil me faz mal ! O Fluminense me faz mal !”. A mulher e a irmã de Nélson riem da cena teatral. Hiperbólico,épico,exagerado,o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de que acabo de me transformar em solitário e privilegiadíssimo espectador de um espetáculo teatral chamado Nélson Falcão Rodrigues,encenado pelo próprio autor.

A ordem de Nélson – “tirem o som desse aparelho ! “- é imediatamente atendida. O aparelho de TV fica mudo. A seleção entra em campo : Leão; Toninho,Oscar,Amaral e Edinho; Batista,Toninho Cerezo e Rivelino;Zé Sérgio,Nunes e Zico. Assim,este forasteiro se vê de repente na condição de coadjuvante de uma cena surrealista : diante de uma TV sem som que transmitia o jogo da seleção brasileira contra o Peru, o autor das mais brilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasileiro simplesmente tira os olhos do vídeo para responder ao interrogatório de um visitante que chegou em hora inconveniente,munido de um gravador e um bloco de anotações. Improvisado como fotógrafo,o também pernambucano Wilson Urquisa vai flagrando,com uma velha Olympus,as poses teatrais de Nélson Rodrigues.


Se houvesse justiça nesta República,uma lei deveria determinar que,depois de Nélson Rodrigues,ninguém deveria escrever sobre futebol no Brasil. Porque é extremamente improvável que um candidato a sucessor consiga igualar o brilho do texto deste pernambucano que passou quase toda a vida exilado no Rio de Janeiro.

A coleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia.Rui Castro organizou,para a Editora Companhia das Letras,um volume que reúne,sob o título de “Flor de Obsessão”,as “mil melhores frases” do homem.Se quisesse,reuniria três mil,como estas vinte :


“O brasileiro é um feriado “.

“O Brasil é um elefante geográfico.Falta-lhe,porém,um rajá,isto é,um líder que o monte”.

“Sou a maior velhice da América Latina.Já me confessei uma múmia,com todos os achaques das múmias”.

“Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes,ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf”.

“O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”

“Na vida,o importante é fracassar”

“A Europa é uma burrice aparelhada de museus”.

“Hoje,a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar.O repórter mente pouco,mente cada vez menos”.


“Daqui a duzentos anos,os historiadores vão chamar este final de século de “a mais cínica das épocas”.O cinismo escorre por toda parte,como a água das paredes infiltradas”.

“Sexo é para operário”.

“O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História”.

“A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”.

“Suddesenvolvimento não se improvisa.É obra de séculos”.

“As grandes convivências estão a um milímetro do tédio”.

“Todo tímido é candidato a um crime sexual”.

“Todas as vaias são boas,inclusive as más”.


“O presidente que deixa o poder passa a ser,automaticamente,um chato”

“Não gosto de minha voz.Eu a tenho sob protesto.Há,entre mim e minha voz,uma incompatibilidade irreversível”.

“Sou um suburbano.Acho que a vida é mais profunda depois da praça Saenz Peña.O único lugar onde ainda há o suicídio por amor,onde ainda se morre e se mata por amor,é na Zona Norte”.

“O adulto não existe.O homem é um menino perene”.



Fui testemunha ocular de uma verdade inapelável : Nélson Rodrigues era um cronista tão perfeito que nem precisava ver o jogo. O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores,os esquemas táticos,todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio. A Nélson Rodrigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de beques ou atacantes no retângulo verde. O relato dessas banalidades é tarefa que cabe aos “idiotas da objetividade” – estes pobres seres que só são capazes de enxergar a rala superfície dos fatos.

A missão que Nélson Rodrigues outorgou a si mesmo era outra : traduzir em palavras a dimensão épica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que,então,perder tempo com miudezas ? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV ? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru ? Para que saber se o meio-de-campo do Brasil estava ou não estava inspirado ?

-“Em futebol ,o pior cego é o que só vê a bola.A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana.Às vezes,num córner bem ou mal batido,há um toque evidentíssimo do sobrenatural”, ele escreveu uma vez.


Nélson Rodrigues preferia se ocupar de questões metafísicas – como,por exemplo,a inapetência de nossos escritores brasileiros em tratar do futebol.Numa de suas tiradas clássicas,reclamou :

- Nossa literatura ignora o futebol -e repito : nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral.

A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados em nossos jornais. Virou lugar-comum dizer que Nélson Rodrigues reclamava de que nossos escritores não sabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão. A implicância de Nélson era com literatos incapazes de cobrar um lateral. Mas, a bem da verdade, os que deturpam a queixa de Nélson não estão inteiramente errados : não apareceu ainda um escritor brasileiro capaz de bater um escanteio ou um lateral...

Alheio a esta fraqueza nacional,Nélson parece distante da disputa que se desenrola,ali,diante de nós,no vídeo da TV,entre a seleção brasileira e o escrete peruano. Faz ao repórter uma pergunta incrível : “Quem é o nosso adversário hoje ? “. Informo que é o Peru.

Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário.

Quando Zico faz um a zero,aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo,Nélson interrompe a entrevista para inaugurar,aos brados,uma nova expressão exclamativa :

- Que coisa beleza ! Que coisa beleza !

Depois,pede à família : “Pessoal,com licença dos nossos visitantes,vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso”. Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que “fechar a máquina” significa desligar a televisão – o que,aliás,não foi feito. Nélson dispara,então,um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho :

- Mas esses rapazes são uns gênios ! Uns gênios !

O repórter seria novamente surpreendido. Nélson já perguntara quem era “nosso adversário”. Agora,ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto : “Mas já houve dois gols ? “. Digo a ele que não : é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah,sim !”. Teria dois outros motivos para vibrar : o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes - faria dois gols,aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo,para fechar o placar : Brasil 3 x O Peru.

(Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nélson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver ? Eis :

- Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz.Mas não quero ter fantasias esplêndidas.O jogo Brasil x Peru,ontem,no Mário Filho,não assustou a gente.Diz o nosso João Saldanha : “O Brasil fez seu jogo,jogo brasileiro”. Vocês entendem ? Não há mistério.O brasileiro é assim.Quando um de nós se esquece da própria identidade,ganha de qualquer um.Outra coisa formidável : na semana passada,um craque nosso veio me dizer : “Nélson,é preciso que você não se esqueça : ao cretino fundamental,nem água”. O jogo foi lindo”.


Penso com meus botões que Nélson não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotas da objetividade” se encarregariam de registrar,nas páginas esportivas,o jogo real. Porque o jogo de Nélson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais ? Aos cretinos fundamentais, nem água.

A lista de surpresas nessa tarde no Leme não se esgotaria aí. Quando deu por encerrada a entrevista,Nélson pergunta ao repórter : “E então,você me achou muito reacionário ? “. Não,claro que não. Em seguida,pega o telefone,liga para a cozinha do Hotel Nacional,identifica-se e faz uma pergunta a um maitre provavelmente atônito :

- Companheiro,aqui é Nélson Rodrigues. Qual é o prato do dia ?

Ouve a resposta em silêncio,desliga o telefone. Recolhido ao sossego do lar,no fim de tarde de um feriado,já parcialmente debilitado por doenças que lhe encurtavam o fôlego, Nélson jamais se animaria a ir até o Hotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fez questão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê ?

As cenas que Nélson Rodrigues protagonizou nesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista. Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dispensa ao repórter um tratamento afetuoso : chama-me de “meu bem”. Alheio ao eventual cansaço de Nélson, estico a conversa até o limite máximo. Não quero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as tiradas do cronista inigualável. A irmã do gênio é que,delicadamente,interrompe o questionário no instante em que Nélson fez uma pausa para engolir uns comprimidos. Ao autografar o exemplar do livro de crônicas “O Reacionário” – consultado durante a entrevista – Nélson Rodrigues oferece-me uma dedicatória dúbia : “A Geneton,amigo doce e truculento – Nélson Falcão Rodrigues”.

Quase um quarto de século depois (a entrevista foi gravada no dia 1 de maio de 1978) ouço novamente a fita, releio a transcrição da entrevista. Confirmo que Nélson Rodrigues é um caso raríssimo de escritor que falava como escrevia. Só há outro caso : Gilberto Freyre. Transcritas,as entrevistas dos dois em certos momentos se assemelham aos textos que escreviam,o que é uma façanha : a linguagem falada normalmente é mais pobre que a linguagem escrita.Mas a regra – guardadas as naturais diferenças entre o que se fala e o que se escreve - nem sempre valia para os dois.

A entrevista foi embalada por citações ao livro “O Reacionário”, lançado por Nélson meses antes. Durante toda a entrevista, Nélson fez, repetidas vezes,citações a histórias e personagens descritos em “O Reacionário”. De vez em quando, entre uma resposta e outra, ele mudava repentinamente de assunto; parecia afogado em divagações. Chegou a reclamar : “Eu estou tendo lapsos lamentáveis....”. Assim, frases de “O Reacionário” complementam,nesta entrevista,as respostas gravadas por Nélson Rodrigues.

Os melhores momentos do diálogo improvável entre Nélson Rodrigues – o gênio que se intitulava “a flor da obsessão” – e o repórter intruso :

GMN : Quando foi que Nélson Rodrigues descobriu que nascera para escrever ?

Nélson : “A coisa é a seguinte : escrever para mim,muito mais do que uma decisão profissional,é um destino.Escrever é o meu destino ! Não é um caso de opção.Eu só tinha esta opção,uma vez que nasci assim”.

GMN : O senhor se considera um escritor por vocação ?

Nélson : “Digo que,no meu caso,eu nem precisava de vocação,porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante ! Eu tinha de ser aquilo. Se você chagasse junto de mim e pedisse para eu ter outra profissão,podia até dar dinheiro para que eu tivesse outro destino,não seria absolutamente possível”.

GMN : O início foi com ficção ou com jornalismo ?

Nélson : “Eu estava no quarto ano primário na Escola Prudente de Morais.Uma dia,a professora – que mandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estampa,para que nós,alunos,fizéssemos em torno da vaca toda uma história – disse : “Olhem aqui : Hoje,vocês vão ter de escrever da próprio cabeça.Agora não é mais sobre a vaca pintada”. E então deixou que cada um de nós fizesse o seu drama,o seu projeto dramático.
Duas histórias tiveram o primeiro lugar.A do meu adversário era um a história de um daqueles magnatas que davam passeios.Ele descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito.E pronto.A minha foi inteiramente diferente.Eu fiz a história de uma moça que era uma fera.Quase uma dama do lotação.Um dia,o marido chega em casa mais cedo e,quando empurra assim (imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta) . Entra em casa,segura o amigo traidor e enfia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empatamos.O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma concessão ao convencional.

Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista.Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobre adúltera que morreu de maneira tão melancólica.O traidor morreu também de maneira melancólica : direi,a bem da verdade,que a minha história causou um horror deliciado.Eu era,para todos os efeitos,um pequeno monstro.


Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter : esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça…”.

GMN : Para o senhor – que é considerado um mestre nesse ofício – o que é necessário para retratar, num texto teatral, o mundo desses personagens suburbanos das nossas cidades?
Nélson : “Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcionista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro chamamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Não é apenas uma facilidade, mas um destino” (pronuncia em tom dramático esta palavra)

GMN : A inspiração é uma entidade que existe para o senhor?

Nélson : “O negócio da inspiração é o seguinte : eu considero a inspiração,ao contrário de Valèrie, que só via a máquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisa que o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com a experiência”.

GMN :Dentre as peças que escreveu, qual a que o senhor considera como definitiva, como a obra acabada do dramaturgo Nélson Rodrigues?

Nélson : “O mais importante para mim,até o momento,é o dramaturgo. Volta e meia, me sinto muito perplexo diante de certas manifestações que me induzem ao teatro, embora o teatro tenha um defeito : tenho de vez em quando vontade de fazer certas experiências não teatrais dentro da área de literatura, mas sem ter nada de dramático”.

GMN : Dentre as peças já escritas,qual é a predileta?
Nélson : “ Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo que são todas as prediletas.Não tenho prediletas(ri). Todas são favoritas. Já pensei muito em querer discriminar qual a minha melhor peça, mas não sei”.

GMN : Que autores brasileiros de hoje o senhor considera como verdadeiros artistas do teatro?

Nélson : “Vou pular esta,porque tenho autores que são inimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Um autor que é um amigo tem todos os defeitos…”

GMN :O senhor diz sempre que “a admiração corrompe”. É o caso ?

Nélson :“É isso, é o caso. A admiração corrompe. O amigo que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa nenhuma, porque, ele próprio, não consegue se prender. Então,começa a fazer insinuações e etc…Como eu sinto, evidentemente, o nosso amigo, o inimigo, com a maior facilidade, então eu prefiro o inimigo” (ri).

GMN : Se o senhor fosse levado a fazer uma hipotética opção entre o teatro e o jornalismo, qual dos dois preferiria?

Nélson : “O teatro ! E não é um problema de qualidade intelectual não”.

GMN : O jornalismo brasileiro continua padecendo de objetividade? – que o senhor considera uma “doença grave”?

Nélson :“O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental”.

GMN : Quais foram as causas da ocorrência desse culto à objetividade que, no conceito do senhor, corresponde à falta de emoção?

Nélson : “Pois é, é esse o negócio (ri de novo). É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. Olhe aí (e mostra a crônica “A Desumanização da Manchete”):

O “Diário Carioca” não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy-desk, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do “Jornal do Brasil”. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o “Jornal do Brasil” e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete”.

GMN : A ausência de um ponto de exclamação numa manchete faz falta ao leitor comum?

Nélson : “Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância,havia primeiro o “Correio da Manhã”, um jornalaço. E havia “A Noite” – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. “A Noite” era um jornal amado (acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava “A Noite” disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: “Morreu cantando” (a essa altura, Nélson Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer.
A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira”.

GMN : Que fatos ou situações brasileiras o senhor contemplaria com um ponto de exclamação numa manchete de jornal?

Nélson : (pensativo, com olhar distante) – “Deixe-me ver… O negócio é o seguinte: houve num desastre uma coisa atroz que foi uma explosão. Morreram seiscentos sujeitos, segundo as manchetes da ocasião. Todo mundo fazia coro… E outro caso de repórter que não era idiota da objetividade: o sujeito foi fazer a cobertura de um desastre de trem. Geralmente, em desastre de trem, morria gente pra burro. Agora, morre muito menos, não sei porque.

Mas qual é o fato ? Deixe-me ver…Ah, o suicídio de Getúlio Vargas foi de uma brutalidade incrível. Uma coisa bonita é que foi uma coisa misteriosa, aí é que não entrou objetividade nenhuma. Morreu, então o cara passa a ser um deus. O que é que você pode fazer contra o cara? Deu um tiro no peito, ia ser deposto. E só porque ia ser deposto ele se mata.

Veja só: no princípio da minha infância havia o pacto de morte. Havia sujeitos que se amavam tanto que já não suportavam mais o próprio amor. Então, o que fazia ele? Propunha à pequena o suicídio, um pacto suicida. Rara era a pequena que duvidava. O lindo era a vontade, o encanto com que esse par de amorosos se matava e cumpria o seu destino. Esse é que é o caso”.

GMN : Quer dizer então que na história recente do Brasil o suicídio de Getúlio Vargas seria o último grande fato que mereceria um ponto de exclamação do senhor numa manchete de jornal?

Nélson – “Olhe: quando eu digo merecer a manchete de jornal… (interrompe, olha para a televisão, comenta a iminência de um gol da seleção brasileira, distrai-se, retoma a conversa de um ponto anterior). Você compreendeu como é o caso? Antes de certo tempo aí, achavam que era uma coisa gravíssima o sujeito se matar, era uma covardia. E nem ele nem a menina acreditavam que isso fosse um defeito, o defeito de se matar: alguém ter o direito de destruir o próprio amor e o amor do outro. Mas os dois se destruíram. O sujeito achava que era uma maneira de coroar o próprio amor.
Agora, a nossa realidade está realmente muito pobre, muito vazia, sem um certo apelo dramático. Ninguém hoje quer morrer, ninguém quer se suicidar ! . Ali o sujeito só queria destruir o amor. E aí a sogra ia cuspir na morte do sujeito que lhe matara a filha”.

GMN : O senhor lê a chamada imprensa alternativa?

Nélson – “Alternativa o quê?”

GMN : A imprensa alternativa, esses novos jornais que têm surgido, o senhor lê ?

Nélson : “Eu leio de vez em quando mas não faço questão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal não é o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leio um jornal que não seja rigorosamente o jornal da véspera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do próprio dia. São fatos da véspera , figuras da véspera. O fato do dia não existe e ou só existe para rádio e as TVs. No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal. E assim o marido que matava a mulher e a mulher que matava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o dramatismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia, entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ou privada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de moda do que charleston, do que o tango”.

GMN :Não há nenhum fato do dia…

Nélson – “Pelo menos a gente tem essa impressão. O que nós chamávamos antigamente de furo não existe mais. Todos hoje acham que podem viver sem o furo, ao passo que, no meu tempo, quando eu era garoto, um furo de reportagem era tudo. Era o grande momento da carreira.

Agora, para falar de manchete, outro fato formidável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São Francisco era o local próprio para o sujeito se manifestar. E quando havia muitos interessados em se manifestar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fizeram uma coisa qualquer com o chefe de polícia. E o chefe de polícia – que era um santo – assinou uma portaria proibindo os estudantes não sei de quê nem ninguém sabe. Tudo que houve foi por conta da falta de bossa, da falta de inteligência dos nossos queridos estudantes. E então os estudantes resolveram fazer um “enterro” do chefe de polícia – que era um velho general, sujeito que acreditava em honra, num tempo em que ninguém sabia o que era honra. O general era um santo homem e então achou que aquilo era brincadeira de estudante. E lá foi ele dizendo aos queridos investigadores que não queria machucar ninguém. Nada de bala, nada de punhal, dizia o nosso general. E no dia do “enterro”, os estudantes carregavam o caixão, todos levando uma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polícia, furiosos com a questão, simplesmente acharam de matar três estudantes. Aí foi aquela coisa tremenda. Houve então uma manchete, a manchete mortal da imprensa brasileira. Um jornal descobriu uma manchete fantástica (muda a flexão de voz, entusiasmado). A manchete quase derruba a presidência da República, a vice-presidência, o chefe de polícia imediatamente se demitiu, foi embora, não quis mais nada, achando-se culpado. Inventaram uma manchete que até hoje eu gosto de ouvir…”

GMN : Qual foi?

Nélson : “Era assim: “Primavera de Sangue” (pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quase derruba o presidente da República, o ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete. Quero dizer que, se você quiser, com uma frase bem trabalhada, você resolve o caso.”

GMN :De quando foi essa manchete?

Nélson : “Eu era garoto, tenho agora sessenta e cinco anos. E foi na altura dos meus dez anos. Agora, eu sei disso tudo pelas informações do pessoal. O cara que fez esta manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil réis. Só o Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião (ri)”.

GMN :O senhor se interessa por política partidária?
Nélson : “Eu não sou ninguém para dizer certas coisas, mas o bom no brasileiro é que ele, sem saber de nada, diz coisas horrendas”.

GMN : Quais são os políticos brasileiros que o fascinaram ou fascinam hoje? Existe algum nome que o senhor queira citar?

Nélson (Pausa de alguns minutos, ele está pensando) : “Num desses momentos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado, porque para achar um sujeito, poder dizer um político interessante… Eu acho que só Napoleão Bonaparte ! (ri)”.

GMN : O senhor já disse que um dos traços do caráter nacional é o fato de que o brasileiro adere a qualquer passeata. Quais seriam os principais traços do nosso caráter nacional?

Nélson : “O brasileiro é um tipo gozadíssimo. O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque, senão, cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério porque este negócio de viúva vocacional é um fato. Há realmente um repertório sensacional de casos. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Houve um tempo em que nem o Departamento de Pesquisa do “Jornal do Brasil” sabia quem era o brasileiro.Mas se um sujeito se apresentava como brasileiro, as pessoas de bem respondiam: “Não te conheço!”. E muitos duvidavam que o Pão de Açúcar ou o poente do Leblon fossem brasileiros.
Olhe: houve tempo em que a mulher mais séria do mundo, mais digna, mais respeitável se deixava envolver por um poeta, se abandonava por um soneto. Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorou da minha tia Yayá. E se você perguntar “Qual foi o maior homem que você viu no mundo?”, eu acho que esse tio está no segundo ou terceiro lugar, porque o desgraçado, ele amava a minha tia Yayá. Ele já não precisava mais beber para estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso, fazia uma considerável economia de dinheiro… Em minha família houve um bêbado indubitável, foi este meu tio Chico. Como sujeito que bebe muito, ele durou pra burro. Morreu com oitenta e tantos anos, sempre bêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigo o meu horror ao bêbado. Mas ele me ensinou também uma série de coisas lindas. Por exemplo: o amor. Meu tio Chico me ensinou a amar. Embriagou-se em cada minuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante e depois. Yayá costurava para o casal não morrer de fome. Mas eu, menino, queria amar e ser amado como esse alcoólatra enlouquecido. Era um amor que hoje não existiria. A minha tia Yayá deu graças a Deus que ele tivesse se apagado. Agora ninguém ama mais, eis o que comecei a descobrir desde os treze anos de batalha. Você ponha aí: o meu tio Chico e sua bem amada Yayá. Era um negócio impressionante.”

GMN : Por que é que o senhor diz, desse jeito, que hoje ninguém ama mais ?
Nélson : “Meu bem, se a evidência objetiva e espetacular vale alguma coisa, o homem não ama mais. E não ama mais porque o nosso cenário se povoa de sujeitos que são débeis mentais absolutos. O sujeito já não acredita em amor, pra começo de conversa. Não acredita em amor. O sujeito acha que todo mundo é a mesma coisa, e apesar disto, se diz marxista. É uma coisa esterilizante que há na vida brasileira, sobretudo carioca. O carioca é esse sujeito fascinante só na base dos defeitos que tem. Arranja logo casamento e é uma besta. E todo mundo diz: “Oh, que coisa, que amor!”.
E eu me lembro de uma menina grã-fina mesmo… Aliás, diga-se de passagem que eu não acredito na existência da grã-fina nem do grã-fino. Dou-lhes este nome. Mas é incrível esse negócio da mulher moderna (fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento). Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco feminina. Eu tive um cachorro, o nosso querido Boogie-Woogie, que ficava diante da minha casa amando sua querida cachorra. Ela ficava lá, digníssima, empinada, recebendo as homenagens. Os carros passavam e achavam o cachorro louco. E esse nosso amigo, o cachorro, era muito mais humano que a mulher dos nossos tempos. Elas se meteram a bestas”.

GMN : O brasileiro continua sendo um “Narciso às avessas que cospe na própria imagem”, como o senhor dizia?

Nélson – “Continua, continua !”.

GMN : Qual é o remédio para isso?

Nélson : “O remédio para isso? Nunca. Para isso não há remédio. Veja que o Brasil ganhou três vezes o campeonato mundial. Se ganhou três vezes, e se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo, tudo salvo. Ganhou três vezes no futebol, feito como esse ninguém teve e não se conhece isso.
O brasileiro tem virtudes. É bom fazer uma ressalva nesses defeitos que digo. Isso o torna extremamente simpático. Aquela volubilidade… O sujeito ora ama aqui, ora ama ali… Vai lá pra chegada do trem elétrico, vai arranjando os seus amores que, aliás, duram geralmente vinte e um dias, quando duram. Há pessoas que casam e lá na sacristia estão os convidados fazendo apostas sobre a duração daquele casamento. E você pode ficar sossegado porque aquele casamento está inteiramente liquidado antes do começo. Há amores, entendeu, que o sujeito traz consigo e realmente são sinceros. Mas evidentemente, não existe este amor, porque o nosso querido Brasil…

Olhe: em 1958, quando o nosso querido Brasil voltou campeão da Copa, foi o maior futebol que jamais se viu…”

Diga-se de passagem que eu considero o brasileiro o maior sujeito do mundo. O europeu já está esgotado. O europeu tem na casa dele pires de mil anos. Escadas de mil anos. Tudo é velho pra burro. Já com o brasileiro é inteiramente diferente. É como se ele estivesse sempre há quinze minutos do fato. Um negócio genial.
(Nélson tinha mudado de assunto;volta ao futebol)Basta o sujeito passar quinze minutos assistindo a um jogo importante desses camaradas. Esses rapazes são uns gênios. Mas o sujeito pensa que isso não é importante e sai, nem liga. Mas quando o negócio vai se transmitir em forma de gorjeta, aí então o brasileiro é um feroz…”

GMN : O senhor diz também que a paisagem dos países desenvolvidos é triste sem imaginação…

Nélson : “É. Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, costumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. É trágica a falta de imaginação da paisagem no país desenvolvido. O desenvolvimento é burro, ao passo que o subdesenvolvimento pode tentar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida.

O diabo é que o Burle Marx, no Brasil, faz o que nem o europeu faria lá. O nosso Burle Marx retira a flor da paisagem. Dizem que o Amazonas é a coisa mais gigantesca do mundo. O nosso Burle Marx só usa uma cor, a verde, e danem-se as outras cores. Fiz esta anotação e ele me disse numa entrevista dele que o teatrólogo Nélson Rodrigues, com certeza, não estava olhando para a paisagem, não viu outra cor, se não a verde. Fui espiar lá e, realmente, o único paisagista do Aterro do Flamengo é o Exército, porque acrescentou, ao Monumento dos Pracinhas, algumas flores, umas dezessete flores. O paisagista foi o ministro da Guerra. O nosso querido Burle Marx, a quem muito admiro, não pôs flores no Aterro, e com a maior tranqüilidade do mundo. Não precisa prestar atenção… O negócio das cores… (Nesta altura da conversa, ele ri e confessa: “Eu estou tendo lapsos lamentáveis…”).

Você sabe o que é o sujeito fazer uma bobagem e negar a verdade? Se ele aceitar o erro, está bem. Agora, quando o sujeito fica impune… A impunidade faz de um São Francisco de Assis um canalha. Ele comete um ato e ninguém o prende, ninguém o ameaça, sequer.

É este o caso de Burle Marx. Como ele está faturando cada vez mais, não liga por ter feito um jardim onde só existe uma cor e onde não tem uma violeta. Ele está cada vez faturando mais, e mais fiel aos seus erros, porque descobriu que o erro está muito mais perto do êxito. Já falei pra burro, agora você está satisfeito, não é? E vai querer continuar…”

GMN : Agora, uma explicação para as causas do rancor e da ironia feroz que o senhor cultiva diante de seus personagens, como por exemplo, “as verdadeiras grã-finas”…

Nélson : “O que eu acho é que a gente diz “grã-finas” sem achar que elas tenham obrigação de agir como grã-finas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonieta podia dizer: “Ah, eu sou grã-fina…”. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácio e ela disse: “Se não tem pão, comam brioche”. Então, a Maria Antonieta é que poderia bradar: “E, portanto, eu posso dizer que sou grã-fina”. Ela derrubou um erro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina do mundo é a Maria Antonieta. De então para cá nunca mais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina paulista que é gorducha, porque tem dinheiro à beça para comer. E come. Mas não existe. A nossa querida grã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro, e está furiosa porque não tem, então assume diversas atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: ”Na minha casa, só as criadas vêem televisão”. As grã-finas não existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.”

GMN : E as “estagiárias de calcanhar sujo”?

Nélson : “Já as estagiárias têm uma existência feroz…(ri, acentua o tom de voz). Sobre nossa querida estagiária, eu vou te dizer o seguinte: é incrível. Meninas que não serviriam para babá nem poderiam entrar num cinema para ver filme francês ou meu próprio filme, a “ A Dama do Lotação”, fazem atitudes que os bocós consideram geniais.

O que assombra na estagiária não é a sua graça pessoal, mais discutível, menos discutível, segundo cada caso. O que me assombra são as suas perguntas e repito: são as perguntas que tornam a estagiária um ser tão misterioso e absurdo como certas imagens de aquário. Uma dessas meninas irreais de redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster ou um santo ou, simplesmente, uma dessas velhas internacionais que embarcam em todos os aeroportos. E perguntar: “Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pílula?”

Você veja: uma delas foi incumbida de entrevistar um milionário. Ligou para a casa do milionário, disse: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. Do outro lado, uma voz responde: “Dr. Fulano não está passando bem”. E a menina insiste: “Então, pergunta a ele se…”. Desligam e a estagiária disca novamente, não com o dedo, mas com o lápis: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. A pessoa diz, desatinada: “Minha senhora, o Dr. Fulano acaba de ter um enfarte. Enfarte, minha senhora, enfarte. A senhora quer que eu diga mais do que estou dizendo?”. E a estagiária: “Vai lá e pergunta a ele o que é que ele acha da pílula. Eu espero”.

A família do enfartado toda se descabelando… o que, aliás, é raro, porque, no nosso tempo, a família chora muito pouco. O inimigo da morte – que é o clínico – dá logo um furioso calmante.
A estagiária então liga novamente. Dá sinal de ocupado. Continuou, com uma obstinação fatalista. E sempre ocupado. Uma hora depois, atendem. Era uma mulher que ou estava gripada ou chorando. A estagiária diz: “Por obséquio, eu queria falar com o Dr. Fulano”. Responde a voz feminina: “O Dr. Fulano acaba de falecer”. E a estagiária: “A senhora diz a ele que é só uma perguntinha”… e etc.

Agora, há um dado que me parece essencial. As entrevistas das estagiárias têm uma virtude rara: nunca saem. Falo por experiência própria. Quase todos os dias, uma estagiária me caça pelo telefone. E eu falo sobre todos os temas e personalidades. Opinei sobre os Kennedy, João XXIII, o Kaiser, Gandhi. No dia seguinte, abro o jornal e vejo que não saiu uma linha. Mas uma coisa curiosa: não só as estagiárias. Profissionais da melhor qualidade estão seguindo a mesma linha. Posso dizer que a nossa imprensa criou o novo gênero de entrevistas que não serão publicadas nem a tiro”.

GMN : O que é que o Recife significa para o senhor hoje?

Nélson : “Eu gosto do Recife pra burro. Vim de lá aos cinco anos de idade. Fiquei lá até o ano de 1929. Você veja: me dá pena estar pensando no Recife e nunca ir lá. Tenho, em minha memória profunda, um apelo de pernambucano pelo Recife”.

GMN : O senhor não pensa em voltar?

Nélson : “De vez em quando eu faço evocações......(Um dos textos de “O Reacionário” traz lembranças da cidade ) Toda a minha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir”.

GMN : O senhor não volta ao Recife porque tem medo de avião?

Nélson : “Acho chato viajar de avião, não quero voar, a não ser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil”.

GMN : Qual foi a última vez que o senhor esteve no Recife?

Nélson : “Em 1929. Tenho um sadio horror de avião”.

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Posted by geneton at 12:19 PM