junho 30, 2007

CULINÁRIA TAMANCAL

Receita do blog : ofereça sopa de tamanco com caco de vidro para o primeiro empulhador que aparecer.

Vale para senadores cínicos, escritores picaretas e bichos afins.
A paciência do Brasil agradece, comovida.

Posted by geneton at 02:52 AM

junho 29, 2007

CORREÇÕES AO DICIONÁRIO-2 : BOI = BODE. BEM QUE CHICO BUARQUE AVISOU...

Boi = Bode.

Chico Buarque de Holanda não é o melhor profeta em atividade no Atlântico Sul. Mas, numa música de 1973, "Boi Voador Não Pode", ele escreveu o verso que viraria lema do Senado da República em 2007:

"O boi ainda dá bode".

Deu.

Posted by geneton at 02:56 AM

PROTESTO! DICIONÁRIO DO AURÉLIO COMETE FALHA NO VERBETE "LIXO". FALTOU UM NOME LÁ!

Atenção, editora do Dicionário do Aurélio, o Pai dos Burros ( ou seja :nosso pai) : há uma falha grave na edição de papel! Tomara que o deslize seja corrigido na próxima edição.

O Dicionário dá como sinônimos de lixo "entulho ; tudo o que não presta e se joga fora; sujidade, sujeira, imundície; coisa ou coisas sem valor".

Faltou concisão ao autor do verbete. Poderia ter resumido a palavra a lixo com uma apenas uma frase,claríssima : lixo = o mesmo que livro de Bernardo Carvalho.

Todo mundo entenderia. Porque lixo que é lixo fede de tão ruim. Livro de Bernardo Carvalho fede. Lixo que é lixo não pode ser manuseado, porque provoca náusea. Livro de Bernardo Carvalho provoca náusea. Lixo que é lixo dá vontade de vomitar. Livro de Bernardo Carvalho dá vontade de vomitar.
Ninguém me contou: eu vi, porque manuseei um. Em resumo: livro de Bernardo Carvalho é o sinônimo perfeito para a palavra lixo, mas o dicionarista preferiu complicar a explicação.

Justiça se faça : não é que o tal livro seja podre. Papel não fede. A podridão é literária. Ou seja: o fedor de lixo emana do conteúdo. Livro de Bernardo Carvalho é - apenas - inapelavelmente ruim, pretensiosíssimo, entediante, chatíssimo, soporífero, estupefaciente, vomitivo, ilegível, horroroso.

O simples fato de livro tão ruim chegar à prateleira das livrarias, com a chancela de uma grande editora, é um atestado da indefensável mediocridade de nossa paisagem cultural.

Há pecados que até se perdoam num candidato a escritor. Mas a pretensão descabida é pecado mortal. Sério: um candidato a escritor precisa, obrigatoriamente, avaliar o próprio tamanho, antes de teclar a primeira frase.
Se um jornalista tiver a plena consciência de que, em última instância, não passa de um aplicado coletor de declarações alheias, terá - por exemplo - grandes chances de produzir boas peças jornalísticas. Tudo se resume a não querer enganar a plátéia dando um passo maior do que as pernas. Já pensou se
um desqualificado como Bernardo Carvalho tivesse a pretensão de escrever como, por exemplo, Camus? Mas ele tem. O desastre mora aí ( neste momento, a platéia solta, em uníssono, um suspiro de desalento. Meu Deus, ele tem....).

Se um picareta literário, cego pela pretensão descabida, comete o gravíssimo pecado de se julgar um romancista de recursos, a estrada para o desastre estará aberta. É o que acontece com livro de Bernardo Carvalho, um picareta literário que se julga perfeitamente qualificado a cobrar dinheiro para ser lido...( afinal, o que faz um autor que publica livros? Cobra dinheiro para ser lido. O problema é de qualidade. Cassandra Rios, autora quinhentas vezes superior a Bernardo Carvalho, porque não cometia o pecado mortal da pretensão descabida, poderia perfeitamente cobrar para ser lida. José Mauro Vasconcelos, autor com zero grau de pretensão descabida, e, portanto, seiscentas vezes superior a Bernardo Carvalho, poderia cobrar para ser lido. Bernardo Carvalho não pode cobrar, porque os seus livros são empulhações indefensáveis para ludibriar leitores. Livro de Bernardo Carvalho deveria ser distribuído de graça para as empresas de lixo).

Imagine um débil mental habitante de um paiseco subdesenvolvido desfilando de cachecol por bares como se estivesse na Paris do século XVIII e arrotando draminhas existenciais ( a platéia se contorce de riso diante de tal cena: quá-quá-quá-quá) . Se uma criatura com este perfil se sentasse diante de um teclado para escrever, o que sairia ? Um livro de Bernardo Carvalho.

Nem quero teclar o nome do livro que inspirou estas reflexões sobre o sentido da palavra lixo. Quero evitar que outros incautos, movidos pela curiosidade, cometam a estupidez que cometi: joguei fora um dinheiro que poderia ter sido gasto com um bom sanduíche acompanhado de um milk-shake.

Bem feito! Dinheiro jogado lixo! Quem mandou comprar lixo disfarçado de livro?

Posted by geneton at 02:53 AM

junho 28, 2007

O NOME CERTO NÃO É PITBOY

Ninguém perguntou, mas declaro, diante deste egrégio tribunal, que tenho horror a cachorros. Os bichos só são toleráveis em cinema. Não existe nada pior que cachorro fungando a perna dos outros dentro de elevador. Se houvesse justiça nesta planeta desperdiçado, quem botasse cachorro dentro de elevador pegaria cinco anos de cadeia automaticamente, sem direito a apelação.

Mas devo confessar uma admiração secreta por um gesto nobre que os cachorros praticam todo dia, no anonimato, longe dos olhares dos citadinos.


O cenário: aquelas estradas barrentas do interior. Ali, os cachorros praticam um exercício admirável, pela persistência: toda vez que é despertado pelo ronco de um motor, o vira-latas de plantão dispara atrás do carro e começa a latir, desesperadamente. Jamais alcançará os carros, porque não terá força nem velocidade para tanto, mas, ainda, assim, corre e late a cada vez que o ronco de um motor o desperta da modorra. É assim o dia inteiro. Quantas centenas de vezes não vi esta cena ?

Depois de correr cem metros atrás da roda, o cão desiste, exausto, enquanto o carro se afasta.
O bicho perdeu a batalha contra a máquina. Mas basta que o ronco do motor anuncie a passagem de outro carro para que o cão sarnento se apresente de novo para a perseguição inútil.

A beleza do gesto é justamente esta : a coragem de persistir na inutilidade . Porque não existe exercício tão inútil quanto o de cães vadios perseguindo a roda dos automóveis na beira de estradas do interior do Brasil. Mas, sem esperar medalhas da humanidade, eles persistem. É uma lição silenciosa para nós, fracos de espírito que cambaleiam diante do primeiro fracasso.

O cão fracassa todo dia, mas corre, late, faz barulho.

Acabo de descobrir um sentido para a vida: uivar - feito os cães das estradas do interior - diante de cada impostura, cada incômodo, cada fracasso, cada empulhação. Pode ser um belo exercício. Não precisa incomodar os vizinhos. Basta um uivo inaudível. É inútil, porque os carros continuarão passando, indiferentes. Mas vale o protesto.

Em homenagem aos cães sarnentos das beiras de estrada do interior, a humanidade deveria uivar todo dia para a lua ( "Um Cão Uivando para a Lua" é o belo título do livro de Antônio Torres - que li, ainda nos anos setenta, entre uma aula e outra).

Minha ojeriza aos caninos comporta outra exceção: preciso levantar a voz em defesa de um cachorro chamado Boy. Quando eu era criança, no século passado, havia em minha casa um cachorro branco que tinha este nome. Nunca fez mal a ninguém. Numa noite de São João, assustado com o ruído dos fogos, Boy fugiu. Jamais foi encontrado. ( Música triste. Cena trash. Câmera percorre rua iluminada por fogueiras de São João. O olhar de um menino procura na paisagem sinais do cachorro. Nada. Créditos começam a rolar. Luzes do cinema se acendem. Uma mulher disfarça o choro, com vergonha do vexame).

Se eu escrever outro parágrafo, ganharei o Troféu José Mauro Vasconcelos de pieguice animal.

Por que tanta divagação sobre cachorros?

Por um motivo:

Por uma questão de justiça, recuso-me formalmente a dar o título de Pitboys a estes bichos que tentam matar empregadas domésticas em pontos de ônibus. Boy, em minha geografia sentimental, é o nome de um cachorro manso que fugiu de casa com medo do som dos fogos de artifício de uma festa de São João.

Pitboys,não. Pitnazis. É melhor assim.

Posted by geneton at 01:15 PM

CORREÇÕES AO DICIONÁRIO-1 : PITIBOY = PITINAZI

Pitboy = Pitinazi ( Acréscimo a nota de ontem sobre o assunto : "This Boy" é o nome de uma canção bonita dos Beatles. "Boy" é o nome do cachorro que fugiu da minha casa com medo do ruídos dos fogos de São João, quando eu era criança. Não vale a pena,então, sujar o sentido da palavra. Não se deve chamar de Pitiboy o animal-mauricinho que trucida empregadas domésticas em pontos de ônibus na Barra. Os chamados Pitiboys são, na verdade, Pitinazis. Se vivessem na Alemanha nos anos trinta, estariam com um chicote na mão e suástica no braço).

Posted by geneton at 02:57 AM

PÍLULAS DE VIDA DO DOUTOR SILVEIRA


De seis em seis meses, tudo muda no Brasil.
Só o Brasil não muda.


Joel Silveira, datilografado por GMN

Posted by geneton at 02:57 AM

PERGUNTA FEITA AOS CÉUS // AGAIN

Bernardo Carvalho ( creio que é este o nome; autor dos mais soporíferos, mais ilegíveis, mais entediantes, mais intragáveis romances já publicados no Sul da América em qualquer época; subliteratura da pior espécie ; pastiches de romances franceses de décima-oitava categoria; picaretagem literária deslavada; coisa de gente que, em vez de pagar a um psicanalista para resolver indefinições pessoais, prefere atazanar a paciência dos leitores com relatos de falsa profundidade* para arrancar dinheiro de editores e leitores incautos ) continua solto ?

(*) Comprei um. Quero meu dinheiro de volta!!

Posted by geneton at 02:54 AM

junho 27, 2007

DIZEI, NOSSA SENHORA DO PERPÉTUO ESPANTO

Dizei-nos, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, a nós, vossos servos, humildemente postados a vossos pés : o que é que leva um ser humano a exibir orgulhosamente na rua, em camisetas sem manga, músculos deformados nas academias ?

Posted by geneton at 03:05 AM

CONSTATAÇÃO À MODA DOS MUROS DE PARIS, 1968


A humanidade só será feliz no dia em que o último criador de passarinho for pendurado nas tripas do penúltimo.

Posted by geneton at 03:03 AM

ÍNDICE UNIVERSAL DE BOCEJO

Improviso de jazz = bocejo. Novela de época = sono profundo. Tese acadêmica = sobrancelha pesando uma tonelada. Editorial = estado de coma.

Assim caminha a humanidade.

Posted by geneton at 02:59 AM

junho 26, 2007

PÍLULA DE VIDA DO DOUTOR SILVEIRA

O problema da seleção é Galvão Bueno


Joel Silveira, datilografado por GMN

Posted by geneton at 03:05 AM

INTERNAUTAS, CORREI EM BUSCA DE "O NARIZ DO MORTO": "Ó países em nós soterrados, ó escombros, ó múmias, ó gigantes mutilados...."

O Sopa de Tamanco faz a boa ação do dia: convoca os internautas para um momento de enlevo literário.

Você conhece Antônio Carlos Vilaça? Já ouviu falar de um livro chamado "O Nariz do Morto" ?

Se a resposta for "não", é hora de tirar o atraso. Antônio Carlos Vilaça, morto há dois anos, era uma figura raríssima : não é exagero dizer que ele entregou a vida à literatura e à contemplação. Não cultuava bens materiais. Converteu-se à vida religiosa, mas, diante do silêncio de Deus, voltou às lides terrenas. Vivia de favor. Numa sociedade que glorifica a mediocridade em último grau, era uma espécie de pária.

O livro "O Nariz do Morto", obra-prima, foi relançado há pouco.

Correi, incréus, à primeira livraria física ou virtual, para encomendar um exemplar.

É leitura de primeiríssima qualidade. Mas, como é hábito na Brasilândia, circula num clube fechado.

Eis uma pequena mostra do texto de Antônio Carlos Vilaça:

"Ó dias, ó noites, ó vermes, que perfurais em nós a essência nossa. Que essência ? Que vermes ? Ó países em nós soterrados, ó escombros, ó múmias, ó gigantes mutilados, terras absurdas e quietas, colinas, mausoléus ,incógnitas e nós, bichos da terra, pitorescos, à procura".

"A vida é numerosa. E então os sinos súbito anunciam em nós a morte,que virá. A morte vem.Cada dia, a morte vem".

"A fé religiosa como que me assaltou.Vi-me subjugado pelo entusiasmo. A vida de rapaz que amava as letras e sabia de cor os seus poetas preferidos,a vida simples, descuidada, solitária,tantas vezes,de um rapaz estudioso (e reto) ganhou esse frêmito novo e desconhecido, essa audácia, essa loucura, essa vibração absurda".

"Eu gostava das sublimidades.Eu queria as grandezas. Eu sonhava com alturas límpidas. Eu queria as nuvens. Muito menos, o duro chão dos homens".

"Ó paredes, dizei-me. "Eu quero a estrela da manhã !". Dizei-me o endereço dela. Ó sala capitular, ó claustros, ó antifonários com iluminuras, ó sinos brônzeos, estatuazinhas , capitéis, afrescos, casulas, pesadas estalas, pedras, faces, madeiras e ouro, tapetes, cálices, relicários , retábulos e móveis, crucifixos e virgens, falai ! Um sussuro que nos chegue. Que monólogo é este, dia e noite entretido ? Sombras, sombras, sussurai-me, segredai-me. Todo esse passado, esse peso, essa pátina, pureza, pecado".

"O homem morre para sempre. O abismo da morte não devolve ninguém. E então, lentamente, fui percebendo que só nos resta uma atitude, menos que atitude, uma postura - a tranquila dignidade de quem sabe e não se desespera".

"Ó interminável estrada, ó ruas do mundo, ó caminhos da vida, ó rio dos homens por onde incessantemnte rolamos como gloriosos destroços !".

"Ó caminhante sombrio e só ! Sempre sentiste o efêmero de tudo. Nunca pousaste, nem repousaste em nada. Nunca tiveste sossego. Fosto sempre um peregrino em perigo".

"Isto é apetecível, uma casa, com mulher e meninos, para a noite do homem. Nunca terás isto, ó incauto viajante, ó ser noturno, abandonado e trágico, nunca terás o limpo sossego dos homens. Não o terás, porque o recusas, ó louco, ó orgulhoso, ó só. Não conhecerás nunca a meiga tranquilidade dos serões sem agitação : viverás como um condenado, sem casa, entregue à nostalgia do paraíso absurdo, sem chave, sem nada. Caminharás sem fim. Nunca chegarás".

Posted by geneton at 03:03 AM

ORAÇÃO DE UMA PALAVRA SÓ, A SER RECITADA TODO DIA, EM FRENTE AO ESPELHO: "PATÉTICO!"

Joel Silveira conta que, um dia, estava na redação. Datilografava uma reportagem qualquer, concentrado, com ar grave, como se estivesse escrevendo "A Montanha Mágica". O balé dos dedos sobre o teclado produzia barulho, chamava a atenção.


De repente, Nélson Rodrigues pára diante da mesa de Joel, fica observando em silêncio aquele espetáculo e pronuncia apenas uma palavra, antes de seguir adiante:

- Patético !

Eis uma excelente maneira de começar o dia. Olhar-se no espelho, fitar o fundo dos olhos e dizer, em voz baixa, para não chamar a atenção dos vizinhos:

-Patético !

Não existe exercício melhor de auto-avaliação.

Cumprido este ritual, o terráqueo estará pronto para enfrentar um novo dia, livre do terrível pecado da pretensão descabida, a ilusão de importância, a auto-suficiência cega.

A palavra de ordem,então, é "patético!".

É a salvação em vida, a senha que abre todas as portas, a fórmula da felicidade.


Posted by geneton at 03:02 AM

junho 24, 2007

UMA SOPA DE TAMANCO: UM NOVO BLOG, PARA ESQUENTAR O INVERNO

É só clicar no link ( você não vai perder a viagem) :


http://www.sopadetamanco.blogspot.com/

Filosofada barata para embalar o sono :

O grande mal causado pelos apóstolos da Patrulha Politicamente Correta (PPC) é o seguinte: como virou pecado ferir as chamadas "susceptibilidades alheias", tudo passou a ser tolerado, tudo passou a ser nivelado por baixo. Tragédia.

Os fundamentalistas desta seita querem porque querem fazer o resto da humanidade acreditar que nada é ruim, nada é feio, nada é insolúvel, nada é insuportável. Todo mundo é igual. Todo mundo é talentoso. Todo mundo é gênio.

Acabo de sentir um leve tremor de terra. Colo o ouvido no chão, feito índio, para descobrir de onde vem o mini-abalo sísmico. Descubro. Vem dos lados do Cemitério São João Batista. Só pode ser Paulo Francis dando voltas no túmulo à simples menção da sigla PPC.

Se os cães de guarda da PPC conseguissem espalhar seus equívocos pelo planeta, a civilização regrediria três séculos. Mas não vão conseguir, porque, no fundo, só conseguem arrancar risos entediados da platéia.

O Sopa de Tamanco não quer perder tempo com estes apóstolos de uma idéia só. Em respeito aos preceitos da Mentalidade Politicamente Correta, o Sopa de Tamanco promete que não os chamará de idiotas.

Igualmente, o Sopa de se absterá de dizer que menininho de sandália cantando Asa Branca é insuportável ; tema da vitória de Ayrton Senna em ritmo fúnebre deveria ser proibido por lei; presidente da República fazendo apologia da ignorância é um escárnio ; jornalista que deixa suas crenças políticas contaminarem seus critérios editoriais deveria sair da redação algemado ; deficiente físico tentando praticar esportes que exigem habilidades acima de suas forças é constrangedor ; defensores de boas causas ecológicas são soporíferos ; mulher com peito turbinado de silicone é um atestado ambulante da ausência de neurônios ; celebridade que posa no quarto de dormir para revista que será folheada na sala de espera de dentista provoca náuseas.

A lista daria para encher tomos e tomos.

Mas o Sopa se absterá.

Calma, estômago velho de guerra. Pare de se revirar. Você não viu nada ainda.

Posted by geneton at 09:21 PM

junho 23, 2007

A BALADA DO BEATLE QUE FICOU SOZINHO : O DEPOIMENTO COMPLETO DE PETE BEST

Ver seção Entrevistas:

http://www.geneton.com.br/archives/000223.html

PETE BEST.jpg

Posted by geneton2 at 08:38 PM

PETE BEST, EX-BEATLE

JOHN, PAUL, GEORGE E......PETE! ( OU : A BALADA DO BEATLE QUE FICOU SOZINHO)

O ex-Beatle conta a história sincera do maior grupo de rock surgido até hoje! – Uma aventura com John Lennon na Alemanha: roubar a carteira de um fã endinheirado! – O trauma da saída dos Beatles – “Paul McCartney era mesquinho!” – As críticas a Ringo Starr – O que os Beatles esperavam no início da carreira – Quais eram os gurus do grupo – Os bastidores de dois anos de convivência diária com John, Paul McCartney e George Harrison - Os olhos cheios de lágrimas na hora de falar de Lennon.

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5beatles.jpg


O trabalho de repórter deu, a este beatlemaníaco, a chance de passar uma manhã ouvindo as confidências do Beatle que perdeu o bonde : Pete Best, o baterista que, depois de dois anos tocando com o grupo, foi substituído por Ringo Starr. Já foi chamado de "o homem mais azarado do mundo". Deixou de ganhar rios de dinheiro. Enquanto os outros conquistavam fama planetária, Pete Best ligava o gás do banheiro para tentar o suicídio. Os meus arquivos implacáveis guardam a transcrição completa da entrevista ( eu teria uma nova chance de entrevistar Pete Best anos depois, em Liverpool, em plene Mathew Street, a rua onde existia o Cavern Club. Ao final desta segunda entrevista, Pete Best nos convidou - a mim e ao cinegrafista Paulo Pimentel - para beber uma cerveja num pub que fica em frente ao Cavern. Lá pelas tantas, confessou: assim que recebeu a notícia de que saíra dos Beatles, foi a este mesmíssimo pub para afogar as mágoas bebendo. Pensei: quem diria que um dia um ex-beatle estaria afogando suas mágoas, diante de um copo de cerveja, justamente comigo.....). A entrevista que se segue foi gravada em Londres.
Como diria a revista Veja, "eis o relato" deste repórter:

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Há quem diga? Não, nem pensar: não há quem diga que aquele hóspede que, agora, toma café com leite instalado solitariamente num imenso salão do andar térreo do Royal Horse Gardens Hotel, em Whitehall Court, Londres, tenha sido co-fundador e instrumentista do maior e melhor grupo de rock surgido até hoje no Planeta Terra. Sozinho, absorvido pela leitura de um jornal, ele nem nota o trânsito de executivos norte-americanos do outro lado do salão, em direção à entrada principal do hotel.

Não fosse pelo traje informal, bem que Pete Best (Madras, Índia, 24/11/1941) poderia ser confundido com um destes executivos por um transeunte desavisado. A confusão, a bem da verdade, não seria tão absurda: o ex-Beatle Pete Best passa os dias sentado atrás de um birô, no Old Swan Job Center, uma agência de empregos estatal de Liverpool, onde trabalha desde 1969.

O caminho entre o posto de baterista dos Beatles - ao lado de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison - e os afazeres de funcionário público não foi nada fácil. Deixou traumas profundos - incluída, aí, uma tentativa de suicidio. Ninguém é de ferro. Quem passaria sem marcas pela experiência de deixar de ser um Beatle do dia para a noite para se tornar um funcionário público?

A saída de Pete Best dos Beatles, depois de dois anos no grupo, é um ponto obs- curo na história dos 'quatro rapazes de Liverpool '. Ninguém sabe ao certo, até hoje, por que Pete Best foi trocado por Ringo Starr. Os jornais da época documentam que Pete Best era um ídolo entre os fãs dos Beatles. Quando a notícia de que ele tinha saldo do grupo começou a circular, os beatlemaníacos promoveram uma manifestação pública, com faixas e cartazes, para que ele fosse reintegrado ao grupo.

Tempos depois, John Lennon se penitenciou, numa entrevista, sobre a maneira como Pete Best foi afastado do grupo: nem ele nem Paul McCartney nem George Hamson se deram ao trabalho de comunicar a Best que, a partir dali, o posto de baterista ficaria com Ringo Starr. Quem deu a notícia foi o empresário dos Beatles, Brian Epstein. Pete Best foi para um pub, beber. Depois, seguiu para casa. Passou a noite chorando.

Mas ninguém é um ex-Beatle impunemente. Pete Best é citado com destaque na copiosa bibliografia sobre os Beatles publicada na Inglaterra. Quando viajou de Liverpool a Londres, para lançar um livro em que dá um depoimento pessoal sobre os primeiros anos dos Beatles, ganhou largos espaços no "The Times", foi convidado para aparecer na BBC em rede nacional e não é só: a CBS norte-americana entrou no páreo para disputar, na agenda de Best, um horário para uma entrevista. O mito dos Beatles subsiste bravamente ao tempo.

O ex-beatle vai começar a falar. Parece surpreso por ter sido procurado, pela primeira vez, por um repórter brasileiro. E entusiasmado: a entrevista termina se estendendo por toda a manhã, para desespero da assessora de imprensa que o acompanhava, preocupada com a falta de tempo para o cumprimento de outros compromissos.

Best faz confidências, descreve até episódios pouco recomendáveis que viveu com um velho companheiro de aventuras chamado John Winston Lennon. Quando termina a entrevista, Best sai do hotel e caminha, anônimo, pela Whitehall Court. Reclama do frio. "O último inverno foi terrível". Quer saber quem é quem na música brasileira. Brinca: "Lá deve ter estrelas de rock. Talvez não tão boas quanto as de Liverpool ... ".

Best nasceu na Índia por puro acaso. O pai, um ex-promotor de lutas de boxe em Liverpool, tinha sido enviado à India pelo governo inglês, durante a Segunda Guerra Mundial, para trabalhar como preparador físico do exército. Lá, casou com uma indiana que prestava serviços à Cruz Vermelha Internacional. Teve dois filhos com ela. Assim que a guerra acabou, voltou para Liverpool. Anos depois, na casa da família Best, a de número oito numa rua chamada Hayman's Green, começava a funcionar um clube de jovens batizado de 'Casbah' e freqüentado por dezenas de adolescentes deslumbrados com guitarras elétricas.

Pete Best e a mãe - que até hoje mora na casa - se encarregaram de organizar o clube. Entre os freqüentadores, três rapazes, chamados John Lennon, Paul McCartney e George Harrison.

A casa da família Best ia entrar para a história do rock. Pete também. O endereço faz parte do périplo cumprido até hoje por beatlemaníacos de todas as nacionalidades que visitam Liverpool à procura de estilhaços do sonho. Mas ali, no começo da década de sessenta, a aventura estava apenas começando.

Quem convidou você a entrar para os Beatles?

Pete Best: "Era agosto de 1960. Nesta época, tinha surgido o convite para a viagem dos Beatles à Alemanha, a primeira excursão do grupo a Hamburgo. Eles não tinham baterista. Paul McCartney sabia que eu tocava e me disse, ao telefone: "Pete, surgiu uma chance de ir para Hamburgo. Você gostaria de vir conosco? Precisamos de um baterista!". Eu disse: "Sim!". Paul me convidou para que eu fizesse uma apresentação para eles. Durou cerca de quinze minutos. Toquei seis músicas. Em vinte minutos, eu era um Beatle. Dois dias depois, nós todos estávamos em Hamburgo, no Indra Club".

Você já conhecia Paul McCartney antes do telefonema?

Pete Best: "Sim. Paul, John, George e Sutcliff - que morreu tragicamente - tinham formado os Quarrymen, um grupo que tocava num clube criado por minha mãe, chamado Casbah. Eu já os conhecia daí. E, já antes, eles tinham nos ajudado a decorar o clube. Dois anos antes de ser um Beatle, eu já os conhecia".

Quando foi convidado, qual foi a primeira reação: você pensou duas vezes ou aceitou logo?

Pete Best: "Era o caso de dizer sim de primeira. Meus pais estavam lá. Havia o convite para ir à Alemanha. Eles me disseram: "Então, ok! Se você quer, vá em frente!". Tudo foi rápido. Paul já tinha me dito: "Vamos à Alemanha! Antes, faça urna apresentação pra gente". Tudo foi resolvido assim, em questão de minutos".

Você esperava, naquele momento, que a música dos Beatles fosse significar algo de especial?

Pete Best: "Não sei o que esperávamos naquele tempo. Quanto mais ficávamos juntos, mais tínhamos um sentimento unânime: uma autoconfiança maior do que qualquer outra coisa. Nós iríamos chegar a algum ponto! Bem que poderia ser o primeiro lugar, pelo menos uma vez, nas paradas inglesas. Mas eu não achava que eles próprios, neste tempo, imaginassem que os Beatles pudessem se transformar em superstars - apesar de outras pessoas demonstrarem crença no grupo".

Que tipo de comentário John Lennon fazia sobre música, com você, neste período? Ele era bem informado?

Pete Best: "Todo o grupo tinha o que poderíamos chamar de habilidade musical. John estava interessado em nomes como Chuck Berry e Gene Vincent. Éramos bons guitarristas e bons vocalistas. Todo o grupo era. John - eu sentia, pelo meu gosto pessoal - era o líder do grupo".

Elvis Presley significava o quê, para você?
Pete Best: "Era o ídolo de cada rapaz na Inglaterra. Nós, os Beatles, gostávamos de Gene Vincent, Chuck Berry, Elvis Presley, Little Richard, Jerry Lee Lewis, todos. Nós estávamos construindo o nosso estilo tocando a música que eles faziam. Era o padrão americano - no qual nós nos baseávamos".

Os outros Beatles tiveram ciúme de você? Os jornais de Liverpool davam sempre um destaque especial a você e falavam do grande sucesso que Pete Best fazia com as fãs...

Pete Best: "Quando saí dos Beatles, chegavam para mim e diziam: "Você não notou, mas havia tantos fãs seguindo você que o ciúme já começava a aparecer!". Era o que me diziam".

Você, afinal, era tão popular assim em Liverpool?

Pete Best: "Era algo de que eu tinha consciência na época. Houve uma grande manifestação em frente ao Cavern Club, com cartazes como "Pete Forever!", "Ringo Never!" e coisas assim. E aí eu percebi que sim, eu estava me tornando popular".

Você chegou a ter problemas pessoais com os outros Beatles?

Pete Best: "Não. De maneira nenhuma! Não chegamos nunca a brigar. O que tínhamos eram as discussões normais entre músicos sobre as músicas que estávamos tocando. Não chegamos a ter brigas sérias. Neste tempo, nós estávamos ganhando força. Eu pensava: "Somos quatro rapazes. Somos os Beatles. Continuaremos a ser".

Você culpa alguém por ter saído dos Beatles depois de dois anos tocando no grupo?

Pete Best: "Quando viam o que tinha acontecido,as pessoas me diziam: "O mais passível de culpa pode ser Paul McCartney". Não me interprete mal! (neste ponto, Pete Best assume um ar sério, faz questão de pronunciar cada palavra pausadamente). Não se pode virar para ele e dizer: "Foi ele!". Isto pode ser totalmente falso, porque, na verdade, eu não saberia dizer. Mas me diziam: "Paul é o que teria mais tendência de ficar
enciumado se alguém dentro do grupo se tornasse mais popular".

Você esperava o enorme sucesso dos Eeatles ou tudo foi uma surpresa para você, quando aconteceu?

Pete Best: "Eu imaginava que poderíamos estourar nas paradas inglesas. Era a maior façanha que poderíamos cometer, pelo que eu sentia. Mas atingir o primeiro lugar na Europa logo depois da minha saída, conquistar a América e o mundo com a Beatlemania, tudo me surpreendeu. Os Beatles tinham o talento e também a promoção da mídia por trás. Tudo estava a favor do grupo. Era, portanto, uma bola de neve. E a partir daí
criou-se a Beatlemania".

"Quando viam o que tinha acontecido, as pessoas me diziam:
"A culpa pode ser de Paul McCartney"

Depois de deixar os Beatles, você teve algum tipo de contato com John Lennon, Paul McCartney e George Harrison?

Pete Best: "O engraçado é que não. Uma vez, quando a BBC fez um filme no Cavern Club, logo depois de eu ter saído do grupo, encontrei com eles. Houve outras ocasiões, como no Majestic BalI Room. Eu já fazia parte de um grupo chamado All Stars. Era o segundo melhor grupo de Liverpool, depois dos Beatles. Nós nos apresentamos, todos, num só show de entrega de prêmios. Quando o All Stars estava saindo do palco, os Beatles estavam chegando. Nós nos cruzamos, a poucos centímetros. Não se trocou nenhuma palavra.

Desde o dia 15 de agosto de 1962, não tive contatos com John, Paul e George. Jamais recebi uma explicação satisfatória sobre o episódio da minha saída. Durante os dois anos como um dos Beatles, jamais ouvi de qualquer um deles qualquer restrição à minha atuação como músico. Aliás, bem na época da minha saída, logo antes, nós estávamos todos bebendo juntos e parecíamos os melhores amigos do mundo. Depois, ao ler o livro de Brian Epstein, o empresário que levou os Beatles para o sucesso, vi que ele escreveu o seguinte: eu era "bastante convencional para ser um Beatle e, embora bastante amigo de John, não o era de George e Paul"... Já outras pessoas estavam convencidas de que eu fui retirado do grupo porque me recusei a mudar o corte do meu cabelo...
Quando nos cruzamos, na saída do palco, o que houve foi um silêncio de pedra. Não os vi mais".

Você é parte da história dos Beatles. Quando o grupo se separou, que reação você teve?

Pete Best: "Isto me surpreendeu. Naquele estágio, com toda a organização montada, o grupo continuava indo em frente. A popularidade estava lá! Eles tinham deixado de fazer excursões, estavam só gravando discos. Mas é certo que terminariam voltando para a estrada. Com a Beatlemania e os fãs, eles poderiam ir adiante ainda".

Mas, quando ouviu a notícia de que os Beatles tinham se separado, o que foi exa- tamente que você sentiu? Você tinha passado por uma situação parecida...

Pete Best: "Fiquei sem entender. Tive uma surpresa. Por que eles tinham se separado? Tudo caminhava a favor dos Beatles. Eles ainda eram os Beatles, os fãs todos estavam em volta. Mas só depois é que entendi que havia problemas entre eles. As discussões que já existiam internamente eram suprimidas pela publicidade - que apresentava os Beatles como os quatro rapazes que circulavam pelo mundo..."

Que lembrança mais forte você guarda da longa convivência com John Lennon?

Pete Best: "As mais fortes são do tempo em que fazíamos farra juntos, principalmente quando estávamos na Alemanha, na primeira viagem que fizemos para lá. Nós tínhamos pouco dinheiro (ri). Numa noite, um marinheiro alemão foi ver uma apresentação nossa. Pagou uma rodada de cerveja para nós, os Beatles, como os alemães gostam de fazer. Nós vimos, então, o tamanho da carteira do tal marinheiro: era gorda e recheada. John pensou: "Vamos roubá-Ia!". Nós discutimos a idéia. Para mim e para John, parecia boa. Paul e George não pareciam tão convencidos, porque achavam perigoso. Eram quatro da manhã quando o marinheiro de carteira cheia resolveu ir embora. Nós quatro - eu, John, Paul e George - saímos no frio de novembro para segui-Io. Quando nos aproximamos de um estacionamento deserto, o local ideal para o "golpe", Paul e George resolveram ir embora. George dizia que estava cansado. Eu e John avançamos em cima do marinheiro - que não estava tão bêbado quanto esperávamos... Tanto é que ele reagiu imediatamente. John deu um soco no marinheiro - que ficou de joelhos. Eu tentei agarrar a carteira cheia de dinheiro. Mas o marinheiro, um homem de experiência, logo ficou de pé de novo. Deu um empurrão em Lennon - que foi parar longe. E meteu a mão por trás da calça. Nós vimos que ele ia apanhar um revólver. Nós ainda avançamos de novo sobre ele com as cabeças protegidas. Ele começou a disparar. Tudo que a gente queria naquele momento era ir embora dali correndo. Por sorte nossa, o revólver apenas expelia gás. Era um tipo de revólver que se usava em Hamburgo para defesa pessoal. Nunca esqueci esta história, porque é um bom exemplo de como éramos impossíveis e selvagens o bastante para fazer uma coisa desta. Há um Iado humorado nesta história. E também um lado amargo - que mostra o quanto desesperados nós éramos. Quando olho para trás, vejo: Lennon era o rapaz! Que loucura!.

Sempre houve dois lados de John Lennon. Um era o lado público, o John sarcástico, abusivo. Mas há um outro lado - que conheci bem quando convivemos. Era um lado mais amável. Nós nos sentávamos e discutíamos sobre namoradas e o que sentiríamos quando estivéssemos longe delas... um lado que não se nota tanto. Nós nos sentávamos num clube. Se tínhamos acabado um namoro, ficávamos diante de uma cerveja e começávamos a ter uma conversa sentimental. É algo que precisamos conhecer, para descobrir o outro lado de John".

Numa entrevista ao jornal "The Times", você disse que John Lennon era o Beatle de quem você mais gostava, quando estava no grupo. Por quê?

Pete Best: "Eu gostei de John já na primeira vez que me encontrei com ele, quando ele veio para o clube de minha mãe. Ele era o cômico do grupo, fazia qualquer coisa por uma boa gargalhada. Nós nos demos tão bem que, quando voltamos a Liverpool depois das apresentações em Hamburgo, ele ficou lá em casa. Nós pegávamos drinques e Coca-Cola no clube - que era bem embaixo da minha casa, em Liverpool. Nós nos sentávamos, ouvíamos as músicas juntos, saíamos para tomar alguma coisa. Era uma relação de camaradagem. É por esta razão que eu gostava mais de John".

Você era melhor músico que os outros, naquele tempo?

Pete Best: "Sim. Podiam dizer: eles não me quiseram mais porque eu não tocava tão bem bateria. Ora, ainda hoje, admito que eu era melhor do que Ringo Starr. O que acontece é que, quando ocorreu a minha saída, eu não tinha poder de interferência. Tudo foi preparado já antes de Ringo vir. Algumas semanas depois, cheguei a uma situação em que Brian chegou para mim e disse: "Você não é bom baterista para o grupo. Quero chamá-Io para ficar comigo. Você já não irá tocar com os Beatles, mas há um outro grupo em Liverpool chamado Mersey Beats" - que, na época, eram os Beatles mais novos. Brian me chamou para que eu me juntasse ao grupo para transformá-lo num segundo Beatles. Ora, pode-se dizer: eu não era bom suficientemente para tocar com os Beatles. Eles me tiraram. Mas, por outro lado, eu era bom suficientemente para que Brian me chamasse para tentar fazer de um outro grupo os novos Beatles...

Dizem também que foi George Martin, o produtor dos discos dos Beatles, que teria dito que eu não era bom o bastante. Eu falei com George Martin. Ele achou, na gravação de estúdio, que aquele som não estava no ponto para os Beatles, naquele tempo. Mas ele não quis dizer que eu deveria sair do grupo. O que acontece no estúdio de gravação não faz qualquer diferença com o que acontece no palco. O argumento não cola. Não há elementos que justifiquem".

“John Lennon pensou:
“Vamos roubá-Ia!”. Para mim e para ele, a idéia parecia boa”

Você tinha mais experiência que Ringo Starr?

Pete Best: “Eu não diria que era "maior experiência". Eu desenvolvi, na Alemanha, um estilo marcante. Quem ouvia dizia: "Bem, este é o som de Mersey Beats". Algo como Beatlemania. Quando voltamos a Liverpool, os bateristas começaram a copiar este estilo - ninguém tinha tocado antes. Os grupos de Liverpool estavam tentando copiar o som e o estilo dos Beatles. Ringo vinha tocando há mais tempo como baterista. Eu tinha menos tempo. Mas era o melhor”.

Você viveu e trabalhou com o grupo que mudou a cabeça de milhões de jovens em todo o mundo. Você não vê o fato de ter sido um BeatIe como um privilégio, apesar dos problemas?

Pete Best: “Ah, sim! O que aconteceu ninguém pode levar de minhas lembranças e de minha vida. Eu fui, por dois anos, um Beatle. É parte de minha herança, parte de minha história. É algo que posso olhar, sem me importar com o que aconteceu depois, principalmente o meu afastamento. Aqueles dois anos me trazem orgulho. Sou um privilegiado, por ser parte da lembrança e da história dos Beatles”.

A imagem pública de John Lennon era a de um rebelde, talvez o único entre os BeatIes. Pelo que você conhece, é verdade?

Pete Best: “John era, provavelmente, o mais rebelde, simplesmente porque não ligava para nada. Não queria nem saber. Fazia as coisas por divertimento, por raiva, porque estava bêbado (ri) ou porque era corajoso. Mas, provavelmente, por causa da ansiedade que adquiriu. A imagem pública, naquele tempo, tendia a fazer de John mais rebelde que o resto do grupo. Ele explodia e saía da linha de vez em quando, para se fixar como o mais rebelde. Mas se levarmos tudo em consideração, havia quatro rebeldes entre os BeatIes... As ansiedades e as inquietações do comportamento de John é que o
retrataram como o mais rebelde.

O que acontece é que, ainda no tempo da escola, ele era do tipo que, se quisesse fazer alguma coisa, fazia. Depois, se ele queria ofender a platéia, ofendia e não precisava ter alguma razão para agir assim. Se alguém - até um fã - mencionava alguma coisa, ele, literalmente, perdia a paciência. E explodia com o fã. Cinco minutos depois, esquecia tudo e estava rindo e brincando com o fã. O pobre fã devia estar pensando: "Meu Deus, o que foi que eu fiz para ele de repente explodir em cima de mim?". John mudava de temperamento todo o tempo".

Todo mundo conhece os Beatles como figuras públicas. Mas eu gostaria que você fizesse um retrato falado de cada um, a partir das experiências pessoais e de convivência íntima que você teve com o grupo. Primeiro, Paul McCartney.

Pete Best: "Paul, ali, era, provavelmente, o mais ligado em "relações públicas". Era o mediador, o que queria ser o centro das atenções. Fazia qualquer coisa - como dar declarações bobas e falar com fãs. Queria estar na linha. Comparado com o resto de nós... Nós, os outros, dizíamos: se os fãs vierem, a gente conversa. Se não, tudo bem. Mas Paul fazia tudo para tentar impressionar os fãs. Já neste tempo, acredite ou não, ele era extremamente mesquinho com o dinheiro. Era o único que pensava duas vezes antes de gastar dinheiro com alguma coisa. Mas você não pode dizer que ele era culpado só porque tomava cuidado com seus vinténs... Paul, na verdade, tentava impressionar as pessoas todo o tempo, se comparado com o resto de nós".

George Harrison...

Pete Best: "Ele vivia mergulhado na música, sempre preocupado em melhorar o estilo e procurar equipamentos melhores. E melhorou. Em dois anos, conseguiu uma guitarra que ninguém tinha em Liverpool. É uma pessoa assim. Era
verdadeiramente interessado em melhorar a música e o equipamento, mas não chegou a contribuir para o grupo naquele tempo. George simplesmente acompanhava os outros. Quando dizíamos "não vamos fazer assim, mas de outro jeito" ele aceitava ...

Ringo Starr...

Pete Best: "Eu conhecia Ringo anos antes de ele se tornar um Beatle. Eu o conheci quando eu era um Beatle. Eu prestei atenção em Ringo, simplesmente porque foi ele quem me substituiu. Nós saíamos juntos em Liverpool. Ele era um sujeito que se guardava para se mostrar no palco. Mas era meio deixado de lado. Ringo pensava um bocado sobre a maneira de tocar. Não era o melhor de Liverpool. Era apenas um dos rapazes ali...".

Ringo, na verdade, ficou sempre com a imagem de o menos brilhante entre os Beatles. Você diria que é verdade?

Pete Best: "Ringo, naquele tempo, era o que ficava lá atrás. Não podia compor músicas, não tinha estilo de cantar. Nós tínhamos Lennon e McCartney - que podiam compor as músicas. George Harrison também podia. Os três tinham coisas em comum, um completava o outro. Se os Beatles tivessem continuado, Ringo estaria com eles. Mas só quando a separação ocorreu ele entendeu de repente que deveria fazer alguma coisa diferente. Por esta razão, começou a fazer filmes e a produzir seus próprios discos. Viu que a onda dos Beatles tinha acabado. Era hora de viver dos próprios recursos. É um
homem rico. Você não pode tirar a riqueza de Ringo, mas, em matéria de talento e de negócios, estava um pouco atrás dos outros. Porque os outros comandavam o grupo. Ringo estava atrás".

Brian Epstein criou os Beatles? Os que dizem que ele criou o fenômeno estão errados? Você, como ex-Beatle da época de Brian Epstein, pode dizer que tipo de influência ele teve?

Pete Best: "Como empresário, ele tinha grandes planos. Começou aos poucos mudando a imagem dos Beatles. Fez o grupo vestir paletó e tudo o mais. Tentou um bom contrato numa boa gravadora inglesa. Depois, fomos rejeitados pela DECA e pela maioria das grandes companhias. De repente, surgiu o convite da EMI, a gravadora que, afinal, lançou as músicas dos Beatles. Ali, ele era interessado. Queria progredir financeira e
profissionalmente. Acreditou nos Beatles porque gostava da música que tocávamos e das pessoas. Não é só: acreditava na música.

Tanto quanto se sabe, nós éramos melhores que Elvis Presley. É o que de fato aconteceu: os Beatles terminaram iguais ou até maiores do que tudo que EIvis Presley jamais foi. Mas quem ouvia Brian dizer que os Beatles iam ser maiores que Presley dizia: "Vamos! Que história é essa?" (faz ar de desânimo, ao imitar um interlocutor imaginário). Nesta época, saí dos Beatles e passei a ter um ponto de vista exterior sobre o percurso dos Beatles.

Dizer que Brian Epstein não era tão bom em show business porque provavelmente fez os Beatles perderem milhões de pounds é difícil. Brian pode ter sido ingênuo. As outras pessoas puderam explorar os Beatles, propor negócios ruins. Você não sabe, porque não participa dessa organização. Mas, com todo o dinheiro que possa ter perdido, Brian fez de cada um multimilionário. Ninguém pode negar! Fez daqueles caras os Beatles! Criou a Beatlemania. Não importa como ele fez, se através de promoções, trapaças no show business ou contatos. O fato é que usou todos os recursos disponíveis naquele tempo. Deve ter um crédito por tudo. Pode-se dizer que, em matéria de show business, ele não foi tão bom. Mas conseguiu - de repente - se transformar de simples dono de uma loja de discos em responsável pelos Beatles. Comandou uma organização. Brian não criou só os Beatles. Criou o sucesso dos Beatles e de outros grupos. Alguma coisa havia ali. Era um bom empresário".

“John Lennon explodia e saía da linha de vez em quando,
para se fixar como rebelde"

George Martin, o produtor dos Beatles envolvido no episódio em que você deixou o grupo...

Pete Best: "Só o encontrei uma vez, quando fomos tocar no estúdio para ele. Quando o vi depois, já não estava com os Beatles. Suas técnicas de gravação captavam a música dos Beatles bastante bem. Se você ouvir as primeiras gravações, você dirá: "Eis uma gravação é inteiramente diferente de qualquer outra coisa!". Basta comparar com os outros. Era algo original. Se foi a sabedoria de George Martin ou o brilho dos Beatles, não sei. George Martin era talentoso. Não me interprete mal. Já antes, ele tinha gravado sucessos. Mas os Beatles não faziam o tipo de música que ele tinha gravado antes. E ele entendeu - de repente - que o tipo de música dos Beatles que ele gravou como produtor era só dos Beatles - ninguém mais. George Martin progrediu a partir daí. Enquanto os Beatles avançavam, ele progredia também, através de mudanças na música. E aí veio o psicodelismo, o Magical Mistery Tour e outras coisas. George Martin até pensou em se aposentar cedo, ir morar numa ilha e só gravar quando quisesse. É sinal de sucesso".

Stuart Sutcliff, morto aos vinte e um anos de um tumor no cérebro, depois de ter tocado nos Beatles, foi a primeira tragédia na vida do grupo. Que tipo de artista era ele?

Pete Best: "Tinha talento como artista. Como pessoa, era o que se poderia chamar de um sujeito legal. Baixinho. Tinha consciência de suas limitações. E mantinha uma relação de mútua estima com o grupo. Ele se preocupava com tudo quando os Beatles atuavam; envolvia- se totalmente. Stu se apaixonou à primeira vista por uma moça chamada Astrud. A decisão de deixar o grupo deve ter custado a ele noites e noites de sono. Ele gostava de ser parte dos Beatles. Mas sempre se dividiu entre ser um artista plástico e um músico. Logo antes de sair dos Beatles, entendeu que o verdadeiro talento que ele tinha era como artista plástico. Um incrível artista. Tudo que posso dizer é que foi uma grande tragédia".

Como é que você se sente, hoje, ajudando os desempregados de Liverpool numa agência de emprego?

Pete Best: "É um outro desafio. Não é fácil encontrar trabalho para os desempregados em Liverpool. A taxa de desemprego é alta. Meu trabalho é como qualquer outro: passa por sucessos e fracassos. Eu, felizmente, posso me colocar numa posição melhor do que a maioria das pessoas, porque estive no fundo do poço, tanto quanto alguém possa estar, envolvido numa depressão total (N: em 1965, em situação financeira difícil e deprimido pela frustração de ter perdido a chance de repartir o sucesso mundial dos Beatles, Pete Best veda todas as entradas de ar do banheiro da casa onde morava em Liverpool, abre o gás e deita-se no chão, à espera da morte. Um irmão sente o cheiro do gás do lado de fora, consegue entrar no banheiro e salvar a vida de Pete Best, a esta altura já
inconsciente. Ele guardou em segredo durante vinte anos a história da tentativa de suicídio).

Embora não diga aos desempregados que me procuram o que é que eu acho, eu sei o que eles sentem. Tenho simpatia por eles. Eu estive lá, afinal! Tento ajudar os outros tanto quanto posso. É o meu trabalho. Tenho prazer - e paciência - quando tento
ajudá-Ios".

Você vive satisfeito com este trabalho?

Pete Best: "Quando deixei o show business, mudei totalmente o meu estilo de vida. Vou ser honesto: agora, posso dormir bem. Eu estive no show business desde que deixei a escola. Naquele tempo, quando resolvi dar uma parada, eu já tinha minha mulher e uma criança para tomar conta. Depois de pensar um bocado, finalmente decidi que era tempo de me dedicar a elas - e não apenas a mim. O que houve, então, foi uma ruptura completa. Desde 1968, estou inteiramente afastado do show business. Fiz apenas uma ou outra aparição em shows de TV. Meu estilo de vida, como disse a você, mudou.

Passei a viver o que podemos chamar de uma vida normal: ir ao trabalho, voltar, sair para tomar uma cerveja, coisas assim. Mas, lá no fundo, ainda existe aquela sensação: "Meu Deus, se eu tivesse continuado como um Beatle!". Hoje, penso que não faz diferença. Quando chego em casa, encontro as contas a pagar que o correio deixou embaixo da porta. Vem alguém e me diz: "pague!". E vou vivendo, afinal, todas essas coisas normais que todos vivem. Trabalho duro. Tenho orgulho de tudo. Com a vida que levo, desenvolvi o meu estilo. Faço o que quero, quando quero. Não fico remoendo o passado. É bom".

Que sensação ficou até hoje do dia em que você recebeu a notícia de que já não era um Beatle? Deve ter sido um dia doloroso...

Pete Best: "Não chegou a ser exatamente, porque foi como se uma bomba caísse na minha cabeça, assim, de repente. Só no dia seguinte é que tudo começou a entrar na minha cabeça, quando entendi que tinha acabado. Já era. É aí que a dor começa. Não se tem como voltar. Aquele terminou se transformando no dia mais doloroso, no sentido de que mudou a minha vida. Tive outros tempos duros, desde então. Mas aquele foi o dia que mudou todo o curso de minha vida. Eu me lembro bem. Era agosto de mil novecentos e sessenta e dois".

"Eu estive no fundo do poço, tanto quanto é possível estar.
A depressão era total"


O "Times" recontou a história há pouco tempo. Você foi a um pub beber umas cervejas...

Pete Best: "Umas? Muitas! (ri). Eu tinha acabado de falar com Brian Epstein, às 10 e meia da manhã. Um amigo estava me esperando do lado de fora. Recebi a notícia de que tinha saído dos Beatles e fui para fora. Meu amigo notou que algo diferente tinha acontecido comigo. Perguntou: "o que foi que houve?". Eu disse: "Eu saí! Não sou mais um Beatle!". Ele respondeu: "Meu Deus! Não pode ser verdade! O que é que aconteceu?" Eu disse: "Tudo o que quero fazer é tomar uma cerveja, afundar a minha cabeça!".

Fomos para um pub. Derrubamos um bocado de cerveja. Chegou um momento em que eu disse: "Ok! Vamos para casa!". Quando fui para casa é que senti a pancada. E comecei a chorar. Chorei a noite inteira. É o tipo do choque de efeito
retardado. Bem aí é que entendi: tudo tinha acabado" .

Por que Brian Epstein foi quem deu a você a notícia, e não um dos outros Beatles?

Pete Best: "Não sei. Anos depois, John Lennon disse: "Se todos nós estivéssemos presentes - eu, Paul e George - para dizer a Pete, haveria uma briga!". Se ele estava se referindo a socos na cara ou qualquer coisa assim, não sei. John sentia que Brian era o empresário. Cabia a ele a responsabilidade de fazer as coisas. "Então, nós passamos para você. Faça o trabalho sujo, Brian!". É assim que parece".

Você viu o filme da BBC sobre a vida dos Beatles? Nesta passagem, Lennon diz a Brian Epstein que você não era tão profissional quanto Ringo Starr. Aconteceu assim?

Pete Best: "Talvez os autores dos scripts tenham entrevistado as pessoas e reconstituído assim o curso do diálogo. Se Ringo era mais profissional ou se eu não era tão profissional quanto Ringo... tudo é uma alusão ao fato de eu estar no show business e à nossa habilidade como bateristas. O que aconteceu - do ponto de vista do filme realizado pela BBC e exibido na televisão - é que John instigava as decisões do grupo. O que de fato aconteceu no diálogo entre ele e Brian é difícil dizer".

Você entendeu o que aconteceu depois com John Lennon?

Pete Best: "Guardo o dia em que John Lennon foi baleado como uma lembrança viva. Eu estava no primeiro andar da minha casa. Fazia a barba para ir trabalhar. Minha mulher, Cat, estava no térreo. Eram seis e meia da manhã. Ela me disse, lá de baixo: "Pete! John está morto!". Aquilo não me alterou, porque não imaginava jamais que fosse John Lennon. Pensei que era um dos amigos ou alguém do trabalho. Perguntei: "John quem?". E ela: "John! John! Com quem você tocava nos Beatles!". Eu disse: "Estão brincando no rádio! É algum jogo sujo, alguma brincadeira estúpida que estão fazendo. Isto acontece no rádio!". Ela: "Não! A cada dois minutos, há novas notícias! Venha logo ouvir! Os rádios só falam em John Lennon!" (nesta altura, os olhos de Pete Best estão marejados).

Corri para ouvir. Cada estação de rádio trazia flashs e flashs e repetia a notícia, sempre com maiores informações. De repente, entendi, naquela manhã de dezembro: não era alguma publicidade suja. Aquele cara tinha sido brutalmente atingido! Houve quem me dissesse, depois: "Que diferença faz para você? Só porque você estava com os Beatles há tanto tempo?". Mas aquilo me chocou, porque trouxe de volta todas as boas lembranças de tudo que vivi com John, o bom tempo que vivemos juntos. Para ser honesto, eu conheci John inteiramente, não só no tempo em que vivi com ele nos Beatles. Nós fomos íntimos por quatro ou cinco anos. Um bom tempo que vivemos reunidos. A morte de John me arrasou. Não havia necessidade de algo como aquilo. Não havia razão alguma. Ele tinha voltado para o show business. Talvez o lugar seja de John e não de Paul McCartney. E ele estava lá de novo".

Você imagina por que Mark Chapmann matou John Lennon?

Pete Best: "Era alguém que tinha uma obsessão, uma fixação na morte de Lennon. Bang! Não posso acrescentar nada. Razão? Não há. Lennon fazia suas próprias coisas: tinha deixado o show business, vivia uma vida reclusa em Nova lorque. Não afetava ninguém! O que ele estava tentando era viver com uma identidade própria. Depois de alguns anos de reclusão ele decide voltar e bang! (imita o estampido de um revólver). Lennon agora não está mais lá. É algo completamente estúpido".


Há dezenas de diferentes versões sobre a convivência de Pete Best com os Beatles. Qual será a versão definitiva?

Pete Best: "Ao longo dos anos, a história desta época não tem sido contada em detalhes. Não se cobriu esta parte dos episódios entre o grupo no início da carreira: as tragédias, as escapadas e até as brincadeiras e tudo o mais. O livro que escrevi com Patrick Doncaster, "Beatle! The Pete Best Story", dá a atmosfera em Liverpool na época. E mostra Como éramos, antes de formarmos os Beatles. O livro mostra os primeiros sucessos e o que aconteceu comigo. A maior parte do que conto é sobre o início dos Beatles. É o que interessa mais (N: O livro "Beatle! The Pete Best Story" foi publicado pela Plexus Publishing Limited)

Por que você não tenta uma carreira solo, ainda hoje?

Pete Best: "Porque eu ficaria um pouco assustado! Gosto do meu trabalho atual. Preciso levar em conta uma coisa: hoje, consegui "segurança". É um mundo engraçado. Por que é que eu tenho de encarar as coisas dessa maneira? É preciso ter sorte para que dê certo voltar ao show business depois de não fazer nada por vinte anos. Eu já considerei o que uma eventual volta poderia ser. Mas não sei. Eu passaria noites mal dormidas...".


Como um ex-Beatle, o que é que você diz da música pop de hoje? É melhor do que a dos anos sessenta?

Pete Best: "O engraçado é que, vinte e tantos anos depois, os grupos de Liverpool ainda se dão bem. "Frank Goes To Hollywood" faz grande sucesso nos Estados Unidos e chega aos primeiros lugares. Durante os anos, a preferência musical tende a mudar. Hoje, há de novo uma maior influência americana nas paradas, como já não acontecia há alguns anos.

Naquela época, era fácil os grupos ingleses irem para lá, mas era difícil os americanos chegarem à Inglaterra. Eu acompanho a cena pop. A competição, hoje, é maior, assim como a diversificação da música pop. Há bandas, sintetizadores, músicas folclóricas. A variedade é grande. Ainda assim, o panorama é bom".

Mas o tempo dos grandes nomes, como os Beatles e Elvis Presley, parece que acabou...

Pete Best: "Você pode dizer o contrário. Tenho 43 anos e minha herança e minha juventude vêm dos anos sessenta, não importa o que tenha acontecido nem que aquela já não seja a música que se tem hoje. Quando ouço alguma coisa dos anos cinqüenta ou sessenta, eu me acendo (dança com as mãos, animado). Há quem diga que nunca haverá outro Elvis Presley, outros Beatles. Antes, falavam assim de Frank Sinatra. Mas pode haver um outro grupo que, vindo de algum lugar, conquiste o mundo de repente. Se será com a intensidade dos Beatles, não sei. Mas você não pode escrever que ninguém chegará lá. Porque pode haver algo como os Beatles, deixando tudo para trás e
explodindo como mega-star".

Você ainda ouve as canções dos Beatles?

Pete Best: "A gente ouve no rádio, de qualquer maneira. Tenho, na minha coleção dos Beatles, quase tudo o que o grupo fez. Tenho, principalmente, os discos em que toco com eles, as gravações todas feitas em Hamburgo (ri) e tudo o mais. Tenho cinco ou seis discos, "Love Me Do", coisas assim, o tipo de música que me lembra o som que nós fazíamos juntos, nos Beatles, não o que eles fizeram quando evoluíram para o psicodelismo, as drogas, a influência dos gurus".

Você ouve as canções de Julian Lennon?

Pete Best: "Não ouvi o primeiro disco todo, mas faixas. Quando ouvi pela primeira vez, disse: parece com o que John fazia! Minha primeira reação foi esta. Julian se baseou no estilo do pai. O tom nasal e as coisas que ele faz quando fora do palco. Acredito em Julian. Você não pode dizer que ele apenas pegou carona no pai. Não é o caso de dizer: morreu John, chegou Julian! Entre uma coisa e outra, há um espaço de quatro anos. Mas Julian veio com um som que lembra John. Boa sorte para ele!".

Uma velha questão: Beatles ou Rolling Stones? Com quem você fica?

Pete Best: "Do meu ponto de vista, Beatles. Não estou dizendo simplesmente porque toquei com os Beatles. Mas o que ocorreu é que são dois grupos que surgiram simultaneamente, com dois estilos diferentes. Há os fanáticos pelos Beatles e os fanáticos pelos Rolling Stones. Ao longo de todos estes anos, os Rolling Stones vêm fazendo, ainda, excursões e shows ao vivo. O público ainda pode vê- los. Se os Beatles ainda estivessem juntos, poderiam estar fazendo todas essas coisas? Não sei. Gosto dos Rolling Stones, mas, entre os dois, eu escolheria os Beatles!".

O livro “Beatles-In Their Own Words” traz a seguinte declaração de Ringo: “Quando Pete Best ficava doente, eu assumia o posto”. É verdade?

Pete Best: "Fica até parecendo que eu era urna pessoa doente... Ringo, quando fala assim, provavelmente se baseia em dois ou três casos, no máximo. Urna vez foi numa apresentação no Cavern Club. A minha ausência não chegou a causar grandes inconvenientes para eles, porque havia outros bateristas. Outra, quando eu tinha negócios para resolver e não podia deixar de fazê-lo. Não pude tocar. Quem tocou foi Ringo, no meu lugar. E, finalmente, houve um dia em que eu estava lmpossibilitado de atuar, porque tinha pegado uma gripe forte. Não se pode dizer que eu vivia doente. Pelo contrário. Eu era saudável. É errado dizer coisas assim. Quando não pude tocar e fui substituído por ele não foi porque estivesse doente, mas porque tinha outros compromissos e ele, pelo contrário, estava disponível naquele dia".

Uma das histórias sobre John Lennon é que ele vivia à procura de uma mãe - e afinal encontrou uma na figura de Yoko Ono. Naquela época, em Liverpool, você notava esse lado da personalidade de Lennon?

Pete Best: "Nós tínhamos consciência. Mas John jamais falava sobre a mãe e a maneira trágica como ela foi morta, num acidente. Ele vivia com uma tia, chamada Mimi. Mas se dizia que a raiva, a amargura e a dor que ele suprimia e guardava dentro de si o levaram a fazer coisas loucas. John não falava sobre essas coisas, porque não queria. Guardava tudo consigo. A agressividade, a ansiedade e a dor teriam de ser externadas de alguma maneira. É esta a razão de alguns atos cometidos por John".

Yoko, pelo que você sabe, teve influência sobre a dissolução dos Beatles?

Pete Best: "John tendia a se apaixonar demais pelas mulheres. Yoko parecia significar estabilidade para ele. Era um outro mundo para John. Eles se trancaram e encontraram a felicidade. Qual terá sido a influência de Yoko para fazer John retornar? Quem sabe? Mas há ali, em Yoko, alguma coisa que John encontrou e o influenciou".

Como você se imagina quando tiver 64 anos?

Pete Best (rindo da referência à música "When I'm Sixty Four"): "Quando eu tiver sessenta e quatro anos? Terei algumas rugas a mais. Bem mais cabelos brancos. Só espero ser como sou hoje. E espero não mudar tão rapidamente. Aos sessenta e quatro anos, tentarei ser exatamente como sou, neste caminho...".


Você não pensa, afinal, em sair de Liverpool?

Pete Best: “A maior parte da minha vida eu passei em Liverpool. Meus melhores amigos estão em Liverpool agora. Minha vida, minha casa. Para ser honesto, não se criou nunca uma situação em que eu pudesse dizer: "Ok, deixe-me sair de Liverpool e ir para um outro lugar...". Se tivesse acontecido, não sei se teria me mudado, se teria ficado ou o que poderia ser. É algo que eu teria de decidir pessoalmente, se tivesse acontecido".

Que tipo de informação você tem sobre o Brasil?

Pete Best: "A única informação que tenho sobre a música brasileira é a que ouço no rádio e vejo na TV. São cenas de festivais em que aparecem, também, tangos e rumbas. Há um grupo - parece que do Brasil - formado por rapazes que, quando completam 16 ou 17 anos, são substituídos..."

O grupo não é do Brasil. É da Costa Rica. São os "Menudos" ...

Pete Best: "Perdoe-me. A música brasileira produz ritmos fortes, Nós conhecíamos, antes da Beatlemania. Há uma grande influência da América Latina. Os ritmos que estão por cima hoje se originam daí. Músicas que só agora aparecem sofreram influência destes ritmos - e os autores capitalizaram a influência. Gosto da música latino-americana e brasileira. Gostaria de ouvi-Ia".

Você esperou vinte e dois anos, até resolver dar um depoimento pessoal, em forma de livro e entrevistas como esta, sobre o início dos Beatles. Por que tanto tempo?

Pete Best: "Quando eu estava no show business, depois de ter saído dos Beatles, todo mundo pedia que eu escrevesse um livro. Eu dizia que não. Ainda não era tempo. Não queria ser visto como se quisesse me aproveitar da onda dos Beatles. Eu tinha meu orgulho, afinal. Então, me diziam: "Ok, mas ganhe dinheiro com essa coisa toda!", Eu insistia que não. Era preciso esperar. O momento certo de dizer tudo chegaria. O que aconteceu é que, durante todos estes anos, ao ler os livros e biografias escritas sobre os Beatles, notei que aquele período específico da nossa vida, logo antes de os Beatles se tornarem superstars, não foi coberto suficientemente com todos os detalhes reais.
Então, decidi: é hora de contar. Se não, jamais a história seria contada tal como ocorreu".


Há versões erradas sobre o início dos Beatles, em Liverpool?

Pete Best: "Há. As versões que existem dão um par de informações sobre o que aconteceu. "Foram para a Alemanha, voltaram e - de repente - se tornaram mega-stars. A Beatlemania surgiu assim!" - é o que escrevem. Não foi assim que aconteceu. É esta a razão por que decidi escrever um livro e falar agora. Só assim as pessoas teriam informação sobre as tragédias, as paixões, as brincadeiras e o tipo de vida que levávamos.
Fui, por dois anos, um Beatle. E o que digo: o que aconteceu ninguém pode levar de minhas lembranças.
Tenho minha casa em West Derby, Liverpool, não longe de onde minha mãe mora e da sede do já extinto Casbah Club. Por anos e anos, minhas duas filhas - Beba e Bonita -, hoje adolescentes, ficaram sem saber que eu tinha sido um Beatle. Isto não significaria nada para elas, de qualquer maneira. Somente depois, na escola, quando todos os colegas começaram a perguntar se era verdade que o pai das duas se chamava Pete Best, o ex-Beatle, é que eu contei tudo a elas.

Todas as lembranças dos bons e maus momentos são parte da minha vida. Vão ser sempre. Admiradores dos Beatles e membros de fãs-clubes espalhados por todas as partes do mundo, mas particularmente da América do Norte e do Japão, ainda hoje chegam a Liverpool e vão até Hayman's Green ver o que era o Casbah Club.
Disse em meu livro : de vez em quando, vou até lá e deixo as lembranças tomarem conta de mim. Parece que o tempo volta atrás. Ouço os sons e as risadas dos velhos tempos. Parece que vejo de novo o rosto dos músicos. Sozinho no Casbah, toco na bateria do meu irmão mais novo, Roag. Fecho os olhos para sentir toda a atmosfera de antes. Quando estou ali, no meu posto de baterista, no Casbah hoje deserto, a música e as lembranças se perdem numa nuvem. Para dizer a verdade, não seria difícil remodelar o Casbah e restaurar a antiga glória. Mas jamais tudo seria como antes".

(Entrevista gravada em Londres, 08/03/1985)

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Posted by geneton at 08:06 PM

junho 18, 2007

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Posted by geneton2 at 02:22 PM

AULA DE POESIA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO ATACA A EMOÇÃO FÁCIL

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Posted by geneton2 at 01:49 PM

junho 17, 2007

NOVIDADE NA ÁREA! : www.sopadetamanco.blogspot.com

Posted by geneton2 at 11:30 AM

junho 12, 2007

SEMIÓLOGOS CHATÍSSIMOS, CORREI !

Os apocalípticos diziam que a palavra escrita estava morrendo, porque a pobre espécie humana estaria vivendo na civilização da imagem.

Mas aí surgiu a internet.

A boa notícia: nunca se escreveu tanto em tantos blogs, sites, portais, comunidades, chats.

A má notícia: nunca se escreveu tanta tolice, tanto lixo, tanta idiotice, tanta estupidez.

Semiólogos chatíssimos, correi! Há um assunto à espera de uma tese: valeu a pena a ressureição da escrita?

Posted by geneton at 12:15 PM

O ESPÍRITO DA COISA

O sr.Nicomar Lael, recém-contratado por esta Sopa, talvez não tenha entendido o espírito da coisa.

Ao invés de distribuir tamancadas a torto e a direito no cocuruto dos impostores que povoam as telas de TV, as páginas de jornais e os sulcos dos CDs produzidos nesta república, o sr. Nicomar Lael prefere arrotar erudição divagando sobre a performance de remotos cantores de ópera.

"Não passará!".

O que é que ele quer, com esta exibição de suposto refinamento? Insinuar que seria capaz de dirigir um espetáculo de ópera ?

Imagino o que ele pretende: conseguir pela Lei Rouanet uma verba que deveria ser usada para financiar um espetáculo de ópera mas que, na verdade, terminaria financiando a compra de um apartamento na praia

(Por uma questão de justiça, diga-se que,para não despertar suspeitas sobre o desvio, o sr. Nicomar usaria as sobras da compra do apartamento para montar um patético espetáculo de ópera em que ele próprio,para economizar verba de produção,desfilaria durante quatro horas ininterruptas pelo palco do Municipal berrando feito louco de hospício frases ininteligíveis em aramaico).

A única crítica possível de um espetáculo de ópera é a seguinte: "Quando acabar o espetáculo, me acordem, porque não posso perder o último metrô".

Desvios de conduta como o exibido pelo recém-contratado explicam a crise sem precendentes que se abate sobre o Sopa de Tamanco.

Mas providências enérgicas serão tomadas.

Posted by geneton at 12:13 PM

FIM DE POLÊMICA COM O TAMANQUEIRO ESTREANTE

O sr. Nicomar Lael, novo e desastrado colaborador desta Sopa, padece do mal que acomete nove e meio entre dez supostos intelectuais brasilíndios: a incapacidade de receber críticas, por mais justas que sejam.

Como se fosse o cachorro de Pavlov, o sr. Nicomar saliva - mas de raiva - a cada vez que alguém faz o mínimo reparo ao que ele escreveu.

Decerto, ele não entendeu que não há nomes intocáveis na redação do Sopa de Tamanco, ao contrário do que acontece em outros covis habitados por jornalistas.

Demonstrações gratuitas de erudição,como a que ele tentou fazer ao apreciar o desempenho de um cantor de ópera, soam descabidas neste espaço - que deve ser usado para tarefas mais nobres e honestas, como, por exemplo, chamar Xuxa de débil mental; Renan Calheiros de pulha; Lucélia Santos de sub-atriz; José Wilker de hiper-canastrão e o próprio Nicomar Leal de molusco de sexualidade indefinida.

Como se dizia no século passado, tenho dito.

Posted by geneton at 12:12 PM

A ESSÊNCIA DO ÂMAGO DO ÍNTIMO DO JORNALISMO

Jornalismo é literatura feita por e para analfabetos.

Posted by geneton at 12:12 PM

EM NOME DA VERDADE, DENUNCIO O MIOLO MOLE

O acadêmico Merchior uma vez acusou o cantante Caetano Veloso de ser um sub-intelectual de miolo mole.

É uma lástima que ele, o acadêmico, tenha morrido, porque, se vivo fosse e se frequentasse blogs estúpidos como este, certamente se animaria a usar o apodo para definir, com toda propriedade, o sr. Nicomar Lael.

Por quê ? Por um motivo: assim como acontece com todos os moluscos anencéfalos dados a chiliques, o sr. Nicomar prefere recorrer a ofensas de natureza sexual para desqualificar aqueles que, como o abaixo assinado, ousam criticá-lo.

É um recurso baixo.

Ora, o sr. Nicomar publicou uma resenha estapafúrdia sobre um cantor de ópera porque queria,sim, parecer culto, esperto e cosmopolitano.

Debalde.

Não pareceu. Conseguiu apenas demonstrar aos frequentadores do Sopa de Tamanco o que sempre foi: um pavão multicolorido que passa a vida saracoteando para iludir incautos.

"Não passará!".

Não aqui.

Quanto às insinuações sexuais, declaro que venho de uma região macha.

O pernambucano mais afrescalhado que já existiu atendia pelo nome de Virgulino Ferreira, o Lampião.

Por aí dá para imaginar o resto.

Em minha terra, criança aprende a escovar dente assim: esfregando a ponta de uma faca peixeira no dente-de-leite.

Aos três anos de idade, já mamam em onça.

É assim que aprendem a exercer a pernambucância pelo resto da vida.

Posted by geneton at 12:11 PM

junho 11, 2007

SID WATKINS, O MÉDICO DA FÓRMULA-UM

SID WATKINS, O MÉDICO QUE SOCORREU AYRTON SENNA NA PISTA, DESCREVE OS MINUTOS FINAIS DO CAMPEÃO : "SENNA DEU UM GRANDE RESPIRO. ESTAVA VIVO QUANDO FOI LEVADO PARA O HOSPITAL. O CORAÇÃO ESTAVA BATENDO"


sennaacidente.jpg


LONDRES - Quando uma nova temporada de Formula-Um começa, como agora,um personagem importante entra nas pistas, mas dificilmente chama a atençãoo do publico,porque nao vive frequentando as telas de TV ou as paginas dos jornais,ao contrario do que acontece com as superestrelas do espetaculo - os corredores.Quase nunca reconhecido,este personagem e’ uma peca fundamental na imensa engrenagem que move o automobilismo : chama-se Sid Watkins. E’ o diretor-medico da Formula-Um - o homem encarregado da dificil missao de dar os primeiros socorros aos corredores,quando o pior acontece. Neurocirurgiao ingles, Watkins e’ testemunha ocular de momentos dolorosos na historia da Formua-Um,como a morte de Ayrton Senna.

A historia completa do mais dramatico fim-de-semana da Formula-Um - em maio de 1994,no Grande Premio de San Marino,no circuito de Imola,na Italia - ainda nao pode ser contada : presidente da Comissao Medica e do Comite de Especialistas em Seguranca da Federacao Internacional de Automobilismo(FIA),Watkins diz,nesta entrevista,que houve, antes da corrida,discussoes que ate' hoje permanecem ''confidenciais''.

Autor do livro ''Life at The Limit'' - publicado no Brasil pela editora Edipromo,com o titulo de ''Vida nos Limites'' - o presidente da Comissao Medica revela que fez um apelo para que Senna nao disputasse a corrida em Imola.Um dia antes de morrer em Imola,Senna chorou no ombro do medico quando soube da morte do piloto austriaco Roland Ratzenberger.

O neurocirurgiao confessa que,no momento em que socorria Senna na pista,teve a ''estranha sensacao'' de que a alma do piloto ''tinha partido''.

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ANTES DA CORRIDA FATAL,
UMA CONVERSA SECRETA

O senhor diz que,durante o briefing dos pilotos antes da corrida em Imola,em l994,discutiram-se assuntos que devem permanecer ''confidenciais''.Que assuntos sao estes,exatamente ?

Watkins : ''As discussoes normalmente sao sobre o numero de voltas,problemas especificos na largada e problemas na primeira curva - o que pode variar de acordo com a pista.Temos discussoes tambem sobre a velocidade,assim como o que acontecera' numa primeira e numa segunda largada,se for o caso..Assim,os pilotos saberao o que podera' acontecer naquele circuito''.

Mas houve discussoes confidenciais antes da corrida em Imola ?

Watkins : ''Houve,sim''.

Havia algo de especial em relacao ao circuito de Imola naquele dia,em relacao 'a seguranca ?

Watkins : ''Nossa preocupacao em relacao ao circuito de Imola nao era maior do que antes.Posso dizer que nao houve discussoes previas sobre a curva de Tamburello,por exemplo.O que havia,antes do inicio da corrida,era uma tristeza que se abateu sobre todos depois da morte de Ratzenberger''.

O senhor nao quer dizer que tipo de discussoes confidenciais houve antes da corrida de Imola no dia 1 de maio de l994 ?

Watkins : ''Nao''.


O CONSELHO QUE O MEDICO DEU,MAS SENNA
NAO OUVIU : E’ HORA DE DEIXAR AS PISTAS


O que e' que o senhor disse a Ayrton Senna antes da c corrida de Imola,em meio ao luto provocado pela morte do piloto austriaco Roland Ratzenberger ?

Watkins : ''Ayrton Senna chorou no meu ombro. Eu disse a Senna,no sabado,que seria uma boa ideia se ele nao corresse em Imola no dia seguinte,primeiro de maio.Numa conversa a sos com Senna,eu disse que ele ja' tinha feito o suficiente.Ja' era tres vezes campeao do mundo.Eu disse a ele : ''Nos sabemos que voce e' o piloto mais rapido e mais corajoso.Voce ja' nao precisa provar nada ao mundo.Se voce deixar a Formula-Um agora,eu tambem deixarei.Nos dois,entao,poderemos ir pescar''.

Por que o senhor pediu a Senna que ele nao disputasse a corrida ?

Watkins : ''Porque Senna estava bastante chocado com o acidente fatal ocorrido em Imola no sabado''.

Que resposta ele deu ao senhor na hora ?

Watkins : ''Quando a gente fazia uma pergunta dificil a Senna,ele nao respondia imediatamente.Nao importava que pergunta era.Se a pergunta exigisse uma avaliacao antes da resposta,Senna demorava-se pensando. Antes de Imola,quando eu pedi que ele nao corresse,Senna olhou por cima do meu ombro,como se estivesse mirando o infinito.Nao estava olhando para mim nem para nada.Entao,ele se virou para mim e disse : ''Sid,ha' coisas sobre as quais nos nao temos escolha.Eu tenho de ir adiante''.

‘’TIVE A SENSACAO DE QUE A ALMA
DE SENNA TINHA IDO EMBORA’’


Num texto que escreveu sobre o acidente com Senna,o senhor diz que e' ''totalmente agnostico'' ,mas teve a impressao de que ''a alma de Senna o deixou ali,no chao da pista de Imola,no momento em que o senhor o socorria.O que e' que deu ao senhor a impressao de que Senna perdeu a alma na pista,em Imola ? Senna estava clinicamente morto ali ?

Watkins : ''Senna deu um grande suspiro.Seu rosto estava tranquilo.Parecia em repouso.Tive,ali,no momento em que o socorria,a estranha sensacao de que a alma de Senna tinha ido embora.Nao posso explicar o que senti''..

Ainda ha' controversias no Brasil sobre onde Senna morreu : se na pista ou se no hospital,para onde foi levado de helicoptero.Onde ele morreu ?

Watkins : ''Ayrton Senna morreu no hospital''.

O senhor tem certeza ?

Watkins : ''Totalmente .Senna ainda estava vivo quando foi levado para o hospital.Quero dizer : clinicamente vivo.O coracao estava batendo.Senna ainda respirava. A minha curiosa reacao foi que me fez sentir que ele nao poderia sobreviver.Mas eu nao suportava ficar ali por um tempo maior.Porque eu sabia que ele ia estar clinicamente morto em pouco tempo''.

AYRTON SENNA IGUALARIA O RECORDE
HISTORICO DO ARGENTINO FANGIO


A ''estranha sensacao'' que o senhor teve foi de natureza pessoal - e nao medica ?

Watkins : ''Exatamente.A explicacao correta e' esta.O que senti foi algo pessoal ,sobre o qual eu nunca tinha pensado antes.Talvez por que nos fossemos amigos que se amavam''.


O senhor sabia desde o inicio que ele iria morrer de qualquer maneira em consequencia do acidente ?

Watkins : ''Sim''.


Alain Prost e Juan Manoel Fangio ganharam um numero maior de titulos que Ayrton Senna.Que posicao Senna ocupa na historia da Formula-Um ?

Watkins :''Tanto Fangio quanto Prost tiveram um periodo maior de atuacao.Porque nao morreram correndo.Se Senna tivesse sobrevivido,ainda disputaria pelo menos outras quatro temporadas de Formula-Um.Quando ele morreu,tinha apenas 34 anos.Eu diria que ele levantaria dois outros titulos mundiais.Igualaria,entao,o recorde batido por Fangio - que foi cinco vezes campeao''.


Quando vai a uma corrida ,hoje,para trabalhar,o senhor ainda teme intimamente pela vida dos pilotos ?

Watkins(Depois que algum silencio): ''Sim.

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(1997)

Posted by geneton at 11:19 PM

O DIA EM QUE ENCAREI OS OLHOS VERDES DA CIGANA. OU: A ARTE DE IMPRESSIONAR OS CÉTICOS

Céticos, tremei. Quem se recusa terminantemente a dar um mínimo crédito de confiança a ciganas ,videntes,adivinhos e outros habitantes da Terra da Premonição deve ficar longe da fita de vídeo que uma cigana chamada Esmeralda gravou,em dezembro de 1993,para o Fantástico. Porque esta fita pode ter o poder de abrir uma fresta no paredão de descrença que os céticos profissionais erguem em torno de si.

Revejo a fita. Depois de tirar uma carta de um baralho na tentativa de prever o que o ano de 1994 reservava para o campeão Ayrton Senna,a cigana diz,textualmente,à repórter Fátima Bernardes : "Ayrton Senna poderá sofrer um acidente fatal numa curva". Menos de cinco meses depois, no dia primeiro de maio de 1994, as palavras "curva" e "acidente fatal" cruzaram o caminho de Ayrton Senna.

Durante a gravação da entrevista para o Fantástico, houve uma cena que não foi captada pela câmera . Com uma dramaticidade realçada por olhos esverdeados que fitam o fundo da retina do interlocutor, a cigana Esmeralda diz a Fátima Bernardes que ela não deve se preocupar com o problema de saúde que tinha sido descoberto na véspera. "Fiquei imóvel",diz,hoje,a apresentadora do Jornal Nacional. "Porque eu realmente tinha ido ao médico".

A cigana cravou pelo menos dois outros acertos. Disse,em dezembro de 1993, que a economia sofreria uma reviravolta em julho de 1994."A moeda terá um novo nome". Assim foi feito. Os bruxos da economia deram à luz o Plano Real. Por fim,os cartas disseram à cigana que o próximo ocupante do Palácio do Planalto seria um nativo do signo de gêmeos. Em outubro de 1994,as urnas deram a Presidência das República a um nativo de gêmeos - o professor Fernando Henrique Cardoso,nascido em dezoito de junho de 1931. Quando a cigana fez a previsão,ele ainda não era candidato. Acredite quem quiser.

A que estranhos poderes esta cigana recorre afinal para dar a impressão de que é capaz de enxergar, num amontoado de cartas de baralho, os desígnios do futuro ?

Uma década depois , desembarco no endereço da cigana numa manhã chuvosa de sábado. A consulta tinha sido marcada com a devida antecdência,por telefone. Nuvens cinzentas pairam, assustadoras, sobre Copacabana. O céu ameaça desabar a qualquer momento. O cenário parece perfeito para que uma cigana entre em cena. Que ela venha, com seus santos protetores, cartas de baralho, metais misteriosos e olhares esverdeados. Eu estarei pronto a espargir, sobre este exército de entidades sem rosto, todas as poções do meu ceticismo militante.

O porteiro avisa à moradora do apartamento 101 deste prédio de esquina na rua Raul Pompéia que o visitante, esperado para a consulta das 13 horas, chegou. Um homem de cabelos grisalhos, presos num extemporâneo rabo-de-cavalo, abre a porta dos fundos do apartamento. A cigana aguarda pelo visitante instalada, como uma soberana, num inacreditável quarto de empregada, decorado por imagens de entidades ciganas,medalhas, moedas espalhadas pelo chão, imagens de bruxas,gnomos,baralhos,véus,espelhos,dados,pedras,metais. A anárquica congregação de signos impressiona os olhos recém-chegados do cliente. As moedas, diz ela, são símbolo da fertilidade. As estatuetas representam os Ciganos da Lua Cheia. Um inventário do que significa cada uma daquelas bugingangas místicas seria suficiente para encher um tomo.

Apelo ao mutismo para tentar descobrir que estranho jogo é este que a cigana joga para impressionar o freguês. Se eu começar a falar pelos cotovelos, estarei dando à cigana as informações de que ela necessita para, espertamente, formular suas previsões. Baixa em mim o espírito daquele ministro do governo militar que respondia as inquisições dos curiosos com uma frase-padrão :"Nada a declarar". Declaro o mínimo possível à cigana. Faço mistério. Quero ver se ela é capaz de decifrar esta esfinge precária , com a ajuda daquele exército de entidades.

O jogo começa em desvantagem para o consulente. A paisagem do quarto de empregada - transformado em altar de supostas divindades ciganas - dá a Esmeralda uma posição de indiscutível superioridade sobre quem a visita. Ali, literalmente,quem dá as cartas é ela. Ao visitante, cabe o papel de ouvinte. Quem bate às portas deste oráculo cigano na esperança de enxergar as feições do futuro sente-se como um paciente que espera ouvir do médico um prognóstico qualquer - de preferência,otimista. O médico é o senhor da situação. A cigana também.

A cena lembra um conto que Jorge Luis Borges nunca escreveu. Uma porta maciça, no fundo do Salão do Tempo Presente, protege um mistério inalcançável : o futuro. É impossível enxergá-lo . Quando finalmente o viajante consegue abrir a porta maciça , o feitiço se quebra : o futuro deixa de ser futuro. Desvendado aos olhos do curioso, o futuro transforma-se em tempo presente. Mas o mistério se renova com a aparição de outra porta maciça, ao fundo do salão recém-conquistado : lá estará,novamente invisível, o futuro que a todos fascina - arredio , inalcançável , fora do campo de nossa visão. Ciganas como Esmeralda se dizem capazes de enxergar através da porta indevassável, esta barreira que mantém o futuro protegido contra as investidas de nossa pobre curiosidade . Deve ser esta a principal razão que leva ciganas a atrair a curiosidade de crentes ou céticos envergonhados que, como eu, pagam setenta reais pelo direito de entrar neste quarto de empregada de um prédio em Copacabana.

Eis agora a Cigana Esmeralda tentando exercer diante de mim seus pretensos poderes divinatórios. Ciganos,videntes e outros supostos donos de bolas de cristal têm também o dom de provocar medo em almas impressionáveis. Porque há,na vida ou nos palcos,qualquer coisa de trágico e intrigante em previsões. É assustadora a voz da vidente que, misturada à multidão, grita para César "cuidado com os idos de março !" na cena shakesperiana. César manda chamar o autor do aviso : "O que me dizes agora ? Repete !". O vidente : "Cuidado com os Idos de março". Mas César não dá ouvidos ao vidente :"É um sonhador.Pode esquecer.Passemos". Quando os idos de março chegam, César é apunhalado no senado romano.

As sobrancelhas da cigana que agora olha nos meus olhos foram desenhadas a lápis. Os cabelos com certeza passaram por um tintura. A cigana começa a manusear as cartas, avisa que meus dias de sorte são terça e sexta à tarde (depois,numa busca na Internet,vejo que outro horóscopo cigano indica o dia segunda-feira como dia de sorte.Em qual das duas entidades acredito : Internet ou cigana ? ).

De vez em quando,em meio a caudalosos informes sobre saúde ("boa"),vida ("longa"),pedra de nascença ( "turmalina verde"), elementos da natureza ("ouro branco" e prata velha"), número de sorte
("trinta e três"), cristal de sorte ("branco transparente"), cor ("verde"),recomendações ("atenção a modificações na pele"),a cigana faz perguntas repentinas : "Quem é Sérgio ?","quem é José ? ","quem é Paulo ou Paulinho ? ". Respondo que não me lembro de alguém com estes nomes. A cigana informa : um "Sérgio" vai me ajudar; um "José","já morto", intercede por mim; um "Paulo" pode trazer problemas se eu assinar documentos com ele.

Começo a avaliar a possível tática da cigana. Faz perguntas genéricas envolvendo nomes ou situações razoavelmente comuns. Quem não conhece um "Sérgio",um "José" ou um "Paulinho" ? A certa altura, ela pergunta,depois de bater no meu joelho direito : "O que é que você sente aí ? ". Respondo que nada. Mas poderia perfeitamente ter um problema qualquer no joelho, o que com certeza alargaria a lista dos possíveis acertos da cigana. Se houver pelo menos uma coincidência entre as suposições da cigana e a vida do visitante , o caminho estará aberto para que o ouvinte saia dali impressionado.

Adiante,a cigana lê nas cartas que tive "preocupação com aquisição de residência",mas os problemas ligados à documentação "estão se desembaraçando" - o que é verdade. "Você pode fazer uma viagem ao exterior de repente de uma hora para outra".

Depois de descobrir que tenho três filhos , insiste : "você teve preocupação com um dos filhos este ano" . Rebato : "Qual é o pai que não tem preocupação com filhos ? ". A cigana não entrega os pontos : "Mas você teve uma preocupação especial com um dos três,sim.Vejo o sol clareando a situação".

O segundo conselho é precedido por uma pergunta : "De quem é esse carro prateado ? ". A cigana simula ver alguma coisa nas cartas. Respondo que nunca tive carro dessa cor. Mas ela insiste :"Cuidado quando entrar num carro prateado,porque ele pode estar com problema nos freios. O carro pode ser de um amigo .Você pode se dar mal. Você tem de ficar atento .Cuidado com velocidade,cuidado com acidente".

Que fique registrado : se um dia o autor dessas mal traçadas linhas se meter em trapalhadas num carro prateado,a cigana Esmeralda merecerá ser entronizada no altar as pitonisas.

Quando a consulta se aproxima do fim,Esmeralda me informa que uma entidade cigana,um certo Vladimir,me dá proteção. A cigana sugere que eu um dia faça uma oferenda a Vladimir : podem ser frutas, ofertadas ao "povo cigano" ao pé de uma árvore. Esmeralda me oferece dois conselhos. Primeiro : "Não use perfume de Alfazema ! Dá azar. É das múmias !". Uriel,"anjo da Noite", igualmente me protege - é o que dizem as cartas de Esmeralda.

O Grande Jogo das Coincidências vai se armando neste quarto de empregada travestido de oráculo. Um pai que tivesse tido uma "preocupação especial" com um dos filhos ficaria,com certeza,impressionado com a insistência da cigana sobre esta particularidade. Quem acredita em "avisos" pensaria dez vezes antes de embarcar num carro prateado depois de ouvir a recomendação. Embalada pelas cartas, Esmeralda ainda me daria dois conselhos que são um primor de incorreção política : "Afaste-se de quem é homossexual.Cuidado ao lidar com judeus".

Não revelo minha condição de repórter. Deixo sem resposta a pergunta que a cigana me faz com insistência : "Por que você tem dúvida quanto à profissão"? Entre uma e outra informação, tento perguntar à cigana por que ela se acredita capaz de enxergar o que ninguém enxerga :

- É espiritual. Não sei explicar. É uma mediunidade espontânea dada por Ele (refere-se a Deus,aponta para uma imagem na parede). Faço este trabalho deste os oito anos de idade. Já estou com sessenta e nove.

Esmeralda sabe capitalizar o dom de impressionar os outros.Trabalha "de segunda a segunda",como diz,orgulhosa.Em dias de movimento intenso, pode dar "de doze a treze" consultas.Façam-se as contas. Treze vezes setenta igual a 910 reais - um faturamento diário nada desprezível. Se apenas três almas penadas batessem por dia à porta da cigana em busca de um facho de luz sobre os mistérios do futuro, ela teria um faturamento mensal de 6.300 reais.Caixinha,obrigado.

Peço para tirar fotos da cigana,com a desculpa de que uma de minhas filhas gostaria de ver em que ambiente ela trabalha. Em nenhum momento digo que aquela consulta eventualmente poderia servir de matéria-prima para um reportagem que penso em publicar numa revista que nem existe ainda. Quando me preparo para me despedir,a cigana me diz,textualmente :

- Se sair em alguma revista, mande para mim...

Fico pensando : quem sabe,ela notou em minha curiosidade um ou outro traço típico de jornalista. Observadora atentíssima - porque precisa pescar nas palavras do visitante informações que lhe permitam arquitetar previsões - ela pode perfeitamente ter imaginado minha intenção. Arriscou,então,um palpite nada absurdo.

De qualquer forma, quer tenha sido mero palpite ou não, devo dizer,em nome da veracidade factual, que a cigana se referiu a uma revista que era segredo. As palavras de Esmeralda ficaram registradas no meu gravador.

Piso novamente no terreno movediço das suposições,divagações,coincidências. Quem entra neste quarto de empregada em Copacabana ingressa num jogo de espelhos sem fim. Uma suposição leva a outra, numa teia que não se acaba nunca.

Deixo o oráculo depois de uma consulta que durou exatos cinqüenta minutos. Chove lá fora. Um carro prateado (são tantos,na cidade) sai do túnel que dá para a rua Raul Pompéia. Tenho a sensação de que paguei setenta reais para adquirir uma dúvida ("cuidado com um carro prateado") e um alívio ("a carta forte do sol saiu várias vezes. Sol não pode ser ruim,porque clareia").

O Santo Protetor da Racionalidade me sopra, enquanto tento driblar as poças d'água na calçada neste começo de tarde de sábado : é ridículo acreditar que generalidades pronunciadas por uma mulher que se diz dona de poderes premonitórios. Somente quem já chega ao Oráculo de Esmeralda preparado para acreditar em platitudes sobre o futuro é capaz de dar credibilidade às palavras da cigana.

Penso que a chave do enigma é este : só acredita em previsões assim quem chega ali preparado para acreditar. Caso contrário, é possível derrubar uma por uma todas as sentenças da cigana . Prever que um piloto de Fórmula-Um vai sofrer um "acidente fatal" numa curva não chega a ser uma demonstração genial de clarividência. Igualmente, dizer a um pai que ele teve "preocupação especial" com um dos filhos é apostar no mais do que possível . Por fim,quem nunca se preocupou com documentos de imóveis ?

Noventa e nove por cento das evidências dizem que tudo não passa de um esperto jogo de adivinhações. A própria cigana é mestra em jogar na loteria das coincidências : quer saber - por exemplo - se o visitante tem um problema no joelho. Se ele tiver, vai acreditar que ela é dotada de poderes no mínimo estranhos. É tudo ilusão. O iludido é o visitante. A ilusionista é a cigana.

Mas devo confessar : é impossível não se deixar fascinar por este Grande Jogo das Coincidências, tão habilmente manipulado por uma observadora arguta,cercada de ícones por todos os lados,num minúsculo quarto de empregada. O ambiente, algo lúgubre,é propício a divagações de todo tipo. Um encontro como este deixa sempre uma fagulha de dúvida no peito de quem descrê.

Caio por cinco minutos na tentação de perguntar a mim mesmo, enquanto espero pela condução (felizmente, não há táxis prateados no Rio de Janeiro) : e se o José de que ela fala for o meu avô, já morto ? Como é que ela adivinhou que fiz a consulta pensando em escrever para a revista ? O que é que levou a cigana a dizer que eu tinha tido um problema com documentação de uma "residência" ? Rendo-me por quinze minutos à certeza de que não custa nada dar uma chance ao imponderável, ao invisível, ao insondável,nem que seja por mera curiosidade jornalística. É um gesto inofensivo.

A tempestade que estava se armando no céu de Copacabana finalmente se dissipa. Pego um táxi - amarelo,é claro. Nada de carro prateado. A rua Raul Pompéia fica para trás. A cigana permenece no quarto- quem sabe,à espera do próximo visitante.

Vou adiante : intimamente, decreto a suspensão temporária de meu ceticismo. Resolvo dar um crédito de confiança às entidades que - jura a cigana - me oferecem proteção : então, bem-vindo,Cigano Vladimir. Bem-vindo, Uriel,Anjo da Noite. Obrigado, pedra de Turmalina, ouro branco, prata velha. A partir desta tarde de sábado, conto com vocês.

Mas, lá no deserto de minha descrença, onde não há espaço para pedras de turmalina nem anjos da noite nem carros prateados, eu sei : é tudo um mero jogo de espelhos, um labirinto de adivinhações.

Copacabana me engana.

Quatro meses depois da consulta,bato de novo à porta da cigana. Quero saber se é verdadeira a informação de que ela teria morrido dias antes do Natal. O porteiro confirma : "É verdade.Dona Esmeralda morreu de repente. Fecharam o apartamento.Desligaram o telefone.Acabou o movimento".

Posted by geneton at 09:15 PM

junho 10, 2007

NOVIDADES! DEPOIMENTO COMPLETO DE FRANCISCO JULIÃO SOBRE 1964, GUEVARA, ARRAES E JANGO. E TAMBÉM: A ÍNTEGRA DE UMA GRAVAÇÃO COM O POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO. UM ENCONTRO COM O MÉDICO QUE SOCORREU AYRTON SENNA NA PISTA! E UMA CONSULTA COM UMA CIGANA!

Ver nas seções Entrevistas e Reportagens
PS : JÁ ABERTO À "VISITAÇÃO PÚBLICA" O BLOG COLETIVO
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SOPA DE TAMANCO : É PAU PURO!

Posted by geneton2 at 09:57 AM

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

UMA AULA DO POETA QUE COMBATIA A "EMOÇÃO FÁCIL" NA POESIA


João Cabral de Melo Neto abre fogo contra os poetas que só sabem provocar “saudade, melancolia e tristeza”! – Por que ele é inimigo da emoção fácil – O autor de ‘Morte e Vida Severina’ garante: “A popularidade é uma coisa terrível!” – Por que ficou traumatizado com a música – O Hino Nacional e o Hino de Pernambuco são as duas únicas músicas que ele consegue distinguir de ouvido! – Um julgamento rigoroso: “Morte e Vida Severina não me satisfaz...” As memórias do jogador de futebol: a diretoria do Santa Cruz foi pedir à mãe de João Cabral a liberação do passe do craque!


O titular da cadeira número 37 da Academia Brasileira de Letras é um caso único de jogador de futebol que deu certo como diplomata e se consagrou como poeta e, seguramente, o único acadêmico que pode ostentar glórias tão díspares - como a de ter sido campeão pelo Santa Cruz Futebol Clube e autor dos versos de um clássico da literatura brasileira, o poema "Morte e Vida Severina". João Cabral de Melo Neto é um exemplo em carne e osso de que a força física do futebol pode conviver sem grandes traumas, em uma só pessoa, com um extremo apuro intelectual.

O jogador já se aposentou, é claro. Mas o poeta continua entregue a uma difícil, suada e elegante batalha com as palavras. João Cabral de Meio Neto (Recife, 06 de janeiro de 1920) é, acima de tudo, rigoroso com o que escreve. Trabalha as palavras com a precisão de um médico na mesa de cirurgia. Despreza as emoções fáceis. Não quer nem ouvir falar de poetas e escritores que não tenham "interesse intelectual'. E fala da própria obra com uma frieza que chocaria os não iniciados.

A longa carreira diplomática - com passagens pela Espanha, Inglaterra, França, Suíça, Paraguai, Senegal, Equador, Honduras e, finalmente, Portugal - deixou, no comportamento do poeta, traços de uma solenidade que ele mantém em qualquer situação. De férias, em casa, ele dá entrevista metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola. Uma vez, na casa de um irmão, na praia, combinou com um repórter uma entrevista para as dez e meia da manhã. A circunstância de estar de férias de frente para o mar não lhe alterou o gosto de cumprir os horários com rigor. O repórter chegou vinte minutos depois da hora marcada. João Cabral não perdeu a chance: "Você chegou com uma pontualidade nada britânica... " - foi a primeira saudação que ele pronunciou. Faz tempo que a cena ocorreu. Mas João Cabral não mudou.

Abatido por uma hemorragia gástrica que o obrigou a uma temporada num hospital no Rio de Janeiro e ainda profundamente tocado pela viuvez recente, o poeta não perde a elegância do diplomata nem o rigor do intelectual vigilante quando começa a falar diante do gravador ligado.
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O fato de conviver com outros idiomas durante anos a fio, como é o caso do senhor, traz alguma dificuldade para o ato de escrever?

João Cabral: "É uma das desvantagens do escritor que é diplomata e vive no estrangeiro. É difícil viver vinte e quatro horas falando uma língua e escrever em outra. Quando Vinícius de Moraes era cônsul em Los Angeles, Gabriela Mistral era cônsul do Chile : ela disse ao Vinícius que ia voltar para o Chile porque estava perdendo o espanho. Veja só: ela encontrava dificuldades para escrever em espanhol vivendo em Los Angeles. É uma desvantagem que o diplomata tem. O diplomata de carreira - não o diplomata ocasional - ou pára de escrever ou tem uma obra pequena. O caso de Aloísio de Azevedo é típico. Depois que foi nomeado cônsul, não publicou mais nenhum romance!".

O senhor se lembra de algum caso em que a palavra em português tenha fugido durante esse período todo no exterior?

João Cabral: "Ah, claro! e comum, inclusive, a pessoa abrasileirar uma palavra estrangeira, coisas que, às vezes, enriquece o vocabulário do autor, mas, outras vezes, você tem de substituir, porque não dá...".

Por que o senhor tem tanta prevenção contra a subjetividade? Há um conceito mais ou menos generalizado de que a poesia é uma manifestação extremada da subjetividade...

João Cabral: "Há uma diferença. Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras pedra ou faca ou maçg, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que tristeza, melancolia ou saudade. Mas é impossível não expressar a subjetividade. Então, a obrigação do poeta é expressar a subjetividade mas não diretamente. Ele não tem que dizer "eu estou triste". Ele tem é que encontrar uma imagem que dê idéia de tristeza ou do estado de espírito - seja ele qual for - por meio de palavras concretas e não simplesmente se confessando na base do "eu estou triste".

Qual é a relação do senhor com a escrita, no dia-a-dia? O senhor diz que tem horror a trocar cartas. Quer dizer, então, que o senhor evita escrever?

João Cabral: "O negócio da carta é o seguinte: eu não gosto - realmente - de escrever carta. É um resultado de minha vida de diplomata. Sou diplomata desde fins de 45. Já faz quarenta anos. Quando vive no exterior, você tem de fazer tudo por meio de carta. É uma das coisas que leva o sujeito a acabar escrevendo cartas, porque em todos negócios e todas as coisas que ele tem para fazer, ele precisa escrever - para a família, para um amigo, o que seja.

Em segundo lugar, não gosto de carta. E tem tanta gente que escreve até diário... Para mim, escrever o meu diário é uma coisa inconcebível. Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo. Em carta, você acaba falando de si próprio. É como num diário. Se você está lá fora, isolado, e escreve uma carta para um amigo, é inevitável que você fale de seus estados de espírito - e dessa maneira errada que é falar do estado de espírito descrevendo-o. Agora, quanto a escrever, eu estou, permanentemente, tomando notas para poemas. Não tenho nenhum poema acabado depois do meu último livro ("Agrestes", 1985). Tenho notas para poemas. Um dia trabalharei nelas. Ou não. Se estou numa fase com menos trabalho e menos preocupação, começo, então, a trabalhar aquelas notas que tenho".

Parece que o senhor não tem nenhuma ânsia de escrever, esta é que é a verdade...

João Cabral:" Ah, não tenho..."

O senhor pode anotar um poema e guardar durante anos, esperar...

João Cabral: "E nunca escrever, também. Outras vezes, descubro uma nota anterior, elaboro e faço um poema, naturalmente".

O senhor diz que a poesia que faz não é para ser amada. Não é porque o senhor não quer ou o senhor gostaria que suas poesias fossem amadas?

João Cabral: "Não gostaria. O escritor corre o grande risco de se baratear. A popularidade é uma coisa terrível, nesse sentido. A popularidade acaba cercando o escritor e o artista de um mundo artificial e um interesse inteiramente artificial. O sujeito acaba fazendo aquilo que sente que o público gosta, em vez de fazer aquilo que acha que deve ser feito. Eu lembro de quando Manuel Bandeira fez oitenta anos. Havia quase manifestações populares, nas homenagens que fizeram a ele. Mas você acha que aquele pessoal algum dia leu Manuel Bandeira?".

O senhor se considera, então, o quê? Um poeta popular ou um poeta conhecido? O senhor é conhecidíssimo, mas deve achar que só conhecem o nome João Cabral, não a obra ...

João Cabral: "É difícil dizer. O êxito teatral de "Morte e Vida Severina" é que tornou o meu nome conhecido. Mas não creio que minha poesia seja popular".

O senhor sempre diz que não gosta de fazer poesia dada a emoções porque o que se chama comumente de emoção é algo feito à base de um sentimentalismo fácil e barato. O senhor diz, pelo contrário, que "emoção é outra coisa". Mas nunca ficou exatamente clara a definição que o senhor tem de "emoção". Dá para explicar - de uma vez por todas?

João Cabral: "Minha definição de emoção não é nada de especial. É o que todos chamam de "emoção". O que acontece é que me recuso a explorar essa coisa diretamente. O interesse do poeta não é descrever suas emoções e criar emoções, é criar um objeto - se é poeta, um poema; se é pintor, um quadro - que provoque - emoções no espectador. Mas não explorar nem descrever a própria emoção. Quando digo que sou contra emoção é exatamente neste sentido: o de usar a minha emoção para fazer com ela uma obra, descrevê-Ia primariamente e construir, com ela, um poema".

Quer dizer, afinal, que o senhor não é exatamente contra a emoção: é contra a exploração da emoção...
João Cabral: "Exatamente! (Faz ar de alívio, como se a charada estivesse resol- vida). Quanto a esse descrever da emoção e da sentimentalidade, a grande maioria da poesia que se escreve no mundo é assim. A obrigação do poeta, repito, é criar um objeto, um poema, que seja capaz de provocar emoção no leitor".


O que é que o senhor chama de "emoção intelectual"? Já vi o senhor usando esta expressão..:

João Cabral: "Um grande crítico americano uma vez disse o seguinte de uma poetisa americana, Edna Miller: que ele não gostava da poesia que ela fazia porque não tinha interesse intelectual. É nesse sentido que eu digo. Você pode ver perfeitamente quais são os escritores que têm um interesse intelectual e quais são os que não têm. Confesso que o escritor que não tem interesse intelectual não me interessa.

A mim, me interessa enormemente a poesia de Joaquim Cardozo, mas nunca me interessou a poesia de Emílio Moura - de Minas Gerais. Eu sinto que não tinha interesse intelectual. Não só a poesia de Emílio Moura, mas a grande maioria dos poetas brasileiros. Aliás, dos poetas brasileiros, não, mas do que se chama no mundo todo de poesia. Um homem de mediana inteligência não vê interesse intelectual naquilo. Tenho a impressão de que pode ser um defeito meu. Mas confesso. A atividade intelectual é uma coisa que seduz. Vivo para ela. Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa. Ora, se tenho minhas emoções, para que vou buscar emoções semelhantes numa outra coisa?".
Quando o senhor se auto-intitula um "poeta artificial", o senhor se refere ao trabalho quase artesanal que tem com a poesia?

João Cabral: "Não apenas. Os assuntos que uso na poesia são "tirados pelos cabelos", como se diz. Fiz um poema sobre o ato de catar feijão. Você não imagina Alfonso de Guimarães, o pai, grande simbolista, fazendo um poema sobre o ato de catar feijão..."

O resultado poético do trabalho do senhor é obviamente sofisticado, sob o ponto de vista intelectual. Isso contradiz a intenção de fazer uma coisa simples? A que é que o senhor atribui esta defasagem entre a intenção de fazer uma coisa simples e o resultado - que é indiscutivelmente sofisticado?
João Cabral: "A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. e difícil traduzir as coisas de que falo de uma maneira acessível a todo mundo. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso".


"Minha luta é tentar botar coisas complexas numa linguagem simples.
Geralmente, fracasso"

Além de dizer que é um poeta artificial, o senhor também se considera um poeta não espontâneo. Acontece que estes dois conceitos se chocam de novo com o conceito generalizado de que a poesia é algo não artificial e espontâneo...

João Cabral: "Exatamente. Valerie dizia que tudo que vinha a ele espontaneamente era eco de outra pessoa! Ele só acreditava numa coisa que ele fizesse com rigor intelectual, porque durante este trabalho rigoroso ele eliminava tudo o que, nele, era dos outros. O homem acha, em geral, que tudo o que se faz artificialmente é falso e não diz nada dele. Vejo exatamente o contrário: o que você faz espontaneamente é eco de alguma coisa que você leu, ouviu ou percebeu de qualquer maneira".

A popularidade - é o que o senhor diz - pode prejudicar o poeta. A popularidade prejudicou Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira?

João Cabral: "Não. Vinícius, no fim da vida, dedicou-se inteiramente à poesia popular, à música popular. Agora, Manuel Bandeira e Carlos Drummond são sujeitos de tal integridade que não foram corrompidos pela popularidade. Nem todo mundo tem integridade para resistir. Em geral, o sujeito acha bom e barateia a produção para ser agradável. Baixa o nível para ser agradável..."

O poema que é tido como marca registrada do João Cabral de Melo Neto é o 'Morte e Vida Severina'. E é justamente este que o senhor chama de "poema fracassado". Por que um julgamento tão cruel?

João Cabral: "Nunca chamei de fracassado. "Morte e Vida Severina" foi um poema que escrevi: não trabalhei. Eu escrevi a pedido de Maria Clara Machado e não trabalhei como trabalho em outras coisas minhas. Eu sinto que é um poema que não me satisfaz. Mas foi um poema bem levado para o teatro e a televisão. Ficou popular. Mas sinto: é um poema que não trabalhei, porque eu tinha um prazo para escrevê-lo".

O 'Morte e Vida Severina' é considerado uma obra-prima. O senhor, então, não assina embaixo desse julgamento...

João Cabral: "Não! Dentro de minhas coisas, acho "Morte e Vida Severina" a menos realizada. E a mais escrita na perna...

É frustrante saber que os Severinos e as Severinas da vida real não vão ler o 'Morte e Vida Severina'?

João Cabral: "Quando escrevi "Morte e Vida Severina", tinha a impressão de que seria uma coisa tão popular quanto os romances do Nordeste, os romances de cordel. Quando o livro saiu, vi que quem me elogiava eram os intelectuais. Eu lembro do entusiasmo de Vinícius de Moraes. Eu disse: "Vinícius, não escrevi para você! Para você, escrevi outras
coisas!". Eu tinha a impressão de que estava escrevendo aquele poema para o povo. Quase me danei...".

A condição de intelectual e poeta num país como este - em que a grande maioria da população não tem acesso à produção intelectual - é frustrante?

João Cabral: "Pelo meu temperamento, nunca gostaria de ser um escritor popularíssimo. O fato de não ser popular me dá tranqüilidade. Não vivo de escrita. Se vivesse de escrever, gostaria de ser popular, porque os direitos autorais seriam grandes. Mas, como não vivo de escrever, a falta de popularidade não me frustra. Ao contrário".

Um intelectual deve falar em nome do povo?

João Cabral: "O que é que você quer dizer?"

O senhor acha que o intelectual deve ser porta-voz dos anseios populares?

João Cabral: "Se ele está identificado com os anseios populares e se ele acha que é capaz de expressar os anseios populares, claro. Mas é preciso que ele esteja identificado com os anseios populares - e não com o programa de um partido político - que dura dois anos! Eis o negócio. Você fala em povo. Mas o que é povo? O que é o povo brasileiro? O que é o povo de qualquer país? É uma quantidade enorme de pessoas, com interesses contraditórios. Como falar em nome do povo? Você fala em nome de uma classe, em
nome de uma idéia - que pode estar no povo".

Quando o senhor estava em Barcelona, leu numa revista que a expectativa de vida no Recife era menor do que na Índia e se sentiu profundamente chocado. Depois, o senhor disse que deveria escrever algo denunciando...

João Cabral: "Eu escrevi "Cão Sem Plumas", já disposto a não escrever mais nada na minha vida".

O senhor acha, então, que o poeta deve reagir a estas agressões da realidade?

João Cabral: "Não sei se deve reagir. Eu reagi. Agora, se todo mundo é capaz de reagir ou se todo mundo deve reagir, é um problema que deixo a cada um".

Paul Eluard dizia que a função do artista é "dar a ver". Qual é a diferença entre o "dar a ver" e a denúncia?

João Cabral: "Eluard chamou de "Dar a Ver" um livro de poemas que ele fez sobre os pintores. Quando digo "dar a ver" é porque a minha poesia, em primeiro lugar, é mais visual do que musical. Em segundo lugar, digo "dar a ver" porque o poeta deve mostrar realidades sem tomar partido. Você mostra a realidade. Cada pessoa que veja como quiser. Depois de "Morte e Vida Severina", eu não botei no fim algo como "Façam assim!". Não apresentei solução, porque esta não é função do artista. A função do artista é expressar a realidade. Os administradores, os políticos, quem seja, que resolvam o que há de injustiça nessa realidade. Não é obrigação do artista".
O Brasil, hoje, como país, satisfaz o senhor? O país melhorou?

João Cabral: "Durante o ano de 1986 foram tomadas boas medidas. Tenho esperanças nelas. O negócio é que o mundo é complicado. Você pergunta a um francês... Ele votou no Partido Socialista na eleição de François Miterrand e imaginou que a França fosse melhorar. Depois, os socialistas perderam a maioria no Congresso. Isso não é uma coisa permanente. O Brasil está numa boa fase. Acredito que os políticos, os administradores estão querendo resolver certos problemas. Não quer dizer, no entanto, que daqui até o fim do mundo o Brasil tenha resolvido os seus problemas. Em primeiro lugar, porque estes homens podem mudar mas, depois, pode vir uma orientação diferente".

O senhor tem aversão total à música; só conhece de ouvido o Hino Nacional e o Hino de Pernambuco. De onde é que vem, afinal, esta aversão à música? Qual é a lembrança mais remota que o senhor tem desse horror à música?

João Cabral: "Não tenho nenhum ouvido musical. Você pode tocar uma música conhecidíssima. Eu não distinguirei uma da outra! O que lembro é que, desde menino, eu era o filho desentoado. Já no coro do Colégio Marista, mandavam que eu fingisse que estava cantando, mas não cantasse, porque saía tudo desentoado.
Você pode não ter ouvido musical, não saber cantar e, no entanto, gostar de música, a chamada música clássica.

Mas vou dizer uma coisa que aconteceu comigo. Tive minha infância e adolescência no Colégio Marista. Nós éramos obrigados a uma missa semanal. Era uma missa cantada. Nós éramos obrigados a ir diversos dias à Igreja, para ouvir canto sacro. O que estragou um possível gosto meu pela música foi a música religiosa que me era imposta, quando eu era menino e adolescente. A música significava, para mim, tédio. Eu ficava naquele banco de colégio ouvindo aquela música de órgão, aqueles sujeitos cantando... E era incapaz de me concentrar naquilo. Ficava pensando em outra coisa. A música religiosa extinguiu em mim qualquer possível futuro em música".

Depois desse trauma de infância, o senhor, então, não conseguiu ter interesse em música...

João Cabral: "Isso estragou até a minha capacidade de atenção. Se há uma coisa que me dá sofrimento é um concerto. De vez em quando, sou obrigado a ouvir um. Ir a um concerto é um inferno para mim. Você pode dizer o seguinte: "Eu estou impondo a este infeliz duas horas de sofrimento"... E essa coisa estragou minha capacidade de atenção auditiva. Quando estou conversando, sigo o que a pessoa diz. Mas essa coisa de rezar tantas vezes por dia e a música no colégio estragaram a minha capacidade de ter atenção para uma coisa que me entra pelo ouvido. Outro sofrimento é ir a uma conferência e ouvir um discurso. Sou incapaz de compreender. Fico pensando noutras coisas e não no que o conferencista diz. De repente, volto para o que ele está dizendo; sou até capaz de entender uma ou duas frases, mas minha atenção se perde outra vez. Fico como uma pessoa que está nadando debaixo do mar e de vez em quando sobe para respirar. Tenho a impressão de que estragaram a minha capacidade. Quando quero entender alguma coisa, leio".

O pior de tudo é que o senhor, como cônsul e embaixador, é obrigado, por dever de ofício, a ouvir discurso...

João Cabral: "Claro! De concerto eu fujo. Mas, numa solenidade, você não pode fugir. Eu confesso: o sujeito está falando e eu pensando noutra coisa... Sou incapaz de me concentrar numa conferência ou num discurso".

Naquele tempo das rezas no Colégio Marista que idade o senhor tinha, exatamente?

João Cabral: "Dos oito aos quinze anos. Era no Recife. Primeiro, no Colégio São Luís - que é Marista também -, em Ponto Uchoa. Depois passamos para o Colégio Marista, na avenida Conde da Boa Vista, no centro da cidade".
Que relação o senhor tem com Pernambuco, hoje? A presença de Pernambuco na poesia que o senhor escreve ainda é forte. Há, no livro "Agreste", várias passagens sobre Pernambuco - e particularmente a Zona da Mata.

João Cabral: "Eu saí de Pernambuco com vinte e dois anos, na véspera de fazer vinte e três. Da primeira vez que saí de Pernambuco, passei onze anos sem ir até lá. Eu saí em 1942 e voltei em 1953. Mas nunca superei o fato de ser obrigado a viver fora de Pernambuco. Sempre dou um pulo lá, embora Pernambuco seja bem diferente do que eu conheci. O Recife, então, está inteiramente mudado. Em todo caso, volto sempre. Toda oportunidade que tenho vou por lá. A gente não pode dizer o que é que vai falar no futuro. Mas tenho a impressão de que a gente escreve sempre sobre as impressões da infância e da adolescência. Nesta época, o homem é mais sensível. Grava mais as coisas. Então, forçosamente, nunca poderei me livrar dessa impressão de Pernambuco sobre mim. Imagino que ela continuará".

Onde é que o João Cabral poeta estará no futuro? O senhor deve abandonar a carreira de diplomata em 1990...

João Cabral: "Com a nova lei, tenho a impressão de que já devo me aposentar em 1987. Não creio que vá viver em Pernambuco. Gostaria, mas acontece que - dos meus cinco fIlhos - quatro moram no Rio e uma filha em Honduras. Quando me aposentar, irei morar em Petrópolis, porque estarei perto deles e ao mesmo tempo não estarei no Rio. É uma cidade que não me agrada nada. Nunca me agradou".

O que é que assusta o senhor no Rio de Janeiro?

João Cabral: "As distâncias, o movimento, o tráfego e o calor. É aquele calor desagradável... O calor aqui no Rio é abafado. O de Pernambuco é um calor ao ar livre. Até há um poema de Manuel Bandeira: "Vamos viver de brisa”. Faz calor no Nordeste, mas lá existe brisa. O calor do Rio é um calor sem brisa".

O senhor acha que, quando se aposentar e se dedicar somente à poesia e à literatura, essa relação acidentada que o senhor tem com o ato de escrever vai ser, afinal, pacificada?

João Cabral: "Eu estou com sessenta e seis anos. Escrever poesia me é difícil. Não sei se, nessa idade, ainda terei coragem de enfrentar o trabalho de um novo livro de poemas. Imagino, em minha aposentadoria, ter uma casa agradável em Petrópolis. Eu me imagino lá fazendo aquilo que gosto de fazer: não sair de casa. Detesto sair de casa. Em segundo lugar, ler. Neste negócio, sou caseiro. É um traço que, talvez, eu tenha puxado de minha mãe. Quase não vi minha mãe sair de casa. Ela ficava meses e meses e meses sem sair de casa. Não visitava nem os filhos. Os filhos é que iam visitá-Ia, porque ela não gostava de sair de casa. Eu sempre fui de ficar em casa. Com a idade, este traço vem se agravando cada vez mais".

O fato de levar uma vida mais descansada, sem compromissos sociais, vai acalmar esta relação do senhor com o ato de escrever - que é algo torturante...?

João Cabral: "Não. Eu escrevo com dificuldade. Mas, a mim, não me irrita só escrever com dificuldade. Se, um dia, eu escrever com facilidade deixarei de escrever de vez. A facilidade não leva a nada. Você vê, por exemplo, em matéria de futebol. A seleção brasileira jogou mal mas jogou melhor contra a Espanha. Por quê? Porque tinha um adversário forte pela frente. E estava acostumada a jogar com juvenis, contra os juvenis. Em jogos fáceis, a seleção não se revelava. A seleção, então, começou a jogar direito (N: João Cabral se refere ao jogo Brasil 1 x 0 Espanha, na Copa do México). A facilidade não conduz ninguém a nada. Ainda que, de repente, baixar o Espírito Santo e eu começar a escrever com facilidade, espero ter a coragem de deixar".

O senhor seria capaz de escrever uma coluna diária num jornal?

João Cabral: Acredito que não. Para mim, seria difícil. É uma atividade que não me seduz. Para mim, seria difícil escrever uma crônica diária. Não me seduz.
É como escrever carta. Quem escreve uma crônica acaba falando de si".

Nesses quarenta anos de vida diplomática, o senhor conheceu centenas de grandes personalidades da área intelectual e política. Qual foi a que mais marcou o senhor?

João Cabral: "Miró me impressionou enormemente. Eu o conheci da primeira vez que estive em Barcelona. Quando fui embaixador no Senegal, o presidente Senghor me impressionou enormemente, porque é um homem extraordinário".

Como ex-jogador de futebol, o senhor acha que o futebol faz bem à saúde mental do povo brasileiro?

João Cabral: "Ah, eu gosto de futebol! Mas, agora, como não vivo no Brasil, não vou a futebol. A grande vantagem do futebol brasileiro é que é o único futebol que você assiste sem estar interessado na vitória de um clube. Você assiste porque é um espetáculo bonito. Com futebol europeu não acontece. Você não vê uma jogada maliciosa, não vê um gesto harmônico, não vê elegância. Só aquela correria. E correria não me interessa. Só consigo me interessar pelo futebol brasileiro.

Há os que gostam de ver futebol porque gostam de ver o time predileto ganhar. Mas acontece que meu clube é o América. Ganha tão pouco... Então, gosto de futebol não para ganhar. Gosto pelo espetáculo. Eu era América no Recife. Quando voltei para o Rio, era normal que fosse América também. Joguei um campeonato pelo América, no Recife. O Santa Cruz tinha chegado ao fim do campeonato empatado com o Torre, um clube que nem existe mais. O Santa Cruz não tinha center-half. Então, descobriram que a minha mãe era fanática pelo Santa Cruz, embora nunca tenha ido a um jogo de futebol. A diretoria do Santa Cruz, então, foi pedir à minha mãe que me fizesse jogar pelo Santa Cruz. Joguei. Disputei o campeonato com o Torre e fui campeão juvenil pelo Santa Cruz, em 1935".

Daí é que surgiu a famosa dor de cabeça que o acompanhou durante décadas?

João Cabral: "Não. Minha dor de cabeça começou quando eu tinha dezesseis anos e foi uma das coisas que me fez largar o futebol. Naquele tempo, eu não podia correr, porque vinha a dor de cabeça...".

Já passou?

João Cabral: "Não. Hoje, talvez esteja um pouco melhor. Com a idade, talvez ela doa menos. Mas ainda sou obrigado a tomar remédios..."

Quantas aspirinas o senhor toma por dia?

João Cabral: "Não posso mais tomar aspirina. Depois dessa hemorragia gástrica que tive, em novembro de 85, os médicos me proibiram de tomar aspirina. Agora, tomo outros calmantes".

Que informação o senhor tem sobre a poesia que se faz hoje no Brasil?

João Cabral: "Não conheço bem a poesia brasileira posterior a mim. Só conheço os livros dos poetas que me mandam livro. Poucos são os que me mandam. Lá fora, não encontro estes livros para comprar. É difícil, para um escritor, julgar o pessoal que vem depois. Um sujeito pode julgar bem os anteriores a ele. Mas julgar uma geração mais nova é difícil, porque essa geração vem com uma experiência que o mais velho já não tem. Eles
escrevem sobre as experiências que eles têm e eu não tenho. Não vivo aquelas coisas. Sou de uma outra geração. Minha sensibilidade estava mais aguda em determinadas fases de minha vida.

O Brasil de minha mocidade não é o Brasil da mocidade desse pessoal. A vida que eu levava como jovem não é a vida que eles levam. Eu seria injusto se julgasse, porque eles falam de uma experiência e de uma visão de vida que não são as minhas. Em geral, não gosto de julgar os autores mais jovens do que eu. Viveram num tempo que não vivi, foram jovens num tempo em que eu já não era jovem e levam um tipo de vida que não é a que eu levei".

Desses poetas posteriores ao senhor, a poesia de um Afonso Romano de Santana, por exemplo, lhe agrada?

João Cabral: "Conheço. É um poeta interessante. Afonso Romano é um desses sujeitos que escrevem poesia sabendo que é poesia. Não escreve poesia de oitiva. É um homem culto, um professor. A.gente vê que ele leu um bocado. A poesia que ele escreve não é improvisação nem uma coisa gratuita. Não é o resultado de bossa. É o fruto de uma consciência intelectual".

(1986)

Posted by geneton at 12:02 AM

junho 09, 2007

FRANCISCO JULIÃO

UM DEPOIMENTO PARA A HISTÓRIA : O HOMEM QUE AGITOU OS CANAVIAIS
Francisco Julião revela os planos de Ernesto Che Guevara para chegar ao Brasil – A conversa entre os dois em Cuba – A autocrítica do criador das Ligas Camponesas – A confissão que Miguel Arraes fez a ele na prisão, em 1964 – Um padre católico é o guru de Arraes! – Por que Fidel Castro ficou fascinado por Jânio Quadros – A luta para reunir Miguel Arraes e Leonel Brizola no exílio – Por que Arraes não quer se aproximar de Brizola – A queixa de Julião contra João Goulart – A ascensão e queda das Ligas Camponesas.

Francisco Julião (Bom Jardim, Pernambuco, 16/02/1915) cumpriu uma penitência, por livre e espontânea vontade: durante quinze anos, entre 1940 e 1955, peregrinou pelos canaviais da zona da mata de Pernambuco usando a lei para defender camponeses. Era advogado. Tinha feito uma escolha. Não queria gastar energias defendendo poderosos. A penitência, ele sabia,”não dava dinheiro nem voto. Mas fui". O resto é história.

Transformado em líder das célebres Ligas Camponesas, Julião ganhou fama de santo entre os sem-terra. Aos olhos de quem o combatia, era o diabo em pessoa. Chamavam-no de agitador, incendiário, comunista, Julião agradece o título de "agitador". É e sempre foi. "Mas dentro da lei". Afinal de contas - diz ele - "até remédio você precisa agitar antes de usar”... E só ler a bula. A primeira instrução é: “Agite antes de usar".
Comunista nunca foi. “Minhas divergências com os comunistas permanecem
até hoje ". O que pouca gente sabe é que Julião é um dos fundadores do Partído Socialista Brasileiro, ao lado de Otávio Mangabeira.

Quando veio o primeiro de abril de 1964, Francisco Julião estava na Câmara dos Deputados, em Brasília. Era deputado federal. Conseguiu ficar lá até o dia 7 de abril. Neste dia, pegou uma carona no carro de Adaucto Lúcio Cardoso, líder da UDN. Talvez para não assustar o motorista do carro, o líder da UDN escreveu em cima de um jornal e mostrou a Julião: "Está tudo perdido". Ali, a certeza de que o golpe não tinha volta, se corporificava na forma de três palavras rabiscadas numa folha de jornal.

A tarde estava caindo em Brasília, num crepúsculo de cartão postal. Adaucto Lúcio Cardoso olha para o céu e constata: "Ah, essa cidade deveria se chamar Belo Horizonte!”. Veio o estalo. Julião tomou ali, dentro do carro, a decisão de fugir para Belo Horizonte, disfarçado de camponês. Terminou preso. Sobral Pinto o defendeu. Ganhou um habeas-corpus. Ia ser preso de novo. Correu para o Rio de Janeiro; tentou, em vão, obter asilo nas embaixadas da Iugoslávia e do Chile. Conseguiu um lugar na Embaixada do México. E lá se foi para dezesseis anos de exílio, a maioria vivida em Cuernavaca. Quando voltou ao Brasil, em 79, trouxe um saco de terra do México. E também a fórmula do Elixir da Juventude.

Quem vê Julião não diz que ele nasceu em 1915. Já tem dois bisnetos. Não esperava chegar a tanto. Tinha uma enxaqueca terrível - que o perseguiu por quarenta anos, desde a adolescência. Já dera a batalha contra a enxaqueca como perdida. Um dia, o milagre. Em meio à Conferência de Puebla, no México - para onde tinha ido porque, exilado, queria ver de perto os bispos brasileiros – esbarra com um jesuíta argentino chamado Alejandro.

Das mãos do jesuíta, saiu a fórmula criada por um bruxo sul-americano. Assim: primeiro, arranja-se meio quilo de alho. E meia garrafa de álcool etílico de 96 graus. Depois, é só colocar os dentes de alho no liquidificador e ir misturando com o álcool. O último passo: "Coloca-se esta emulsão em um frasco de vidro, onde deve permanecer durante quinze dias num canto. A partir do décimo sexto dia, deve-se tomar uma colherzinha da emulsão misturada em um copo de suco de fruta". A enxaqueca acabou. Julião, bisavô, ficou novo. Jamais deixou de beber a sagrada mistura.

O agitador Julião vem escrevendo, há anos e anos, um relato completo de tudo o que viveu. Cada vez que preenche um caderno com anotações, manda-o para o México. “Ninguém sabe o que pode acontecer amanhã neste País” – diz, para justificar tanto cuidado com o diário íntimo. Não é para menos. Em 1964, oficiais do Exército foram aos arquivos fotográficos dos jornais do Recife e recolheram toda a documentação que existia sobre Francisco Julião, Miguel Arraes e Gregório Bezerra. Onde andarão todas estas fotos?
Agora, o 'Chico Julião' que um dia foi personagem nas páginas da revista 'Time" passa as mãos nos cabelos revoltos - que lhe dão um certo ar messiânico - e embarca numa viagem pelo tempo, ao encontro de figuras como Ernesto Che Guevara, Salvador Allende, Leonel Brizola, João Goulart, Miguel Arraes, Fidel Castro, Jânio Quadros e todos os personagens que cruzaram o caminho do advogado que saiu das terras do Engenho Galiléia para a história das lutas políticas do Brasil.

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Qual foi o sentimento do Francisco Julião líder das Ligas Camponesas em abril de 1964 quando soube que o governo tinha mudado de mão? Qual foi a extensão da frustração pessoal ?

Julião: “A palavra frustração é pouco intensiva para exprimir este sentimento. Meu sentimento foi bem mais profundo. Era um sentimento de rebeldia e revolta, por ter sido interrompido bruscamente, pelas armas, com um golpe à Bonaparte, o processo de democratização popular do País. A Constituição foi rompida. E, o que é incrível, em nome da Democracia e da legalidade romperam-se a Democracia e a legalidade. Eu preferi, ali, permanecer no Brasil ao invés de buscar uma embaixada, apesar de saber que corria um grande risco. Então, lancei um manifesto no interior de Minas Gerais convocando o povo para a resistência armada. O manifesto caiu no vazio, porque ninguém estava, absolutamente, preparado para tomar as armas. Todos nós acreditávamos que as eleições de 64, em outubro, iriam se realizar. E todos estávamos preparados para enfrentar as urnas. Daí a razão por que caiu no vazio o meu manifesto com um apelo ao povo para que se unisse e defendesse a Constituição com armas na mão”.

O senhor faz alguma crítica, hoje, à atitude do ex-presidente João Goulart - que preferiu não resistir, segundo os historiadores, para evitar um derramamento de sangue?

Julião: “Faço. O comportamento de Goulart foi débil. Não chamaria de pusilânime, mas diria que foi débil (fala em tom de lamento). João Goulart era um homem ambivalente: como populista, oscilava feito um pêndulo entre a direita e a esquerda e queria simultaneamente atender aos patrões e aos operários. Acabou entrando em choque com o próprio sistema que ele queria que não se interrompesse, apesar de proclamar a necessidade de reformas de base.

Não se preparou nem se preveniu para dar um sustentáculo mais forte ao programa de reformas de base. Faltou a ele mais decisão, coragem cívica e valentia frente aos golpistas. Ele tinha informações. O próprio Brizola - cunhado de Goulart - prevenia e até alguns oficiais que percebiam a mobilização dos que estavam mais à direita dentro do Exército preveniam Jango. Mas ele acreditava que nada iria acontecer e estava convencido de que depois da Campanha da Legalidade - em que o Exército se dividiu e afinal ele conseguiu chegar à Presidência da República com o apoio de Leonel Brizola, general Lott e das forças legalistas do País - fatos assim não iriam ocorrer. E, no entanto, ocorreram.

Não era a primeira nem a segunda nem a terceira vez que se tentava dar um golpe de direita no País. Considero que Jango cometeu um erro quando deixou a Presidência sem oferecer resistência”.

Havia condições reais de oferecer resistência? A grande interrogação que existe até hoje é esta: há os que dizem que havia condições; há os que dizem que não, não havia de modo algum. E o senhor, como personagem central dos acontecimentos de 64, o que diz?

Julião: “Em escala bem menor, poderia se repetir o que houve em 1961, quando da luta pela legalidade democrática, iniciada no Rio Grande do Sul. Afinal de contas, João Goulart era o chefe supremo das Forças Armadas. E era dever de Goulart permanecer no Palácio lutando pelo mandato que o povo lhe concedera. Deveria ter seguido não o caminho de Getúlio Vargas, mas o caminho que Salvador Allende posteriormente adotou no Chile como presidente: preferiu sacrificar-se e oferecer resistência às forças armadas para defender o mandato, em vez de entregá-lo e aceitar simplesmente o exílio ou escapar ou fugir do País. Um presidente não pode desertar numa hora como aquela, porque o seu mandato é mais importante que sua vida”.

O escritor Antônio CaIlado - autor de um livro sobre as Ligas Camponesas - diz que a máxima aspiração de João Goulart era ser presidente do PTB - e não presidente da República. O senhor também tinha essa imagem de João Goulart? Ele não seria, segundo esses depoimentos, um homem talhado para a Presidência da República ...

Julião: “Goulart era, no fundo, um homem bom. Dotado de grandes ambições, não estava suficientemente talhado para atender a essas ambições que ele tinha pelo Poder. O que lhe faltava era convicção. Daí, a ambivalência e a facilidade com que se deixou apear do governo. Não era um bom gaúcho, como foi Vargas. Veja: Vargas não se deixou apear. A primeira vez sim, porque ele tinha um mandato que foi arrematado por um golpe. Mas quando ele recebeu um segundo mandato através do voto popular ele disse: “Do Palácio só me tiram morto”. Como estava só, preferiu o suicídio, o que é uma forma de resistência, no caso de Vargas. Sou contra o suicídio, mas ele deixou um manifesto que é um convite à rebelião do povo brasileiro em defesa do mandato que os trabalhadores lhe deram e uma denúncia em favor dos povos de Terceiro Mundo e contra a penetração do
capital multinacional”.

Qual é a autocrítica que o senhor faz hoje ao célebre “Chico Julião” das Ligas Camponesas?

Julião: “Naquele tempo, eu via os problemas do Brasil e da América Latina através das Ligas Camponesas, através do Nordeste, através da minha região conflitiva, atrasada e dominada pelas forças oligárquicas mais retrógradas. Hoje, tenho uma visão mais distinta, porque vejo Pernambuco, o Nordeste e o Brasil através do mundo - e não só do Terceiro Mundo mas do mundo industrializado e do campo socialista. A minha visão se universalizou.

É essa a primeira crítica que faço a mim mesmo: ter tido uma visão local, estreita e regional. É verdade que, num dado momento, essa visão local pode adquirir um sentimento universal. Mas em política não podemos usar essa expressão com tanta propriedade como se usa na Literatura e na Poesia...”.
Inclusive na poesia se diz que quanto mais local mais universal se é ...

Julião: “Em política, você tem de adquirir uma visão bem mais ampla dos problemas e analisar as situações desde um ponto de vista global, para então tomar posições dentro de uma região determinada.

A segunda crítica que me faço é que por falta de tempo - uma vez que eu dava 48 horas por dia ao movimento das Ligas Camponesas - eu vivi um praticismo bastante acelerado. Eu deveria ter respaldado esse praticismo com mais conhecimentos teóricos, para corrigir as distorções que se davam dentro do próprio movimento, o que é normal dentro de um movimento popular ou um partido político. É também uma crítica que me faço: a falta de uma melhor base teórica para conduzir o movimento de maneira a cometer o menor número possível de erros”.


O senhor pode dar um exemplo concreto, na prática, de como essa visão “local, estreita e regional” se traduziu em atos?

Julião: “Hoje penso - o que é válido também para aquela época - que não podemos conduzir um país com a extensão territorial e a diversidade de situações sociais como o Brasil ... Por exemplo: aquilo que ocorre no Nordeste não é válido para o que acontece em São Paulo ou no Rio. Então, nossas alianças deveriam ter sido mais amplas.

Eu me ative tanto ao problema camponês que cheguei a entrar em choque até com pequenos e médios agricultores - que eram aliados naturais do movimento camponês! Então, os pequenos e médios agricultores, pelo temor de perder seus pedaços de terra - o que era bastante explorado pela imprensa burguesa -, buscavam aliança junto ao grande latifúndio. E o latifúndio é inimigo do pequeno e médio agricultor.

Ora, o latifúndio empresta, compromete e acocha para se expandir. Ao latifúndio não importa absolutamente que o pequeno e o médio agricultor percam as suas terras, desde que ele, o latifúndio, possa se alargar, para fazer não a cultura de subsistência, mas a cultura de exportação. Então, perdemos aliados importantes entre os pequenos e médios agricultores. Hoje, considero que estes pequenos e médios agricultores são aliados incondicionais e necessários para que se lute por uma reforma agrária no País e se melhore a situação do próprio camponês que não tem trabalho. Ando até com essa preocupação de unificar os pequenos e médios agricultores. Assim como as Ligas Camponesas acabaram forçando a criação dos sindicatos, considero que a união dos pequenos e médios agricultores pode levar o País ao cooperativismo”.

Há espaço hoje para a reativação das Ligas Camponesas ou os sindicatos rurais podem cumprir o papel que foi das Ligas até 64?

Julião: “A Liga Camponesa era parte da luta dos camponeses pela democratização do trabalho no campo e pela democratização da terra. Sempre tive essa visão. O camponês que nós buscávamos naquele tempo era o que arrendava a terra; não era o assalariado. Não havia sindicato. E sempre considerei que o sindicato era um passo bem mais avançado que a Liga, porque o homem que vende a força de trabalho tem mais consciência política do que aquele que arrenda um pedaço de terra e só encontra o senhor, o proprietário, para pagar a renda no fim de cada ano ou quando vai levar a parte que lhe corresponde no cultivo de uma dada lavoura.

Eu achava que essa gente iria inevitavelmente ser liquidada dentro de um processo de capitalização do campo. A Liga era um passo que poderia contribuir para conduzir até o sindicato. Então, falar em Liga agora é um retrocesso. O Sindicato pode perfeitamente cumprir as funções da Liga e ir além”.

Durante a fase negra da repressão, a figura do “Chico Julião” foi “satanizada”, como o senhor diz. Durante anos e anos houve uma contrapropaganda bem forte. A imagem do Francisco Julião para a geração mais nova é de um agitador que fazia marchas de camponeses sobre o Recife e queria a reforma agrária “na marra”. Qual é a imagem que o senhor gostaria que ficasse do Francisco Julião das célebres Ligas Camponesas?

Julião: “A imprensa distorceu a minha imagem. Nunca saí da legalidade. Sempre utilizei o Código Civil e a Constituição para defender minhas idéias. Já naquele tempo eu sustentava a necessidade de uma “Revolução Francesa” no campo e achava que o Nordeste tinha ficado parado na história. O latifúndio no Nordeste utilizava ainda as sobrevivências feudais. E era preciso trazer o camponês para o processo de democratização da região. O camponês era utilizado como “besta de carga”, para usar a expressão de Engels. Sempre foi - durante toda a Colônia, todo o Império, toda a República. Sobre ele pesava a carga mais forte.

O que eu queria era libertá-Io dessa carga. Como não havia nenhuma forma de organização camponesa, surgiu a Liga - não das minhas mãos, mas de uma necessidade histórica. Houve um momento na história deste país que propiciou o surgimento da Liga. A imagem que eu gostaria que ficasse - e por ela continuarei lutando até o fim - é que fui um homem apegado à legalidade. Eu utilizava a legalidade para ir, pouco a pouco, unindo e organizando os camponeses. O que acontece é que toda vez que se une e se organiza o povo, ele próprio vai criando uma legalidade própria. Quer dizer: a legalidade é rompida pela legalidade, num processo democrático.

Se uma pessoa se conscientiza e verifica que a realidade em que ela vive é distinta daquela que ela pensava que era a realidade correta, ela trata de se libertar. Organização e unidade significam a ruptura de uma legalidade que historicamente já está morta. O que nós queríamos é que o latifúndio, com suas sobrevivências feudais, desaparecesse diante do avanço da sociedade brasileira para um mundo já industrializado”.

A imagem do senhor como uma figura demoníaca não foi criada somente pela imprensa: os próprios governos de depois de 64 tinham também interesse em criar esta imagem ...

Julião: “Ainda hoje passam filmes em certos centros de estudos para manter esta imagem sobre mim, sobre Brizola e sobre Miguel Arraes, figuras que tiveram atuação marcante naquela época. Acontece que ninguém deve subestimar a capacidade crítica e a inteligência de um homem humilde e analfabeto. Os analfabetos também são capazes de pensar, porque são gente, são povo! Eu estou convencido de que hoje, com esse meu comportamento e com a visão que tenho dos problemas do Brasil através dos problemas do mundo, é mais fácil chegar ao pequeno e médio agricultor, à classe média e até ao empresariado nacionalista, aquele que quer que o Brasil defenda a soberania econômica, aquele que quer evitar o saque das multinacionais - que, inclusive, prejudicam seus interesses de classe como empresários brasileiros”.

Gregório Bezerra nos disse, num depoimento, que em 1964 Brizola era exaltado, Arraes era moderado e Julião era mais exaltado ainda. O senhor confirma?

Julião: “Gregório está equivocado. Naquele tempo, ele tinha uma posição legalista. O Partido Comunista defendia posições sumamente legais. Sua posição era um tanto irreal, porque chegava ao extremo de admitir que já estava no governo. Recordo bem a expressão de Luís Carlos Prestes. Quando se deu início à luta pelas reformas de base - e Prestes freqüentava o Palácio do Governo e se encontrava com João Goulart - ele chegou a admitir que já estava no poder. Ora, Prestes poderia estar no governo, ter uma parte do governo, mas não estava absolutamente no Poder, porque o PC continuava na ilegalidade!

O que houve foi uma distorção da minha imagem pela imprensa e, inclusive, por companheiros que, embora estivessem comigo numa só trincheira, tinham interesse em diminuir o volume do movimento que estávamos liderando. Gregório, a quem sempre respeitei pelo passado, pela tenaz resistência contra toda e qualquer forma de opressão, pelo comportamento e pelo heroísmo, estava a serviço de um Partido. Se o Partido dava uma meta, uma linha, uma ordem, ele tinha de cumprir.

O Partido Comunista cometeu erros em relação aos camponeses e à própria classe operária. Tinha uma visão distorcida dos problemas e da realidade nacional, porque se preocupava mais em transplantar do que em plantar. E esse tem sido o erro dos Partidos Comunistas em geral na América Latina. É a razão por que todos eles fracassaram. Até hoje nenhum Partido Comunista conseguiu fazer uma revolução socialista na América Latina.

As revoluções sempre saíram de outros movimentos. Fidel Castro não era comunista quando desabou da Sierra Maestra, derrubou Batista e implantou uma sociedade socialista em Cuba. Assim tem ocorrido em todo o Continente, precisamente porque, apesar de se proclamarem marxistas, não analisavam as situações concretas dos países em que atuavam como partidos”.

O senhor teve um encontro com Fidel Castro em que ele fez referência ao governo de Jânio Quadros. O que é que ele disse a respeito do Brasil?

Julião: “Jânio Quadros é um homem tão astuto que foi capaz de enganar o próprio Fidel Castro ... Até Fidel Castro foi enganado por Jânio Quadros! Quando eu estive em Cuba, percebi que Castro ficou empolgado com a figura de Jânio Quadros. Acontece que Jânio Quadros tinha feito um discurso magnífico ao pé do monumento de José Martí na Praça da Revolução e, desde então, Castro guardou esta visão de Jânio. Custou um bocado para que essa visão fosse prescrita da mente de Fidel Castro...

Durante algum tempo, ele permaneceu convencido de que Jânio era um homem que poderia ter contribuído para uma transformação mais profunda da sociedade brasileira. Jânio era esse homem capaz de condecorar Che Guevara porque estava com raiva de Carlos Lacerda. É, portanto, um homem passional, emotivo, inesperado e esquizofrênico. Coisas assim acontecem com estas figuras.

Admito que Fidel Castro depois modificou inteiramente seus pensamentos sobre Jânio Quadros. Não basta tomar uma condecoração, chamar um homem como Che Guevara e condecorá-lo. Isso foi uma provocação de Jânio e até contribuiu para acelerar o golpe neste País. Jânio talvez tenha sido o tipo mais responsável pelo aceleramento do desencadeamento do golpe de 1964”.

O senhor, pessoalmente, contribuiu para que Fidel Castro mudasse a imagem que ele tinha de Jânio Quadros?

Julião: “A própria dinâmica da história, os fracassos dos movimentos guerrilheiros no Continente e a ampliação da visão de Castro em relação ao mundo... Porque ele também via o mundo através de Cuba; hoje é que ele vê Cuba através do mundo. Tudo, então, contribuiu para que ele chegasse ao ponto de ir à Nicarágua, como foi, depois da vitória da revolução nicaragüense, para dizer aos sandinistas que eles estavam certos quando defendiam o pluralismo democrático e a existência de mais de um partido político; que lamentavelmente Cuba não pôde seguir por este caminho mas que eles deveriam preservar este pluralismo.

Castro modificou a visão que tinha em relação ao Continente e em relação à própria Cuba. Hoje, a grande preocupação de Castro é fazer com que o Terceiro Mundo se unifique, apesar das divergências dos países que fazem parte dos não-alinhados, para que haja uma melhor coordenação na luta contra o imperialismo econômico".

Já que o senhor diz que tem hoje uma visão mais universal, existe, então, algum país que o senhor cita como modelo político para o Brasil?

Julião: “Não há nenhum modelo que se possa aplicar ao Brasil. Cada povo e cada país tem de construir um modelo próprio. O Brasil terá de buscar entre suas raízes históricas - com seu povo e sua realidade - o modelo adequado para poder desenvolver a sociedade e chegar ao socialismo”.

Moreno?

Julião: “O socialismo moreno é um socialismo baseado nas raízes históricas deste país, de acordo com suas realidades, seus problemas e cultura. É o que Brizola quer. Quando ele fala em “socialismo moreno”, ele dá, em primeiro lugar, um grande realce às populações negras e mestiças do Brasil; reconhece que o Brasil é um país de negros e mestiços. E o socialismo tem de ser moreno no Brasil porque a maioria da população é morena”.

A imagem das figuras que estavam no centro do palco em 1964 vai ser talhada pelos livros de História; os historiadores se encarregarão desta tarefa. Mas eu gostaria de um depoimento pessoal do senhor, a partir das experiências vividas pelo “Chico Julião”, sobre - para começar - o Miguel Arraes governador. O senhor foi companheiro de cela de Miguel Arraes logo depois do golpe. Qual foi a imagem que ficou do Arraes governador, para o senhor?

Julião: “O Arraes que conheci como governador era nacionalista. Ele defendia as teses que Getúlio Vargas defendia. A sensação que tenho é que Arraes quis ser uma espécie de Getúlio Vargas do Nordeste. Quis ocupar esse espaço e o grande vazio que, deixado por Vargas, não foi ocupado até hoje.
É possível que Brizola, homem que já entrou na idade da razão e voltou ao Brasil com um projeto bem mais inteligente e exeqüível, chegue a ocupar este espaço e dê uma maior dimensão ao pensamento de Vargas.

Arraes pretendeu ocupar. Mas acontece que Arraes é um homem do Nordeste, nascido numa cidadezinha do interior do Ceará e com uma visão bem mais localista e sertaneja. Com o exílio, ele avançou demais. De nacionalista, passou a ter uma visão de movimentos de libertação; movimentos armados. Talvez porque ele tenha ido para a Argélia e ficado na África. E a África é um continente em que as lutas políticas e sociais são bem distintas das lutas políticas e sociais da América Latina.

Nós começamos nossa luta de independência no início do século passado. E somente depois da Segunda Guerra Mundial é que a África começou seus movimentos de independência, já aí recorrendo à luta armada. A independência política da África se dá simultaneamente com a independência social e econômica. Os métodos que devemos aplicar na América Latina são distintos, porque somos um continente mais avançado que a África. Somos um continente em que há países já bastante industrializados; é o caso da Argentina, Brasil, México. E aí o processo adquire mais complexidade.

Creio que se Arraes tivesse permanecido como exilado num país da América Latina teria uma visão que coincidiria com a minha e a de Brizola. E aí teria sido bem mais fácil uma aliança com ele. A dificuldade é de enfoque. De qualquer modo, penso que no dia-a-dia, na medida. em que ele vá percebendo que não pode absolutamente trazer uma fórmula da África para o Brasil - mas sim uma fórmula que deve ser criada dentro do nosso país -, é possível que possa surgir uma aproximação.

Mas até agora tenho encontrado bastante dificuldade em fazer uma aproximação entre Arraes e Brizola. Atuei nos últimos anos como uma espécie de algodão entre cristais, na tentativa de aproximar os dois, por reconhecer que ambos têm liderança no país. Tenho sentido que, na medida em que Brizola cresce, Arraes como que vai se apagando, como uma estrela que vai para o ocaso. É o que tenho observado.
E ele precisa corrigir. De outra forma, pode perder-se”.

Qual foi a primeira tentativa que o senhor fez no exílio para aproximar Miguel Arraes e Leonel Brizola?

Julião: “A primeira tentativa que fiz para aproximar os dois foi meses depois da chegada ao exílio. Em 1966, fui à Argélia com essa preocupação. Sempre tive ligações estreitas com Brizola e Arraes. Talvez eu tivesse até mais coincidências com Arraes do que com Brizola. Eu tinha mais afinidades com Arraes. Em Brizola, eu via o condutor, o homem audaz e com bastante capacidade de aglutinar forças e conduzi-Ias. Arraes é um homem mais desconfiado.

Eu sempre dizia a ele: “Você às vezes me lembra um cacto. A gente olha, você está sempre se defendendo, cercado de espinho por todo lado. Eu sei que existe uma flor dentro de você. Mas ai de quem queira meter a mão para agarrar esta flor, porque fura os dedos...”

Já Brizola é o homem do Pampa e das largas caminhadas, capaz de repartir um churrasco com o inimigo. Ele tem essa virtude: é um homem mais cordial, aberto e expansivo. Arraes lembra algo do jagunço; é cerrado. Você não arranca facilmente um pensamento de Arraes. Ainda hoje é assim. Quando você se aproxima de Arraes, ele se prepara e se previne”.

O senhor tem também esta dificuldade? Eu pensei que era só dos repórteres que trabalham na cobertura política ...

Julião: “É de todo mundo. Os próprios companheiros que estão próximos de Arraes têm dificuldade. É um pouco esfinge. A gente tem de decifrar o pensamento de Arraes, porque ele não se deixa decifrar. Para um político, pode ser bom e pode ser péssimo. Tanto que se vê: Arraes não gosta de figurar em um partido político. Nunca passou pela cabeça de Arraes fundar um partido político, sequer. Toda vez que ele participou de um partido político o fez apenas para ter uma sigla onde se eleger. Já pertenceu a todos os partidos políticos deste país!

Arraes gosta de frentes. Não é por acaso que foi para o PMDB. Não é por acaso que suas eleições sempre se deram em função de frentes. Ele era frentista quando foi prefeito do Recife; era frentista quando foi governador de Pernambuco e agora, como deputado, ainda é frentista.

Desconfio que Arraes nunca virá a fundar um partido ou a participar de um com um programa claro, uma ideologia, uma doutrina, uma filosofia. Ele é homem de frente e enigmático. Não gosta que conheçam o que pensa. Há quase vinte anos tentei a primeira aproximação entre Arraes e Brizola e não foi possível”.

Qual era, então, o argumento de Miguel Arraes para não se aproximar de Brizola?

Julião: “Arraes acha que Brizola era um homem que não reunia as condições para poder participar de um movimento em que ele se engajasse. O que sempre houve, no fundo, foi uma competição, porque os dois foram as duas maiores lideranças que surgiram com a possibilidade - até - de chegar à presidência ou à vice-presidência da República. Havia, então, uma disputa.

O comportamento de Brizola tem sido bem mais modesto em relação a Arraes. Quando Willy Brandt, o ex-chanceler da Alemanha Federal, convidou-o a ir à Alemanha, porque queria conhecer o pensamento de Brizola, antes da anistia e da abertura, Brizola teve o cuidado de ir à Europa e, antes de seguir para a Alemanha, mandou convidar Arraes, para que o acompanhasse.

Brizola disse: “Eu gostaria que você participasse desse encontro. Você está mais informado sobre o que se passa na Europa, porque vivi a maior parte do meu tempo no Uruguai e estou chegando via Estados Unidos. Você poderá se encontrar comigo, para a gente fazer esta conferência”. Arraes foi. E colaborou. As perguntas que Brandt formulava a Brizola eram respondidas pelos dois, numa demonstração de que Brizola estava interessado na aproximação com Arraes.

Depois, fui à Argélia duas vezes, tentar a aproximação. Por último, com o próprio Brizola, quando nos reunimos em Lisboa, tentamos por telefone que Arraes viesse participar do encontro - com absoluta independência - e ver os amigos que tinham vindo do Brasil para a reunião de cerca de 150 brasileiros. Teria direito a voz, se quisesse falar. Se não quisesse, ficaria como simples observador. Arraes não aceitou e não veio.

Achava que uma aproximação com Brizola não tinha sentido, porque Brizola vinha para o Brasil para dividir as forças de oposição. É a arma que ele sempre utilizou. Tanto é que, quando houve o fracasso na fundação do PIB, eu fui informado de que um dos homens que mais exultaram com a derrota de Brizola foi Arraes. Ficou feliz.
Quando surgiu o PDT tentei mais uma vez, fui várias vezes à casa de Arraes no Recife e disse: “Vá pelo menos dialogar com este homem. Ele quer conversar contigo. Se você fala com todo mundo, por que não pode falar com Brizola?”. Houve um momento em que ele aceitou. Mas, afinal, como jagunço desconfiado, retrocedeu. E fez o que é de Arraes: ficar na retaguarda, na reserva, observando. Isso é do temperamento e do caráter de Arraes. Temos de assimilá-Io assim.

Meu comportamento foi sempre esse, nos nossos meses de cadeia: aberto, comunicativo e tratando de descobrir coisas de Arraes, em quem reconheço um homem de qualidades, um bom chefe de família, bom irmão, bom filho e bom pai. É um homem que, para o clã, é magnífico. Mas fica agarrado ao clã. Ele necessita - inclusive - de formar em torno de si um clã político. Não se abre. E faz algumas concessões quando verifica que conta com a absoluta lealdade de quem se aproxima. Qualquer crítica que se faça a Arraes, ele recebe sempre com uma certa desconfiança. Para esta fase em que estamos entrando, no Brasil, seria necessário que ele se abrisse mais, expusesse melhor o pensamento e não ficasse simplesmente nos enigmas”.

Que idéia exatamente o senhor tinha quando tentou aproximar Arraes e Brizola ainda no exílio: voltarem os três juntos - Julião, Arraes e Brizola - para criar um partido forte?

Julião: “Teria sido proveitoso. A união entre os dois poderia ter dado um avanço bem maior à consolidação da democracia no Brasil. Fico pensando que ainda é possível. Sou homem de esperança; nunca perco a esperança de uma aproximação entre os dois. Sempre que houver uma oportunidade me esforçarei, embora reconheça a dificuldade de trazer Arraes. Brizola é mais fácil, porque sempre se dispõe ao diálogo. Como eu digo: Brizola é o Pampa; Arraes é o mandacaru do Cariri”.

Como é que o senhor define ideologicamente Miguel Arraes?

Julião: “Tentei descobrir, na prisão, o pensamento, a ideologia e a filosofia de Arraes. Sempre me confessei marxista. Aderi ao marxismo aos dezenove anos. Era o melhor instrumento ideológico pa:ra interpretar a sociedade, o homem, a natureza e o mundo. Então, perguntei a Arraes: “Seu comportamento me leva a crer que você é um marxista ...”. Ele disse: “Pois você está equivocado. Não sou marxista”. E eu: “O que é que você é, afinal de contas?”. Então, ele me contou que era chardinista, seguia Theillard de Chardin, o teólogo avançado da Igreja.

A obra de Chardin continua lá guardada, para ser estudada. Chardin tem idéias interessantes, chega a admitir a possibilidade de um encontro entre a Ciência e a Religião. Toda a luta de Theillard de Chardin é mostrar que não existe incompatibilidade entre o pensamento científico e o pensamento místico-religioso. Arraes disse que se considerava próximo de Theillard de Chardin.

Arraes tem sofrido influência da Igreja e se ligado aos grandes da Igreja. O Cardeal da Bélgica naquele tempo, em 1964, era um homem com quem Arraes mantinha correspondência. E essa gente deve ter influenciado também para que os laços entre a Igreja e Arraes se estreitassem.

É algo que, acredito, continua a predominar na figura de Arraes. E aí predomina - de novo - o clã. Ele obedece um bocado. A mãe, a irmã e a mulher têm uma influência grande sobre ele. Arraes é fllho único; varão numa família de oito. Então, sempre foi envolvido por esta aura. É até bonito que a mulher tenha uma certa predominância na vida de Arraes, porque as mulheres, quando têm consciência política, são bem mais conseqüentes que os homens.
A gente tem de lutar um bocado no Brasil para que a mulher se incorpore às lutas políticas e sociais deste país. Porque, na medida em que elas se incorporem, daremos passos mais avançados no sentido da transformação da sociedade brasileira”.

É interessante esta revelação que o senhor faz sobre a predileção de Arraes por um teólogo. E a primeira vez que alguém diz. O que é que atraía Arraes na obra de Theillard de Chardin?

Julião: “Como eu conhecia o pensamento de Chardin - ele também - nós não discordamos. Eu quis, naquele momento, descobrir Arraes e saber se ele era materialista ou idealista. Ele escapou por este caminho: nem materialista nem idealista. Isso é bem de Arraes. Quando Theillard de Chardin prega a necessidade de um encontro inteligente entre a Ciência e a Religião, dá um passo tão avançado no sentido de uma Igreja moderna e científica que ainda não foi tirado do socavão das bibliotecas do Vaticano para figurar como teórico da religião católica. Arraes está bem a cavalheiro quando diz que é Theillard de Chardin, porque encarna esta visão”.

Qual foi a pior notícia que o senhor recebeu do Brasil no exílio?

Julião: “Todas as notícias que eu recebia do Brasil eram péssimas. Eram notícias de que se torturava, se assassinava; a perseguição era constante e qualquer movimento que surgia para fazer com que o Brasil retomasse à democracia era esmagado de forma violenta.
Sempre foram péssimas as notícias. Eu não seria capaz de distinguir uma entre elas. A notícia que mais me doeu no exílio foi o assassinato de Salvador Allende. Doeu bem mais que a morte de Che Guevara.

Eu senti um bocado a morte de Che Guevara porque tinha admiração por ele, cheguei a conhecê-Io e a tratá-Io pessoalmente em Cuba, quando ele era ministro da Indústria. Mas minha aproximação pessoal e minhas afinidades eram maiores com Salvador AIlende. Ele chegou ao poder no Chile e inaugurou um processo socialista na legalidade, com a Constituição na mão. Minha afinidade vem daí. Era uma experiência fabulosa: um homem conseguir, através do voto, instituir uma sociedade socialista.

O sacrifício e o assassinato de Salvador AIlende me doeram. Eu estava ligado efetivamente a Salvador AIlende. Ele era do Partido Socialista; eu também era. Sempre que ele passava no México me visitava. Ia até a minha casa e dialogávamos. Allende acreditava que estava inaugurando no Chile algo tão extraordinário para o mundo que, se vingasse, poderia ser a fórmula para a chegada ao socialismo sem precisar de uma grande convulsão e do uso das afinas e da violência”.

O que é que mais marcou o senhor nos contatos com Che Guevara?

Julião: “Numa de minhas visitas a Cuba, recebi um convite para visitar Che Guevara no Ministério da Indústria. Ele trabalhava de noite; passava toda a noite trabalhando. Sempre com a “bomba” perto, para aspirar, porque sempre tinha ataques de asma. Era como se fosse um chimarrão gaúcho. A “bomba” de Che Guevara lembrava um chimarrão. Eu fui convidado daquela vez porque a mãe de Guevara, Dona Célia, esteve no Recife e eu a recebi, como deputado estadual, no Centro Cívico-Literário Monteiro Lobato, no bairro da Iputinga. Tive a oportunidade de saudá-Ia.

E aí houve um negócio desagradável: quando me levantei para saudá-Ia, diante de uma massa imensa, alguém jogou uma bomba. Resultado: a bomba tocou na quina da janela e explodiu. Um negócio tremendo, gente ferida. O camarada que jogou foi embora. Era um terrorista. E esta mulher ficou impassível, sentada, enquanto todo mundo saltava as janelas, naquele pavor do estampido da bomba. Então, eu - que ia fazer um discurso detalhando a vida de Dona Célia e a influência que ela teve - levantei-me, tomei o microfone e limitei-me simplesmente a dizer, depois que se restabeleceu a ordem e desapareceu o pânico: “Senhores e senhoras, aqui está a mãe de Che Guevara!”. Fiz ali o discurso mais curto que já se fez na vida de um político.

Ficou influenciada por este episódio. Contou tudo a Che Guevara - e ele me chamou para falar sobre o Brasil e a América Latina. Só depois de alguns anos, quando ele já entrava na luta, é que eu percebi o sentido de suas perguntas. Ele perguntou um bocado sobre o Mato Grosso e sobre as fronteiras com a Bolívia. Queria saber o que era e como era o Mato Grosso. Queria saber quais eram os rios mais caudalosos, se tinha grandes florestas, quais eram as lideranças mais importantes. Guevara perguntou também se eu conhecia algum líder destacado no Mato Grosso, gente ligada às esquerdas. Quando eu já estava no México, exilado, tomei conhecimento de que ele estava na Bolívia, na guerrilha...

Nosso encontro se centralizou sobre estas questões: a América Latina, as lutas sociais, o Brasil, as fronteiras e a recordação da passagem pelo Recife. Sua mãe tinha lhe relatado. Mas foi um encontro afetuoso”.

Che Guevara fez referências aos projetos de criar vários Vietnãs na América?

Julião: “Não. Isto surgiu depois. Ele fez referências geográficas ao Brasil e, no entanto, não relacionei com nada. Só depois é que percebi qual era o sentido de suas perguntas e, talvez, a razão principal do convite que ele tinha me feito. Não era um convite sentimental ...”

Era um convite prático, ele já pensava na possibilidade de fazer guerrilhas na América Latina ...

Julião: “Era um convite prático...”

Que tipo de curiosidade Salvador AIlende tinha em relação aos problemas políticos do Brasil?

Julião: “A gente conversava sobre a América Latina. Sempre que nos encontrávamos era para falar sobre o desenvolvimento de uma estratégia latino-americana contra a penetração das multinacionais. A preocupação de Allende era libertar o Continente das garras do imperialismo econômico. Ele traduzia “imperialismo econômico” por multinacionais. Num grande discurso que fez na ONU, ele tratou de identificar perfeitamente bem o papel das multinacionais no imperialismo. Ele quis separar o povo norte-americano das grandes multinacionais, porque achava que o imperialismo eram as grandes multinacionais - e não o pensamento do povo norte-americano. Allende era um homem inteligente, distinguia perfeitamente bem. Como tinha uma visão bem mais ampla que o próprio Che Guevara, ele teve mais impacto. A Europa sentiu a morte de Salvador Allende como se fosse, mais do que um acontecimento latino-americano, um acontecimento europeu”.

Já Che Guevara, depois do episódio da bomba que botaram no dia da recepção a Dona Célia Guevara, deve ter ficado com medo do Recife ...

Julião: “Ele fez referências a este episódio com um sorriso. Eu narrei minha admiração pela serenidade com que Dona Célia recebeu aquele impacto”.

Já que nós estamos falando sobre suas experiências com Che Guevara e com Salvador Allende: existe uma canção anarquista italiana que diz que se devem
mandar flores para os rebeldes fracassados. Para que rebelde fracassado o senhor mandaria flores no Brasil?

Julião: “Para todos. Todo rebelde, sobretudo quando tem nas mãos uma bandeira que se identifica com as aspirações mais profundas de um povo, merece e rosas”.

Como é o Brasil com que o senhor sonha?

Julião: “O Brasil dos meus sonhos é um Brasil socialista. Um Brasil em que nossas riquezas possam beneficiar toda a população brasileira. O Brasil é tão rico, é tão grande, tão vasto, tão belo e tem um povo tão cordial, afetivo e carinhoso que não merece o que está aí. O que este povo merece é ser dono deste país e participar de toda esta grandeza. Nós – e sobretudo vocês, os jovens - temos a grande responsabilidade de conduzir o processo de transformação da sociedade brasileira em uma sociedade justa e igualitária, em que nós não vamos necessitar tirar de ninguém - mas dar. O Brasil tem tudo para dar. Não precisa tirar de ninguém. É tão grande, tão rico, tão potente e tão extraordinário este país que a gente pode dar.

E não só dar aos brasileiros, mas a outros povos que vivem em situação mais angustiosas e apertadas, sem possibilidade de se desenvolverem por falta de solo adequado e riquezas minerais. Nós podemos dar a nós e, ainda, oferecer algo aos demais povos.
Meu sonho é este: ver um Brasil e uma América Latina socialistas, sem fronteiras, em que a gente não tenha necessidade de utilizar o passaporte, mas apenas a simples identidade de uma nação em relação a outra. Se sou brasileiro, posso chegar ao Chile com minha carteira de brasileiro. E um chileno pode chegar ao Brasil sem encontrar dificuldade nas fronteiras.
Eu sonho com este mundo. Um mundo socialista, fraternal e igualitário, em que o homem não sinta a angústia de viver, mas sim a necessidade de realizar-se como ser humano".

(1983)

Posted by geneton at 11:45 PM

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS: VI UM OVNI NA BOCA DE UM ASTRONAUTA! E SENTI O BAFO DO PRÊMIO NOBEL!

1
Pode ter sido uma ilusão de ótica, mas tive a clara, nítida e inarredável impressão de que testemunhei uma cena estranha, em Brasília, durante a gravação de uma entrevista com um astronauta que pisou na lua: a arcada dentária superior do herói do espaço se moveu ligeiramente para frente, em meio a uma resposta.

Palpite :não eram dentes naturais. Dente não sai do lugar. Se os dentes se mexeram em bloco, o herói do espaço usava dentadura.

Há quem veja OVNIs no céu. Vi um OVNI - objeto voador não-identificado - logo ali, na boca do astronauta que pisou na lua.

2

Que as musas da literatura me perdoem, mas vou cometer uma indiscrição inútil, banal, desnecessária e dispensável :
o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago exalava mau hálito quando me deu uma entrevista no Copacabana Palace.
Pronto. Contei.
Agora, disfarço, olho para o chão, saio da sala de fininho.

Posted by geneton at 06:16 PM

O CLUBE DOS PEZINHOS NAS POLTRONAS TENTA CONTATO COM TERRÁQUEOS

Bato o olho na televisão. A participante de uma roda de conversa tira o sapato e põe os pés na poltrona, durante todo o programa. Meus botões me perguntam : "É para parecer livre e informal"?

Troco de canal. Um entrevistador da TV a cabo também tira o sapato e exibe os pés no sofá. Meus botões me sussurram: "É para parecer moderno e relaxado?".

Aperto o controle remoto. Uma diretora de teatro tira o sapato e põe o pé em cima da poltrona durante toda uma entrevista num talk show. Meus botões se agitam :"É para parecer esperta e inteligente?".

(as cenas, reais, aconteceram em dias diferentes mas, em nome da dramaturgia, faço de conta que foram simultâneas. É o que os autores de livros de bolso policiais chamam de "efeito dramático").

Imagino que os integrantes do Clube dos Pezinhos nas Poltronas estão todos tentando enviar com os dez dedos uma mensagem clara e cristalina a nós, humanóides.

Não consigo captá-la.

Meus botões me aconselham :"Desista. Tire o sapato. Vá dormir".

Posted by geneton at 06:12 PM

O INÍCIO E O FIM DE MINHA CARREIRA DE FILÓSOFO AMADOR

Se um dia eu for chamado a um Tribunal das Causas Inúteis, confessarei ao meritíssimo: sou capaz de citar de memória, sem consultar qualquer fonte, a escalação completa do time do Sport Clube do Recife de 1968:

Miltão; Baixa, Bibiu, Gílson e Altair; Válter e Vadinho; Dema, Zezinho, Acelino e Fernando Lima.

Também posso citar de cabeça os times do Santos ( Cláudio; Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manoel Maria, Toninho, Pelé e Edu) ou do Botafogo ( Cao; Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César) ou do Palmeiras ( Perez; Scalera, Baldochi, Minuca e Ferrari; Dudu e Ademir da Guia; Gildo, Sevílio, Tupãzinho e Rinaldo).

Pergunto: alguém sabe responder para que servem tantos nomes?

Eu apostaria, com cem por cento de certeza: para nada.

Aqueles programas de TV em que um fanático respondia sobre um assunto já acabaram. Além de tudo, quem iria escalar um concorrente cujo maior trunfo é citar de memória a escalação de quatro times de 1968? Ninguém, é claro.

Mas esta era a escalação dos meus times de botão, quando eu tinha doze anos.

Já sei o que fazer neste feriadão: vou caminhar pela rua enquanto repito para mim mesmo, num tom de voz inaudível para os passantes: "miltão; baixa, bibiu, gílson e altair....."

A vida - descubro, tardiamente - é esta grande, imensa coleção de pequenas inutilidades.

Dita esta bobagem, declaro solenemente encerrada minha carreira de filósofo amador.

Posted by geneton at 06:06 PM

DÚVIDA TRANSCENDENTAL: POR QUE MÚSICA COM BANDANA?

Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, nossa padroeira, respondei a este pobre observador: por que diabos em noventa e nove por cento dos grupos musicais que acompanham cantoras e cantores existe sempre um músico usando bandana? Alguém saberia explicar por quê?

A relevância desta dúvida é zero vezes zero. Não existe nada tão desimportante. Mas pergunto aos quatros ventos: por que a bandana? Por que a bandana?


Posted by geneton at 06:04 PM

BOMBA! BOMBA! OS JORNAIS ESTÃO CAVANDO A PRÓPRIA SEPULTURA!

1
Ah, o indizível tédio. Quando um desses Profetas do Apocalipse previam o fim da imprensa escrita, eu vos confesso que reagia com o meu melhor sorriso de desdém.

2
Que é assim: uma ligeira contração na interseção esquerda do lábio superior com o inferior. Mas minha descrença nas profecias sobre o fim do jornal impresso foi atropelada pelos fatos. Passei a conviver com uma dúvida inconfessável: quem sabe se os Profetas do Apocalipse não teriam razão?

3
Com o tempo , a dúvida se propagou, como um incêndio fora de controle, por minhas florestas interiores. Hoje, procuro com uma lanterna na mão um Guardião do Cálice Sagrado que possa, enfim, responder: se noventa e cinco por cento das notícias da primeira página já foram divulgadas na véspera pela TV e pela Internet, que papel caberá aos jornais, no futuro?

4
A geração habituada a trafegar na Infovia de Papel, como o locutor que vos fala, uma pré-múmia cinquentenária, consome jornais por hábito, mas os novos infornautas já não concedem tanta importância a esta superfície lisa e retangular que reinou, soberana, por décadas : a página de jornal. As telas dos computadores são a fonte que lhes mata a sede de informação.

5
Se tivesse a chance, eu perguntaria ao Guardião do Santo Graal : os jornais não estariam cavando a própria sepultura, ao repetir, acomodados, o que a gente já sabe desde a véspera ?

6
Por que será que há anos e anos todos dizem que os jornais devem investir pesadamente em grandes reportagens, em opinião qualificada, em "contextualização" dos fatos, mas ninguém põe em prática estas recomendações? É como se todos concordassem com o diagnóstico de um paciente, mas ninguém fizesse nada, nada, nada para lhe dar o remédio salvador.

7
Quanto a noviços autores dos livros: se o número de frequentadores de um blog bem visitado é invariavelmente superior ao de possíveis leitores de um livro, um autor novo certamente perguntará a seus botões : quem disse que vale a pena enfrentar a peneira das editoras, as edições mirradas, a distribuição difícil, a venda pingada, tudo em nome da fugaz glória de ver o nome impresso na capa de um livro exposto na quarta prateleira à esquerda de quem entra na livraria?
A tiragem média de um livro no Brasil é de três mil exemplares. Direitos autorais :dez por cento sobre o preço de capa. Distribuição: irregular. Repercussão : baixa. Ou nula.

8
Já se disse que o papel fica, a Internet se esvai. Mas quem disse que os arquivos digitais também não terão vida longa? Quem disse que os grandes arquivos da Internet não serão acessados daqui a cem anos? ( quem faz a pergunta que destroça um dos últimos argumentos a favor do papel - a capacidade de permanência - é o companheiro de Sopa de Tamanco, Toni Marques).

9
Kurt Vonnegut dizia que era devoto de Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. A revolução da Internet espalha espantos. Destrói certezas. Deixa no ar todas estas interrogações.
Um dia, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto nos responderá.
A ela, haveremos de acender velas imaginárias a cada vez que a lista de perguntas-sem-respostas e dúvidas-sem-saída incomodar nossas frágeis certezas.

10
Palpiteiro amador, arrisco dizer que o livro-objeto não desaparecerá. É a maior invenção da humanidade.

( Em segundo lugar na lista das invenções, distante, vem a Coca-Cola. Em terceiro, os melhores parágrafos de "O Leopardo","A Montanha Mágica", "Quarup" e "A Pedra do Reino". Em quarto,o chocolate Diamante Negro. Em quinto, o disco Abbey Road. Em sexto, a visão de Veneza à noite, no inverno. Em sétimo, os olhos de Charlotte Rampling, nos anos setenta. Em oitavo, o poema "A Máquina do Mundo" (Carlos Drummond de Andrade). Em nono, o riso discreto de Scarlet Johansenn. Em décimo, a Internet, com chances reais de subir para o primeiro).

11
Como eu ia dizendo antes de ser interrompido por esta lista urgente, o livro há de resistir aos cataclismos internéticos, mas os jornais, tal como existem hoje, vão nadar, nadar, nadar, mas não chegarão à praia.

12
Ou mudam de rumo ou naufragam, quem sabe, ao som de uma orquestra, como o Titanic. Um dia, os arqueólogos do futuro mergulharão nos baús para mostrar ao mundo que aquele punhado de folhas amareladas já foi chamado de jornal.


Posted by geneton at 06:01 PM

OS LIVROS ESTÃO INDO PARA O TRITURADOR. OU A FOGUEIRA. CHAMEM CASTRO ALVES, URGENTE!

A vocação do Brasil para se perpetuar como uma republiqueta de décima quinta categoria se manifesta de novo. O trabalho de anos e anos do jornalista Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos, foi para o lixo.


A cena - patética, deprimente, horrorosa, indefensável, injustificável - saiu no jornal: caminhões recolhendo caixas e caixas de exemplares do livro "Roberto Carlos em Detalhes" no depósito da Editora. Vergonha. Vergonha. Vergonha. A visão de livros incinerados ou triturados é digna da era nazista. Um colunista da Veja, André Petry, acertou em cheio: Roberto Carlos manchou para sempre a própria biografia ao dar esta demonstração de absurda intolerância.

O livro vai ser fisicamente destruído - uma violência inominável. A destruição física do livro significa que todas as páginas foram censuradas. Todas as frases. Todas as vírgulas. Todos os parágrafos. Tudo. Que se diga com todas as letras: o veto integral ao livro configura uma violência e um ataque à liberdade de expressão. Abre um precedente perigosíssimo. Dá vontade de repetir a pergunta inútil: "Onde é que estamos?".

Uma voz, vinda das profundezas do inferno, sussurrará aos nossos ouvidos :"Calma! Nós estamos no país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza! Aqui, nesta republiqueta de décima sexta categoria, um juiz ajuda a decretar a pena de morte para um livro honesto, jornalisticamente correto e bem apurado. Depois, posa para foto com o co-responsável pela violência- o autor da queixa contra o livro!" ( quem não leu no jornal perdeu a chance de se indignar : terminada a audiência, o juiz pediu para tirar uma foto ao lado de Roberto Carlos. De quebra, deu ao cantor um CD que ele, juiz, músico amador, gravou nas horas vagas, um arremedo de Bossa Nova...).

É claro que, na prática, o recolhimento dos exemplares do livro não significa nada. O juiz, o cantor & seus sócios se esqueceram de que, para o bem ou para o mal, a vida intelectual hoje não se apóia em bases físicas, mas virtuais. Quem quiser pode queimar papel à vontade. Pode mandar triturar caixas e caixas e caixas de livros. Como se dizia na pré-história, "debalde". Porque, hoje, textos existem virtualmente na Internet. Não podem ser punidos com a destruição física. O texto integral do livro já circula, livre, nos computadores. Quem quiser pode lê-lo a qualquer momento. É só clicar.

A Internet fez este enorme bem à humanidade: as garras da censura e da intolerância podem ser peludas, intransigentes, violentas, nazistóides e intolerantes, mas são incapazes de decretar a morte de um texto. Hoje, é tecnicamente impossível banir um livro. (Thank you, Bill Gates! Deus te pague! Aliás, já pagou, em bilhões de dólares) . Basta que qualquer internauta de qualquer lugar do mundo digite o texto de um livro censurado e hospede-o num site fora das garras dos censores. Pronto. Acabou a palhaçada. A censura vai para o inferno. A liberdade de expressão - um bem que não pode ser jogado às feras sob hipótese alguma - reina, soberana e intocável, nas telas dos computadores).

A famosa primeira emenda à constituição americana proíbe que se crie qualquer instrumento contra a liberdade de expressão e de imprensa. A boa notícia : a Internet vem funcionando como uma espécie de Primeira Emenda planetária contra os abutres da liberdade de expressão. Nem foi preciso que se escrevesse esta emenda : ela já entrou em vigor, para todos os efeitos.

O artigo de Paulo Coelho na Folha de S.Paulo sobre a censura imposta ao livro é brilhante. O grande best-seller teve coragem. Partiu para a briga,o que é uma virtude louvabilíssima, nesta republiqueta de décima sétima categoria em que todo mundo dá tapinha nas costas de todo mundo. Pausa para vomitar. O choque de idéias, obrigatório em ambientes intelectualmente saudáveis, aqui no Brasil é logo substituído pela conciliação. Não por acaso, o Brasil é o que é : um paiseco de décima oitava categoria em que o jornalismo é chato, a literatura é chata, a universidade é chata.

Com raras exceções, a violência de inspiração nazista cometida contra o biógrafo de Roberto Carlos mereceu apenas reações burocráticas da imprensa. Não conheço Paulo César Araújo pessoalmente. Mas ele merece toda a solidariedade. Cadê os editoriais irados na imprensa? Cadê as manifestações iradas dos editores? Cadê as páginas e páginas e páginas de reclamação, briga, confronto, questionamento? O assunto não pode morrer assim. Que grande, enorme, injustificável vergonha! Onde estão os editores todos - que não fecham o trânsito na Avenida Paulista e na Avenida Rio Branco para protestar?

O Caso Roberto Carlos não é o único. Há outras vítimas de violência : um perfil biográfico do grande poeta Manuel Bandeira, escrito pelo jornalista Paulo Polzonoff, continua mofando no depósito de uma editora, numa cena digna de um filme sobre a Alemanha dos anos trinta- ou do Brasil dos anos setenta! Motivo: herdeiros do poeta investiram previamente contra o livro.

O caso é gravíssimo: um livro,impresso, sequer chegou às prateleiras da livrarias! A violência é até pior do que a cometida contra o biógrafo de Roberto Carlos. O livro sobre o cantor já é de domínio público. Independentemente do fato de o livro ter sido recolhido, censurado, destruído, queimado ou triturado, quem quiser poderá lê-lo na tela do computador. Já o livro sobre Manuel Bandeira foi alvejado no nascedouro. Nem chegou a ser distribuído! Manuel Bandeira é um patrimônio do Brasil. Ter acesso à história do poeta é um direito dos leitores. Mas não! Aqui, na republiqueta de décima nona categoria, o livro mofa nos depósitos.

Cadê as reportagens sobre o caso? Onde estão os pauteiros dos cadernos de cultura? Que explicação se dá para esta violência? O que é que vai acontecer com os livros? Digo de novo: o caso é gravíssimo. Mas quase ninguém liga. Vai todo mundo cantar "olê-lê-olá-lá-pega-no-ganzê-pega-no-ganzá" em mesas de churrascaria desta republiqueta de vigésima categoria. Em duas, três semanas, o assunto some do noticiário. Mas não deveria sumir.

Que fique registrado este protesto, inútil, contra duas violências que acabam de ferir e manchar o ambiente editorial e jornalístico deste paiseco de vigésima primeira categoria: uma foi cometida contra Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos ;a outra, contra Paulo Polzonoff, autor de um perfil biográfico de Manuel Bandeira.

O pior de tudo é que os que tiveram a chance de ler a biografia de Roberto Carlos garantem que o tom do livro é cem por cento elogioso! O perfil de Manuel Bandeira é apenas uma reportagem alentada sobre o poeta. Mas os dois estão condenados! Repito: que vergonha! Que vergonha! Que vergonha!

Que paiseco de vigésima segunda categoria é este, em que queixas contra livros honestos e corretos encontram terreno para progredir? Que Congresso Nacional é este - que não revê imediatamente as brechas que a Constituição deixou abertas para os abutres da liberdade de expressão? Duas décadas depois da redemocratização, a Censura ameaça emergir de novo das trevas, sob novos disfarces. Que se diga: não, não e não! O Brasil não quer ver de novo este filme de horror: antes, generais de óculos escuros, sargentos e coronéis se davam ao direito de dizer o que deveríamos ler ou não. Hoje, a intolerância, a intransigência e a ganância, escudadas em brechas da lei, ameaçam transformar o Brasil no país da biografia a favor. Quem desafinar o coro vai para a fogueira! Ou para a máquina trituradora! Em aldeias civilizadas, quem se sente ofendido recorre à Justiça. Briga boa é a que vai até o Supremo. O que não se pode, sob hipótese alguma, é censurar cem por cento do conteúdo de um livro, mandar uma edição inteira para o lixo ou condenar uma biografia a mofar no depósito


Qual o resultado de tanta insânia e tanto horror?
Gestos como estes ameaçam inviabilizar a publicação de biografias no Brasil. Se a esquisitice e a intolerância de uma personalidade pública são suficientes para condenar um livro a arder no fogo da censura, as editoras vão fugir da raia antes de embarcar em projetos biográficos. É este, ma verdade, o grande prejuízo: quantos e quantos projetos não serão abortados antes de escrito o primeiro parágrafo? Quantos e quantos livros deixarão de ser escritos?

Quem perde? Como sempre, o Triste Gigante; esta nossa velha republiqueta de vigésima terceira categoria - que convive com a insânia, a violência, a iniquidade, a censura e o horror como se fosse possível tolerar a insânia, a violência, a iniquidade, a censura e o horror. Não é.

Então, num gesto inútil de desobediência civil, só para mostrar que a capacidade de indignação não morreu, todos deveriam - independentemente de ter ou não interesse sobre a história do biografado – acessar na Internet o livro que será triturado em breve.

A nós, espectadores deste desfile de horrores, resta o quê? Chamar Castro Alves, urgente : "Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura/ Se é verdade / Tanto horror perante os céus!".

(*)Publicado no jornal O GLOBO, 13/05/07

Posted by geneton at 05:58 PM

POR QUE É HORA DE COMEÇAR LOGO UMA NOVA GUERRA DAS MALVINAS?

LONDRES - Defensores dos bons costumes e das boas maneiras,fiquem alertas.Militantes da mentalidade ''politicamente correta'',saiam da frente. Mal-humorados que levam tudo a sério,preparem o estômago.

Porque acaba de desembarcar nas livrarias da Inglaterra um dos mais ''politicamente incorretos'' textos já produzidos.Não por acaso,a obra se chama ''O Manual Oficial do Politicamente Incorreto''(''The Official Politically Incorrect Handbook''). Os autores : dois ingleses de trinta e cinco anos,escritores free-lancers,chamados Mark Leigh e Mike Lepine.A editora : Virgin Books.A missão : demonstrar aos incrédulos que,ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, a Inglaterra não parece disposta a tolerar os excessos da mentalidade politicamente correta.

Os defensores da mentalidade ''politicamente correta'',como se sabe,condenam todo e qualquer gesto que possa ser visto como remotamente ofensivo contra quem quer que seja. A intenção pode até ser louvável.O problema é que o temor de ferir susceptibilidades alheias terminou criando exageros. Piadas sobre minorias ? Nem pensar ! Resta uma pergunta : onde é que fica o senso de humor - uma instituicao secularmente cultuada na Grã-Bretanha ?

Com o lancamento do livro da dupla Leigh & Lepine,os ''politicamente incorretos'' lancam um novo - e bem-humorado- golpe contra os militantes radicais da pretensa correção política. Sem medo das patrulhas politicamente corretas,os dois ingleses reúnem,em 271 paginas,opiniões,tiradas e comentários que farao corar de raiva os apostolos do ''politicamente correto''.
A África -por exemplo- serve para quê ? ''Para preencher o espaco vazio entre a América do Sul e a Índia e como cenario de filmes de Tarzan'' - escreve a dupla.

NINGUéM ESCAPA DA PENA AFIADA DA DUPLA INCORRETA

O manual traz uma variadíssima lista de afirmações politicamente incorretas,seguidas de uma justificativa.Exemplos :

1.''Por que é hora de comecar logo uma nova Guerra das Malvinas? Como a gente vai perder mesmo a próxima Copa do Mundo,então é melhor arranjar alguma coisa para comemorar''.
2.''Por que estudar matemática na escola é uma completa perda de tempo? Ninguém jamais ficou rico por saber calcular o mínimo denominador comum''.
3.''Por que é tão bom ser estúpido? Porque um estúpido sempre encontrará' o que ver na televisão''.
4. ''Por que a guerra é melhor que a paz? Dê um pulo no vídeo-clube.Quantos filmes de paz existem lá ?''
5. ''Por que o sexo feminino é inferior? Tente se lembrar do nome de uma batalha importante vencida por uma mulher....''.
6.''Por que a França pode continuar a fazer testes nucleares no Pacífico? Porque seria uma completa irresponsabilidade fazer os testes no centro de Paris''.
7.''Por que é bom frequentar prostitutas? Porque,na hora H,elas dizem coisas como ''oh,baby !'',''oh,sim,sim !'',em vez de ''você levou o gato pro quintal ?''.

8.''Por que é indispensável ver o discurso de Rainha na televisão no Dia de Natal? É uma excelente oportunidade para toda a família ir ao banheiro,antes de começar a ver,pela quinta vez,os ''Caçadores da Arca Perdida''.
9.''Por que ninguém deve se preocupar com a poluição das águas? Porque não vivemos nos rios''.
10.''Por que é perfeitamente aceitável usar casaco de pele? Todos os animais usam.Ninguém nunca reclamou''.
11.''Por que é bom ser um branco anglo-saxão? A polícia nunca dá em cima de você''
12.''Por que precisamos dos políticos? Porque,quando nos comparamos com eles,nos sentimos honestos e virtuosos''.
13.''Porque que é bom ensinar religioes alternativas nas escolas? Porque assim saberemos que não estamos perdendo nada.Além de tudo,cânticos e rezas de outros povos sao em geral hilariantes...''.
14.''Por que a Inglaterra deve gastar mais dinheiro recrutando soldados para o exército do que contratando médicos para os hospitais publicos? A Rainha ia achar um tédio passar em revista uma tropa de especialistas em ouvido,nariz e garganta...''.
15.''Por que a arte moderna é uma porcaria? Qualquer coisa que parece melhor quando estamos bêbados do que quando estamos sóbrios é suspeita. Além de tudo,um tijolo é um tijolo : qualquer criança de cinco anos sabe. E um carneiro morto é um prato : nao é um objeto de arte''.
16.''Por que a Previdência Social deve financiar as operações para aumentar os seios,em vez de gastar dinheiro com transplantes? Porque, ao contrário do que acontece com os seios, os homens jamais poderão enfiar o rosto entre rins transplantados e dizer ''glub,glub,glub''
17.''Por que o Império Britânico era bom? Se o império não tivesse existido,o Cinema Império,no centro de Londres,provavelmente se chamaria hoje Odeon,o que criaria confusão no publico,porque já existe um outro Cinema Odeon na cidade''.
18.''Por que o Budismo jamais pegará na Inglaterra? Porque os ingleses acham que é melhor ir para o inferno do que viver aqui por não sei quantas encarnações''.
19.''Por que os castigos corporais devem ser adotados novamente na Grã-Bretanha? Poderemos gravar os castigos e vender as fitas todas para a Alemanha''.
20.''Por que as companhias não devem dar emprego a ninguém com mais de sessenta anos? Porque os aparelhos de surdez podem causar interferências nos sistemas de alarme contra incêndio''.

OS POLITICAMENTE CORRETOS SE TORNARAM PATRULHEIROS

Antes de comecar a entrevista, Mike Lepine pediu licença para cometer o que chama de ''um ato politicamente incorreto'' : acender um cigarro. O ''Manual Oficial do Politicamente Incorreto'' pretende fazer o público rir,mas há um traço sério na obra :
-A propagação da mentalidade politicamente correta me faz lembrar o livro ''l984'', em que George Orwell fala da manipulação das palavras através da criação de um novo idioma - a ''novilíngua''. É o que os politicamente corretos estao fazendo,na prática : querem mudar nossa maneira de pensar mudando as palavras.Mas não queremos ser manipulados por eles !
O politicamente incorreto Lepine admite que a mentalidade politicamente correta ''pode até ter bons aspectos.Ninguém obviamente quer viver num mundo em que uns odeiem os outros.Ninguém - diz Lepine - quer racismo ou sexismo. Mas o problema é como os politicamente corretos atuam : terminam se tornando, eles proprios,ofensivos ! .A correção política - constata - é uma camisa de forca .Os adeptos desta mentalidade ficam brigando com as palavras,em vez de se ocuparem dos reais problemas.A mentalidade politicamente correta não permite que voce faça julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim. Não há padrões, portanto. Isto é nocivo ! Quem luta contra a mentalidade politicamente corrreta tenta,na verdade,estabelecer padrões de julgamento - que são necessários!’’.

Lepine se defende de eventuais críticos :
-Tudo o que fizemos,no Manual,foi escrever coisas que as pessoas normalmente dizem nos pubs,numa roda de amigos.Ali,a verdadeira opinião de cada um aparece. As pessoas são todas,por natureza,politicamente incorretas. Mas eu simplesmente nao consigo ver que danos ou prejuizos o senso de humor pode causar.

Ninguém escapa da pena afiada dos dois autores politicamente incorretos - nem Tarzan e muito menos a classe operária. Aqui,eles explicam por que Tarzan é o modelo ideal para um operário - um exemplo tipico do humor politicamente incorretíssimo :
''1.Tarzan vive pra la e pra cá, rodeado por um bando de macacos...

2.Só se comunica através de grunhidos

3.Gosta de andar sem camisa
4.Não tem a menor idéia sobre a identidade do pai.
5.Aprendeu suas maneiras com um chimpanzé.
6.Carrega uma faca.
7.E vive aterrorizando a população negra da vizinhança.
---------------------------------------------(1997)

Posted by geneton at 05:54 PM

CAETANO VELOSO

O "QUASE PERNAMBUCANO" CAETANO VELOSO VÊ O BRASIL PELOS OLHOS DE JOAQUIM NABUCO

Rio de Janeiro - Caetano Veloso, o mais baiano dos artistas baianos, anuncia, a quem interessar possa: vem se sentindo “quase” um pernambucano. Motivo: o deslumbramento que lhe causou a leitura do livro “Minha Formação”,escrito há um século pelo abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco.

Depois de ganhar de presente um exemplar da nova edição do livro,publicado pela Editora Topbooks, Caetano Veloso ficou “deslumbrado” não apenas com a beleza do texto,mas também com as confissões feitas pelo abolicionista. O homem que combateu com todas as forças a escravidão escreveu, num belo texto confessional,que sentia saudade dos escravos.

O impacto da descoberta de Joaquim Nabuco foi imediato sobre o mais inquieto dos compositores brasileiros de primeiro time. Caetano Veloso extraiu de uma passagem de Joaquim Nabuco o título do disco que lançou em dezembro – “Noites do Norte”. Resolveu enfrentar o desafio de musicar um texto em prosa de Joaquim Nabuco sobre a escravidão – devidamente incluído no disco.Como se não bastasse,ficou bem impressionado com o artigo que o vice-presidente da República,o pernambucano Marco Maciel,escreveu na Folha de S.Paulo no Dia Nacional da Consciência Negra.Caetano Veloso elogia a firmeza do artigo em defesa do negro.Por fim,proclama que o melhor grupo em atividade na música brasileira vem do Recife : a banda Nação Zumbi.

Neste depoimento – que Continente Cultural publica na íntegra com exclusividade – Caetano Veloso explica com detalhes a origem da paixão intelectual por Joaquim Nabuco.Trechos desta entrevista exclusiva apareceram no site de Caetano Veloso na Internet. Agora,pela primeira vez,o depoimento é publicado sem cortes.

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Eis exemplos de textos de Joaquim Nabuco que emocionaram Caetano Veloso no livro “Minha Formação “ :

1."NENHUMA DAS MINHAS IDÉIAS POLÍTICAS SE ALTEROU NOS ESTADOS UNIDOS,MAS NINGUÉM ASPIRA O AR AMERICANO SEM ACHÁ-LO MAIS VIVO,MAIS LEVE,MAIS
ELÁSTICO DO QUE OS OUTROS,SATURADOS DE TRADIÇÃO E AUTORIDADE,DE
CONVENCIONALISMO E CERIMONIAL".

2."..COMBATI A ESCRAVIDÃO COM TODAS AS MINHAS FORÇAS,REPELIA-A COM
TODA A MINHA CONSCIÊNCIA- COMO A DEFORMAÇÃO UTILITÁRIA DA
CRIATURA, E NA HORA EM QUE A VI ACABAR PENSEI PODER PEDIR TAMBÉM MINHA
ALFORRIA,POR TER OUVIDO A MAIS BELA NOVA QUE EM MEUS DIAS DEUS PUDESSE
MANDAR AO MUNDO; E,NO ENTANTO,HOJE QUE ELA ESTÁ EXTINTA,EXPERIMENTO UMA SINGULAR NOSTALGIA : A SAUDADE DO ESCRAVO"...

3."A ESCRAVIDÃO PERMANECERÁ POR MUITO TEMPO COMO A CARACTERÍSTICA NACIONAL DO BRASIL.ELA ESPALHOU POR NOSSAS VASTAS SOLIDÕES UMA GRANDE
SUAVIDADE; SEU CONTATO FOI A PRIMEIRA FORMA QUE RECEBEU A NATUREZA
VIRGEM DO PAÍS -E FOI A QUE ELE GUARDOU; ELA POVOOU-O COMO SE FOSSE
UMA RELIGIÃO NATURAL E VIVA,COM OS SEUS MITOS,SUAS LEGENDAS,SEUS
ENCANTAMENTOS; INSUFLOU-LHE SUA ALMA INFANTIL,SUAS TRISTEZAS
SEM PESAR,SUAS LÁGRIMAS SEM AMARGOR,SEU SILÊNCIO SEM CONCENTRAÇÃO,SUAS ALEGRIAS SEM CAUSA,SUA FELICIDADE SEM DIA
SEGUINTE...É ELA O SUSPIRO INDEFINÍVEL QUE
EXALAM AO LUAR AS NOSSAS NOITES DO NORTE.

4.”QUANTO A MIM,ABSORVIA-A NO LEITE PRETO QUE ME AMAMENTOU; ELA
ENVOLVEU-ME COMO UMA CARÍCIA MUDA TODA A MINHA INFÂNCIA;ASPIREI-A
NA DEDICAÇÃO DE VELHOS SERVIDORES QUE ME REPUTAVAM O HERDEIRO
PRESUNTIVO DO PEQUENO DOMÍNIO DE QUE FAZIAM PARTE....ENTRE MIM E
ELES,DEVE TER-SE DADO UMA TROCA CONTÍNUA DE SIMPATIA - DE QUE
RESULTOU A TERNA E RECONHECIDA ADMIRAÇÃO QUE VIM MAIS TARDE A
SENTIR PELO SEU PAPEL".

5."PELA PEQUENA SACRISTIA ABANDONADA PENETREI NO CERCADO ONDE ERAM
ENTERRADOS OS ESCRAVOS...DEBAIXO DOS MEUS PÉS ESTAVA TUDO O
QUE RESTAVA DELES.SOZINHO ALI,INVOQUEI TODAS AS MINHAS REMINISCÊNCIAS,CHAMEI-OS A MUITOS PELOS NOMES,ASPIREI O AR
CARREGADO DE AROMAS AGRESTES,QUE ENTRETÉM A VEGETAÇÃO SOBRE SUAS
COVAS...".


6."OH,OS SANTOS PRETOS ! SERIAM ELES OS INTERCESSORES PELA NOSSA
INFELIZ TERRA,QUE REGARAM COM SEU SANGUE,MAS ABENÇOARAM
COM SEU AMOR !"....

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POR QUE O TEMA DA RACA BRASILEIRA APARECE TÃO FORTEMENTE EM SUAS ÚLTIMAS MUSICAS ? O QUE É QUE PROVOCOU O INTERESSE POR ESSE TEMA AGORA ?

Caetano Veloso : "Interesso-me por esse assunto desde
menino.Não parei de me interessar.Mas quando eu ia comecar a fazer esse novo
disco,eu so pensava nos sons : queria fazer experimentacoes com o modo de
gravar a voz com percussao.Eu nem sabia que cancoes eu iria cantar ou
compor.Mas,assim que recebi de presente o livro "Minha Formação",fiquei
maravilhado com Joaquim Nabuco.Desde o início,fiquei impressionado com a
amplidão da visão e o estilo de Joaquim Nabuco.O que me impressionou também foi
o modo de Joaquim Nabuco ver a política internacional no século XIX,a situação
na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos.O comentário que ele faz dos
Estados Unidos dá uma impressão uma lucidez total,uma total ausência de
provincianismo. É uma voz de uma verdadeira elite brasileira assim como a gente
gostaria de poder sonhar.E,no entanto,a gente tem ! Fiquei maravilhado com
Joaquim Nabuco antes de chegar a essa questão da raça.Quando Joaquim Nabuco
entra nas lembranças do abolicionismo - ele que foi um dos líderes mais
notáveis da campanha da abolição -,faz uma reflexão sobre uma lembrança de
infância quando o assunto da escravidão apareceu para ele como um problema a
ser resolvido.Fiquei apaixonado por um texto magnífico que comeca dizendo: a
escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do
Brasil.A frase entra com grande impacto.O que vem depois vai aprofundando o
problema para um lado que a gente não espera.Eu achei que ali estava um texto
de densidade e beleza,uma expressão profunda do Brasil.Eu disse assim : "Vou
imprimir este texto de Joaquim Nabuco na primeira página do libreto do meu novo
disco". Não pensei,num primeiro momento,em musicar aquelas palavras de Joaquim
Nabuco.Terminei musicando,coisa que me parecia muito difícil,porque era um
texto em prosa,reflexivo,mas com um certo tom lírico.O assunto entrou no meu
disco com mais peso do que eu imaginava".

JOAQUIM NABUCO CONFESSOU,EM "MINHA FORMAÇÃO",QUE TINHA UM SENTIMENTO CONTRADITÓRIO : ELE,QUE TINHA LUTADO COM TODAS AS FORÇAS CONTRA A ESCRAVIDÃO,CONFESSOU QUE SENTIA O QUE ELE CHAMAVA DE "SINGULAR NOSTALGIA" - A
SAUDADE DO ESCRAVO. O QUE DEIXOU VOCÊ FASCINADO COM JOAQUIM NABUCO FOI O SENTIMENTO AMBÍGUO QUE ELE TEVE EM RELAÇÃO A ESSE TEMA?

Caetano Veloso : "Eu já estava muito fascinado por ele antes de
ele confessar essa sutileza do espírito individual diante da questão.É um
momento complexo e ambíguo do "Minha Formação".Talvez seja o momento mais
intimamente confessional de todo o livro.Depois dessa confissão é que vem o
trecho que me levou a querer musicar.O assunto terminou dando o título a meu
disco - que se chama "Noites do Norte".Mas essa confissão permitiu que ele
retomasse a idéia de que a escravidão tinha organizado -ou desorganizado! - a
vida brasileira de tal maneira que o Brasil precisaria de muito tempo e muito
esforço para desfazer o trabalho da escravidão.É um bordão do pensamento de
Joaquim Nabuco,que,neste momento de "Minha Formação",aparece sob a luz do
reconhecimento de um sentimento contraditório : aquele que mais lutou pela
abolição da escravatura confessa que sentia saudade do escravo. Para mim, essa
reflexão pessoal de Joaquim Nabuco já é uma revelação de algo muito profundo
que é o Brasil. Quando vi que,logo em seguida,ele expande esse sentimento para
um retrato abrangente do Brasil,eu disse : é mais do que poesia !"..

QUE OUTRO HORROR BRASILEIRO, ALÉM DA ESCRAVIDÃO, SERIA CAPAZ DE DESPERTAR SENTIMENTOS AMBÍGUOS EM VOCÊ?

Caetano Veloso : "Eu estou embebido dessa visão do Joaquim
Nabuco.Venho lendo e relendo "Minha Formação".Já reli - muito! - "O
Abolicionismo".Assim como fêz Joaquim Nabuco,acho difícil,neste momento,não
atribuir todos os horrores nacionais à escravidão- que ele descreve como tendo
formado o Brasil.
Joaquim Nabuco atribuía à escravidão a estrutura do
pensamento do homem brasileiro como ser social : é a sensação paralisadora que
o brasileiro tem de que tudo se deve às autoridades oficiais; toda queixa deve
ser feita contra elas;todas as exigências devem ser feitas a elas;quase nenhuma
responsabilidade resta para o cidadão.É essa vontade louca de cada brasileiro
se tornar um funcionário público,uma estrutura que leva a coisas que me
indignam. Sou,por exemplo,um obsessivo pela obediência às leis do
trânsito.Sempre me pareceu absolutamente inaceitável que as pessoas no Brasil
não considerem o sinal de trânsito um sinal nítido e simples,uma lei de
convivência social paradigmática de todas as outras leis de convivência social.

Mas vejo também a linguagem corporal, extremamente sensual e
bonita dos brasileiros nas ruas.Estrangeiros - que às vezes trago ao Brasil -
ficam fascinados com esse jeito de ser e de andar na rua dos brasileiros - que
transmite uma impressão de felicidade física.O diretor do Museu Gugenheim,que
veio ao Brasil para escolher a cidade onde vao instalar uma filial do
museu,disse,depois de um dia : "Quero morar aqui !".Pelo modo de as pessoas de
moverem ! Isso me parece misteriosamente vinculado à dificuldade brasileira de
entender o aspecto abstrato de leis tão simples quanto as de
trânsito.Antes,muito antes de ler o que Joaquim Nabuco escreveu sobre a
escravidão,eu pensava assim.Eu manterei,sempre,minha posição pública contra
o desrespeito às leis do trânsito,mas,intimamente, olho para esse fenômeno com
amor e ternura.Vejo que é parte de alguma coisa preciosa que não devemos
perder - ainda que aprendamos a respeitar os sinais de trânsito !
Eduardo Gianetti - um sujeito que admiro imensamente,adoro o
jeito de ele pensar desde que li o livro que ele escreveu sobre economia - me
perguntou uma vez se eu achava que o Brasil poderia passar a ser
organizado,nesse sentido de parar no sinal de trânsito.Não vejo necessariamente
uma contradição insolúvel.

Isso leva também ao fato de o Brasil estar sempre visto como a
um milímetro de ser apenas um paraíso de turismo sexual.Tenho sentimentos
ambíguos semelhantes aos que encontrei em Joaquim Nabuco com relação à
escravidão. Talvez o desrespeito às leis de trânsito venha de muita coisa que a
escravidão nos deixou.O sujeito que,por possuir um automóvel,se julga no
direito de fazer o que quer que seja - e fura o sinal vermelho - se acostumou
a uma sociedade de senhores e escravos,não a uma sociedade de cidadãos que
devem se respeitar em pé de igualdade.A repressão se mostra tímida diante do
proprietário do automóvel,mas se mostra violenta diante dos despossuídos. Isso
é parte da formação do Brasil - uma vergonha,uma coisa tétrica;mas,algo em tudo
isso é precioso,é bonito,leva a essa sensualidade do modo de ser do brasileiro
na rua e a essa doçura no trato,uma série de coisas bonitas que o Brasil não
deve perder.
O modo de você ver as pessoas na rua leva o Brasil a estar sempre
em risco de se tornar uma espécie de paraíso do turismo sexual- um sintoma do
legado da escravidão,porque é uso do corpo do outro por quem pode usar. Mas o
país que corre o risco de ser um ambiente de turismo sexual tem,em
princípio,algo de precioso e maravilhoso - que não deve ser destruído por um
moralismo que venha a fazer uma assepsia da vida cotidiana que nos livrasse do
perigo de ver as nossas meninas, os nossos meninos prostituídos por
estrangeiros.
O risco que nós corremos,sob muitos aspectos,é maravilhoso.Não
havendo este reconhecimento,essa limpeza não interessa. Então é nessa vertente
de ambigüidades de julgamento moral que eu me identifiquei muito profundamente
com esse trecho de Joaquim Nabuco sobre a escravidão. Mas admiro também
imensamente todo o resto - que é mais racional e não ambíguo".

O QUE É QUE IMPRESSIONOU VOCÊ NO ARTIGO QUE O VICE-PRESIDENTE MARCO MACIEL ESCREVEU SOBRE O MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL?

CAETANO VELOSO : "Eu li o artigo de Marco Maciel no Dia Nacional
da Consciência Negra.Achei de grande importância,porque é um artigo que,alem de
correto, não teve pudores de ir nos pontos essenciais,ao propor a adoção
de medidas de reparação histórica aos negros.O vice-presidente da República,um
homem do PFL - um partido de centro-direita ou considerado no espectro político
brasileiro como estando à direita - escreveu um artigo em que diz não tudo o
que deve ser dito,mas o que uma autoridade como ele na melhor das hipóteses
diria. O artigo é muito bom ! Reputo de grande valor histórico.Não tenho lido
por parte de políticos de esquerda textos sobre o mesmo assunto tão nítidos e
tão corretos.Agora,vão dizer "olhem o Caetano Veloso com o PSDB,Fernando
Henrique Cardoso, Antônio Carlos Magalhães,Marco Maciel,ele está em cima do
muro...". Mas ninguém pode medir se artista é direita, esquerda ou centro.Não
pode julgar um artista como se o que ele faz devesse ser pesado a partir dessas
categorias !.

Dizer que um artista está em cima do muro é uma coisa
estúpida.Porque necessariamente o artista deve pairar muito acima do muro !.A
verdade 'e essa ! O jeito de Baden Powell tocar violao era direita ou esquerda
?.Gostaria que alguem me dissesse.Eu acho chato querer vincular".

HÁ EXATAMENTE UM SÉCULO, EM 1900, JOAQUIM NABUCO ESCREVEU A FRASE QUE HOJE VOCÊ CANTA, "A ESCRAVIDÃO PERMANECERÁ POR MUITO TEMPO COMO A CARACTERÍSTICA NACIONAL DO BRASIL", QUAL É HOJE O GRANDE TRAÇO DESSA HERANÇA NA VIDA BRASILEIRA ?

Caetano Veloso : "O mais evidente é a favelização das grandes
cidades e a estatística vergonhosa e escandalosa da predominância de negros
entre os que vivem na situação de favelado.Isso é o resultado mais imediato e
mais evidente. Mas há outros,muito mais sutis.Em "O Abolicionismo",Joaquim
Nabuco já registra esse fenomeno no nascedouro,ao dizer que estava se
formando uma aglomeração de pessoas jogadas perto das cidades".

VOCÊ UMA VEZ ESCREVEU QUE ESSA MISTURA DE RAÇAS NO BRASIL NÃO ERA GARANTIA "NEM DE DEGRADAÇÃO NEM DE UTOPIA GENÉTICA".SE VOCÊ FOSSE PROCURAR UMA
MÁ HERANÇA DESSA MISTURA, VOCÊ CITARIA O QUÊ ? E A BOA HERANÇA, QUAL FOI?

Caetano Veloso : "Eu estou muito impregnado de Joaquim
Nabuco.Já estou quase virando um pernambucano : é uma paixão. A maior honra
hoje em dia é que minha casa,no Rio,fica pertinho da saída da rua Joaquim
Nabuco.Fico honradíssimo.Eu estou tão embebido do pensamento de Joaquim Nabuco
que quando ouço uma pergunta como essa me lembro do que ele disse ainda na
campanha do abolicionismo - uma visão diferente da minha.É difícil citar,porque
é uma questão complexa,mas ele via uma coisa muito má na mistura de uma raça
que estava num estágio atrasado com uma raça que,por estar em estágio mais
adiantado de civilização,agia brutalmente.A combinação da submissão dos negros
com a brutalidade dos brancos era alguma coisa que só poderia criar uma
formação nacional débil e má.Mas Joaquim Nabuco diz coisas lindas,como,por
exemplo,que grande parte da atitude servil do negro apresentava uma
superioridade humana e moral que chegava às raias do sublime.Por essa
razão,ele diz que,em muitos casos,tinha saudade dos escravos - um sentimento
ambíguo. Joaquim Nabuco viu exemplos de abnegação,entrega,despojamento e
ausência de egoísmo em escravos que chegavam à raia da santidade.Isso poderia
vir a compensar o que havia de brutal na atitude do senhor.Para ele,
uma nação fundada nessa relação tem todas as probabilidades de não funcionar
bem e ter um futuro sombrio.

Há um momento em que ele cita um pensador inglês que disse que
os negros nos Estados Unidos nunca chegariam a uma verdadeira felicidade. Mas
ele via uma grande possiblidade de felicidade para os negros do Brasil,no
futuro,porque aqui não havia aquela separacao.Naturalmente,não é o que a
realidade de hoje confirma.Não podemos de forma alguma dizer que esta é a nossa
realidade.Em todo caso,os escravagistas do sul dos Estados Unidos mantinham a
nitidez da superioridade que justificava a escravização da raça negra.Nem os
escravos americanos nem os seus filhos podiam ter participação na
cidadania.Não podiam nem pleitear igualdade.Depois da abolição americana,era
essa a posição dos racistas do sul.Aqui no Brasil se deu algo que lá teria sido
um escândalo : os negros alforriados podiam ter escravos ! Podiam ser
senhores.O fato de ele poder ser escravo significa que ele poderia ter o status
de senhor.Joaquim Nabuco dizia que a escravidão no Brasil foi muito mais
hábil,porque ela mexe em todos os interstícios da sociedade, enquanto que nos
Estados Unidos,não.Isso dá uma possibilidade ao Brasil : se um dia superar os
problemas que a escravidão trouxe,o Brasil pode realizar possibilidades que os
Estados Unidos jamais poderão.

O fato de os escravos brasileiros,uma vez alforriados,poderem
ser senhores significava que não havia um impedimento de base racial,como nos
Estados Unidos,para que,em principio,pessoas de qualquer cor viessem a
participar da cidadania com plenitude. Joaquim Nabuco ja dizia no seculo
dezenove o que muita gente pensa que so se disse no Brasil depois dos anos
setenta,com o movimento negro e a influencia americana : a escravidao
brasileira se mostrou muito mais habil do que no sul dos Estados Unidos,porque
pode se perpetuar e se infiltrar por todos os meandros da sociedade
brasileira,os mais sutis,inclusive.Isso nao quer dizer que nao haja vantagem na
mistura e na confusao de hierarquia- uma caracteristica que faz com que o
movimento negro no Brasil nao possa ser parecido com o dos Estados Unidos.Isso
e' mau e bom.E' algo que os norte-americanos nunca tiveram nem pouderam ter.

Se nós conseguirmos crescer economicamente e superar
aleijões que a escravidão deixou na nossa sociedade,temos uma matéria prima
humana que os Estados Unidos nem sequer conhecem".


“A VONTADE DE SER AMERICANO”


NUMA DAS MÚSICAS,VOCÊ TRATA DA VONTADE DE RAUL SEIXAS DE "SER AMERICANO".HÁ UM SÉCULO JOAQUIM NABUCO TRATAVA DO PROBLEMA DE COMO NÓS BRASILEIROS VÍAMOS OS ESTRANGEIROS. NUM TRECHO DE MINHA FORMAÇÃ0O,ELE DIZ QUE O
AR LÁ É "MAIS VIVO E MAIS LEVE" QUE OUTROS,"SATURADOS DE TRADIÇÃO E CONVENCIONALISMO". OS AMERICANOS ESTARIAM, SEGUNDO JOAQUIM NABUCO,"INVENTANDO A VIDA, COMO SE NADA TIVESSE EXISTIDO ATÉ ENTÃO". VOCÊ, QUE ACABA DE SE
TRANSFORMAR EM DISCÍPULO DE JOAQUIM NABUCO, TEM OU TEVE ESSE SENTIMENTO DIANTE
DOS ESTADOS UNIDOS?

Caetano Veloso :"Joaquim Nabuco vai fundo também na crítica à
idéia de igualdade,tal como ela era vivida pelos americanos.Diz que os
americanos viviam a ilusão de que tinham uma liberdade individual que
resultava numa igualdade de cada indíviduo muito mais desenvolvida do que na
Inglaterra,por exemplo.Para ele,que era anglófilo,a Inglaterra tinha uma
solução que oferecia resultados melhores,porque a igualdade que se esboçava era
feita com conteúdos de nobreza moral que os americanos desconheciam"

MAS VOCÊ TEM O PENSAMENTO DE QUE,COMO JOAQUIM NABUCO DIZIA,OS AMERICANOS ESTAVAM REINVENTANDO A VIDA ?

Caetano Veloso : "Eu tenho esse pensamento.É o que a gente
sente estando nos Estados Unidos - ou de longe.É o aspecto mais positivo e
animador dos Estados Unidos.Interessa,porque parece um sopro de ar puro na
história da humanidade.Mas Joaquim Nabuco escreveu que os americanos,quando
dizem que cada indivíduo pode ter liberdade,estao falando de norte-americanos
brancos. Chineses e dos negros estao, na mente do americano,
abaixo da condição de humanidade.Joaquim Nabuco dizia que,
quando um americano olha para seus primeiros vizinhos na América Latina - o
mexicano ou cubano -,para não falar dos outros latino-americanos,ele faz com
um desprezo nunca visto de um ente humano para outro em nenhuma outra situação.
Aos olhos de Joaquim Nabuco,essa atitude desqualifica o valor espetacular da
individualidade que a grande democracia americana preconizava e
preconiza.Hoje,nos Estados Unidos,pensa-se em multiculturalismo,mas é um
prosseguimento de uma linha puritana que não se sabe onde pode dar.Quando a
gente olha para os Estados Unidos,no entando,sente uma atração por coisas como
" ar puro" de que Joaquim Nabuco falou".


VOCÊ AINDA ACREDITA INCONDICIONALMENTE NA IDÉIA DE QUE O BRASIL VAI SER -OU É- UM PAÍS ORIGINAL ?

Caetano Veloso : "Acredito- mas não incondicionalmente.Se os
países são originais,o Brasil é muito original ! O que aconteceu na Argentina
dá a ela características que fazem do país algo diferente do
Chile.Eu,sinceramente,quando estava no Chile,senti uma saudade horrível da
Argentina.Parecia que a Argentina era a Bahia ! O Chile era tão formal, trazia
uma mistura tão forte de europeísmo com neo-yuppismo americano que eu ficava
com saudade da Argentina e do Uruguai,sem falar no Brasil.

O fato de um país desse tamanho falar português e ter um autor
como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20
faz do Brasil um grande segredo que nós guardamos e queremos revelar.
É uma experiência única! Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e
sermos um país de dimensões continentais na América do Sul significam um
acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma graça.É tão grande o
acúmulo de desvantagens,num país ao mesmo tempo tão interessante,que a gente é
forçado a ler isso como uma benção.

Isso não é uma questão apenas de eu querer me salvar já que eu
nasci no Brasil e sou mulato do interior da Bahia,filho de gente do povo.
Minhas duas avós nunca se casaram.Cada uma teve filhos com mais de um homem.
Ou seja : é gente do povo brasileiro mesmo! Meu pai era mulato.Eu já estou
salvo !
Qualquer mente inteligente concluirá que o país tem um acúmulo
considerável de peculiaridades - desvantajosas em princípio, mas não malditas
em si mesmas - que nos leva a desconfiar,com toda razão,de que tudo significa
uma benção"..



ALÉM DA REFERÊNCIA DIRETA A JOAQUIM NABUCO,VOCÊ FAZ PELO MENOS DUAS HOMENAGENS NO DISCO, UMA A ANTONIONI, PARA QUEM VOCÊ COMPÔS UMA MÚSICA E OUTRA A JORGE BEM DE QUEM VOCÊ REGRAVOU ZUMBI. É POSSÍVEL COMPARAR O
SIGNIFICADO DE UM E DE OUTRO SOBRE O QUE VOCÊ FAZ?

Caetano Veloso : "Além do Joaquim Nabuco,tenho no disco três
personagens explicitamente homenageados : Raul Seixas, Michelangelo Antonioni e
Jorge Ben. Raul Seixas é homenageado numa canção que se chama "Rock in Raul".
Acabei de ouvir um disco de Tom Zé que tem uma música sobre Raul Seixas.
É como se fosse um cordel que narra a chegada de Lampião e Raul Seixas no
FMI.Os dois estão enfrentando o FMI e Washington.Já no meu disco,Raul aparece
como um sujeito que superexibia a "vontade fela da puta de ser americano".Era o
como Raul Seixas falava - um modo baiano antigo de falar;acho que em
Pernambuco tambem.Pode parecer,a ouvidos mais tolos,que a minha canção
apresenta uma desaprovação seja do Raul seja da vontade de imitar os
americanos. Em primeiro lugar,não desaprovo Raul,um dos meus artistas
favoritos. O primeiro disco de Raul Seixas é um dos melhores já feitos no
Brasil - uma obra-prima. Não havia quase nada feito por outros artistas
brasileiros - pode pensar nos maiores nomes - de que eu gostasse mais.
Havia muito pouca coisa que eu chegasse a gostar tanto quanto eu gostava de
"Ouro de Tolo".
Nunca vivi,como ele e muita gente viveu e vive,a vontade imediata
de ser americano.Não foi assim comigo e com muitas outras pessoas da minha
geração,como Chico Buarque,Paulinho da Viola, Glauber Rocha, Cacá Diegues.
Mas aquele sentimento - mundial diante do que os Estados Unidos se tornaram -
se manifestou ainda mais fortemente nos paises da América. Era a vontade de
chegar à situação do americano.
É como se a vida que podíamos levar não fosse a verdadeira vida.
E' como se,atraves dos filmes,canções e reportagens nas revistas,a gente
visse que ali e' que se vivia a verdadeira vida.Assim como tantos outros,Raul
não queria viver o que não fosse a verdadeira vida. Rita Lee contou numa
entrevista que Raul Seixas disse a ela : "Sou americano.Apenas nasci no país
errado".Todo o negócio do rock vem dessa vontade.

Mas não é só o rock : a Bossa Nova tem muito disso.João Gilberto é
que deu um nó,uma virada.Mas Johnny Alf,Dick Farney,os proprios nomes que eles
botaram em si mesmos,as musicas que eles fizeram....Aloísio de Oliveira - um
letrista espetacular,uma pessoa maravilhosa,um ghomerm que foi tudo para Carmen
Miranda,o namorado,o companheiro,o sujeito que amparou Carmen nos Estados
Unidos,autor de letras lindas com Tom Jobim - tinha aquela vontade louca de ser
americano.Mas,em primeiro lugar,é difícil querer exigir que essa vontade não
apareça.É alguma coisa vivida desde a infância.Também há a admiração do
desenvolvimento harmônico e da sofisticação da música popular americana em
comparação com as outras.Quem tem bom ouvido musical e ouve uma música
harmonicamente mais rica e ritmicamente mais inventiva se sente atraído por
ela,consegue entendê-la, quer reproduzí-la, quer participar daquele mundo.É uma
vontade legítima! O sujeito vê naqueles grupos de rock a sensação de que havia
uma pujança de energia que tinha de ser extravasada em música barulhenta e
roupas espalhafatosas.Então,o sujeito tem,desde criança,uma vontade genuína
de fazer aquilo.Depois de adulto,o que ele faz com aquela vontade genuína é uma
arte que ao mesmo tempo a exiba e e comente com alguma ironia. Não com a ironia
dos tropicalistas - que não vieram daí.Nós não viemos da vontade de
imitar.Eu,sobretudo,não - nem tão pouco Gil,Gal,Bethânia,Tom Zé.

Toda a linhagem do rock vem daí.A música de Raul Seixas trata
disso.Numa frase rápida,a letra diz "e hoje olha os mano..." . É uma menção aos
rappers brasileiros - que também demonstram uma grande vontade de se
identificarem com os americanos.Os nomes que eles escolhem para si são nomes em
ingles,parecidos com os dos negros americanos.É imensamente saudável,porque
apresenta uma vontade de discutir e problematizar o modo como se dispõe o
panorama racial no Brasil.Preferem se chamar Ice Blue,Mano Brown,Carlinhos
Brown.Ganham o nome de James Brown.Isso é tudo muito complexo para mim.É o
estÍmulo da minha vida.
Mas,quando vejo uma vontade muito destrutiva de simplesmente
imitar os americanos - e empobrecer a vida brasileira -,eu digo assim : " Essa
gente merece um Ariano Suassuna". Adoro quando Suassuna mantém aquela
ranzinzinice.Não penso como ele.Penso de uma maneira que ele já disse repetidas
vezes que não aceita.Eu entendo que as pessoas,se traírem essa vontade
genuína,estarão sendo menos brasileiras.Porque é muito profundo,num verdadeiro
brasileiro,sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os
norte-americanos ! Não é a única coisa que pode acontecer com os
brasileiros.Mas é um muito frequente,muito compreensível e muito profundo na
formação de uma personalidade brasileira.

Os rappers trazem uma conotação de crítica ao panorama racial
brasileiro.Dizem coisas que a gente não acha em outras áreas da produção.O
rap,para mim,é mais som do que conversa.Eu entendo mais uma letra de uma música
cantada do que um rap.Mas ouvi tanto o disco dos Racionais Mcs que já me
acostumei.Aquilo é de uma beleza enorme.Falam de versos "violentamente
pacíficos" .A gente vê ali uma pujança e uma liberdade de criação artística.Se
eles não tivessem a vontade louca de imitar os americanos,a gente não estaria
hoje contando com eles.Assim é o caso de Raul Seixas.Por esse motivo é que falo
na letra "e hoje olha os mano".Tudo e' exemplo de dignificação dessa atitude.

Quanto às outras personalidades que estão homenageadas no
disco: Jorge Ben é um caso espetacular de saúde cultural,é rock com samba,um
brasileiro preto do Salgueiro que terminou indo viver em São Paulo um período
crucial da vida.Ficou quase tão ligado a São Paulo quanto Chico Buarque ficou
ao Rio de Janeiro.Joge Ben se ligou ao iê-iê-iê em São Paulo porque não podia
aparecer no Fino Bossa : misturava rock com samba.O disco dos Racionais- por
sinal - abre com uma música de Jorge Ben,"Jorge da Capadócia". É preciso ver
que Jorge Ben,como João Gilberto de uma maneira totalmente diferente,fica num
lugar onde essas coisas acontecem.

Jorge Ben tem muito mais vontade de imitar o americano que João
Gilberto.Mas Jorge Ben criou uma solução única,em que a brasilidade entra não
apenas com um percentual importante,mas também como uma função na estruturação da personalidade artística.É diferente de Tim Maia - um artista
interessantíssimo.Por essa razão,Jorge Ben é mestre dos pagodeiros,rappers,
tropicalistas e roqueiros.A gente encontra Jorge Ben nos neo-bossanovistas,nos
discos do Milton Nascimento,nos pagodes,nos Racionais,nos meus discos.Desde os
anos setenta,sempre gravo músicas de Jorge Ben.Os Paralamas do Sucesso
gravam,todo mundo grava.Porque ele é uma solução espetacular.Dá uma sensação de
saúde cultural sem os amparos do status de uma educação de alta classe
média.Não é assim.Jorge Ben não é letrado : é um grande poeta,um grande
solucionador cultural,um sujeito imenso.

Eu me sinto presente ali dentro do disco dos Racionais que
começa com uma música de Jorge Ben que também gravei.Há uma coisa que precisa
ser dita,porque tem a ver com o falei sobre Raul Seixas e Jorge Ben : não é
verdade de maneira nenhuma que grupos de rap,como os Racionais,sejam alguma
coisa destacada da "MPB",algo que se opõe a ela.Tenho horror a esse negócio de
"MPB"- parece uma doença que deu na música popular brasileira.Eu acho errado.
Nunca me identifiquei com essa idéia.O Tropicalismo veio para dizer que não tem
nada a ver com isso.Eu mantenho até hoje essa atitude.Ouvem-se,no disco dos
Racionais Mcs,ecos da minha gravação da música de Jorge Ben - confirmados pelos
componentes dos Racionais,pessoalmente,em conversa comigo.É algo importante,
porque os vincula explicitamente - e o que eles fazem - à tradição da música
popular brasileira.O vínculo já existiria,necessariamente.Mas há um vínculo de
eleição por parte dos artistas.
Num momento crucial,numa das letras mais lindas do
disco,Mano Brown diz assim: "Eu sou apenas um rapaz latino-americano".É a frase
do Belchior que,ali citada,marca a continuidade de história da Música Popular
Brasileira,o diálogo interno da MPB,o que não quer dizer que não haja
diferenças enormes.Raul Seixas sempre foi meu amigo.Vi o último show que ele
fez,aqui no Rio,com Marcelo Nova.Raul já estava quase sem poder falar,sem poder
cantar.Fui homenageá-lo,conversar com ele,porque era meu amigo desde que
voltei de Londres.Nunca tivemos briga,rusga,discordância,nada - nem pessoal nem
artística.Raul Seixas queria ser feito um roqueiro que falava inglês,queria
estudar numa high school,usava bota como se fosse do oeste,vivia vestido de
Elvis Presley. Eu não : desde menino,nunca tive vontade disso.Meu negócio é
outro : eu gostava de Sílvio Caldas.Mas entendi essas pessoas.Vi o que
significava o gosto pelo rock,vejo nos manos hoje.

Quanto a Antonioni : tenho com o cinema italiano uma dívida
imensa -que venho pagando pouco a pouco.Eu gostava dos musicais americanos,mas
tinha uma grande paixão pelos filmes neo-realistas italianos e pelos
desdobramentos do neo-realismo.Fiz uma música sobre Julieta Masina,o que me
levou a ser convidado para fazer um espetáculo em homenagem a ela e a Federico
Felini - que,gravado,terminou saindo em disco.
Depois de ter visto todos os filmes de Antonioni,tive um
contato com ele.A admiração às vezes assombra.Tive um contato pessoal com
Antonioni,graças a meus dois amigos e cineastas brasileiros Júlio Bressane e
Cacá Diegues.Um não se dá com o outro,mas ambos adoram Antonioni.Os dois
convidaram-no para jantar.Antonioni aceitou os dois convites.Todos dois me
convidaram também.Antonioni,então,riu muito,porque eu estava nos dois
grupos,totalmente diferentes.Antonioni não fala,depois do derrame que
sofreu,mas se comunica através da mulher.Quando fui a Roma,tive a surpresa de
vê-lo na platéia do meu show "Fina Stampa".Nem vi que ele estava na
platéia,mas,quando acabou o show,eles vieram ao camarim para falar comigo.
Antonioni tinha ficado muito bem impressionado.
Quando fiz em Roma o show que saiu do disco Prenda Minha,
ele estala na platéia novamente.Voltamos a conversar.Curiosamente,ele não fala,
desde que sofreu o derrame,há oito anos,mas se comunica -muito- através da
mulher,dá opiniões através de gestos.É muito bem-humorado.Gostou muito do show.
Já devo tanto a essa gente,já devo tanto a esse homem.Tento ir pagando pouco a
pouco minha dívida com o cinema italiano - que,agora,acaba de crescer com o
filme de Bertolucci,"O Assédio".Nunca fui fã de Bertolucci,mas "O Assédio" é
uma obra-prima. Eu digo : meu Deus,continua crescendo o meu débito com os
cineastas italianos. Fiz,então,uma música que se chama "Michelangelo
Antonioni".Fiz a letra em italiano,uma língua que mal falo.Organizei os poucos
versos para ficar tudo direito e mandei para Antonioni,para que ele me dissesse
se tinha aprovação.Fiquei muito feliz ao receber uma resposta dizendo que ele e
a mulher tinham tinham aprovado com entusiasmo.Gostaram da canção".

AO EXPLICAR PORQUE ESTAVA LANÇANDO TÃO POUCOS DISCOS, CHICO BUARQUE DISSE TEXTUALMENTE,NUMA ENTREVISTA RECENTE,QUE A MÚSICA POPULAR TALVEZ
SEJA UMA ARTE DE JUVENTUDE.COM O PASAR DO TEMPO,OS COMPOSITORES JÁ NÃO TÊM AQUELA ESPONTANEIDADE DOS 20 ANOS. VOCÊ, QUE LANÇOU O ÚLTIMO DISCO AUTORAL HÁ 3
ANOS, TAMBÉM TEM TIDO ESSA SENSAÇÃO ?

Caetano Veloso : "Não tenho - e Tom Zé não me deixa ter.Tom
Zé fêz,aos sessenta e quatro anos,um disco que é o mais jovem que ele já fêz.
Fêz com uma tal vontade que parece que ele vai fazer trezentas músicas.Deve ser
porqueo disco foi feito no Brasil.Tom Zé voltou a gravar aqui.Desde os anos
setenta -ou oitenta,no máximo - ele não gravava no Brasil.O disco,então,ficou
vital.
Quando li esta declaração de Chico numa entrevista,eu me
identifiquei imediatamente com ela,concordei com ele : achei que a música
popular brasileira é uma arte de juventude.Você precisa de estar com disposição
para viajar,cantar,subir no palco,compor músicas,ter aquela animação ingênua de
quem acha que pode fazer mais canções.Escrever livros ou fazer filmes já se
assenta mais para uma pessoa mais velha.Por isso,fiz um filme nos anos oitenta
pensando em fazer outros.Pensei : já estou ficando velho.Então,faço só cinema -
um negócio que assenta mais do que música popular para alguém mais velho.Também
pensei em escrever livros,mas não gosto de ficção para mim.Eu tinha vontade de
escrever outro livro,porque gostei muito de escrever "Verdade Tropical".Pensei
em escrever um livro sobre raça no Brasil - não um livro de scholar,mas um
estudo,uma reflexão pessoal sobre minha experiência.Talvez um dia eu escreva".
Não escrevi,mas li Joaquim Nabuco".

O HISTORIADOR EVALDO CABRAL DE MELO RECLAMA DE QUE A OBSESSÃO EM PROCURAR UMA IDENTIDADE NACIONAL É TÍPICA DE PAÍSES INSEGUROS. VOCÊ ACHA QUE A MÚSICA, NO CASO DO BRASIL, PODE AJUDAR O PAÍS A ACHAR ESSA TAL
IDENTIDADE ? VOCÊ TEM ESSA PRETENSÃO ?

Caetano Veloso : "A obsessão em encontrar uma identidade
nacional evidentemente é sintoma de uma insegurança do país.O Brasil tem todas
as razões históricas para se sentir inseguro.
O que falo não pode nem se contrapor à fala de um
historiador - um sujeito que se dedica a estudar e a levantar
dados.Eu,compositor de música popular,tinha,pessoalmente,na época do
Tropicalismo,uma atitude de enfrentar e ao mesmo tempo "desconstruir",como se
diz hoje em dia,a questão da identidade nacional.Nós fizemos um grande
escândalo anti-nacionalista,demonstramos ostensivo desprezo pela idéia de busca
de raízes da autenticidade nacional.O primeiro apelido do Tropicalismo foi "som
universal".O nome "Tropicalismo" veio depois.

Gil gostava da expressão "som universal".Também gostava de
"pop".Eu não gostava tanto de que se chamasse Tropicalismo porque achava que
era um rótulo que ia prender a gente nos trópicos.Era o que não
queríamos.Gostávamos do desrespeito a um estilo nacional-popular que era
buscado então.A gente queria desrespeitar esse negócio.O filme "Terra em
Transe" tem um desespero em relação à identidade brasileira.Há uma grande
agressividade em relação a esse tema.Vivia-se,ali,o auge da obsessão com a
identidade nacional.Isso fêz a questão da busca de identidade entrar em crise
- ou em transe.Isso me interessou muito logo que vi o filme.
Talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade
do que o cinema e a literatura.Fizemos coisas que eram um desrespeito à própria
busca da identidade,embora tivessem a ambição de resolver o problema da
identidade nacional.Era como a gente quisesse passar por cima do tema,como se
a gente dissesse : eu considero que,com o desespero da busca de identidade,a
vontade louca de imitar os americanos,a falta de segurança,a incapacidade de
organizar uma sociedade respeitável,com tudo,acho que já tenho identidade
suficiente.Já estou falando diretamente para o mundo,como se dizia no Recife
numa famosa emissão radiofônica :"Pernambuco falando para o mundo".



O JORNALISMO EM DEBATE


O QUE INCOMODA VOCÊ NA POSTURA DA IMPRENSA DIANTE DE LANÇAMENTOS DE DISCOS E LIVROS? POR QUE É QUE VOCÊ RESOLVEU NESTE DISCO PRIMEIRO FALAR ATRAVÉS INTERNET PARA TODO MUNDO?

Caetano Veloso : "Faz algum tempo que sinto um pouco mal
quando vejo nos jornais os lançamentos de discos,livros,peças de teatro,
filmes.Vejo sair na primeira página dos segundos cadernos,no mesmo dia,
matérias parecidas,uma entrevista matada,uma crítica pequenininha,escrita sem
tempo,em consequência de uma combinação feita entre os jornais e as assessorias
de imprensa.Acho que o jornal perde e o produto perde.Porque o produto -um
disco,um livro,um filme - vira uma notícia que é disputada pelos jornais.
Parece que um vai furar o outro.Mas penso,na apreciação de um livro,não seria
cabível pensar que um jornal possa "furar" o outro.Ou alguém tem algo a dizer
de interessante sobre aquele livro -e o fará quando estiver preparado,para que
o jornal seja o melhor possível - ou então reduz-se tudo a uma notícia que será
disputada entre os jornais.O que acontece hoje é que se uma notícia sobre um
lançamento qualquer sair antes em um jornal,o outro não publica nada sobre o
assunto.! Se noticiar,noticia contra ou esconde ou boicota.É um problema que
desmerece a imprensa - e os produtos também,porque eles terminam mal
apreciados criticamente.Os críticos não têm tempo de ouvir !. Recebem um CD com
um press release,no mesmo dia todos entrevistam o artista e saem rapidamente
para as redações.

Eu já acho a cara da gente meio ridícula ali,a toda hora,
quando vai estrear um show ou quando vai ser lançado um disco.Quando se abre o
jornal nos segundos cadernos,lá está a gente,na primeira página.É o caso de
artistas como eu,Chico,Gil,Roberto,artistas de primeiro time que vão para a
primeira página.É sempre igual aquilo.Acho meio empobrecedor tanto para a
própria imprensa quanto para o produto que os jornais e revistas estão
apreciando.Então,tive uma vontade louca de procurar um meio de driblar isso.
Mas é muito difícil. Eu estou aqui fazendo de uma maneira que me parece que
pode mexer com esse quadro.Se a gente conseguir mexer e mudar...

As pessoas escrevem a crítica como e quando quiserem.Não faço
entrevista com eles agora.A que estou fazendo agora com você pode ser lida -ou
vista- na Internet por todo mundo,ao mesmo tempo, jornalistas e
não-jornalistas.Quem tiver acesso à Internet verá.Pode até conferir o que os
jornais publicarem.O que digo aqui pode também estimular entrevistas
particulares sobre determinados assuntos.Ou sobre um detalhe que não foi
falado.O jornalista pode dizer assim: "Quero "aporrinhar" Caetano sobre um
detalhe de que ele não falou". A gente faz,então,a entrevista.Se ninguém quiser
fazer,tudo bem : não se faz,contanto que se mude a prática.Eu realmente acho
que é saudável e necessário mudar.Os jornalistas também estão precisando ! Nós
estamos ! Não pode um jornal sair parecendo que é o release dos lançamentos.

Para as assessorias e para quem oferece o produto -
artistas,companhias de cinema, editoras,gravadoras - é como se o jornal fosse
um release,como se a página do jornal fosse um veículo de lançamento.
Quando se trata de uma notícia,acho compreensível.Há notícias que todo mundo
tem de dar mesmo.O sujeito se dá bem quando consegue um furo de reportagem com
a descoberta de uma tramóia.Mas,quando se trata de um produto cultural,não é
bem assim.Se sai um romance de Chico Buarque,qual é a vantagem de você sair na
frente ? A vantagem seria ler.O leitor pensará : "Não vou deixar de comprar o
Jornal do Brasil,porque as resenhas são muito bem feitas".Mas as resenhas não
podem ser muito bem feitas,porque são feitas às pressas para sair antes".

MAS VOCÊ ACHA QUE PODE QUEBRAR ESSE VÍCIO ATRAVÉS DA INTERNET ?

Caetano Veloso : "É uma maneira de tentar quebrar.Pelo menos a
entrevista sairá para todo mundo.Pode ser que haja um ritmo diferente.A gente
vê que,na própria imprensa,há esforço nesse sentido.Eu li,na Revista Bravo,um
artigo de Sérgio Augusto de Andrade que diz exatamente o que estou dizendo
aqui.Adorei ler porque ele diz com todas as letras exatamente o que eu vinha
observando.Faz uma análise com a qual concordo plenamente,não só em relação às
críticas,mas também quanto à feitura dos segundos cadernos.Um sujeito pode ir
fundo num artigo sobre um assunto que ninguém escolheu.A gente vê que há uma
certa reação.Mas esse negócio de sair,na primeira página de todos,o lançamento
de um filme da Sharon Stone é pobre,porque não se privilegia a apreciação.
Ou bem você tem uma apreciação interessante sobre um filme novo ou você não tem
mesmo muito o que dizer.É fraco,num jornal,dizer que fulana ia filmar com
beltrano mas deixou de filmar na última hora...".

ENSAISTAS CONSERVADORES,COMO O INGLÊS PAUL JOHNSON,QUE ESCREVEU UM LIVRO PARA DIZER QUE A ARTE MODERNA É UMA PORCARIA, DIZEM QUE A GRANDE PRAGA DESSE FINAL DE SÉCULO É O RELATIVISMO CULTURAL : TUDO É VÁLIDO,
NADA É RUIM. VOCÊ NÃO CORRE O RISCO DE ESTIMULAR ESSE RELATIVISMO CULTURAL AO CRITICAR OS CRÍTICOS DA PREDOMINÂNCIA DA CHAMADA MÚSICA COMERCIAL NO MERCADO?

Caetano Veloso : "Eu olho com desconfiança esses conservadores.Mas
não gosto desse negócio de vale tudo não.Por falar o que falo,compreendo que há
um risco de parecer que dou força ao que eles chamam de "relativismo cultural".
Mas,na crítica que estou fazendo aos jornalistas,não me sinto de maneira
nenhuma dando força ao relativismo cultural.Pelo contrário ! Porque acho que o
que vem acontecendo é um enfraquecimento da instância crítica.

Os jornalistas se comportam como artistas ultra-comerciais.Mas se
dão o direito de criticar artistas que são,sob o ponto de vista
profissional,muito mais responsáveis que eles ! Os jornalistas se dão o direito
de descartar a existência desses artistas como se eles,os artistas,fossem
comerciais.O que se vê,aí,é um relativismo inaceitável,uma confusão de valores
que não posso aceitar ! Sou muito mais exigente !

O sujeito que critica não sabe redigir bem.Mas Daniela Mercury
canta afinado, ensaia bem os números;Ivete Sangalo arrebenta cantando; Sandy é
uma cantora perfeita,sob o ponto de vista técnico. Eu peço,pelo menos,que o
sujeito que escreve na Folha ou o outro que escreve no Globo redijam a frase
corretamente.É o mínimo ! Como Sandy é afinada, que ele saiba pelo menos
escrever.Mas não ! Ele é uma estrela da agressão e da opinião moderna.Só gosta
de grupos de língua inglesa.Para ele,nada do que é brasileiro pode prestar
jamais! Isso já é um princípio simplório demais.Fazem personagens assim mas não
apresentam sequer um produto comparável ao que Sandy e Júnior
apresentam.Chitãozinho e Xororó cantam afinado, ensaiam bem os shows. Os
artigos são mal escritos ! Você vai ler : está errado o Português ! A idéia é
primária,o Português está errado e ele vai falar mal da Sandy? Vai falar mal de
Ivete Sangalo? Não dá ! É muito abaixo da Ivete Sangalo,como quem apresenta um
produto que vou consumir.Sou,então,muito mais exigente. Não há relativismo
possível aí ! O que estou dizendo é que essas pessoas são superiores àquelas
outras, naquilo que fazem ! De fato,são ! Posso mostrar a você que,numa
gravação da Sandy, a afinação é 100% ! Eu levo você ao show da Sandy.Digo assim
: você não vai ver aqui um buraco,porque ela entra no tempo certo,ela tem
intensidade de voz certa em relação aos instrumentos,as harmonias estão certas,
A afinação é em nível de Elis Regina ! Mas posso pegar o texto do crítico
Pedro Alexandre Sanches e dizer : venha cá, o que é que este parágrafo quer
dizer? É tudo errado,mal escrito.Posso pegar o texto de Mario Marques : isso
aqui está mal escrito ! Então,não existe nada de relativista nisso.Nada ! Ao
contrário : é possível mostrar claramente que o que estou dizendo é pertinente,
porque há valores universais que podem ser reconhecidos ali.Há redações bem
realizadas e há cantos afinados.Há cantos desafinados,você pode até medir a
afinação em aparelhos.Não há nada de relativismo.Há,sim,valores absolutos,
universais.Uma nota afinada é uma nota afinada ! Também há uma modernidade a
respeito da utilização da nota afinada,um interesse pela desafinação,pela
microfonização,pela negação da tonalidade.Mas são outros quinhentos.Isso é o
momento meu menos relativista : eu estou me atendo a valores reconhecíveis e
indiscutíveis".

VOCÊ DIRIA QUE A COMPETIÇÃO EXACERBADA ENTRE OS JORNAIS VEM PREJUDICANDO A COBERTURA CULTURAL ?

Caetano Veloso : "Eu acho que prejudica a cobertura cultural,
empobrece a prática do jornalismo e compromete a própria qualidade dos cadernos
ditos culturais.Não que não haja coisas boas e interessantes ! Mas existe uma
coisa que acho mais grave,porque é um sintoma de um grande comercialismo dos
jornais e de uma vulgarização do aspecto comercial do jornal : é a
transformação de jornalistas - que assinam o nome - em personagens que procuram
caricaturar-se para ver se se tornam figuras.Nesta área do jornalismo
cultural,dá-se muita ênfase a uma suposta agressividade dos apreciadores.É uma
agressividade forçada,para que o jornal fique polêmico ou seja a estrela do
acontecimento.Então,quando sai um disco,vê-se na maioria das redações uma
disputa para ver quem escreve de maneira mais chocante sobre os produtos e os
produtores de cultura.Isso é um negócio chato.

Sinceramente,não posso aceitar que as mesmas pessoas que agem por
uma motivação comercial reclamem contra o comercialismo da axé music ou da
música sertaneja ou do pagode ! Tenho vontade de rir quando vejo esse tipo de
jornal e esse tipo de jornalismo querendo torcer o nariz para a axé music ou
para duplas sertanejas. Digo : comparada com o que vejo nesses veículos,
Daniela Mercury é São Francisco de Assis ! É incomparável ! Há nos blocos de
axé a responsabilidade de apresentar um produto respeitável. Também há,nas
duplas caipiras e nos grupos de pagode,a responsabilidade de apresentar um
produto de alta qualidade,dentro daquilo a que se propõem - com exigência,com
trabalho,com profissionalismo,com respeito por quem vai consumir.
Não vejo nada disso na produção desses jornalistas que torcem o nariz para
música axé, pagode e sertaneja.

Eu li numa revista um artigo que citava números para dizer que
considerava auspiciosa a queda na vendagem da axé music e do pagode.A verdade é
que o mercado fonográfico brasileiro estava caindo em geral,mas essa revista se
dava ao direito de festejar dizendo "é bom,porque nós vamos nos livrar de ouvir
esse lixo".Mas a revista era um lixo - e essa música é que é bem feita,por
gente honesta. Para mim, não dá ! Dizem : "É corporativismo de Caetano
Veloso;não se pode falar nada contra a música popular...".Mas não é assim não.
Não sou corporativista ! Sou bom colega,tenho o maior orgulho de chegar a todo
lugar do mundo e me perguntarem com inveja : "Como é que isso acontece no
Brasil ? Como é que você se dá com Djavan, se dá com Lenine,conhece Ivete
Sangalo,freqüenta Daniela Mercury,fala com Sandy e Júnior,é amigo de Milton
Nascimento e janta com o Edu Lobo ? Não entendo como é que vocês se dão !
Porque não é o que acontece aqui na Inglaterra,aqui na França". Não pode,é
impensável essas pessoas aqui conviverem,se encontrarem,se admitirem umas às
outras.Tenho orgulho que seja assim,acho bonito,me sinto bem.É da minha
natureza. Não sou corporativista não, quando gente de música erra,eu digo e
tenho dito com a maior clareza,às vezes com grande agressividade !

Já houve coisas que desaprovei abertamente.Não fico procurando,não
sou palmatória do mundo,não vou ficar aqui dizendo "fulano é bom, fulano não
é",mas acontece que há limites.Eu reajo mesmo a pessoas que agem mal.Eu me
lembro da briga com Fagner nos anos setenta,oitenta.Durante uma entrevista,
respondi violentamente porque Fagner tinha sido desonesto e injusto comigo
publicamente.Tinha mentido a meu respeito.Respondi violentamente.Aldir Blanc -
que estava participando da entrevista - desligou o gravador e me mandou apagar,
Eu disse : "Não ! Faço questão de gravar para que saia o que quero dizer".

Agora mesmo tive uma discordância com Marcelo D2 - do Planet Hemp-
por causa de uma atitude pública que ele teve.Adorei a apresentação do Planet
Hemp na Festa da MTV,achei que foi o melhor número da noite.
Marcelo D2 disse no jornal que não gosta da minha música.Disse-me também
pessoalmente que não gosta da minha música,o que acho bom, porque se o fato de
ele não gostar contribui para ele ser como ele é,então ótimo.É bom que as
pessoas não gostem de algumas coisas para que possam ser mais intensamente o
que elas são. Mas ele agiu mal comigo de uma maneira imperdoável que não tem
nada a ver com o fato de ele gostar da minha música ou não.Marcelo D2 marcou
uma gravação para a trilha do filme "Orfeu" mas não foi.Ficamos esperando; ele
adiou para a segunda noite,mas não foi nem deu explicação.Nós procuramos o
procuramos,mas não o encontramos.Um mês depois,ele dá uma entrevista à Folha de
São Paulo para dizer que não foi porque soube que quem estava produzindo era
Caetano Veloso.Quis botar banca para agradar a um pessoalzinho que lê a Folha
de São Paulo e pensa que é bacaninha dizer que não gosta de Caetano Veloso.
Pensei : quando eu o encontrar vou dizer a ele : "Você não é homem.Você não
foi viril.Isso não está certo".E disse a ele - não foi gritando nem dando
escândalo.Falei firme com ele. Não tenho,então,esse problema.

Quando aconteceu aqui a polêmica sobre o pagamento dos cachês aos
artistas no show do Reveillon,achei que Paulinho da Viola não agiu certo. Eu
disse a ele numa carta.Reitero aqui.Eu estou seguro de que ele não estava !.
Muita gente me disse "não, não diga !".Gil tentou até a última das últimas
horas não desacreditar daquilo que estava sendo apresentado por Paulinho como
sendo a versão verdadeira.Mas eu já sabia que não era.Adoro Paulinho da
Viola.Para mim,ele é um dos deuses do Brasil,mas aquilo estava errado.Eu disse
com todas as letras,numa carta que escrevi para o Jornal do Brasil.Uma porção
de gente me esculhambou,em milhões de cartas.Vejo gente que hoje fala comigo na
rua mas escreveu me xingando.Comigo,então,não existe esse negócio de
corporativismo banana nenhuma !

Uma das melhores coisas que vi ultimamente foi o show da Nação Zumbi.
Fui ver sozinho em Santa Teresa.Achei maravilhoso;achei a banda a melhor coisa
do mundo.Mas,outro dia,Lírio,diretor de cinema,estava me dizendo que eles
tinham ficado zangados porque não gostam do meu som.Eu disse : se é para fazer
aquilo,então acho bom que não gostem do meu som. Porque,para mim,aquilo que a
Nação Zumbi faz é tudo o que há de bom.Talvez seja a melhor banda do Brasil
atualmente ! Desde o tempo de Chico Science,acho aquilo espetacular.Lírio
estava me dizendo que eles tinham um grilo porque eu tinha dito que aquilo veio
do Olodum. Era como se o ritmo do Nação Zumbi tivesse sido tirado do Olodum.

A idéia de um grupo de percussão de rua se modernizar com
influências internacionais e manter ligações com a tradição da música de
carnaval de rua é uma coisa que se tornou notória através do Olodum, não nego.
O Olodum não tem uma banda própria que se compare nem de longe ou que tenha
nível para lamber os pés da banda do Nação Zumbi.Mas o Olodum é o Olodum !
Historicamente,influenciou esse tipo de atitude no Brasil inteiro.Não posso ver
o Nação Zumbi sem pensar que,sem o Olodum,o estímulo para tomar aquela atitude
nunca teria aparecido.O Olodum precedeu e estimulou aquilo.É o que eu disse.
E é verdade.
Ninguém precisa gostar do meu som, mas não tem o direito de dizer que
eu disse uma coisa que eu não disse".

VOCÊ DIZ QUE A IMPRENSA RECLAMA DA QUALIDADE DA CHAMADA MÚSICA COMERCIAL,MAS A IMPRENSA DEVE SE LEMBRAR DE QUE TAMBÉM ELA SEGUE AS LEIS DO COMÉRCIO. VOCÊ QUER CONVOCAR A IMPRENSA A FAZER UMA COMPARAÇÃO ENTRE A
QUALIDADE DO PRODUTO OFERECIDO PELOS JORNALISTAS E A MÚSICA? É ESSE O DESAFIO QUE VOCÊ QUER FAZER?

Caetano Veloso : "Você falou exatamente o que eu podia ter falado em
poucas palavras.
Eu,pessoalmente,estou convencido de que a música comercial é de
melhor qualidade do que a imprensa comercial brasileira. Gostaria que os
jornalistas atentassem para isso".

VOCÊ JÁ RECLAMOU DE QUE AS CRÍTICAS QUE SE FAZEM À AXÉ MUSIC E AOS PAGODEIROS ESCONDEM, NA VERDADE, UM PRECONCEITO CONTRA A INCLUSÃO DE GENTE HUMILDE NO MERCADO CONSUMIDOR. O MOTIVO É ESSE ?

Caetano Veloso : "É o motivo principal escondido atrás de tudo.O
comentário que li celebrando o fato de o mercado ter caído foi publicado pela
revista Veja."Íamos deixar de ouvir esse lixo,axé,pagode,sertanejo..".Isso tudo
é um modo de dizer : "A inclusão no mercado dessa gentalha que passou a
consumir discos e a eleger esse ou aquele tipo de música é um negócio que o
Brasil nunca teve,mas é passageiro,vai acabar,Graças a Deus está passando e
vamos ficar nós aqui,com uma revista bacaninha,com uma gente de alto nível"...
Acontece que não é assim.Isso daí é pavor de que a superação da escravidão -que
Joaquim Nabuco preconizava - se realize".


VOCÊ DIZ QUE O BRASIL TEM UMA TENDÊNCIA PARA O APARTHEID TANTO SOCIAL TANTO CULTURAL. QUAIS SÃO AS MANIFESTAÇÕES CONCRETAS DESSE APARTHEID NA MÚSICA, NO TERRENO MUSICAL, DO GOSTO MUSICAL?

Caetano Veloso : "Fiquei assustado quando você disse que eu disse
que o Brasil tem uma tendência para o apartheid- tanto cultural quanto social.
O Brasil tem uma tendência para manter um grupo pequeno que termina funcionando
como uma elite,no sentido de ser líder intelectual das maiorias.Mas é apenas
uma elite dos que se salvaram da miséria.Isso é que é a elite,na verdade.
Quando você conhece um brasileiro de sua classe social,você fala dez minutos e
logo descobre que ela conhece quatro ou cinco pessoas com quem você tem algum
tipo de relacionamento ou é parente.É pequeno o grupo de pessoas que está fora
da grande massa miserável.Isso é que considero ser verdadeiramente um
apartheid.Não gosto de quem diz ou quem tenta dizer que a segregação racial no
Brasil é pior do que a que havia na África do Sul- onde existia um apartheid
oficial pior do que a segregação racial que o sul dos Estados Unidos conheceu.
Discordo.Não acho que seja pior. Penso mais como Joaquim Nabuco.Um pouco além
de Joaquim Nabuco quanto a este problema.

Não gosto da tendência de chamar uma área da criação de
música popular no Brasil de "MPB".É considerá-la como se fosse a parte elevada
de algo que,na maioria,é "vulgar e ruim". Isso é um erro total ! Eu me sinto
violentamente agredido por isso.


Quer dizer que eu sou MPB e Rauzito e os Racionais MCS não são ?
Ao mesmo tempo,eu,oficialmente,estaria junto com Chico Buarque, Chico
César,Gilberto Gil,Milton Nascimento.Mas aí a Daniela Mercury não é -ou agora
já quase é.Já o Chiclete com Banana não é.A turma que é "MPB" necessariamente
estaria num nível superior de produção musical.Não acho ! Não acho mesmo.As
duas coisas estão erradas. O que se pode chamar de MPB é só uma coisa : a
música popular que feita,no Brasil,pelos brasileiros".

VOCÊ UMA VEZ DISSE QUE OS ARTISTAS NÃO DEVEM E NÃO PODEM SEGUIR A MESMA HIERARQUIA QUE OS JORNALISTAS SEGUEM - E VICE-VERSA. QUAL É O MAIOR EQUÍVOCO DA IMPRENSA EM RELAÇÃO A VOCÊ?

Caetano Veloso : "Em primeiro lugar,para falar da imprensa em
termos gerais,o equívoco é a idéia de que há uma área mais respeitável que se
chama MPB,à qual eu pertenceria. Errado !.Mas há também brigas mais ou menos
alimentadas - que não deveriam ter razão de ser,mas chegam a níveis
baixíssimos,não por minha culpa.É o caso da revista Veja,por exemplo - uma
coisa chocante.Não falo com a revista Veja há 10 anos.Faz uns dois,três anos,
eu ia voltar a falar,ia voltar a aceitar.Eu estava começando a pensar a voltar
a falar com a revista,porque os responsáveis por um negócio imperdoável que
aconteceu há anos já tinham sido afastados. Eu digo : a revista começou em 68;
eu comecei em 67....A Veja tinha uma vontade louca de imitar a revista
americana Time,no tamanho,na frase com dois pontos embaixo da fotos,enfim,tudo
bem.A Veja até publica reportagens políticas boas,é a melhor revista semanal do
Brasil,assim de brincadeira,a mais respeitada,mas comigo é muito ruim,é muito
errada !
Quando eu estava pensando "agora vou falar" fizeram uma
reportagem sobre minha ida a Vigário Geral com o pessoal do Afro Reggae.São
meus afilhados,colaboro com eles na medida em que posso,admiro enormemente o
que eles vêm fazendo.O disco eles vão lançar é uma beleza,o show é um
acontecimento,todo mundo deveria ver.Eu espero que em breve todo mundo veja em
toda parte do Brasil,porque é espetacular.Mas eles têm um número em que eles
entram todos encapuzados no palco.O que eles me pediram ? Como eu ia cantar
logo em seguida,eles me pediram que eu entrasse encapuzado com eles.Eu iria
ficar lá no meio do palco.Depois,quando eles todos levantassem o capuz,eu
levantaria - e já sairia cantando.Já se veria que era eu.Depois,eu ficaria
sozinho cantando sozinho.Assim fizemos.Mas a Revista Veja publicou uma
reportagem mentindo descaradamente e dizendo que eu botei uma máscara preta
para fazer marketing. Parecia que só eu que é que tinha ido de máscara.
A revista dizia que aquilo era uma coisa terrível porque quem usa aquelas
máscaras são os matadores.Era como se eu fosse para um gueto judeu com uma
suástica. Tudo é marketing de Caetano...A revista,aí,me trata com desrespeito.
Isso é um negócio brutal,sob o ponto de vista do jornalismo.

Por que é feito isso ? Há pouco tempo,na TV, um sujeito que faz
programa de entrevistas na MTV pergunta para um garoto,num programa feito para
adolescentes : "O que é que você acha que se deve fazer para o rock no Brasil
ficar legal ? A gente deve matar Caetano Veloso ?".
Matar ? !!! Perguntar a um adolescente se é uma boa idéia matar
Caetano Veloso? Isso é horrível,é absurdo. O mesmo apresentador deu uma
entrevista na Isto é dizendo que tinha sido repreendido pela direção da
emissora.Mas diz assim : "Ah,Marcelo D2 tem razão : disse à Folha de São Paulo
que não se pode falar nada contra Caetano Veloso".

Mas o que vejo,o tempo todo,na Folhateen(N:suplemento semanal da
Folha de São Paulo) é aquele pessoal só falando mal de mim.Igualmente,na
Ilustrada (caderno de cultura da Folha).A Veja é assim.Agora,para dizer que
Tom Zé é bacana,"o verdadeiro rebelde",a Veja esculhamba comigo,diz que eu
gravei a música "Sozinho",uma música banal,para botar na trilha sonora de uma
novela.Mas eles sabem que não é verdade ! Não foi o que aconteceu ! Por que
faz,então ? Se a revista vai elogiar Tom Zé,por que tem de publicar um artigo
um negócio contra mim,Gal,Gil e Betânia? Aquilo desmerece Tom Zé,porque parece
que o que animou a redação a fazer duas páginas coloridas com Tom Zé não foi a
excelência real do trabalho que ele faz - e de fato é excelente-,mas a
oportunidade de meter o pau em mim e em Gil ! Não evitam mentir descaradamente.

Mas ver essa gente falar mal de Alexandre Pires - que canta bem,é
afinado,ensaia o show com responsabilidade e apresenta o produto perfeitamente
- não dá,não dá !".

Aliás, sobre Tom Zé eles nunca disseram nada nos anos 70.Quando os
discos de Tom Zé saíam,a imprensa nada fez por eles.Agora querem que seja minha
ou de Gil a culpa pelo fato de Tom Zé não ter sido noticiado pela imprensa na
época em que lançou discos maravilhosos,como,sobretudo,o "Estudando o Samba" -
uma obra-prima. Eu,pessoalmente,já tive raiva da revista Veja por outras
coisas.Quando Elis Regina morreu,achei abominável o tratamento que a Veja
deu.Disse isso de público.O modo como eles trataram foi um desrespeito
horrível,uma atitude sensacionalista,um comercialismo baixo.Com o caso do
cacique Paiakan também : sensacionalismo baixo ! Comparado com aquilo,Ivete
Sangalo é uma cantora de música religiosa estritamente pura,não fez nada por
dinheiro.Eu não entendo essa moral !

Parei de falar com a Veja foi quando eles fizeram uma reportagem em
que eles punham Tom Jobim,eu,Millor Fernandes e Chico Anísio,sob o título "O
Clube dos Ressentidos".A revista trouxe uma fotografia de uma ala da Comissão
de Frente da Mangueira,trabalhada por computador.Fêz-se uma fotomontagem com os
rostos dos personagens da matéria.A reportagem,horrenda de ponta a ponta,foi
escrita por Alfredo Ribeiro -que também se assina Tutty Vasquez.Era de uma
desonestidade brutal.Era a época de Collor,o que tornava mais perigoso o
negócio,porque dava uma sensação horrível.O artigo dizia que aquele era um
grupo de pessoas que se enchiam de dinheiro com o Brasil mas só falavam mal do
país.Incluíram-me num elenco criado artificialmente.Não há identidade nenhuma
entre Tom Jobim e Chico Anísio,Millor Fernandes e eu.Nem me dou com Millor
Fernandes -que,aliás,é uma das figuras da imprensa que eu admirava quando
criança. Depois de criarem o elenco artificialmente,atribuíram a todos uma
suposta vontade de depreciar o Brasil.É uma coisa disparatada em relação a mim.
Pode ser até que outra pessoa diga que quero salvar o Brasil a todo custo,ou
descobrir algum canto,alguma coisa fascinante ou maravilhosa,uma identidade
especial do país.Mas é uma coisa horrenda dizer que eu tendo a desmerecer o
país ou que eu demonstro uma grande ingratidão porque eu ganharia muito
dinheiro com o Brasil ! São termos inaceitáveis. Eu disse : assim não é
possível ! Não dá para entender como uma revista que se diz a mais respeitada
-ou que supostamente se dirige ao leitor mais sério- pode vir com um negócio
desses. Não dá para entender ! Eu disse : não falo mais com essa gente ! Chega
! Fiquei muitos anos sem falar.Quem dirigia a revista era esse Mário Sérgio
Conti - um sujeito que hoje escreve bem na Folha de S.Paulo.É um oásis na
Ilustrada,em meio a tanta gente que escreve mal.Deve escrever bem porque é
mais velho,já aprendeu a escrever um pouquinho mais.O fato é que ele - que
dirigia a revista - e Alfredo Ribeiro - que fêz o artigo- terminaram saindo da
"Veja" tempos depois.Eu disse : "Acho que vou falar com a Veja".Mas saiu a
matéria sobre Vigário Geral.Vi,então,que o problema não é Conti nem Ribeiro nem
Vasquez. O problema é que aquele ali tem tem que ser -infelizmente ! - inimigo
meu.Faz parte de um aspecto do apartheid brasileiro o fato de eu ter de estar
em oposição à revista Veja.Eu deveria poder apoiá-la,naturalmente,porque a Veja
é um amadurecimento do jornalismo brasileiro,representa alguma coisa,não sou
basicamente contra,mas vejo que há,ali,alguma coisa terrível.Ou eu é que sou
terrível de alguma maneira para algo ali que termina não dando certo.Não sei
porque saiu a matéria sobre Vigário Geral.Era mentira o que foi dito ali.Quem
fez sabia que era mentira,mas distorceu propositadamente,porque tinha vontade
de me agredir"..

VOCÊ CITOU O CADERNO FOLHA TEEN -DA FOLHA DE SÃO PAULO- COMO UM DOS LUGARES ONDE SE PUBLICAM CRÍTICAS A VOCÊ COM CERTA FREQÜÊNCIA. UM DOS COLUNISTAS,ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR,DIZ QUE AQUI NO BRASIL QUALQUER COMPOSITOR QUE
QUEIRA FAZER SUCESSO TEM DE ESTENDER O TAPETE VERMELHO PARA CAETANO VELOSO.É ESSE O TIPO DE CRÍTICA QUE IRRITA VOCÊ ?

Caetano Veloso : "Não propriamente.Porque,a Folha Teen acho
que é um pouco brincadeira.Mas é uma brincadeira que tem um problema : o do
comercialismo.Aquilo ali é feito para criar um tipo de público,um tipo de
platéia de que eles são os palhaços,os bem desenhados.É o negócio de Paulo
Francis.O sujeito escreve dizendo tudo o que pensa,não respeita fulano,eles
falam tudo,"sei de tudo","estou por dentro","sei onde as cobras dormem","não
tenho medo de dizer isto e aquilo".É aquele personagem da imprensa.Mas Paulo
Francis era um grande jornalista,um homem muito culto,muito inteligente,
escrevia rápido.Fez uma grande carreira de vedete.O grande confronto que houve
entre mim e Paulo Francis -e ele me agrediu violentamente - aconteceu porque,
mais cedo ou mais tarde,teria de haver um choque : sou uma vedete,um cantor
popular famoso,um personagem público do entretenimento com uma capacidade de
articular idéias e uma vocação crítica muito desenvolvida que apareceu no meu
trabalho e nas minhas entrevistas.Já ele era um crítico e um jornalista muito
articulado. Era um mau romancista,o que deve ter lhe causado amargura,porque
ele queria ser um homem de alta cultura.

Os meninos da Folha Teen -os mais novos- pegaram justamente a
última fase do Paulo Francis,a mais reacionária,ligada a tudo o que fosse de
direita.Todos os aspectos da direita ele enaltecia.Tornou-se até meio acrítico
quanto a isso.São meninos que lêem gibi.Acham que podem esculhambar comigo.Um
jornalista dá uma entrevista ao jornal Caros Amigos e esculhamba comigo.
Vem Roberto Freire - não o político pernambucano,mas o psicoterapeuta paulista-
e reitera as palavras do jornalista meio jovem da Folha que me esculhambou.
Roberto Freire,um homem velho,não tem vergonha na cara ? Que negócio chato !
Mas,na Folha Teen,fazem esse tipo,como o menino que deu a entrevista para
Caros Amigos.É um personagem que diz assim: "temos que destruir a máfia do
dendê !".Esculhambam comigo.Tenho cinquenta e oito anos.Já fiz coisa pra
caramba.Adoro o disco novo - que acabei de fazer.Tenho minhas limitações,não
sou um grande músico,não me acho o bacana.Não mesmo ! A maioria das pessoas a
que me referi aqui considero superiores a mim,na minha profissão.Alguns muito
superiores.João Gilberto muitíssimo ! Jorge Ben, muito; Chico Buarque muito,sob
certos aspectos; Lenine,muito,sob outros;Paulinho da Viola,muito sob outros
aspectos, musicalmente. São pessoas superiores a mim,mas tenho uma contribuição
a dar que inclui uma visão crítica,uma recolocação do modo de fazer a música
popular,pensar aquilo e apresentar algo do pensamento no meu trabalho,fazer
algumas canções que sejam mais ou menos relevantes,que fiquem aí.Eu me acho
assim.Não sou modesto : eu estou sendo objetivo ao máximo ! É assim que me
vejo.Não me acho grandes coisas. Mas esse pessoal me superestima.É preciso que
se reitere que sou o máximo para que seja pesado eles dizerem que sou uma
porcaria ! O que eles querem é que se intensifique o retrato que eles fazem de
si mesmos,como grandes figuras,como Paulo Francisinhos.

Não leio a Folha Teen,uma vez ou outra é que dou uma olhada.Eu sei
que não é todo mundo que diz,ali,que sou uma porcaria.É,sobretudo,esse cara que
era daqui de TV,já trabalhou no Fantástico.Mas não ligo muito.Isso é um
problema da imprensa,é comercialismo,é criação de personagem para vender aquele
veículo.Não tem nenhuma contribuição organizada a oferecer para o leitor".

SE O LIVRO "VERDADE TROPICAL" FOI ESCRITO CONTRA PAULO FRANCIS, QUE INFELIZMENTE MORREU ANTES DE O LIVRO SER CONCLUÍDO,O DISCO "NOITES
DO NORTE" É CONTRA OU A FAVOR DE QUEM?

Caetano Veloso : "É a favor do Joaquim Nabuco".

(2000)

Posted by geneton at 05:51 PM

RITA LEE

A SENHORA JONES CHAMA CHICO BUARQUE PARA A MÚSICA


O autor desta oitiva, brasileiro, jornalista, estabelecido profissionalmente na redação do Fantástico, na rua Von Martius, 22, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, declara, a quem interessar possa, que, no início de uma noite de quinta-feira, interrogou longamente, no estúdio 2 da Rede Globo de Televisão,na rua Dr. Chucre Zaidan, 46, no bairro de Vila Cordeiro, em São Paulo, a sra. Rita Lee Jones, brasileira, paulistana, cantora e compositora, mãe de três filhos homens e avó de uma criança chamada Isabela.

O estúdio em que foi feita a gravação estava inativo: é usado, no período das manhãs, pela apresentadora Ana Maria Braga. Enquanto aguardava a chegada da sra. Jones, a equipe não resistiu à curiosidade de inspecionar o esconderijo utilizado todas as manhãs pelo assistente da sra. Braga, o famoso Louro José – que, lastimavelmente, não se encontrava ali naquele início de noite.


Satisfeita a curiosidade a respeito do sr.José, a equipe passou a aguardar a chegada da entrevistada, o que ocorreu em questão de minutos. O pequeno atraso – perfeitamente tolerável, para os padrões tupiniquins - pode ser creditado ao fato de que a sra. Jones passou, antes, por um camarim, para retocar a maquiagem, reforçar o batom e revisar o penteado, cuidados compreensíveis numa profissional dos palcos.

A sra. Jones usava óculos de lentes azuis. Trajava uma blusa colorida de mangas compridas, com motivos cor de rosa, calça jeans e tênis. É como se uma fotografia dos anos sessenta de repente ganhasse cor, verve e movimento. Os cabelos tinham sido tingidos de cor vermelha, acentuada pela luz levemente âmbar, emitida por um dos refletores. Parecia à vontade, o que viria a se comprovar durante a gravação.

Enquanto o cinegrafista Bartolomeu Clemente e o técnico Pedrinho Tonelada ajustavam o equipamento para o início da entrevista, a sra. Jones fez dois pequenos comentários. Ao explicar por que estava usando o polegar para inspecionar a cutícula dos outros dedos da mão, declarou, em tom de brincadeira, que estava praticando o que chamou de “antropofagia”: comia a própria carne.

Em seguida, confessou que tem convivido nos últimos meses com um problema incômodo – o da insônia, um inconveniente que a persegue desde que resolveu suspender o uso de drogas, no início do ano de 2006. Disse que há dias em que só adormece às dez da manhã. O autor do interrogatório não disse, mas pensou: “Dos males, o menor. Boa sorte, sra.Jones”.

A essa altura, a sra. Jones perguntou ao autor do interrogatório se ele também tinha problemas de insônia. A resposta foi negativa. Mas, para não soar evasivo ou monossilábico, o perguntador comentou que a sra. Jones poderia usar as noites de insônia para cumprir tarefas criativas,tal como fazem tantos escritores confessadamente insones. Diante da sugestão, a sra. Jones retrucou: tocar guitarra todo dia às quatro da manhã não é tão fácil quanto parece.

O autor do interrogatório notou uma particularidade: a sra.Jones só irá completar sessenta anos de idade no dia 31 de dezembro de 2007. Mas, desde já, numa atitude que confronta a postura normalmente adotada por mulheres famosas, ela faz questão de se declarar sexagenária. É um exemplar raríssimo de mulher que aumenta a própria idade.

A sra. Jones comenta rapidamente sobre o trabalho de um fã, Henrique Bartsch - que, depois de trocar uma infinidade de e-mails com ela, terminou escrevendo o livro “Rita Lee Mora ao Lado/uma Biografia Alucinada da Rainha do Rock”. Quem estiver à procura de histórias indiscretas – ou meramente picantes – encontrará, na biografia, um repertório razoável, descrito na primeira pessoa pela própria sra. Jones : em e-mails de tom confessional, ela conta que flagrou um casal de astros da Jovem Guarda dedicado a um embate carnal, em cima de uma mesa, nos bastidores de um teatro. Diz que levou uma cantada do futuro campeão das pistas, Emérson Fittipaldi. Namorou com Jorge Ben. Viu os Beatles na Abbey Road, em Londres. Cortou o cabo de som que serviria a Edu Lobo, num show, em vingança contra a militância anti-rock do compositor. Em “Arrombou a Festa”, música que fez grande sucesso, copiou deslavadamente as opiniões de Raul Seixas sobre colegas da MPB. Passou dez dias trancada num apart-hotel com o papa da Bossa Nova, João Gilberto, às voltas com música, fumaça e sexo. Já foi ameaçada por traficantes armados ao subir um morro em companhia de Cazuza, para comprar droga. Teve um caso fortuito com o namorado de Elis Regina, César Camargo Mariano, durante a gravação de um especial para a TV. Ouviu do Rolling Stone Charlie Watts a sentença: “Não acredito nos Rolling Stones”. Já foi arrastada para um banheiro por Eric Clapton, numa festa na casa de um executivo de uma gravadora, no Rio.


Iniciado o interrogatório formal, a sra. Jones praticou os seguintes gestos: A) fez revelações sinceras sobre o fim daquela que é considerada a melhor banda de rock já surgida nesta República, os Mutantes; B) declarou – surpreendentemente – que só abandonara o uso de drogas no início de 2006; C) lançou um novo grito de guerra contra quem promove rodeios- segundo ela, um intolerável ritual de imposição de maus tratos a animais, o que seria um “péssimo exemplo para as crianças” ( o autor do interrogatório notou que, depois que se tornou avó da menina Isabela, a sra. Jones passou a citar crianças nas respostas ); d) criticou a atitude de artistas que usam um suposto engajamento político para comover o público, como seria o caso do irlandês Paul Hewson, conhecido internacionalmente pelo nome artístico de Bono Vox; E) deixou no ar uma inédita proposta de parceria com o sr. Francisco Buarque de Holanda; F) disse que morria de inveja de outro colega de profissão, o sr. Caetano Emanoel Viana Teles Veloso.

As declarações da sra. Jones foram integralmente gravadas. O que se lerá a seguir é uma suma do que se perguntou e do que se respondeu:


“ODEIO ACADEMIA E SHOPPING CENTER”


Interrogador: Você já declarou que odeia academia, salão de beleza e vitamina. Por quê? É medo de ser confundida com uma perua?

Sra. Jones: “Meu bem,eu realmente odeio academia e shopping center. Pago para não sair de casa. Minha vida se resume a antes e depois do computador. Sempre fui meio pão-dura. Nunca gastei muito. O que eu iria fazer nesses lugares? Eu mesma pinto o meu cabelinho e cuido de minha pele. Creme eu esqueço de passar. Mas dá para passar no pão, porque existem cremes deliciosos. Provo muito.

Há maneiras de envelhecer: ou você segue o caminho das peruas ou o caminho das feiticeiras. O grande inimigo das peruas – que perseguem a fonte da juventude – é o tempo. Já as feiticeiras contam com o tempo como o maior aliado.

Mas gosto de perua. São engraçadas as peruas “siliconadas” e “botocadas”. Também gosto das feiticeiras, com aquela coisa mais serena.

Não consigo – até hoje - deixar o meu cabelo grisalho. Com sessenta anos, tenho cabelos grisalhos. Já os meus pentelhos são grisalhos! Já estão grisalhos, mas não pinto”.


“EM VEZ DE “SEXO, DROGAS E ROCK-AND-ROLL”,EU ESTOU MAIS PARA “NEXO, IOGA E BOSSA-NOVA”

INTERROGADOR : O que vem em primeiro lugar na vida da Rita Lee quase sessentona : sexo, drogas, rock and roll, ou nenhum dos três?

SRA. JONES : “Em vez de sexo drogas e rock-and- roll, eu estaria mais para nexo, ioga e bossa-nova. Tenho neta agora, meu amor.Eu estou louca pela minha neta de nove meses! Já haviam me avisado que ser avó é muito mais legal do que ser mãe. É mesmo!”.


INTERROGADOR : Você diz que os rodeios são “um vergonhoso lixo cultural americano trazido ao Brasil por pura macaquice”. Os peões são, segundo você, “uma corja de sanguinários, profissionais da crueldade, que maltratam animais”. Você espera ganhar essa briga contra os rodeios?

SRA. JONES : “É uma indústria que ganha muito dinheiro em cima do sofrimento dos bichos. Odeio rodeio! Se o espaço daquela arena maravilhosa fosse aproveitado para atletas, circos, feiras, concursos de bunda, marchinhas e carnaval,o público continuaria indo. Usar bicho é péssimo exemplo para as crianças! Porque rodeios tratam bichos como se fossem objetos de uso pessoal. Não é assim: os bichos são companheiros de jornada. A gente não vai chegar às estrelas enquanto não respeitar todas as formas de vida.


A preocupação com animais tenho desde pequenininha. Vou continuar tendo. Faz parte de mim mesmo. Se fosse para escolher, eu faria passeatas e me deitaria na frente de arenas.

Já me deitei na frente da Embaixada da Espanha quando eles, uma época, queria trazer as touradas para cá. Falei: “Tragam Miró , tragam Almodóvar, tragam Picasso, mas trazer o lixo cultural que não nos pertence?”

Se o peão de boiadeiro foi promovido a “atleta”, o que é que vou falar para Ronaldinho Gaúcho e para Pelé? O meu “peão de boiadeiro” era Jeca Tatu. Hoje,é um John Wayne que, vestido de cowboy, rouba a festa junina, típica da gente!

Dizem-me assim: “...Mas você faz rock- que também é coisa de gringo.” Ora, futebol e rock-and-roll são coisas de gringo, que chegaram aqui e ganharam o trejeito brasileiro. Vocês – dos rodeios – não! Vocês estão copiando John Wayne- que só matava índio no cinema! É um péssimo exemplo!
Tiraram o espírito “Jeca Tatu” do peão que tratava dos bichos. Transformaram os peões em torturadores de animais, na frente das crianças. É duro, porque quem defende os animais é logo amaldiçoado com o estigma de “louco” e “desocupado”. Mas todos deveriam se preocupar com as crianças. Que exemplo é esse? Que barbaridade é essa?”.

INTERROGADOR: Que ídolo decepcionou você quando visto de perto?

SRA. JONES: “Quando me apresentaram a David Bowie, a quem sempre imitei muito, eu esperava que ele fosse mais alto do que eu. Não era. Isso é decepção?”.


INTERROGADOR: De quem você sente uma inveja inconfessável?

SRA.JONES: “A minha inveja é confessável. Fiquei espantadíssima quando Caetano Veloso disse que tinha inveja de mim. Porque eu é que tenho muita inveja de Caetano, há muito tempo, desde que eu o conheci. Aquela voz,aquele jeito de falar e de tocar, as letras...Invejoso que inveja outro invejoso tem cem anos de inspiração. Confesso : “Caetano, morro de inveja de você....”

“EU ESTAVA IMITANDO UMA CANTORA NO PALCO – E DEBOCHANDO.E ELA NA PLATÉIA! PODERIAM AO MENOS TER ME AVISADO!”


INTERROGADOR: Qual foi a última maldade que você fez?

SRA. JONES: “A última maldade que fiz para mim não é bem uma maldade. Era um filme que continuava no repeteco, até janeiro de 2006, quando fui para um hospício e decidi parar realmente com drogas. Porque droga era uma história antiga: você vai parar no hospital, acham que é suicídio. Mas não é suicídio, nunca foi: era overdose mesmo! Eu fazia limpeza, saía bonitinha, “paz e amor” . Depois que minha neta nasceu - e me vi nesse repeteco de filme -, achei tão careta esse rancinho que falei: “Quer saber? Não quero, chega, não quero!” (faz voz de desdém). Eu estou considerando que a caretice pode ser a maior loucura de todas!

Quanto a maldades com os outros: eu estava imitando uma cantora no palco e debochando. E ela estava na platéia! Que “micão”! Poderiam ao menos ter me avisado! Terrível. É esquisito até hoje. Ajoelho e peço perdão....”

( a sra. Jones prefere não citar publicamente o nome da cantora de quem se arrepende de ter debochado, mas o interrogador apurou, com cem por cento de certeza, que o alvo era Fafá de Belém).


INTERROGADOR : Que causa faria você liderar uma passeata hoje?

SRA.JONES: “Liderar passeata? Não gosto muito de artista que carrega plataformas ideológicas. Por exemplo: aquela coisa de Bono Vox ficar com discursinho de salvar o mundo é marketing. Botar terçinho no microfone...Não venha com esse discursinho”.


INTERROGADOR: Com que parceiro você gostaria de ter escrito uma música mas não teve a chance?

SRA. JONES: “Eu e Chico Buarque somos eramos de turmas diferentes. Chico se expressa muito bem no feminino. Eu gostaria de brincar com “aquellos ojos verdes” (cantando). Juro que eu não vou paquerar! Sou uma mulher casada! Não é assim. É ver no que é que vai dar. São tribos diferentes: Chico é MPB, tem um lado de literatura e uma importância política, porque dá opinião. Eu sou uma alienada total disso. Quem sabe se não dá uma boa “liga” ? Gostaria de tentar! E outro de quem gosto também é Chorão - do Charlie Brown Jr. Gostaria de brincar com ele também”.



“OS MUTANTES PERDERAM O DEBOCHE”


INTERROGADOR: Para efeito de registro: você pediu para sair dos Mutantes ou foi demitida do grupo?

SRA. JONES: “Fui expulsa. Tínhamos uma comunidade na Cantareira. Cheguei um dia, para ensaiar, com meu jipinho. O que encontrei na sala de ensaio foi um clima de “enterro”. E o comunicado: “Nós vamos seguir a linha progressiva, tipo Yes e Emerson, Lake and Palmer. Você não tem o virtuosismo para instrumentos.... Então, vai ficar fora.”

A facada no coração da Virgem Maria....(aqui,a sra. Jones passa a se referir a si própria na terceira pessoa): Ela segurou a pose e disse: “Legal.” Pegou os instrumentinhos e foi embora no jipe.

Mas, na primeira esquina, eu desabei (a sra. Jones volta a falar na primeira pessoa, faz voz de choro para ilustrar o que sentiu ao receber a notícia de que, a partir daquele dia, estaria fora dos Mutantes) Doeu muito, doeu muito. Chorei tanto, xinguei tanto...

Eis-me aqui, hoje: acho que foi um presente dos deuses ter sido expulsa dos Mutantes. Porque, modestamente falando, depois que saí, eles perderam o tempero. Os Mutantes eram o deboche, eram tropicalistas. A gente estava no meio do Caetano, Gil e Tom Zé, ali, aprendendo o Brasil de Chacrinha e Carmen Miranda, tudo aquilo que me foi oferecido, toda aquela riqueza. Sou filha de gringo! ( o pai da sra. Jones é americano). Os Mutantes perderam o deboche para copiar gringo e fazer música progressiva...”.


“EU PAGO O MEU GERIATRA, MAS NÃO FAÇO “REVIVAL””

INTERROGADOR: Você já disse que seus ex-companheiros dos Mutantes parecem hoje velhinhos em busca de dinheiro para pagar o geriatra...

SRA JONES: “....Desculpe interromper, mas é que desconfio de revivals. Sempre desconfiei! Porque uma coisa é você fazer um trabalho novo a partir de um gancho do passado. Não é assim que acontece: o revival é um bando de velhinhos espertos ,sim, tentando descolar grana para pagar geriatra! Eu pago o meu geriatra, mas não faço revival. Não vou fazer revival de Mutantes, mas nem a pau,a não ser com uma boa grana....”

INTERROGADOR: Você já calculou, então, quando é que vai procurar o geriatra para uma primeira consulta?

SRA.JONES : “Estou gostando muito de envelhecer. Sou capricorniana.Dizem que capricorniano nasce velho e vai rejuvenescendo com o tempo. Já digo “sessenta anos”. Mas vou fazer cinquenta nove. Acontece que cinquenta e nove é velho. O sessenta já zera tudo - e é mais chique. Então, meus geriatras: aguardem-me! Vou botar fogo nesse asilo! Um grupo do meu tempo se chamava “Os Velhinhos Transviados”. Eu era criança quando eles iam a um programa da TV Tupi, chamado “Almoço com as Estrelas”. Com meus oitentinha e noventinha, vou tascar fogo no asilo - e recuperar os velhinhos com suingue...”.

“TENHO CONSCIÊNCIA DE QUE ABRIMOS ESTRADAS E AVENIDAS – E A MOÇADA DESFILA POR ELAS”

INTERROGADOR : Você já reclamou duramente de um crítico que atacou os artistas que surgiram nos anos 60 e hoje estariam decadentes. Se uma candidata à roqueira lhe procurasse hoje e pedisse um conselho, você se sentiria ofendida?


SRA.JONES : “Por que me ofenderia? Tenho consciência de que abrimos estradas e avenidas - e a moçada desfila por elas. Um crítico disse que um trator deveria passar por cima de mim...Fino, não? Nossa vingança é assim: os críticos passam.

Em meus tempos de jovem, o ditadinho que corria em São Paulo era : “Para fazer rock-and-roll é preciso ter culhão!”. Eu não entendia bem aquilo! Falei: “Faço rock com meus ovários, com meu útero, querido!”

É um ditado que já não vale. Porque a gente vê meninas que são “band leaders”, compositoras, cantoras e instrumentistas. O único conselho que eu daria é: façam música!
Adoro fazer. A inspiração vem da alma. Não marca hora. É uma muito solitária. Ainda que se faça a dois, é uma única solidão. Duvido que um dia eu vá falar: “Ah,Não vou mais compor.”

Duvido!”.


Posted by geneton at 05:46 PM

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Posted by geneton2 at 01:07 PM

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Posted by geneton2 at 10:55 AM