outubro 31, 2009

LEDO IVO - PARTE 1

O DIA EM QUE O POETA LEDO IVO OUVIU DO GRANDE ESCRITOR GRACILIANO RAMOS UMA CONFISSÃO IRRITADA, SURPREENDENTE E POLITICAMENTE INCORRETA SOBRE MARCEL PROUST: “NÃO LEIO VEADOS!”

Caçadores de belos versos,tremei de arrependimento : quem nunca leu um poema de Ledo Ivo, por preguiça, desinformação ou enfado, deve se penitenciar deste crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível.

Um exemplo ? É difícil encontrar uma declaração de princípios tão bela quanto “A Queimada” :

“Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita”.

O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da poesia brasileira neste início de século, diga-se que o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Ao contrário do que os versos podem fazer supor,o homem não é uma fera de garras afiadas.

Ei-lo : sentado numa poltrona da sala, o lobo Ledo vai fazer, a pedido do repórter,uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O cenário que circunda o Covil do Lobo é um convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas do mundo, o lobo Ledo precisa caminhar apenas cinco passos. É a distância entre a sala e a extremidade da varanda deste apartamento. Lá fora,a beleza escandalosa de um céu sem nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo.

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Ledo Ivo : convivência com Graciliano Ramos (Foto: Geneton Moraes Neto)

A localização do apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um poeta.Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Não é para qualquer um.

As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações de poeta vão se sucedendo,aos borbotões : com os gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível, o pequenino Ledo Ivo reconstitui, com frases precisas, momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de Andrade,Graciliano Ramos,Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.

Justiça se faça : Ledo Ivo já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de “o Brasil oficial” : a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe, por unanimidade, a cadeira número 10, no não tão distante ano de 1986. Mas o “Brasil real”, aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos, não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser.

O Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário, um ermitão que prefere ver a humanidade à distância. A ode à solidão – que ele já escrevera nos versos definitivos do poema “A Queimada” – repete-se no não menos belo “A Passagem” :

“Que me deixem passar – eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar,exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho”.

Ledo Ivo vai alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo cuidado que devota à linguagem escrita. O Português agradece,comovido. O poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como “de maneiras que….”. Se alguém cometer o sacrilégio de misturar “tu” com “você” diante do lobo,certamente escapará de uma admoestação, porque o homem é afável, mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.

Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski,o lobo Ledo carrega,pelas décadas afora,as marcas da infância em Maceió :

“Na tarde de domingo,volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam as maresias e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências
monótonas.
(…) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,
voltai a este dia inacabado
que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.
Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no mar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno

Apenas nomes em lápides.Apenas nomes.E o barulho do mar”.

Graciliano Ramos,João Cabral de Melo Neto,Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes vivos da imaginária enciclopédia do Lobo Ledo.
Gravando !

PRIMEIRA ESTAÇÃO : O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE DESPEDIR DA VIDA

GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável,corresponde à verdade ?

Ledo Ivo : “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo estado. Quando menino, como primeiro da turma no grupo escolar, fui apresentado a Graciliano,na época secretário de Educação. Pôs a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando ele publicou “Vidas Secas”, eu,”menino prodígio” em Maceió,escrevi,em 1938,um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse “vá visitar Heloísa” – a mulher do Graciliano Ramos, àquela altura, aos cinquenta anos de idade,uma figura importante na literatura brasileira. Durante nossa conversa, ele abriu uma gaveta e disse : “Quando publiquei “Vidas Secas” em Alagoas,só uma pessoa falou do meu livro : um menino de 14 anos…..”.

A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio, porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada, jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e Graciliano Ramos puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas,como,por exemplo,a correção lingüística que,dizem,existe em minha prosa.

Graciliano Ramos era,sim,uma pessoa rústica. Em toda a literatura brasileira,ele só tinha três, quatro admirações, além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês : José Lins do Rego,Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia, admirava Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos).

Notei, na casa de Graciliano Ramos, um livro de poesia autografado, fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa de Graciliano,dizia a ele : “Você deveria abrir esse livro ! “. E ele : “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos) .

Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro.Se não me engano,era um volume das poesias completas de Augusto Frederico Schmidt”.

GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical ?

Ledo Ivo: “A herança – pungente – é ver que a glória de Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com Graciliano Ramos foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um grande escritor,mas ainda não plenamente reconhecido – essa é que é a verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não reeditava. Em conversas íntimas, Graciliano chamava José Olympio de “esse filho da puta – que vive editando Lourival Fontes e Getúlio Vargas…..” (N: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas) . O que eu via ali, em Graciliano, era a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal – Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos em Alagoas : “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de Alagoas, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances ? Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa que o Rio,a metrópole,deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor.

Qual foi,então,a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ? A fidelidade ao ofício, algo que se viu também em Machado de Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia,não pensava em prêmios literários,não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles”.

GMN : O desleixo com a glória imediata foi,então,uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos ?

Ledo Ivo : “Uma característica de Graciliano Ramos -que me orgulha- é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil diferente. Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro – oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que tinham carro ! Um negócio impressionante,porque todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo diferente,o da vida literária, marcada pela existência de suplementos literários.

Mas havia ,em Graciliano Ramos,um detalhe que me impressionava : o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de certa maneira – muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele gostava -,no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust, por exemplo. Quando eu perguntava por que,ele dizia : “Não leio veados ! “.

Quando o visitei pela última vez,no hospital, ele chorou, porque sabia que ia morrer. Enquanto chorava,falava -e muito – sobre a mãe. O hospital ficava aqui ao lado,onde hoje é este edifício (Ledo aponta para fora do apartamento). Aquele foi nosso último encontro, porque eu estava de partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido.De vez em quando,falava coisas desconexas. Contava que a mãe,quando casou,levou as bonecas para casa – um negócio curioso.

O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante, porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que,por mais que ele dissesse que odiava a vida, ele, na verdade, amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma. Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão,mas nunca fumou.
Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”.

A SEGUIR : LEDO IVO FAZ RETRATOS FALADOS DE MANUEL BANDEIRA E CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Posted by geneton at 07:47 PM

outubro 29, 2009

VAN KIRK

UM ENCONTRO COM O CAVALEIRO DO APOCALIPSE : HOMEM QUE PARTICIPOU DO ATAQUE ATÔMICO A HIROSHIMA HOJE SE LEMBRA DAS VÍTIMAS “UMA VEZ POR MÊS” (QUANDO EMBARCOU PARA A MISSÃO, ELE LEVOU UMA PISTOLA E UMA BÍBLIA – PARA REZAR, SE TIVESSE TEMPO)

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Van Kirk : lembranças da bomba atômica (Foto: Geneton Moraes Neto)

Meninos, eu vi e ouvi: tive a chance de entrevistar, “olho no olho”, dois cavaleiros do apocalipse: militares americanos que participaram dos dois mais inesperados e devastadores ataques já lançados por um país contra outro. As bombas que os Estados Unidos lançaram sobre Hiroshima e Nagasaki forçaram o Japão a se render incondicionalmente, o que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial ( em breve, um post sobre o integrante da Missão Nagasaki. Porque quem entra em cena agora é um militar que participou do mãe de todos os ataques: a Missão Hiroshima)

Voilà :

Eis um dos cavaleiros do apocalipse: um homem de oitenta e dois anos colhe peras no pequeno pomar que cultiva no jardim de casa, num subúrbio de São Francisco, Califórnia. Oferece-me a fruta. “É boa e doce”. Faz sol. O azul escancarado do céu só é maculado pelo rastro deixado por um avião a jato.

Enquanto saboreia a pêra que acabou de colher, ele se dirige, a passos lentos, para uma cadeira na beira da piscina. Os raios de sol acentuam a brancura dos cabelos ralos. O pomar em casa e o conforto sugerido pela piscina podem dar a impressão de que o homem que colhe peras é um milionário. Não é. O homem que colhe peras é apenas um militar aposentado.

A biografia deste octogenário não seria diferente da de tantos outros veteranos de guerra se ele não tivesse levantado vôo, numa madrugada de agosto de 1945, a bordo do Enola Gay – o avião que conduzia a primeira bomba atômica usada numa guerra. Ao embarcar no Enola Gay, Van Kirk entrou para a História – para o bem e para o mal.

Os que criticam o uso da arma atômica chamam os militares que participaram do ataque de mensageiros da morte. Os que encontram uma justificativa histórica chamam-nos de guerreiros da paz. A polêmica durará séculos.
“Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra”

A missão que Theodore Van Kirk cumpriu mudou a história da humanidade. Todos os superlativos já foram usados para descrever a enormidade do ataque nuclear a Hiroshima. “Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra” – diz Bob Greene, autor de um livro recém-lançado, “Duty: a Father, His Son and The Man Who Won The War” – um jornalista que desde criança era fascinado pela Missão Hiroshima.

Que fantasmas povoam hoje os dias calmos deste homem ?

Se ele não tivesse embarcado há meio século para a Missão Hiroshima , certamente não teria o descanso dos seus dias de aposentadoria quebrado pela impertinência de repórteres que o procuram para tirar velhas dúvidas.

É o que faço agora. Van Kirk nos recebe – a mim e ao cinegrafista Sherman Costa – com um sorriso largo , uma pergunta bem-humorada (“vocês conseguiram chegar ? Pensei que tinham ficado presos no engarrafamento !”) e a disposição de abrir o armário onde se escondem os fantasmas de Hiroshima.
A bordo do avião que jogaria a bomba atômica sobre Hiroshima, Van Kirk levava uma pistola – e uma Bíblia

Pergunto se ele levou algum objeto pessoal quando embarcou no vôo histórico. Van Kirk me surpreende com a resposta: o único “objeto pessoal” que ele levou a bordo do avião que carregava a bomba atômica foi uma Bíblia. Se precisasse de conforto espiritual durante a Missão, poderia recorrer àquela pequena relíquia familiar:

- A única peça pessoal que carreguei comigo foi uma Bíblia – que eu tinha recebido de minha mãe e de meu pai. Era pequena. Cabia no bolso. Durante o vôo, eu me lembro de ter tocado a Bíblia com a mão. Mas não cheguei a ler nenhuma passagem. O exemplar da Bíblia não tinha meu nome, nada que pudesse identificar quem eu era. Se o avião por acaso fosse derrubado em território inimigo, os japoneses não poderiam me identificar pela Bíblia. Terminei perdendo-a, tempos depois.

Além do pequeno exemplar da Bíblia, Van Kirk carregava consigo uma pistola automática – que poderia ser usada numa situação extrema:

- Não havia rifles a bordo. Mas cada um de nós tinha uma pistola automática, calibre 45. Carreguei uma comigo, na missão rumo a Hiroshima. Se fôssemos derrubados sobre território japonês, poderíamos usar as pistolar para nos proteger ou – Deus nos livre – para destruir a nós mesmos, se necessário (Van Kirk evita a palavra “suicídio”). Mas, se algo desse errado na missão, a cena seria tão catastrófica que teríamos pouca chance de usar as pistolas.

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O navegador : a bordo do avião, a companhia de uma Bíblia - e uma pistola (Foto:GMN)

Ninguém participa impunemente de uma missão tão devastadora.

Van Kirk orgulha-se de ter contribuído para o fim da guerra. É um fato histórico indiscutível. O uso das armas atômicas – primeiro, em Hiroshima e depois em Nagasaki – obrigou o Japão à rendição incondicional . Se o Japão continuasse em guerra, seria invadido por terra. O número de mortos poderia ter sido maior do que o causado pelas bombas – dizem os estrategistas. Mas o preço do uso das armas atômicas foi altíssimo. O horror causado pelo cogumelo atômico jamais se dissipou. Calcula-se que cem mil pessoas tiveram morte instantânea, nos dez segundos seguintes à explosão. As cicatrizes deixadas pelas explosões atômicas vão atravessar os tempos.

Que tipo de pensamento terá passado pela cabeça de Van Kirk quando ele viu Hiroshima pela primeira vez, ainda a bordo do Enola Gay?

Van Kirk faz uma pausa, reconstitui o cenário do apocalipse:

- Era um dia perfeitamente claro. A gente podia ver a cidade a milhas de distância. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a de que nossa missão tinha sido bem sucedida: nós tínhamos encontrado a cidade, cumprimos os horários previstos, tudo estava perfeito. O primeiro pensamento que tive depois da explosão da bomba foi de alívio. Porque aquilo era algo que tinha exigido um treinamento que durara meses. O segundo pensamento que tive foi: a guerra acabou!

A História dos tempos de guerra não é feita apenas de ordens militares grandiosas e decisões sem rosto. Há sempre alguém que cumpre as ordens. As decisões tomadas no Salão Oval da casa Branca pelo Presidente dos Estados Unidos podem exigir – por exemplo – que um grupo de militares entre num avião de madrugada, invada o espaço aéreo japonês, mire numa cidade lá embaixo e abra as comportas para que seja lançada, naquele alvo povoado por homens,mulheres e crianças, a arma mais mortífera já concebida pelo homem- uma bomba atômica.

O avião Enola Gay levanta vôo da ilha de Tinian, no Oceano Pacífico, às 2 e 45 da manhã de seis de agosto de 1945 rumo a Hiroshima, com doze homens – e uma bomba atômica a bordo. A bomba explode às 9h16. Cem mil pessoas morrem instantâneamente na explosão. O número de vítimas chegaria a 145.000 no final de 1945.

“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastaram até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas seiscentos leitos e todos já estavam ocupados”, diria o jornalista americano John Hersey em “Hiroshima”, texto clássico sobre o bombardeio.
O jornalista que escreveu um livro clássico sobre Hiroshima registrou: “Um reverendo perguntava como o céu silencioso poderia ter causado tanta destruição”

“Nuvens de fumaça, próximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um céu silencioso poderia ter causado tanta destruição (…) Zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos”

A Missão Hiroshima foi o momento mais grave vivido por Van Kirk. Mas, para decepção dos fanáticos por guerra, ele constata:

- A guerra é mais interessante na TV do que na vida real. Guerra pode significar cinco minutos de extrema atividade – e um ano de monotonia….

Não havia lugar para monotonia a bordo de um avião que voava rumo ao Japão para cumprir uma missão que – não é exagero dizer – entraria para a história da humanidade:

- Havia a possibilidade de a bomba explodir no avião, o que seria desastroso. Poderíamos ter problemas no motor. Nós estávamos preparados para o pior – que, felizmente, não aconteceu. Não estávamos preocupados com os japoneses durante o vôo em direção a Hiroshima, porque sabíamos que eles não tinham como nos alcançar naquela altitude – confessa Van Kirk . Mas sabíamos que nosso avião seria atingido por ondas provocadas pelo deslocamento de ar, depois da explosão. Disseram-nos que, depois da explosão, iríamos sofrer o impacto. Houve até especulações sobre o risco de a explosão atingir o nosso avião. De volta à base, cheguei a ouvir de um dos cientistas o seguinte: “Quando vocês partiram para a missão, pensei que aquela seria a última vez que eu os veria….”. A turbulência durou pouco. O vôo de volta pôde continuar.
“Os cientistas tinham dito que a temperatura,no centro da explosão, seria mais forte que a do sol”

O calor que se espalhou por Hiroshima e Nagasaki era o de “mil sóis”. Seres humanos “se desintegraram sem deixar qualquer vestígio”. O inferno se instalou na terra. O grande paradoxo é que tanta destruição foi cometida – em última instância – em nome da paz – para acabar com a guerra. O Japão se rendeu. A Segunda Guerra Mundial acabou ali. Mas Hiroshima e Nagasaki entraram para sempre na História como provas de que o homem é tecnicamente capaz de destruir a vida sobre a terra. Basta tomar a decisão.

“Os cientistas tinham dito que a temperatura no centro da explosão seria mais forte que a do sol – diz Van Kirk. Quando a bomba explodiu lá embaixo, nós já estávamos nos afastando de Hiroshima. Não havia janelas na parte traseira do avião. Usávamos equipamentos para proteger nosso olhos. Ainda assim, pudemos ver um clarão parecido com o de um flash fotográfico numa sala escura. Hiroshima estava inteiramente encoberta por uma fumaça negra e por poeira. Não se via a cidade. A nuvem que se formou tinha várias cores: eram tons de cor púrpura, rosa, branca – todos os tipos de cores”.

A visão era bonita? – pergunto ao navegador.

“Não se pode chamar algo assim de belo. Era algo mais horrível do que bonito”.

Adiante, ele aprofunda a descrição:

- Minha primeira reação, ao ver as primeiras imagens de Hiroshima, foi de surpresa: como aquilo tudo pôde ser feito com apenas uma bomba ? Aquilo reforçou a nossa certeza de que não havia meio de os japoneses resistirem a uma arma daquele tipo. O Japão iria se render logo depois.

O que é que a palavra Hiroshima significa hoje para este homem?

“Para mim, Hiroshima significa, hoje, a ressurreição de uma cidade que foi destruída”, diz Van Kirk. “Hiroshima é também a prova de que o homem pode corrigir seus erros. Não é que a bomba atômica tenha sido um equívoco. O bombardeio foi perfeitamente legítimo como ato de guerra. A população de Hiroshima é hoje devotada à paz.É uma mensagem que vai para todo o mundo”.
“Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento”

Que resposta o navegador do Enola Gay dá, hoje, aos críticos da Missão Hiroshima, gente que condena o uso de armas atômicas?

- Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento específico e qual a alternativa que existia ao uso da bomba. O que aconteceu é que a bomba salvou vidas. Se não tivéssemos jogado a bomba, a guerra não teria terminado em agosto. Teria se estendido por um, dois meses. Durante este período, o Japão estaria exposto a um horrível bombardeio – com grande perda de vidas. Embora tenha havido uma horrível perda de vidas em Hiroshima – e também em Nagasaki – a alternativa seria pior : basta levar em conta o número de vidas que teriam sido perdidas se a guerra continuasse.

Ao contrário do esperado, o Japão não se rendeu depois da explosão da bomba em Hiroshima. Os Estados Unidos decidem,então, lançar uma segunda bomba. O alvo era a cidade de Kokura. Mas, como a cidade estava encoberta por nuvens, a bomba foi jogada em Nagasaki. O Japão finalmente se rende. O documento da rendição incondicional é assinado no dia 2 de setembro.

Pergunto se Van Kirk já teve pesadelo com Hiroshima:

- Nunca. Há quem me critique pelo fato de eu nunca ter tido pesadelo com a bomba atômica. Mas devo dizer que não tive. Porque acho que o que fizemos em Hiroshima foi apropriado.

Faria tudo de novo?

- Eu faria – diz Van Kirk , sem titubear. Faria tudo de novo, se as circunstâncias que a gente tinha ali se repetissem : um conflito que se estendia por anos, com muita matança, com feridos, com o país inteiro em estado de guerra, não apenas as forças armadas. Mas creio que as circunstâncias não se repetiriam. Não acredito que nenhuma outra guerra dure mais que uma semana ou duas.
“Lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade” – é o que Van Kirk diria aos moradores de Hiroshima, se tivesse tido a chance de se dirigir a eles antes do ataque

Se tivesse tido a chance de falar aos habitantes de Hiroshima momentos antes do lançamento da bomba, o que Van Kirka diria a eles?

- Eu diria: lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade. É um ato necessário. Vocês não aceitaram os termos da rendição incondicional – que nós oferecemos. O resultado é este.

Aos que dizem que o ataque a Hiroshima é discutível porque atingiu indiscriminadamente alvos civis, Van Kirk responde que não : Hiroshima era a sede das instalações militares japonesas encarregadas de defender o país em caso de invasão. Havia na cidade pelo menos cem “alvos militares”. Mas a população civil pagou o preço.

Van Kirk acha absurda qualquer comparação entre o ataque atômico ao Japão – um ato de tempos de guerra – e, por exemplo, o ataque dos terroristas de Bin Laden ao World Trade Center. O sentimento antiamericano, aguçado na era Bush, deu margem a comparações absurdas desse tipo:

- Quando vi o ataque ao World Trade Center me perguntei: que tipo de gente pode fazer algo assim? É algo que não consigo imaginar : que eles tenham achado que algo de bom poderia sair dali. Quando houve Hiroshima, nós estávamos em guerra. Havia legitimidade. Não apenas nós estávamos envolvidos na guerra,mas todo mundo – os britânicos, os russos, todos. Mas o ataque ao World Trade Center foi feito em tempos de paz. Como puderam fazer? Não consigo entender. Eu não o faria – nunca. Nunca.

Tento provocá-lo : o senhor iria a uma guerra hoje para capturar Bin Laden?

- Sim. Mas não creio que seja necessária uma guerra.

Vida de personagem da história é assim: o navegador do avião que jogou a bomba atômica oferece ao repórter um autógrafo sobre uma foto do Enola Gay. A relíquia vai para meus arquivos implacáveis. Pai de dois filhos e duas filhas, avô de sete netos, Van Kirk vive sozinho, com a mulher parcialmente inválida.

Em seus momentos de solidão, Van Kirk hoje se lembra das vítimas da bomba?

- Eu hoje me lembro das vítimas com menos freqüência do que antes. Mas a cada vez que vejo uma foto, um filme ou uma menção de alguém, me lembro das vítimas da bomba atômica. É algo que acontece menos e menos, à medida em que envelheço e o tempo vai passando. Hoje, devo me lembrar das vítimas uma vez por mês. Pode acontecer de eu me lembrar das vítimas duas vezes em um mês e, em seguida, passar três meses sem me lembrar. Mas a média é de uma vez por mês.

Van Kirk fica em silêncio. Nessas horas, ele parece rever intimamente os fantasmas de Hiroshima : o pesadelo da guerra, o imenso cogumelo atômico, a decisão dramática, a destruição indizível.

É sempre assim: quando uma notícia qualquer de TV fala da guerra ou quando um repórter vem de longe para ouví-lo sobre o dia histórico, Van Kirk embarca numa viagem feita de palavras, lembranças e silêncios – como agora. Não se recusa a falar. Não se esconde. Porque, desde o momento em que entrou no Enola Gay para voar rumo a Hiroshima, ele sabia que aquela viagem não acabaria nunca.


Posted by geneton at 07:59 PM

outubro 27, 2009

EVALDO CABRAL DE MELLO

BRASILEIRO ADORA CHORAR EM AEROPORTO. SÓ EXISTE UM POVO TÃO PIEGAS QUANTO O BRASILEIRO: O PORTUGUÊS – QUE CHORA ATÉ PARA ATRAVESSAR UM RIO (PALAVRA DE UM HISTORIADOR QUE ENTENDE DE BRASIL)

Quem quiser conhecer uma manifestação genuína do espírito brasileiro não precisa ir longe: basta dar um plantão diante diante dos portões de embarque e desembarque de qualquer aeroporto do país. Lá, as manifestações derramadas de afeto, as efusões, as lágrimas, os abraços, os beijos, o chororô – tudo funcionará como um retrato fiel da “pieguice luso-brasileira”.

O que é que os documentaristas estão esperando ? Por que não apontam suas câmeras durante doze horas seguidas para os portões de embarque e desembarque de algum aeroporto movimentado ? Ao término da gravação, terão em mãos, com certeza, material suficiente para compor um retrato fiel do temperamento brasileiro.

Quem chama a atenção para este detalhe do caráter brasileiro é um historiador que merece ser lido, ouvido e estudado, porque é capaz de produzir, em série, idéias originais e provocativas sobre o Brasil e o brasileiro – este povo bipolar. Chama-se Evaldo Cabral de Mello (sim, é irmão do grande poeta João Cabral de Mello Neto. Autor de livros como “O Negócio do Brasil” e “A Fronda dos Mazombos”, é apontado como um dos maiores especialistas em um tema que até hoje provoca debates: o período da dominação holandesa no Nordeste brasileiro).

Já se disse que o brasileiro é, essencialmente, um povo emotivo. Brasileiros choram quando ganham todo e qualquer tipo de competição, especialmente as disputadas longe do solo pátrio. Choram quando ouvem o hino. Choram quando o país é escolhido para sediar uma Olimpíada. Quando vi o chororô que se seguiu ao anúncio do Rio de Janeiro como sede das Olímpíadas, pensei comigo “que coisa patética, que coisa patética”. Só não consegui enxergar direito o que se passava na tela da Tv porque minha visão estava totalmente enevoada – pelas lágrimas. Patético, patético – mas brasileiro.

Voilá a transcrição de uma (rara) entrevista televisiva que Evaldo Cabral de Mello concedeu ao locutor-que-vos-fala sobre não apenas a pieguice, mas outros traços da geléia geral brasileira :

Quais são os sintomas dessa pieguice luso-brasileira?

Evaldo Cabral de Mello – “Vou citar apenas dois exemplos – que me parecem engraçados. Primeiro : a quantidade de pessoas que, no Brasil, se deslocam aos aeroportos para levar parentes e amigos. Se você pensar bem, cada pessoa que pega um avião no Brasil é levada por outras cinco ao aeroporto…Ou vão cinco receber cada pessoa que chega. Em relação a Portugal, me lembro do caso que me contou o pintor Cícero Dias. Morador em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial, ele se divertia muito ao ver os barcos que faziam a ligação entre o Terreiro do Paço e Cacílias. É como a barca Rio-Niterói. A distância é até menor que do que a do Rio a Niterói. Cícero ficava sentado, às gargalhadas, vendo o número de pessoas que, aos prantos, se despediam de parentes que iam atravessar o rio…”.

GMN – O senhor disse, numa entrevista, que o Brasil conseguirá, no máximo, ser um “Canadá dos Trópicos”. Isso é uma avaliação otimista ou pessimista ?

ECM – “Bastante otimista! Afinal de contas, eu me sentiria muito bem se tivesse a certeza de que, em vinte, trinta anos, o Brasil teria a renda per capita, o grau de desenvolvimento, o respeito pelos direitos humanos e as instituições democráticas estáveis que existem no Canadá, a despeito de todos os problemas de separatismo que os canadenses têm. Eu quis me referir, com a expressão “Canadá dos Trópicos”, a um país que fosse desenvolvido, ocidental, democrático – com a diferença de que fica nos trópicos. A mim não me parece que o povo brasileiro tenha vocação para grande potência. O Canadá é um país que conseguiu um nível de vida e certa projeção internacional, mas não reivindica um estatuto especial de grande potência, não tem ambições mundiais. Eu pessoalmente me pergunto se o Brasil, que ainda vive o processo de pôr a própria casa em ordem, é um país em condições de exercer uma influência internacional ampla. Nós podemos exercer influência dentro da América Latina, no Mercosul, nas nossas relações com a Europa ocidental, com os Estados Unidos, com países da África, em vista de nossa herança comum, mas acho otimista, pelos próximos vinte ou trinta anos, ver o Brasil como uma das potências mundiais”.

GMN – A natureza tropical, “grandiosa e barroca”, é “triste e deprimente”, na opinião do senhor. Mas uma natureza grandiosa não poderia inspirar, o país, ideais de grandeza ? Por que é que o senhor não gosta dessa natureza tropical ?

ECM – “Se natureza grandiosa inspirasse ideais de grandeza, a Suíça seria uma grande potência mundial. É uma questão de gosto estético. Eu entendo perfeitamente que uma pessoa goste de paisagens tropicais. Mas não gosto de nada majestoso. Tudo o que é majestoso me deixa perfeitamente frio. Comparado com certas paisagens européias, a paisagem tropical é majestosa, monumental. Não me diz nada. Sou muito favorável á paisagem já marcada pelo homem; a paisagem que tem o seu lado histórico. Já a paisagem nua e virgem não me atrai, absolutamente”.

GMN – O senhor já reclamou da falta de objetividade do brasileiro. Aqui, quem é pouco objetivo é “tido como inteligente”. O senhor quer que o brasileiro se transforme num alemão – metódico, frio e eficiente ?

ECM – “Não. Ocorreria uma negação da autenticidade do brasileiro se ele se transformasse num alemão. Mas seria bom que o brasileiro tomasse consciência de uns tantos defeitos da sua formação cultural e procurasse corrigi-los num sentido mais compatível com as exigências de um mundo crescentemente globalizado. Não adianta, diante da globalização, fincar os pés no terreno ou fazer como um avestruz. Não se pode ignorá-la ou detê-la. É preciso encará-la e enfrentá-la como brasileiro, mas também com a consciência de que a globalização vem trazer mudanças completamente irresistíveis”.

GMN – Nós temos a tendência de enxergar, no futebol e no carnaval, traços do caráter brasileiro. O futebol resumiria nosso talento para o improviso. O carnaval seria uma prova de nossa vitalidade. O senhor, como historiador, acha que o futebol e o carnaval são retratos fiéis do brasileiro ?

ECM- “São retratos parciais do brasileiro do século vinte. A popularidade do futebol e do carnaval no Brasil são fenômenos bastante recentes. O carnaval que se conhecia no Brasil no período colonial e ao longo do século dezenove era o chamado entrudo português – que não tinha nada a ver com o carnaval que se faz atualmente no Brasil. Já o futebol foi um jogo transplantado para Brasil por funcionários ingleses de companhias de eletricidade e outras que operavam aqui no fim do século passado. Para o século vinte, compreender o Brasil sem o futebol e sem o carnaval é impossível. Mas é preciso ter presente que todas essas idéias de identidade nacional, tanto no Brasil como fora, têm muito de uma construção ideológica. Nenhum país tem identidade. Uma identidade é inventada para um país. O futebol e o carnaval, então, são dois elementos fundamentais através dos quais a cultura brasileira do século dezenove inventou uma identidade para o Brasil. A preocupação com a identidade nacional, que sempre houve desde o período colonial, só se tornou absorvente e monopolizou as preocupações do Brasil do Modernismo para cá, ao longo dos últimos oitenta anos”.

GMN – O senhor diz que a busca permanente por uma identidade nacional é uma característica de “países inseguros”. A busca por uma identidade não seria, pelo contrário, um sinal de vitalidade ?

ECM – “Pode ser um sinal de vitalidade, mas este detalhe não exclui o fato de que normalmente os países não se perguntam por suas identidades ! Os países vivem suas vidas sem perguntar e sem levantar este problema !. A tendência a proclamar a identidade em face do mundo, como ocorre hoje com o Brasil, me soa como uma espécie de narcisismo coletivo que acho desagradável, como todo tipo de narcisismo. Todo tipo de narcisismo ,individual ou coletivo, é uma agressão em relação ao próximo. A mania de ficar lançando aos olhos da humanidade a nossa grande originalidade nacional me parece uma coisa de gosto duvidoso”.

GMN -…Mas a busca por uma identidade nacional gerou obras fundamentais, como Casa Grande & Senzala; livros importantes, como “Teoria do Brasil” – de Darcy Ribeiro – e até movimentos culturais, como o Manifesto Antropofágico, por exemplo. O senhor nega o valor dessas obras ?

ECM – “Claro que não nego o valor dessas obras, essenciais para a cultura brasileira no século vinte. O que estou dizendo apenas é que elas correspondem a uma receita cultural que, como toda receita cultural, se esgota ao longo do tempo, como as escolas literárias ou escolas de pintura se esgotam. Toda essa preocupação com a identidade na cultura brasileira já vem dando evidentes sinais de cansaço. Já não produz hoje os livros que produziu há cinqüenta, sessenta anos. Pelo contrário : nota-se um declínio pronunciado na qualidade dos livros. Porque não há como falar indefinidamente de um assunto que, por natureza, é esgotável”.

GMN – Quem foi o maior brasileiro do século vinte ?

ECM - “Eu perguntaria quem foi o brasileiro mais importante do século vinte, não o maior. O brasileiro de maior influência sobre o século XX, até diante do tempo em que exerceu o poder, foi Getúlio Vargas, assim como o brasileiro de maior impacto na história nacional no século XIX foi Dom Pedro II -que ficou quase cinqüenta anos como imperador”.

GMN – O julgamento da história vai ser favorável ou desfavorável a Getúlio Vargas ?

ECM – “Todo julgamento da história é misto. É raro a história fazer julgamentos completamente positivos ou completamente negativos. Getúlio deixou um herança que, como toda herança política, é ambígua. Podem-se ver pontos positivos, assim como podem-se ver falhas incríveis. É evidente, por exemplo, que ele foi o responsável por toda essa onda populista que se gerou no Brasil dos anos quarenta para cá. Igualmente, é inegável que ele tinha uma inclinação autoritária bastante pronunciada. Getúlio se beneficiou da inclinação autoritária que havia na sociedade e no regime político para permanecer longo tempo no poder. Mas é também inegável que, durante o governo de Getúlio Vargas, o Brasil alcançou metas importantes, sobretudo em matéria industrial. Pela primeira vez, teve-se a noção de planejar a economia brasileira no sentido da industrialização do país”.

GMN – Por que é que o senhor ficou decepcionado com os diários de Getúlio Vargas ? O senhor acha que, na intimidade, faltava grandeza a ele ?

ECM – “O que me decepcionou é que, como historiador, eu esperava, talvez, revelações sensacionais. O diário, na verdade, é um documento de um burocratismo cansativo. Getúlio foi, sobretudo, um grande burocrata; um homem com um pronunciado gosto da administração, o que, aliás, é uma característica bem rara em políticos brasileiros. O fato é que os políticos brasileiros têm horror à administração. Se eles se dedicassem apenas ao poder legislativo, não haveria maior problema. Mas chega um momento em que o político transita do legislativo para o executivo. Quando chega ao executivo, evidentemente que ele não pode continuar a se comportar como um deputado ou um senador. É preciso que o político brasileiro que se proponha a exercer funções executivas tenha o gosto da administração. Mas o que observo é que há uma carência quase generalizada nos políticos brasileiros. Porque os políticos brasileiros gostam do debate político-ideológico, gostam da transação, mas, quando estão diante da possibilidade de administrar um estado ou um município de maneira objetiva, caem na tentação política! Não conseguem se desligar da antiga condição de deputado ou senador para transitar para a condição de um executivo. Getúlio tinha o gosto pela administração, se bem que este gosto fosse bastante burocrático, fosse muito pouco inovador”.

GMN – Há autores que dizem que o subdesenvolvimento pode não ser apenas um estágio rumo ao desenvolvimento, mas uma condição permanente. Nós corremos este risco?

ECM – “Corremos, como todo país em desenvolvimento. Dos anos cinqüenta e sessenta, herdamos um otimismo fácil que pensava que normalmente todo país acaba se desenvolvendo. É uma idéia completamente equivocada ! Um país pode encontrar ao longo de seu percurso econômico obstáculos que não consiga resolver nem vencer. O país pode se ver numa situação de estagnação. Veja-se o caso da Holanda no século dezoito. A Holanda foi a primeira potência capitalista do ocidente, no século dezessete. Um século depois, devido a uma série de limitações, a Holanda foi passada para trás por um pelotão de países – sobretudo a Inglaterra, mas também a França. Passou, inclusive, por um período econômico de regressão bastante pronunciada, até que, no século dezenove, resolveu se recuperar para se tornar o grande país industrializado que é hoje – mas longe de pretender qualquer posição de primeiro plano no cenário mundial. Temos, realmente, uma noção linear do processo de desenvolvimento, como se saíssemos de uma posição de subdesenvolvimento para outra posição. De qualquer maneira, o Brasil tem grandes chances, por nossas dimensões continentais, por nossa estrutura de recursos naturais, pelo grau de desenvolvimento que já atingimos, pela existência de um parque industrial. Mas é evidente que a maioria dos países do Terceiro Mundo não tem condições de se desenvolverem no sentido do desenvolvimento dos países europeus”..

GMN – O senhor, então, não subscreve esta crença de que o Brasil um dia, no futuro, seria uma grande potência?

ECM – “Não há garantia nenhuma para um país, qualquer que ele seja, de que se tornará, em dez, vinte ou trinta anos, superdesenvolvido ou uma grande potência. Vai depender da capacidade das classes dirigentes – e da população em geral – para responder aos problemas que vão surgindo. Devo dizer que a experiência do Brasil no último meio século não é especialmente encorajadora. Se fomos capazes de resolver problemas e criar um parque industrial, o fato é que há uma série de problemas que o Brasil não vem conseguindo resolver a contento ! São problemas que o país não pode ficar indefinidamente sem resolver. Isso implica um atraso substancial no projeto desenvolvimentista. Um exemplo : reforma agrária é um negócio que já deveria ter sido feito no brasil desde os anos cinqüenta, sessenta. Controle demográfico é uma coisa que deveria ter sido feita no Brasil desde os anos cinqüenta. Eu sei que seria utópico esperar que tivéssemos feito este controle nos anos cinqüenta, quando havia obstáculos institucionais ao controle demográfico. Mas o fato é que, se o Brasil tivesse feito uma reforma agrária e um controle populacional a partir dos anos cinqüenta, a situação do país hoje seria incomparavelmente melhor, sobretudo do ponto de vista das disparidades de renda – que não seriam tão pronunciadas – e da violência humana, com a criação de enormes cidades com populações flutuantes e desempregadas. Não teríamos o grau de desemprego que estamos ameaçados agora de ter. Quando olho de volta no tempo, tenho a sensação de que o Brasil perdeu, nos anos cinqüenta, um momento essencial. Houve a presidência Kubitscheck, um ponto positivo, sem dúvida. Mas outras coisas foram completamente deixadas de lado. Os primeiros anos da década de cinqüenta me dão a impressão de anos perdidos”.

GMN – O senhor é uma dos maiores especialistas brasileiros sobre o período de dominação holandesa no Brasil. Se os holandeses tivessem ficado no Brasil, nós estaríamos hoje numa situação melhor ou pior ?

ECM – “Não há historiador que possa dar resposta a uma pergunta dessas. Se der, não é historiador. Mas, no século dezenove, houve uma tendência nativista de negar o valor da colonização portuguesa e dizer que, se os holandeses tivessem permanecido no Brasil, o nosso país seria um país muito mais próximo dos padrões ocidentais de vida. O que existe por trás desse debate é uma opção ideológica. É preciso partir de um princípio determinado para dar uma resposta. Se o essencial da história brasileira é a preservação da unidade nacional e da integridade territorial, então é evidente que a colonização portuguesa foi preferível, porque garantiu essas condições. Mas, se você achar que o importante não é a unidade nacional ou a integridade territorial, mas a adoção de valores mais compatíveis com a democracia, com os direitos humanos e com o desenvolvimento capitalista, então é possível e plausível que a colonização holandesa tivesse sido mais favorável. De qualquer forma, não se deve esquecer que a Holanda colonizou a Indonésia atual, um país que, pelo que se sabe, não parece ter assimilado as grandes virtudes nacionais do povo holandês. Toda esta discussão me parece um pouco acadêmica..”

GMN – Em certas áreas, fala-se com um pouco de saudosismo sobre a passagem do príncipe holandês Maurício de Nassau pelo brasil. Afinal, ele trouxe uma corte de artistas, construiu o primeiro observatório astronômico das Américas no Brasil. O senhor acha que existe fundamento histórico nesse saudosismo ?

ECM – “É evidente que o governo de Nassau foi um episódio completamente excepcional na história colonial do Brasil. Mas toda nostalgia histórica é inútil, infecunda e improdutiva. O que temos de fazer é olhar para a frente; não para o período holandês”.

GMN – Que avaliação o senhor faz do príncipe Maurício de Nassau ?

ECM – “É uma das personalidades mais simpáticas da história brasileira !”.

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outubro 26, 2009

MILVINA DEAN

SURPRESA : ÚLTIMA SOBREVIVENTE DO TITANIC NÃO BEBIA ÁGUA. E QUASE CHEGOU AOS CEM ANOS DE IDADE…

O que não se faz por uma boa imagem para a televisão…

O locutor-que-vos-fala confessa, diante deste tribunal, que foi co-autor de um pequeno atentado contra a integridade física de uma quase nonagenária ( já, já, os detalhes).

“Vergonha ! Vergonha!” - dedos inquisidores apontariam em minha direção. “Como é que se faz uma coisa dessas ?” – gritaria o ocupante da penúltima fila do teatro de beira de estrada onde enceno meu espetáculo mambembe.

A meu favor, devo declarar que a causa era nobre – e o atentado foi involuntário, é claro. A “vítima” não era uma figura qualquer : era a mulher que, com o tempo, se transformou na única sobrevivente do Titanic. Dos 702 passageiros que conseguiram sair com vida do inferno no alto mar, em 1912, Milvina foi a última a morrer. Conseguiu chegar ao ano de 2009 ( Milvina ostentava também o título de mais jovem passageira a embarcar no Titanic: nascida em Londres em fevereiro de 1912, tinha apenas nove semanas de vida no dia da tragédia. Viveu até o dia 31 de maio deste ano. As cinzas foram jogadas ao mar neste fim de semana, quase cinco meses depois da morte de Milvina, portanto).

Eu me lembrei do “atentado” que cometi contra a sobrevivente do Titanic ao ler a notícia de que cinzas de Milvina Dean foram lançadas ao mar, na Inglaterra, no exato ponto de onde o navio zarpou para a fama e a tragédia, em 1912.

Tive a chance de gravar uma entrevista com Milvina Dean no mesmíssimo local agora usado como cenário para a última homenagem a ela : o porto de onde o Titanic partiu para a viagem que nunca chegou ao fim -entre a Inglaterra e os Estados Unidos.

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Milvina Dean : a última sobrevivente sai de cena aos 97 anos

Um detalhe inacreditável : a sobrevivente do Titanic me disse que, por uma espécie de idiossincrasia familiar, não bebia água. A mãe,a avó e uma tia também não bebiam. As três morreram perto dos cem anos. Milvina chamou atenção para o caso de uma tia-avó – que, sem beber água, vivera até os noventa e sete anos. Incrivelmente, Milvina Dean morreria com noventa e sete anos, a mesma idade da tia que lhe servia de exemplo. Não bebiam água, segundo ela, mas consumiam, é claro, outros tipos de líquido : sucos, refrigerantes, vinho e, pelo menos no caso de Milvina, copos ocasionais de bebidas mais apimentadas.

Eis o que meus arquivos implacáveis guardam sobre o encontro com esta personagem que passou a vida perseguida pela sombra do Titanic:

Quando chegar o dia do Juízo Final, este pobre jornalista brasileiro confessará diante do Criador: quase matei de frio a mais jovem sobrevivente do Titanic.

Como ? Quando ? Onde e por quê ?

Aos fatos, pois: desembarquei no porto de Southampton, na Inglaterra, num dia gelado de inverno, em companhia do cinegrafista Sérgio Gilz, para um encontro marcado com Milvina Dean.

Aos não familiarizados com a crônica das tragédias marítimas, diga-se que Milvina Dean foi manchete dos jornais no já remotíssimo ano de 1912. A façanha involuntária de Milvina: ter escapado do naufrágio do Titanic. Milvina – um bebê de colo – se salvou porque a mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas. O pai afundou junto com o navio.

Compreensivelmente, Milvina passou a ouvir a história do Titanic desde que se entende por gente. Quando tinha oito anos, ouviu da mãe um relato completo sobre tudo o que aconteceu. Por razões óbvias, passou a se interessar pela história do naufrágio.

Passou a ser abordada a cada aparição pública pela legião de excêntricos que vivem à procura de personagens direta ou indiretamente ligados à história do mais famoso desastre marítimo de todos os tempos. Para quem não sabe: funciona na Inglaterra uma certa Titanic Society – uma espécie de clube que reúne fanáticos de carteirinha pela história do Titanic. Aceitam-se sócios de qualquer país.

Depois de obter um contato com Milvina Dean através da assessora de um museu marítimo que organizara uma exposição sobre o Titanic, partimos rumo a Southampton. O encontro ficou marcado para o restaurante de um hotel – um local confortável para quem, como Milvina, carrega sobre os ombros o peso de quase nove décadas de vida.

A caminho do hotel, decidimos percorrer o cais do porto de Southampton, em busca do local exato de onde o Titanic partiu para a viagem que não teve volta, em direção a Nova York. Um guarda indicou o ponto em que uma pequena placa de bronze foi afixada para marcar o mais notório acontecimento já registrado na história do porto de Southampton. Vindas do mar, lufadas de vento gelado fariam um pingüim reclamar do incômodo do frio. Era janeiro.

Não resistimos à tentação de convidar Milvina Dean para uma visita ao local de onde partiu o Titanic. Partimos, finalmente, em direção ao hotel. Com a esperada “pontualidade britânica”, ela desembarcou do carro de um amigo – sapeca e bem-humorada. Parecia velhinha de filme inglês. Fizemos o convite: e se ela fosse com a gente ao local de onde o Titanic zarpou? Milvina disse sim. Nossa mini-caravana seguiu de volta ao porto.

Gravamos a entrevista com Milvina Dean no cenário dos sonhos: a mais jovem sobrevivente contemplando o mar exatamente no local em que começou uma saga que até hoje atrai a curiosidade de multidões no mundo todo (é só checar os números da bilheteria do filme Titanic, mega-sucesso de Hollywood).

A viagem do Titanic começou no dia 10 de abril de 1912. Quatro dias depois, no fim da noite do dia 14, o navio se chocou contra um iceberg. A madrugada seguinte foi de pavor. Quando o dia amanheceu, o gigante estava no fundo do mar. Havia 2.223 passageiros a bordo. Número de mortos: 1.517. Setecentos e seis escaparam.

Quando se aproximava o final da entrevista, Milvina – sempre com uma das mãos na cabeça, para evitar que o chapéu, levado pelo vento, fosse enfeitar o mar de Southampton, tal qual o Titanic fizera em 1912 – começou a se queixar dos rigores da temperatura.

“Eu estou ficando azul de frio”, disse. A mulher que já contava, no currículo, com dezenas de invernos, não iria reclamar à toa. Por precaução, decidimos escoltá-la de volta ao hotel, num carro devidamente aquecido. Não queríamos correr o risco de matar de frio a passageira que, nove décadas atrás, escapara de um infortúnio maior que o de ser importunada por repórteres brasileiros num dia gelado de inverno.

Enquanto o vento soprava gelado, gravamos a entrevista. Trechos foram ao ar no Fantástico. Eis a íntegra:

Qual é a grande pergunta que ficou sem resposta sobre o Titanic?

“A pergunta que sempre me faço é a seguinte: por que será que o navio navegou em direção a um iceberg? Penso freqüentemente sobre este detalhe: o capitão sabia da existência de icebergs na região? O navio estava na rota errada? Eu me pergunto por que o desastre aconteceu. Mas acho que jamais terei uma resposta”

A senhora ficou satisfeita com as respostas que obteve até hoje?

“Nunca houve uma resposta apropriada. Ninguém sabe com exatidão por que o Titanic afundou. Não sei se adianta perguntar: o que fez o Titanic ir em direção aos icerbergs?

O que aconteceu exatamente com a família?

“Meu pai morreu. Afundou junto com o Titanic. Meu irmão – que tinha menos de dois anos de idade – se salvou, junto com minha mãe e eu. O meu pai ouviu um barulho na noite do desastre. Correu para o convés, para ver o que é que tinha acontecido. Disseram a ele que, aparentemente, o navio tinha batido num iceberg. O melhor seria ir com as crianças para o convés. É o que minha mãe fez.

Minha mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas de número 13. Eu – que era pequena demais para usar coisas como coletes – fui embrulhada numa espécie de saco. O pior é que, em meio à confusão que se formou no momento em que os passageiros eram retirados do Titanic para serem encaminhados aos botes salva-vidas, minha mãe se perdeu do meu irmão. Só conseguiu reencontrá-lo quando outro navio – que passava pela região – nos resgatou. Aquilo foi terrível para a minha mãe. Além de perder o meu pai, que afundou junto com o navio, ela simplesmente não conseguia encontrar o meu irmão, uma criança de menos de dois anos de idade.

Minha mãe teve de ser levada ao hospital. Ficou em estado de choque. De volta à Inglaterra, minha mãe passou a receber uma pensão, para educar a mim e ao meu irmão. Quando eu tinha oito anos, minha mãe começou a me contar tudo o que se passara com nossa família no Titanic.

Um detalhe curioso: o meu irmão – que viria a ter quatro filhos – morreu, aos 82 anos de idade, exatamente no dia do aniversário do naufrágio do Titanic, em 1992. É extraordinario. Quero dizer que acredito em destino. Não foi por acaso que ele morreu”

A senhora diz que acredita em destino. Que outros fatos ligados ao Titanic que fizeram a senhora adquiria essa crença?

“Eu acredito na força do destino, em primeiro lugar, porque nossa família não iria viajar no Titanic. Nós, na verdade, iríamos embarcar em outro navio. Meu pai ia tentar a vida nos Estados Unidos, com nossa família – eu, minha mãe e meu irmão. Um dia antes da viagem, meu pai soube, na companhia de navegação, que tinha havido desistências entre os passageiros que viajariam no Titanic para os Estados Unidos. O funcionário da companhia perguntou se ele gostaria de trocar de navio. O meu pai ficou super-feliz com a chance de embarcar no Titanic. A outra coincidência – ocorrida tempos depois – foi, como eu disse, o fato de meu irmão morrer no dia do aniversário do naufrágio.

Houve outro detalhe: numa escala da viagem, minha mãe mandou um postal para o meu avô e minha avó dizendo “tudo bem até agora”, como se tivesse tido uma premonição sobre o que viria a acontecer”

Por que o Titanic chama tanta atenção ainda hoje?

“O principal motivo da mística que se criou em torno do Titanic foi o fato de terem dito que o navio jamais afundaria. É esta a razão principal por que o navio desperta tanto interesse: um transatlântico tão maravilhoso não poderia afundar – mas afundou. Por esse motivo, o interesse sobre o Titanic continua. Não pára”.

O que é que a senhora diz dessas expedições que tentam recolher objetos do Titanic no fundo do mar?

“Há uma distinção importante a ser feita. Não me oponho que se resgatem objetos que estão espalhados no fundo do mar, ao redor da área onde se encontram os destroços do navio. São parte da história. Eu sei que objetos ficaram espalhados num longo raio em torno do ponto exato do naufrágio. Mas não concordo que retirem objetos encontrados dentro da carcaça do navio.

Detesto a idéia de ver exploradores tirando objetos no interior dos destroços do Titanic. Fico pensando onde estariam os restos do meu pai. É horrível”

É verdade que a senhora nunca bebe água?

“Nunca bebo água. Por quê? Minha avó não bebia. Viveu 93 anos. Minha mãe não bebia. Viveu 95 anos. Minha tia-avó não bebia. Viveu 97. Por que eu deveria beber água? Além de tudo, não gosto”.

Há alguma relação entre o Titanic e o fato de a senhora jamais beber água?

“Não existe nenhuma conexão. Afinal, o Titanic naufragou na água salgada. Não bebemos água do mar de maneira nenhuma… (ri)

A senhora culpa alguém pelo desastre?

“Honestamente, penso que o naufrágio não deveria ter acontecido de maneira nenhuma. Mas não tenho conhecimento suficiente para culpar alguém pelo desastre. Ninguém sabe realmente o que aconteceu naquela noite”.

A lenda sobre o Titanic vai sobreviver para sempre?

“Vai, sim. Há um fenômeno interessante: não apenas gente idosa se interessa pelo Titanic. Fui a uma escola em que crianças me pediam autógrafo. Perguntam sobre minha idade, se não foi terrível perder meu pai, o que minha mãe pensava. São super-curiosas. A pergunta mais inteligente foi feita por um menino – que quis saber se minha família tinha perdido tudo no naufrágio, inclusive dinheiro, o que é que fizemos para sobreviver quando voltamos à Inglaterra? Eu disse a ele que minha mãe nos levou para a casa de nossos avós. A fascinação sobre o Titanic continuará – para sempre”.

O que é que o Titanic significa para a senhora hoje? O que é que significa, para a senhora, voltar a este cenário ?

“Tudo o que sei sobre o Titanic me foi contado por minha mãe. Quando minha família – eu, meu pai, minha mãe e meu irmão – se preparava para embarcar no Titanic, meu avô e minha avó disseram: “Que navio maravilhoso! Não vai afundar nunca! Vocês vão ter uma viagem maravilhosa!”. É o que penso quando volto a este lugar. De qualquer maneira, devo admitir que o Titanic hoje significa para mim a oportunidade de encontrar gente. É o que faço.

Penso que é extraordinária a chance que sempre tenho de me encontrar com gente de todas as partes do mundo.O Titanic desperta um grande interesse. O meu sentimento em relação a tudo que aconteceu é diferente de uma sobrevivente que, por exemplo, tenha uma lembrança vívida de parentes que morreram no naufrágio. O meu sentimento é de outro tipo. Não tenho lembrança do meu pai – que morreu na tragédia – porque eu era um bebê. Se eu o tivesse lembranças da convivência com o meu pai, este fato certamente teria um grande efeito sobre a natureza de meus sentimentos diante do Titanic”.

Uma das sobreviventes disse que o Titanic provou que o homem não pode desafiar Deus. A senhora diria o mesmo?

“Definitivamente, acredito que não podemos desafiar as forças da natureza. Fatos como o naufrágio do Titanic acontecerão sempre. Porque nada na vida é certo. O homem propõe. Mas Deus dispõe. Aquela foi a única vez em que se disse que um navio não iria afundar de maneira nenhuma. Não se dirá tal coisa novamente. Penso em tanta gente que pereceu no fundo do mar. A gente vê nos filmes os gritos de gente que não conseguiu escapar na hora do naufrágio. É horrível. Tudo parece tão bem na hora em que os passageiros embarcam. Fui a uma exposição que exibia objetos recolhidos no fundo do mar, perto do Titanic. Vi objetos de uso pessoal – como pentes, por exemplo. Fiquei pensando que os donos desses objetos morreram no mar. É triste”.

PS: Aos Titanicmaníacos : os arquivos do blogueiro guardam, em algum ponto incerto e não sabido, uma preciosidade – a gravação de uma entrevista com outra passageira do Titanic. Nome: Eva Hart. Tinha sete anos de idade quando embarcou. Guardava lembranças vívidas da aventura que viveu em alto mar: a corrida para sair viva de um transatlântico que, aos poucos, era engolido pelo oceano – de madrugada. Em breve, no Dossiê Geral.

Posted by geneton at 08:06 PM

outubro 24, 2009

PAUSA PARA UM REFRESCO. AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES DE UM FORASTEIRO RECÉM-CHEGADO A COPACABANA : “A ÚNICA COISA QUE FUNCIONA COM REGULARIDADE NO RIO DE JANEIRO É O MAR”

Um forasteiro acaba de aportar no Rio de Janeiro. Vem de São Paulo. Chama-se Marconi Leal. É pernambucano na certidão de nascimento. As duas primeiras impressões de Marconi Leal sobre a cidade merecem registro.

Primeira impressão do recém-chegado : o Rio de Janeiro é, provavelmente, a única cidade do planeta em que toda e qualquer tarefa – especialmente, serviços prestados por encanadores, pedreiros, marceneiros e assemelhados – necessita sempre de duas pessoas para ser executada. O primeiro sujeito executa a tarefa propriamente dita. O segundo fica em pé, ao lado. Missão: passar o tempo todo conversando. Segunda impressão: o horário da maré é a única coisa que funciona no Rio.

Tradutor e redator, Marconi Leal já tratou de botar no papel suas primeiras impressões sobre o novo endereço.

Mas, antes, uma nota nostálgica. Marconi Leal trouxe para o Rio as lembranças imortais de um porteiro que animava seus dias em outras eras :

“Havia em meu prédio um porteiro chamado Ogberto, cujo QI era um pouco superior ao de uma apresentadora de televisão e um pouco inferior ao de uma ostra. Isso, desde que consideremos, para efeito de cálculo, uma ostra morta, claro. Dono de uma acuidade vocabular de surpreender o Houaiss, de um poder de concisão e sentido de economia inigualáveis, Ogberto conseguia responder a 90 por cento de todas as questões que lhe eram propostas com um expressivo: “E apois”, cuja entonação variava de acordo com o sentido que queria lhe emprestar.

— Boa essa música, né, Ogberto?
— E apois.
— Será que vai chover hoje, hein, Ogberto?
— E apois…
— Ô, Ogberto, mamãe quer falar contigo.
— E apois?
— Ogberto, tu acha que a contemporaneidade ainda pode se valer do conceito de eterno retorno como o entendiam os clássicos ou com a linearidade cronológica imposta pela revolução industrial e intensificada na pós-modernidade ele se tornou anacrônico?
— E apois! E apois!

Depois, não mais que oito meses para perceber que não adiantava gritar horas seguidas quando o interfone tocava: era preciso tirar o aparelho do gancho para falar. E, por fim, que morder o receptor quando com raiva não consistia numa forma eficaz de comunicação.

Dava, assim, mostras da sua superioridade sobre os ratos de laboratório, não se deixando levar por tolices como o reflexo condicionado — num eloqüente protesto contra Pavlov.

Era um homem, além disso, de hábitos simples. Passava tardes inteiras cuspindo pra cima e tentando apanhar o cuspe de volta na boca. Ou então jogando bola de gude com os garotos do prédio, usando para isso o seu olho de vidro — que depois, claro, era devidamente soprado e reposto no lugar, como mandam as normas da boa higiene”.

As primeiras anotações do forasteiro sobre o Rio, depois de cruzar a Via Dutra :

*”Não há nada mais parecido com o inseto de Kafka ou a hiena Hardy do desenho animado que um intelectual caminhando na praia.

*Aqui no Rio de Janeiro, as seis horas da manhã começam pontualmente ao meio-dia.

*Sabem todos que desgraça é que nem sogra: aparece quando a gente menos espera. Fui acometido por desgraça decomunal: tive de me mudar para longe da civilização e me estabelecer no Rio de Janeiro.

*Os assaltos no Rio ficam cada vez mais violentos. Onde isso vai parar? Começam usando granadas, daqui a pouco passam a usar sogras. Absurdo.

*Acabo de voltar da praia aqui em Copacabana e vocês não sabem da maior. Quem estava no lugar do mar ? Belchior, claro.

*A única coisa que funciona com regularidade no Rio de Janeiro é o mar.

*O pedinte carioca ultrapassa aquele sujeito proverbial que pede uma gota de colírio emprestada. Se não há colírio, ele pede o frasco vazio.

*O Globo: “Anvisa divulga novas regras para bulas de medicamentos.” A partir de agora elas serão escritas em português.

*Não tenho condições de saber se o Rio continua lindo porque sempre que tento observá-lo há um par de ancas na minha frente.

*Mensagem na garrafa: “Socorro. Estou em terra firme, cercado por 190 milhões de brasileiros. Me mandem uma ilha deserta! “.

*A sociedade do Rio é a mais coletivista que conheço. Toda atividade requer ao menos duas pessoas: a que realiza o trabalho e a que conversa com ela.

*Chove e faz frio no Rio de Janeiro. Sem praia, hordas de cariocas saem às ruas perguntando-se pelo sentido da vida em comunidade.

*Para o carioca, o Rio está a anos-luz das outras capitais. Entendo. O que vemos agora na cidade é o passado primitivo da humanidade.

*São Paulo não tem trânsito: tem engarrafamento móvel.

*A prova de que a psicanálise não funciona é que faço terapia há 10 anos e meu psicanalista ainda não se curou”.

PS: O olho clínico do histórico diretor de TV Maurício Shermann detectou o talento humorístico do neo-carioca Marconi Leal. Resultado: o biógrafo do porteiro Ogberto acaba de ser incorporado ao time de redatores de humor da Rede Globo. A bola cruzou a linha. É gol.

Posted by geneton at 08:23 PM

outubro 22, 2009

CENAS DA VIDA REAL NA ILHA DE FIDEL & RAUL CASTRO : LAN HOUSE CLANDESTINA, LISTA DE ESPERA, CONTATOS SUBTERRÂNEOS , OLHARES DESCONFIADOS . VAI COMEÇAR A SAGA DE UM BRASILEIRO EM BUSCA DE UM SIMPLES ACESSO À INTERNET!

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Fidel : ainda onipresente ( Fotos: Samarone Lima )

Samarone Lima é o nome de um jornalista que resolveu viver uma experiência radical : viajou para Cuba com bagagem mínima, pouco dinheiro – e o peito cem por cento aberto para descobrir o país sem qualquer idéia preconcebida.

“Por uma questão de limpeza ideológica, não fiz nenhuma leitura prévia sobre a realidade do povo cubano. Não busquei livros, informações na internet, revistas de esquerda, livros de turismo, coisas desse tipo” – informa o Aventureiro do Caribe.

Durante um mês de permanência em Cuba, hospedado em casas de cubanos, gastou menos de quinhentos dólares. Viajantes adeptos do conforto podem ficar boquiabertos com a quantia, aparentemente irrisória para um mês de permanência no exterior. Mas o brasileiro Samarone quis viver como se fosse um cubano.

De volta ao Brasil, acaba de publicar,por uma editora de Brasília, a Casa das Musas, o resultado da experiência: um livro de 232 páginas apropriadamente chamado “Viagem ao Crepúsculo”.

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O relato de viagem não faz teoria política : é a descrição do que aconteceu com um brasileiro que se aventurou por uma Cuba que não aparece nem nos livros laudatórios nem nos discursos anticastristas ( se é que a palavra ainda se aplica à ilha).

“Eu não queria ter nem a visão turística nem uma visão engajada sobre a ilha” – explica. “Não fui a Cuba propriamente para escrever um livro. O que fiz foi uma espécie de diário de viagem”.

O resultado ? Direto do Recife, onde vive, o autor resume suas descobertas em uma frase para o Dossiê Geral: “O país vive um momento devastador”.

Nem é preciso fazer discursos. A simples descrição da saga do brasileiro Samarone em busca de um lugar onde pudesse acessar a Internet é suficiente para ilustrar o anacronismo em que a única “pátria socialista” das Américas se transformou neste início de século.

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Dez anotações do caminhante brasileiro por terras cubanas :

1
“A demanda por notícias do Brasil tinha uma explicação simples: com o controle absoluto dos meios de comunicação, os cubanos – de forma geral- têm apenas uma vaga noção do que se passa no mundo. A leitura diária do Granma deixa a impressão de que a Venezuela está despontando como uma grande potência mundial, a nova vanguarda do socialismo – e os Estados Unidos podem a qualquer momento atacar a ilha”.
2
“Como a Internet é proibida, e nos poucos lugares em que é disponibilizada é muito cara, o pouco tempo disponível para usar a rede se destina à troca de e-mails com parentes e amigos”.
3
“Fui dar uma olhada no Informativo da Televisão Cubana. O apresentador lia um enorme texto de Fidel Castro, relatando a vitória da Revolução Cubana, as mudanças e avanços. Depois de meia hora de texto, perguntei a alguém se aquilo iria demorar. “Discurso de Fidel pode durar várias horas”, respondeu.
4
“Ter TV a cabo na ilha é proibido. A multa para quem for pego é de 10 a 20 mil pesos cubanos, uma pequena fortuna. O inspetor pode elevar este valor para 30 mil. Os equipamentos do proprietário são confiscados”.
5
“Lan House clandestina em Havana. Toquei a campainha. Um sujeito mudo, de identidade indecifrável, com uma barbicha à la Salsicha, do Scooby Doo, abriu a porta. Como não disse nada, entrei. À esquerda, um colchão de presídio e uma geladeira dos anos 50, desativada. O dono da Lan House mais esquisita em que já entrei na vida era um boliviano, filho de chineses, que morou no Brasil por um tempo. A sala para a Internet é a cozinha da casa, após um imenso corredor, que lembra cenário de filme de terror. Não há móveis na casa. As paredes não sabem o que é tinta há décadas. Para conseguir horário livre, era preciso agendar com três ou quatro dias de antecedência”.
6
“Fiquei sabendo que próximo à Universidade era possível acessar a Internet. O local era comandado por uma alemã. Como a demanda era muito grande, implicava numa espera de até uma semana para usar uma hora”
7
“Ninguém se atrevia a falar abertamente, sob um regime político que não permite a liberdade de imprensa, acesso à Internet ou expressão pública de descontentamento. Notei que em quase todo quarteirão tinha uma plaquinha com a sigla CDR. Em muitas, o complemento : “Comitê de Defensa de la Revolución”. Não entendi por que tantos comitês, se a revolução já é uma senhora de 50 anos. “Isso foi uma criação muito original do senhor Fidel Castro, logo após a invasão da Baía dos Porcos, em 1961. O regime conseguiu facilmente vencer os invasores, impediu um possível golpe, mas nascia uma verdadeira máquina de delação”, contou. “Isso se tornou um tormento na vida dos cubanos”.
8
“Durante todo o período em que fiquei em Havana, percebi que a presença da polícia era ostensiva, com seus pequenos carros de radiopatrulha. A abordagem aos jovens cubanos, especialmente negros, era constante. Nunca me pediram documentos”.
9
“Em uma de nossas últimas conversas, já perto de ir embora, quebrei um juramento. Perguntei o que ela achava da Revolução Cubana. “Vou ser sincera contigo.Se você perguntar a 50 cubanos se eles querem viver aqui, 48 vão dizer que querem ir embora imediatamente”, respondeu. “Para mim, não existe resposta mais forte que essa”.
10

“Ele deu um exemplo simples: “Se o governo revolucionário convoca para uma manifestação, você tem que se dirigir ao CDR de sua rua ou de seu bairro: no dia e hora agendados, você tem de estar lá. Caso contrário, sua ficha começará a ficar suja. Nem pense em ter uma ficha com problemas nesses famigerados comitês, porque sua vida se tornará um inferno bem maior do que já é”.

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Posted by geneton at 08:17 PM

outubro 21, 2009

DÚVIDA REAL: POR QUE SERÁ QUE OS CARRASCOS GOSTAM TANTO DE FLORES ? (OU: O DIA EM QUE O BLOGUEIRO FOI “ENFORCADO” PELO ÚLTIMO CARRASCO DA INGLATERRA)

O carrasco entra na sala com a corda usada para executar os condenados à morte. Dirige-se até o local onde estou. Sem pronunciar uma palavra sequer, passa a corda em volta do meu pescoço.

Era só o que faltava: eis-me aqui, a nove mil quilômetros de casa, com uma corda no pescoço, diante de um carrasco de olhar pétreo.

A cena, como diriam jornalistas tombados pelo patrimônio histórico, “é rigorosamente verdadeira”. Há evidências documentais: uma câmera, ligada diante de nós, documenta tudo. O cinegrafista Paulo Pimental comtempla o ritual, embevecido.

Socorro.

Em nome do respeito aos fatos, devo declarar que o carrasco enrosca a corda no pescoço da pretensa vítima com a delicadeza de um cirurgião empunhando um bisturi. As sobrancelhas da fera estão levemente arqueadas. As feições são sóbrias, como convém a um carrasco – mas vislumbro um esboço de sorriso na interseção esquerda entre o lábio superior e o inferior de Syd Dernley.

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Syd Dernley : o último carrasco inglês "enforca" o blogueiro (Imagem: Paulo Pimentel/TV Globo)

É assim que ele se chama: Syd Dernley, o último carrasco inglês. Quando trabalhava a serviço de Sua Majestade, a tarefa de Dernley era executar,na forca, os infelizes que tinham sido condenados à morte.

Por dever de ofício, Syd Dernley passou a corda no pescoço de vinte e oito condenados. Segundos depois, eles estavam dependurados no cadafalso, inertes. Um médico entrava em cena para confirmar o que já se sabia: o coração do condenado tinha parado de bater. Próximo da fila, por favor.

Enquanto Syd passa a corda em meu pescoço, para fazer o que chama candidamente de “demonstração”, fico imaginando que a última imagem que os condenados à morte guardaram em suas retinas fatigadas foi exatamente esta: o olhar pétreo do carrasco. Depois, a escuridão se abatia sobre eles – primeiro, em forma de um capuz que lhes encobria a cabeça. Depois, vinha o apagão irrevogável.

Desde que se aposentou, o carrasco tornou-se um velhinho pacato – e excêntrico. Vivia em Mansfield, no interior da Inglaterra, em companhia da mulher, Joyce.

O ceifador de pescoços passava horas e horas cuidando do jardim. Fez questão de demonstrar, diante das lentes do cinegrafista Paulo Pimentel, a destreza com que cuidava de crisântemos, dálias e orquídeas (anos depois, no Texas, eu descobriria que o carrasco americano encarregado de executar os presos com a injeção letal era também um apaixonado por jardinagem, a ponto de manter uma página na internet sobre o tema. Que estranho fascínio será este, o das flores sobre o coração dos carrascos ?).

Além de cuidar das flores, Syd adorava reviver detalhes das execuções: dizia que jamais se esqueceu do prisioneiro que caminhou para a forca entoando um cântico religioso. O carrasco começa a cantar diante de mim, com surpreendente afinação: “Jesus, dono de minha alma, acolhe-me em teu reino…”. Depois, produz um som para reproduzir o ruído provocado pelo pescoço das vítimas se quebrando na hora da execução : “Faz assim: click!”.

Como se fosse uma criança orgulhosa de seus brinquedos favoritos, Syd tinha preparado uma surpresa para mim e para o cinegrafista: depois de pedir licença, desapareceu da sala. Quando voltou – com as sobrancelhas arqueadas e um sorriso traquinas -, trazia a réplica em miniatura de uma forca! Um boneco de madeira representa o condenado. Syd aciona a pequena alavanca que abre o cadafalso. O boneco cai. O carrasco contempla, embevecido, a mini-execução.

A surpresa maior viria depois: Syd traz para a sala uma corda grossa, idêntica à usada nos enforcamentos. É esta a corda que ele enrosca em meu pescoço agora, para mostrar com exatidão em que posição o nó deve ficar no pescoço do infeliz. O baú de horrores do carrasco tinha, também, uma coleção de fotos dos carrascos nazistas enforcados no Tribunal de Nuremberg.

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Syd Dernley : exímio enforcador ( Imagem: Paulo Pimentel/TV Globo)

O que leva um homem a escolher a profissão de carrasco como ganha-pão ? Syd Dernley me diz que resolveu se candidatar ao posto simplesmente porque, quando jovem, adorava ler histórias policiais. Se um dia passasse a habitar aquele território – povoado por corredores lúgubres, acusações, imprecações, juras de inocência, celas, manchetes de jornais – teria a chance de “ver de perto” os grandes nomes da crônica policial. Conseguiu.

Como se quisesse dar um toque extra de excentricidade a uma biografia já abarrotada de fatos incomuns, ele informa que, desde os onze anos de idade, já tinha tomado a decisão de abraçar a profissão de carrasco dos pescoços alheios.

O ritual da execução, diz-me o carrasco, é rapidíssimo: pode durar apenas dez segundos. O prontuário de Dernley registra um recorde mundial: a execução de um preso durou apenas sete segundos. Bastaram sete segundos para que o condenado fosse tirado da cela, levado ao cadafalso, encoberto com um capuz e lançado no vazio, com uma corda amarrada ao pescoço.

Ah, um detalhe intrigante: as gravatas de Syd Dernley traziam o desenho de uma forca.

Há uma mancha no currículo do carrasco: em pelo menos um caso, um dos homens que ele executou era inocente. Chamava-se Timothy John Evans. Acusação: teria assassinado a mulher e a filha de um ano de idade, por estrangulamento. Cinco anos depois, o autor dos crimes apareceu: John Holliday Christie. O drama virou um belo filme: “O Estrangulador de Rillington Place”, com Richard Attenborough. Mas o carrasco não dá o braço (nem o pescoço) a torcer: jura que Evans tinha sido,no mínimo, cúmplice dos crime.

Desde que a pena de morte foi abolida na Inglaterra, em 1965, Syd Dernley tornou-se uma figura esquisita: O carrasco passou a vida defendendo a forca como o melhor método de execução. Dizia que ficava sinceramente horrorizado com “métodos terríveis como a cadeira elétrica ou a injeção letal” ( As fitas de nossa longa entrevista estão preservadas. Um dia, pretendo publicar em livro nossos edificantes diálogos : um repórter que veio de longe com um carrasco que adorava o ofício de enforcar. C´est la vie).

Finda a explanação sobre os enforcamentos, ele, britanicamente, nos oferece um chá. Faz questão que a gente prove o líquido esverdeado.

Syd Dernley, um dos mais fascinantes e esquisitos personagens que já tive a chance de conhecer, morreu de um ataque cardíaco fulminante, no dia primeiro de novembro de 1994, três anos depois de nossa entrevista. Era véspera do nosso Dia de Finados. Dernley não esperou : partiu um dia antes, aos 73 anos de idade. Não quis dar este gosto à Grande Ceifadora.

Ah, o chá que ele nos serviu tinha gosto de erva cidreira.

Posted by geneton at 08:34 PM

outubro 20, 2009

JAMES WILLET

UM ENCONTRO COM O CARRASCO QUE JÁ EXECUTOU 89 HOMENS, NUNCA DERRAMOU UMA LÁGRIMA POR NENHUM PRISIONEIRO, NUNCA TEVE UM PESADELO – E AINDA ENCONTRA TEMPO PARA CULTIVAR E FOTOGRAFAR FLORES

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A morte florida : o carrasco cultiva flores nas horas vagas (Imagem: Sherman Costa/TV Globo)

Quem avisa amigo é : tirem as crianças da sala.

Porque o blogueiro vai descrever agora como foi o encontro com o personagem que faz os assassinos mais perigosos tremerem na base:

estive frente a frente com o mensageiro da morte – o homem encarregado de comandar o ritual de execução dos prisioneiros condenados à chamada “pena capital” no estado do Texas.

Eu já tinha tido um encontro com um carrasco profissional, numa cidadezinha do interior da Inglaterra: lá vivia o homem que um dia teve como profissão enforcar prisioneiros condenados à morte, na época em que a Inglaterra ainda aplicava o castigo definitivo a criminosos tidos como irrecuperáveis. A certa altura da entrevista, o carrasco inglês fez, no meu pescoço, uma demonstração de como usar a corda para o enforcamento (em breve, um post sobre o assunto).

Porque o dono da festa hoje é o Carrasco do Texas ( “Por que diabos há jornalistas que gostam tanto de tragédias, dramas, derrocadas, derrapagens, personagens excêntricos e cenários horripilantes ?”, perguntará a alma ingênua sentada na terceira fileira de nosso teatro mambembe. “Por um motivo básico”, responderá de pronto o meu demônio-da-guarda : “Se não gostassem dessas esquisitices, repórteres bisbilhoteiros estariam certamente cumprindo tarefas mais amenas, como animar festas infantis vestidos de Bozo, por exemplo”).

Eis o que escrevi sobre o encontro:

Se a palavra tédio pudesse ser escrita de outra maneira, teria dez letras : Huntsville. É o fim do mundo : o turista que desembarcar nesta cidadezinha do interior do Texas terá a impressão de que bateu na porta errada. Quer se divertir ? A melhor opção pode ser uma lanchonete de fast food em que os fregueses podem devorar sanduíches de hamburguer sem sair do carro. O desfile de jipes gigantescos no pátio da lanchonete funciona como um atestado motorizado da fartura americana. Não há carros velhos. A impressão (absurda ?) é de que também não há gente magra. A obesidade se alimenta de milk shakes, batatas fritas e hamburguers consumidos em quantidades industriais.

O forasteiro fará bem em degustar o hamburguer sem pressa. Se resolver se aventurar pelas ruas de Huntsville à noite terá a sensação de que pousou num deserto, habitado por fantasmas. Onde estarão os quarenta mil habitantes ?

Mas se o forasteiro estiver interessado em assuntos menos divertidos do que a qualidade dos hamburgueres servidos em lanchonetes fast foods, Huntsville pode se transformar de repente num lugar fascinante. O assunto é pena de morte ? Cadeira elétrica ? Injeção letal ? Cloreto de potássio ? Carrascos mal encarados ? Prisões inexpugnáveis ? Cercas eletrificadas ? Huntsville, abre as asas sobre nós : os repórteres em busca de bons personagens te saúdam com uma pontada de mórbida alegria no peito.

Indefensável, a pena de morte faz parte da história do Texas há séculos. A execução de presos pode causar horror a forasteiros ou a militantes que, religiosamente,fazem demonstrações de protesto diante da prisão a cada vez que o porta-voz anuncia a morte de um detento. Mas o ritual já se integrou à rotina de Huntsville. A não ser que o caso tenha repercussão nacional, há execuções que correm o risco de passar em brancas nuvens.

“Vá para um bar. Pergunte a quem estiver no balcão. Provavelmente ele não saberá que um preso vai ser executado naquele dia” – constata Larry Fitzgerald, porta-voz da prisão e advogado confesso da pena capital como método de justiça. “Fico irritado quando falam de Huntsville como capital nacional das execuções.Por que é que não chamam Huntsville de capital mundial dos direitos das vítimas ?”.

A banalidade do ritual da morte em Huntsville pode ser facilmente constatada no jornal local,o centenário Huntsville Item. Uma notícia de execução só merece registro no espaço nobre da primeira página se for capaz de mobilizar a atenção daqueles freqüentadores de bar citados pelo porta-voz da prisão como representantes típicos da maioria silenciosa. Caso contrário, a notícia ficará confinada sem grande destaque nas páginas internas. Execução aqui é rotina. Não é exceção.

O Huntsville Item abriria manchete se um dia a cidade passasse um mês sem ter notícia de um preso executado. Assim caminha Huntsville, dona do título de campeã nacional de execução de presos. Em nenhuma outra cidade americana tantos presos são executados quanto aqui. Desde que uma lei de 1973 decidiu que o Texas voltaria a punir com a pena de morte os autores de crimes hediondos, nada menos de trezentos e dez presos foram executados aqui com injeção letal.

Pode parecer estranho o fato de uma cidade tão pacífica ostentar a liderança nacional em número de execuções. Mas a aparente disparidade tem uma explicação : todos os condenados à morte no Texas são enviados para Huntsville, onde o Departamento de Justiça montou um aparato para que a mais rigorosa das leis seja cumprida.

Se o Estado decide punir com a pena de morte quem cometeu crimes considerados hediondos, alguém precisa cumprir a sentença.

Ei-lo : pai de um casal de filhos,55 anos de idade, fã de westerns , James Willett já comandou pessoalmente a execução de 89 presos. Método : injeção letal.

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O carrasco : a morte, em nome das leis do Texas (Imagem: Sherman Costa/TV Globo)

Quando chega o dia da execução, o condenado à morte sai do corredor da morte de uma penitenciária chamada Polunsky , a cerca de setenta quilômetros do centro de Hunsville, para uma viagem de uma hora rumo ao local de execução. O prédio onde os presos levarão a injeção letal chama-se The Walls. Fica no centro da cidade.

Depois de amarrado a uma maca por seis cintos de couro – atados aos tornozelos, aos dois braços e ao tronco – o preso terá a chance de dizer suas últimas palavras,diante do carrasco e do capelão.

A primeira dose é de um anestésico – administrado em dose suficiente para provocar a morte. O preso perde os sentidos em questão de segundos. A segunda substância injetada nas veias do preso provoca um colapso pulmonar.A terceira causa uma parada cardíaca. Não há escapatória possível. É como se o preso morresse três vezes.

Há um código secreto na sala de execuções. O preso nem desconfia, mas um gesto aparentemente inofensivo funciona como uma senha para que a sentença de morte seja executada. Do outro lado de um vidro espelhado, numa sala contígua, um funcionário aguarda um sinal do carrasco para liberar as substâncias que serão conduzidas por tubos plásticos às veias do condenado. O carrasco tira os óculos. É o que basta. Quando vê que os óculos estão nas mãos do carrasco,o funcionário já sabe o que deve fazer.

Willett hoje dá expediente no Museu da Prisão de Huntsville. A pérola do museu é a cadeira elétrica usada para executar 361 presos – antes da adoção da injeção letal como método de execução. Quem pagar o correspondente a doze reais pode contemplar à vontade a cadeira elétrica. Criança paga meia.

O que passa pela cabeça do homem pago pelo Estado para executar o que a Justiça decidiu ?

Procuro a fera no Museu da prisão. O carrasco se aproxima da cadeira elétrica,passa trinta segundos contemplando aquele monumento à morte, dá o veredito :

- A injeção letal é melhor do que a cadeira elétrica.É mais humana.Eu prefiro.

James Willett sabe do que fala.Diz que jamais perdeu um minuto de sono por exercer uma tarefa que almas sensíveis classificariam como macabra.

Uma das predileções de Willett pode soar como esquisitice no currículo de um homem que convive com tanta intimidade com a morte dos outros : o carrasco é apaixonado por flores. Usa as horas vagas para fotografar azaléas que florescem bonitas nos jardins de Huntsville.

O carrasco não é egoísta : quer compartilhar com o mundo o enlevo que sente diante da beleza uma azálea.

Willett é, literalmente, a última face que os condenados à morte vêem, no momento em que tomam a injeção letal que os matará em questão de segundos. “O processo deve durar uns vinte, trinta segundos”,di, com o tom profissional de um caixa de banco que,no final do expediente, atualiza os números do dia.

Ao lado de Willett e do preso, no instante da execução, só fica uma testemunha privilegiada : o capelão designado pelo sistema penitenciário para oferecer palavras de conforto a quem cometeu pecados capitais. Do lado de fora da sala, protegidos por uma tela de vidro, ficam as testemunhas : três escolhidas pelo preso,três escolhidas pela família da vítima.

Depois de cumprir a tarefa – comandar execuções que ocorrem pontualmente às seis da tarde,hora do Angelus -, Willett vai para casa tomar sopa, assistir a westerns na TV e dormir. “Adoro um bom western”,diz o carrasco.

Que demônios habitam a mente desse homem que tem um encontro com a morte dos outros justamente na hora em que almas devotas estão rezando a Ave Maria ?

Quando aparece na cela de presos que o Estado do Texas considera irrecuperáveis,para escoltá-los rumo à sala onde a sentença final será executada, Willett é a face visível de uma enorme e complicada engrenagem . A história dos presos condenados à morte passou por delegacias, institutos de medicina legal, postos de polícia,laboratórios,salas de tribunais,gabinetes de governadores – um enorme teia que,no fim da linha,se materializa naquele homem de olhos azuis e estatuta mediana.

Se um cartunista fosse desenhar a face de um carrasco , poderia perfeitamente imaginar a figura de um homem de feições duras,olhar gélido, um discretíssimo sorriso apenas esboçado no canto inferior direito da boca,como convém a um mensageiro da morte. As feições de Willett jamais desapontariam um cartunista. Porque ele é exatamente assim : um homem de feições duras,olhar gélido,um discretíssimo sorriso apenas esboçado no canto inferior direito da boca.

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A face do carrasco : a última visão dos condenados (Imagem: Sherman Costa/TV Globo)

Diante da cadeira elétrica,o carrasco fala.

O senhor diz que o último diálogo pode ser bem-humorado.Que humor é este ?

Willett : “Um dos presos,quando já estava amarrado à maca,no momento em que os enfermeiros da prisão estavam inserindo as agulhas,fez um pedido : “Queria um bombom.Minha boca ficou seca”. O capelão deu a ele um bombom – daqueles que vêm embrulhados em papel celofane. Como o preso estava imobilizado,o capelão jogou o bombom na boca. Perguntei a ele : “Vai ser sua última comunhão ?”. O preso me respondeu : “Vai ser a última.Mas tenho a impressão de que não vai funcionar”.

O que é que o senhor diz aos presos sobre o que vai acontecer ?

Willett : “Nós discutimos sobre quais serão as suas últimas palavras. Digo a eles,no dia da execução : “Voltarei em torno das seis da tarde,para levar você até a cela”. Os presos já sabem o que esperar. Poucos fazem perguntas. Mas digo : você vai caminhar por conta própria,sem algemas,sem que ninguém toque em você até que você chegue à câmara.A grande maioria dos presos simplesmente me acompanha até o local da execução”.

Como é que o senhor explica a eles o método da execução ?

Willett : “Em geral,perguntam-me quanto tempo vai durar.Ou se vai doer.Digo, honestamente,que a execução em si dura trinta segundos. Ao fim desse tempo, eles estarão dormindo. Perguntam se dói. Sou honesto : digo que ninguém sabe realmente. Mas,para quem olha, é como se alguém estivesse adormecendo, pacificamente. Parece-me indolor. Quando um preso faz a última declaração, eu já saberei qual será a última frase. Porque terei discutido o assunto com eles,antes. De qualquer maneira, a maioria me diz que vai me avisar quando a declaração estiver concluída. Neste momento,tiro os meus óculos. É um sinal para que o funcionário – que fica do outro lado de um vidro espelhado – saiba que é hora de liberar as substâncias que chegarão às veias do preso.O funcionário pode nos ver. Nós não o vemos. Em trinta, trinta e cinco segundos o preso dará um suspiro profundo e adormecerá.Eu ainda espero um pouco. Chamo, então, o médico que constatará a morte do preso”.

Qual foi a maior surpresa que o senhor já teve no dia da execução ?

Willett : “Sempre fui surpreendido com o fato de os presos pedirem uma grande quantidade de comida na última refeição. Dá para notar pelo tamanho do estômago – que fica estufado. É como alguém que come todo dia um prato feito. A comida pode até ser boa, mas enjoa depois de um certo tempo. Um dia,os presos ganham finalmente a permissão para pedir um tipo de comida a que eles não tiveram acesso durante anos. O que me surpreende também é ver que presos que são amarrados à maca parecem mais à vontade do que estou aqui agora,falando com você. Um dos presos, na hora da execução, no momento de pronunciar suas últimas palavras, pediu desculpas sinceras à família da vítima por toda a dor que tinha causado.Depois,virou-se para mim : “Guarda,é tudo”. Mas, antes de eu tirar os meus óculos,ele ainda me disse : “Como vão os Dallas Cowboys ? “. Pensei comigo : Meu Deus ! Ele arruinou suas últimas palavras com essa pergunta sobre o time de beisebol.

Um dos prisioneiros que levei para execução queria cantar “Noite Feliz” depois de pronunciar suas últimas palavras. Perguntou-me : “Posso cantar “Noite Feliz” enquanto essas substâncias estiverem entrando pelas minhas veias ? “. Eu disse que sim. Dei sinal para que as substâncias fossem liberadas. Quando ele começou a cantar, pensei comigo : “Meu Deus,as testemunhas que estão do outro lado do vidro vão pensar que eu impedi que ele cantasse a música inteira”. Eu tinha dito a ele que não haveria tempo para tanto”.

O senhor já pensou na possibilidade de que pode ter executado um inocente ?

Willett : “Certamente, há a possibilidade de que um inocente tenha sido executado. Numa situação em que há tanta interação humana – com valores como culpa, inocência e punição – haverá sempre esta possibilidade.É algo que cruza a minha mente”.

Que sentimento o senhor tem diante desta dúvida ?

Willett :”É triste saber que nós,a espécie humana,consideramos a possibilidade de fazer tais coisas”.

Que argumento o senhor usaria contra a pena de morte ?

Willett : “Não sei se teria um argumento contra a pena de morte. Há aspectos negativos – como, por exemplo, a possibilidade de um inocente ser executado. Discordo dos que dizem que a pena de morte impede crimes. Não impede. A maioria desses crimes é cometida em momentos passionais. O criminoso não pára para pensar “Meu Deus,posso pegar a pena de morte !”. O que a pena de morte faz é dar a certeza de que aquele criminoso não vai cometer outros crimes”.

O senhor já teve algum pesadelo depois de uma execução ?

“Não. Sou um daqueles que não perdem o sono por nada”.

O senhor afinal prefere a cadeira elétrica ou a injeção letal ?

“Nunca testemunhei uma execução na cadeira elétrica. Apenas li a respeito. Falei com testemunhas. Não tenho dúvida de que a injeção letal é melhor.Porque é como se alguém tivesse caído no sono – e não acordasse depois. A cadeira elétrica é mais horripilante”. (a cadeira elétrica texana foi aposentada em 1964.Desde 1982, quando a pena de morte voltou a ser adotada no Texas, cerca de 350 prisioneiros foram executados com a injeção. A não ser que as famílias reclamem os corpos, os executados são enterrados no cemitério da prisão. Presos cavam as covas. Os condenados à morte esperam a execução numa ala em que ficam confinados 23 horas por dia em celas individuais.Não veem TV. Só podem ouvir rádio em ocasiões especiais.Não existe visita íntima. 38 dos 52 estados americanos têm pena de morte. Há estados que ainda usam cadeira elétrica ou câmara de gás. A Anistia Internacional considera a pena de morte “desumana e cruel”).

O senhor se considera o homem mais temido do Texas ?

Willett : “Ah, não.Eis uma idéia que nunca passou por minha cabeça”.

Posted by geneton at 01:54 PM

outubro 16, 2009

KURT VONNEGUT MANDA LEMBRANÇAS ( É O HOMEM QUE APRENDEU O SENTIDO DA VIDA COM O FILHO E LIÇÕES DE GUERRA COM UM CORONEL : “QUERO QUE VOCÊS SE TORNEM A MAIOR CORJA DE SAFADOS DA HISTÓRIA!”)

A boa notícia : o velho Kurt Vonnegut acaba de dar sinal de vida, nas livrarias brasileiras. Já, já, os detalhes.

Primeiro, uma rápida divagação:

Se houvesse um pingo de justiça no planeta, o Papa Bento XVI apareceria numa sacada da Praça de São Pedro às 11 e 15 da noite de hoje para anunciar que tinha acabado de assinar um decreto entronizando Nossa Senhora do Perpétuo Espanto como Padroeira Plenipotenciária dos Jornalistas.

Mas, não. Bento XVI deve estar dormindo a essa hora. Não existe justiça na terra. A vida neste planeta giratório é o que o poeta Carlos Drummond já chamou de “um vácuo atormentado”, “um sistema de erros”, “um teatro de injustiças e ferocidades extraordinárias”. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, então, jamais será entronizada padroeira de coisa alguma. Assunto encerrado. Próximo tema, por favor.

….Mas, apenas para constar na ata dos trabalhos de hoje do Dossiê Geral : por que diabos Nossa Senhora do Perpétuo Espanto haveria de ser nomeada padroeira dos jornalistas ?

Por um motivo básico : jornalista de verdade é o que jamais perde a capacidade de se espantar diante da Grande Marcha dos Fatos, sejam eles banais ou marcantes, pequenos ou grandiosos. O que distingue um jornalista puro-sangue de um jornalista burocrata é exatamente a capacidade de olhar para os fatos da vida com uma saudável dose de espanto, como se estivesse vendo tudo pela primeira vez. Simples assim. Quando perde a capacidade de se espantar, o jornalista vira um burocrata encarregado de tornar chato o que é vívido, tornar cinza o que é cintilante, tornar morno o que é incandescente. Fica fácil entender por que o jornalismo tantas vezes se transforma em monumento à chatice. Como diria Jaqueline Kennedy, horrorizada, ao catar os miolos do marido baleado naquele carro em Dallas: “Oh, no!”.

Se pudessem, certamente leitores & telespectadores gritariam em coro : Acorda, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto ! Iluminai a fauna de burocratas que vive espezinhando o jornalismo & arredores ! (mas esta é uma discussão que só interessaria a um punhado de jornalistas : não aos navegantes que aportam num blog como este).

O escritor que inventou Nossa Senhora do Perpétuo Espanto era um humanista que testemunhou um bombardeio apocalíptico na Segunda Guerra Mundial

Agora, o principal : quem criou esta divindade – a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto – foi um escritor americano chamado Kurt Vonnegut.

Quem não o conhece não sabe o que já perdeu. Mas ainda há tempo de corrigir a perda.

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Kurt Vonnegut : humanismo e insolência (Foto: Divulgação)

Ah, se eu tivesse tido a chance de entrevistar mister Vonnegut, teria registrado, num velho bloco de anotações, que seus cabelos levemente encaracolados soavam como um anacronismo num octogenário de voz fatigada. Pareciam uma impropriedade, uma inadequação. Mas tudo em Vonnegut tinha algo de vagamente impróprio ou inadequado. Se era assim, ele poderia, então, exibir seus caracóis sem se importunar com observações de repórteres forasteiros.

Eu teria notado que a voz do bicho exibia uma leve rouquidão, entrecortada por espasmos de respiração, típicas de fumantes diplomados. As frases eram de vez em quando pontuadas pela tosse.

Que importa ? Lá pelas tantas, mr. Vonnegut, um escritor que sabia misturar em seus textos simplicidade, graça, leveza e acidez, me diria, em tom casual :

- Eis aqui uma lição de texto criativo. Primeira regra: não usem ponto-e-vírgulas. São travestis hermafroditas que não representam absolutamente nada. Tudo o que fazem é mostrar que você esteve na universidade.

Vonnegut processou a indústria tabagista porque, toda vez que abria um maço de cigarros, recebia o aviso de que iria morrer se continuasse fumando. Não morreu.

Vonnegut mantinha, na “vida real”, a insolência que cultivava em suas frases. Durante décadas, fumou “feito uma chaminé”. Já velho, resolveu processar os fabricantes do cigarro, por assédio moral. Reclamou de que, durante anos e anos, foi advertido de que o cigarro iria matá-lo. Não matou. Resolveu pedir indenização à indústria, por se sentir perseguido pela ameaça. Não ganhou, mas fez barulho:

- Estou processando o fabricante de cigarros Pall Mall porque os produtos dele não me mataram - e estou hoje com 84 anos. Escutem: estudei antropologia na Universidade de Chicago depois da Segunda Guerra Mundial, a última que vencemos. E os antropólogos físicos, que estudavam crânios humanos de milhares de anos, diziam que só deveríamos viver mais ou menos 35 anos, porque era isso que os nossos dentes duravam antes da odontologia moderna. Não eram bons estes tempos ? Trinta e cinco anos e dávamos o fora.

Houve aventura e drama na juventude de Vonnegut. A mãe, depressiva, se matou:

- Minha teoria é que todas as mulheres possuem ácido fluorídrico engarrafado dentro delas, mas minha mãe possuía uma quantidade grande demais.

A frase que ouviu de um coronel no dia em que se alistou no Exército para ir à guerra combater os nazistas: “Nosso trabalho é torná-los a maior corja de safados da história. Matem, matem, matem, entenderam ?"

Alistado no exército americano, ouviu, logo no primeiro dia, a lição inesquecível que um coronel “baixo e magro” transmitiu aos jovens soldados que estavam prestes a viajar para a Europa, para combater os nazistas:

- Homens, até agora vocês foram americanos decentes e limpos, com um amor americano pelo espírito esportivo e o jogo limpo. Estamos aqui para mudar isso. Nosso trabalho é torná-los a maior corja de safados da história. De agora diante, vocês podem esquecer as regras do marquês de Queensbury e toda e qualquer regra. Vale tudo. Nunca batam num homem acima da cintura quando puderam atingi-lo por baixo. Façam o maldito gritar. Matem-no como conseguirem. Matem, matem, matem, matem, entenderam ?

Os recrutas entenderam, claro.

Mas guerra é guerra: Vonnegut terminou caindo nas mãos do exército alemão, como prisioneiro, justamente em Dresden, a cidade alemã que seria castigada pelos aliados com um bombardeio de proporções apocalípticas. O bombardeio de Dresden se transformaria, nas décadas seguintes, num assunto central da vida de Vonnegut:

- O bombardeio de Dresden foi o maior massacre na história européia. Eu, naturalmente, sei sobre Auschwitz, mas um massacre é algo súbito, que, num tempo muito curto, promove a matança de uma enorme quantidade de pessoas. Em Dresden, em 13 de fevereiro de 1945, cerca de 135.000 pessoas foram mortas por bombardeios britânicos em uma noite.

Décadas depois, Vonnegut chegaria a uma conclusão que pode parecer paradoxal: disse que daria a vida para salvar a cidade alemã da chuva de bombas. Sim, era um soldado americano combatendo os alemães. Sim, a Alemanha cometera crimes inomináveis. Precisava levar uma lição de fogo. Mas a aniquilação de milhares de civis durante o bombardeio de Dresden alimentou, em Vonnegut, uma certeza:

- A morte de Dresden foi uma tragédia amarga, executada sem necessidade e intencionalmente. A matança de crianças – alemães ou japonesas ou quaisquer inimigos que o futuro possa nos reservar – nunca pode ser justificada. Eu teria dado a vida para salvar Dresden para as próximas gerações do mundo. É como todos deveriam se sentir a respeito de todas as cidades da terra.

Aprendeu o sentido da vida com um filho: “Estamos aqui para ajudar uns aos outros a atravessar esta coisa, seja lá o que for”

A experiência de Vonnegut na guerra teve, também, fugazes momentos de humor bélico, se é que é possível tal aberração :

- Os alemães nos perguntavam: “Por que vocês, americanos, estão em guerra contra a gente ?”. “Não sei, mas estamos dando uma surra e tanto em vocês” – era uma resposta comum”.

Como se estivesse falando para uma platéia imaginária de jovens, o velho Vonnegut declamaria, depois de falar sobre os fantasmas de Dresden:

- Quando chegarem à minha idade, se chegarem à minha idade, e se tiverem se reproduzido, vão se encontrar perguntando a seus filhos, então já na meia-idade: “Qual é o sentido da vida ? “. Tenho sete filhos, três deles sobrinhos órfãos. Fiz minha grande pergunta sobre a vida ao meu filho pediatra. O dr. Vonnegut disse ao seu trêmulo e velho papai: -”Pai, estamos aqui para ajudar uns aos outros a atravessar esta coisa, seja lá o que for”.

O escritor que processou a indústria tabagista era um humanista horrorizado com as iniquidades e injustiças. Mas não se importava nem um pouco em ir contra o senso comum. Dizia, por exemplo, que não via nada demais no fato de Karl Marx dizer que a religião era o ópio do povo:

- Ainda há muita gente capaz de dizer que a coisa mais maligna a respeito de Karl Marx foi o que ele disse sobre religião. Disse que a religião era o ópio das classes mais baixas, como se acreditasse que a religião fosse ruim para as pessoas. Mas quando Marx disse isso, nos anos 1840, o uso da palavra “ópio” não foi simplesmente metafórico. O ópio era o único analgésico disponível para dores de dente, câncer na garganta ou o que fosse. Ele próprio o usara. Como um sincero amigo dos oprimidos, estava querendo dizer que achava bom que o povo tivesse algo com pudesse aliviar suas dores ao menos um pouco – e a religião servia para isso. Então, ele gostava de religião – e certamente não estava querendo aboli-la. Está certo ? Ele poderia dizer hoje o que digo esta noite: “A religião pode ser o Tylenol de muitos infelizes – e muito me agrada que funcione”.

Vonnegut guardava uma surpresa no colete para cada tema que lhe fosse proposto. Se um forasteiro perguntasse como é que ele resumiria a felicidade, ela responderia:

- Perguntaram certa vez à grande antropóloga Margaret Mead, e ela havia estudado homens, mulheres e crianças em todos os tipos de sociedade, quando os homens são mais felizes. Ela pensou um pouco e respondeu: “Quando estão partindo para uma caçada sem mulheres ou crianças”. Acho que ela estava certa.

A maior contribuição americana para a civilização: os Alcoólicos Anônimos

E qual teria sido a grande contribuição americana para o avanço da civilização ?

- Muitos responderiam qúe é o jazz. Eu, que amo o jazz, diria outra coisa: Alcoólicos Anônimos. Não sou alcóolatra. Se fosse, iria até a uma reunião doa AA mais próxima e diria: “Meu nome é Kurt Vonnegut. Sou alcóolatra”. Se Deus quisesse, esse poderia ser meu primeiro passo na longa e dura estrada que leva de volta à sobriedade. O esquema dos AA, que exige uma confissão desse tipo, é o primeiro a ter qualquer sucesso mensurável em lidar com a tendência de alguns seres humanos, talvez dez por cento de qualquer amostragem da população, a se tornarem viciados em substâncias que lhes dão breves espasmos de prazer, mas a longo prazo transmutam suas vidas e as das pessoas ao seu redor em algo definitivamente terrível.

Quando estava diante de um repórter ou de uma platéia de estudantes, Vonnegut jamais deixava de recorrer a uma arma infalível – o humor , um dos pouquíssimos antídotos de eficiência comprovada contra o circo de horrores geral. Quando tinha a chance, citava piadas inesquecíveis que ouvira em velhos programas de rádio :

- Uma antiga: dos anos dourados das comédias de rádio, durante as quais Ed Wynn foi nomeado chefe dos bombeiros. Cada programa começava com Wynn no telefone portando-se ridiculamente diante de algo relativo ao Corpo de Bombeiros. Certa vez, uma mulher ligou e disse que sua casa estava em chamas. Wynn perguntou a ela se ela já havia tentado jogar água no incêndio. Ela disse que sim - e ele retrucou: “Então, desculpe, mas a senhora já fez o nosso serviço”. E desligou.

O inventor de Nossa Senhora do Perpétuo Espanto vivia repetindo uma frase que ouvira de um companheiro soldado, nos campos de batalha na segunda guerra:

- Ao final de um dia terrível, estávamos fumando e observando o impressionante monte de mortos acumulado. Um de nós atirou a bagana do cigarro na pilha. “Caramba – disse ele. Estou pronto para a morte na hora em que ela quiser vir atrás de mim”.

Vonnegut viveu seis décadas depois de testemunhar os horrores da guerra. Não temia o blecaute final:

-Não tememos a morte nem vocês deveriam temer. Sabem o que Sócrates disse sobre a morte - em grego, é claro ? “A morte é apenas mais uma noite”.

A última noite do velho Kurt Vonnegut começou no dia 11 de abril de 2007, quando ele morreu, em Nova York, vítima de danos cerebrais “irreversíveis” provocados por uma queda que sofreu em casa. Idade: oitenta e quatro.

A morte foi a última piada de Vonnegut: não, incrivelmente, o cigarro não o matou.

Nossa Senhora do Perpétuo Espanto ergueria as sobrancelhas, surpreendida com o desfecho. O homem que bombardeou consistentemente os próprios pulmões com volumes de fumaça suficientes para paralisar uma horda de rinocerontes hiperativos terminou morrendo de uma queda.

C´est la vie, criançada.

———–

PS: Todas as declarações de Kurt Vonnegut usadas neste post foram retiradas de livros seus, publicados no Brasil: “Um Homem Sem Pátria”, “Destinos Piores que a Morte” e “Armagedom em Retrospecto” . Livro póstumo, organizado por um dos filhos de Kurt, Mark Vonnegut, “Armagedom em Retrospecto” é facilmente encontrável: acaba de ser publicado no Brasil, pela L&PM, com tradução de Cássia Zanon. “O que acontece com as pessoas quando elas lêem Kurt Vonnegut é que as coisas ficam muito mais disponíveis do que imaginavam que fossem. O mundo se torna um lugar um pouco diferente simplesmente porque elas leram um bendito livro. Imagine só”- escreve Mark Vonnegut ao apresentar a nova coletânea de textos do pai. As últimas palavras de Vonnegut, no último discurso que escreveu, foram : “Agradeço por sua atenção e caio fora”.

Posted by geneton at 02:07 PM

outubro 14, 2009

A CIGANA QUE UM DIA ASSUSTOU A APRESENTADORA DO JORNAL NACIONAL : UM ENCONTRO COM A MULHER QUE PREVIU A MORTE DE AYRTON SENNA

O blogueiro-que-vos-fala não é suficientemente ingênuo para acreditar em truques de ciganas.

Devo confessar que, um dia, por pura e ingênua curiosidade jornalística, resolvi fazer um teste.

O resultado ? Ei-lo:

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Ilustração : Flavio Rossi/Almanaque Fantástico

Céticos, tremei. Quem se recusa terminantemente a dar um mínimo crédito de confiança a ciganas ,videntes, adivinhos e outros habitantes da Terra da Premonição deve ficar longe da fita de vídeo que uma cigana chamada Esmeralda gravou, em dezembro de 1993, para o Fantástico. Porque esta fita pode ter o poder de abrir uma fresta no paredão de descrença que os céticos profissionais erguem em torno de si.


Revejo a fita. Depois de tirar uma carta de um baralho na tentativa de prever o que o ano de 1994 reservava para o campeão Ayrton Senna,a cigana diz, textualmente, à repórter Fátima Bernardes : “Ayrton Senna poderá sofrer um acidente fatal numa curva”. Menos de cinco meses depois, no dia primeiro de maio de 1994, as palavras “curva” e “acidente fatal” cruzaram o caminho de Ayrton Senna.

Durante a gravação da entrevista para o Fantástico, houve uma cena que não foi captada pela câmera . Com uma dramaticidade realçada por olhos esverdeados que fitam o fundo da retina do interlocutor, a cigana Esmeralda diz a Fátima Bernardes que ela não deve se preocupar com o problema de saúde que tinha sido descoberto na véspera. “Fiquei imóvel”, diz, a apresentadora do Jornal Nacional. “Porque eu realmente tinha ido ao médico”.

A que poderes a cigana recorrer para dar a impressão de que enxerga o futuro ?

A cigana cravou pelo menos dois outros acertos. Disse, em dezembro de 1993, que a economia sofreria uma reviravolta em julho de 1994.”A moeda terá um novo nome”. Assim foi feito. Os bruxos da economia deram à luz o Plano Real. Por fim,os cartas disseram à cigana que o próximo ocupante do Palácio do Planalto seria um nativo do signo de gêmeos. Em outubro de 1994,as urnas deram a Presidência das República a um nativo de gêmeos – o professor Fernando Henrique Cardoso, nascido em dezoito de junho de 1931. Quando a cigana fez a previsão, ele ainda não era candidato. Acredite quem quiser.

A que estranhos poderes esta cigana recorre afinal para dar a impressão de que é capaz de enxergar, num amontoado de cartas de baralho, os desígnios do futuro ?

Desembarco no endereço da cigana numa manhã chuvosa de sábado. A consulta tinha sido marcada com a devida antecdência, por telefone. Nuvens cinzentas pairam, assustadoras, sobre Copacabana. O céu ameaça desabar a qualquer momento. O cenário parece perfeito para que uma cigana entre em cena. Que ela venha, com seus santos protetores, cartas de baralho, metais misteriosos e olhares esverdeados. Eu estarei pronto a espargir, sobre este exército de entidades sem rosto, todas as poções do meu ceticismo militante.

O porteiro avisa à moradora do apartamento 101 deste prédio de esquina na rua Raul Pompéia que o visitante, esperado para a consulta das 13 horas, chegou. Um homem de cabelos grisalhos, presos num extemporâneo rabo-de-cavalo, abre a porta dos fundos do apartamento. A cigana aguarda pelo visitante instalada, como uma soberana, num inacreditável quarto de empregada, decorado por imagens de entidades ciganas, medalhas, moedas espalhadas pelo chão, imagens de bruxas, gnomos, baralhos, véus,espelhos, dados, pedras, metais. A anárquica congregação de signos impressiona os olhos recém-chegados do cliente. As moedas, diz ela, são símbolo da fertilidade. As estatuetas representam os Ciganos da Lua Cheia. Um inventário do que significa cada uma daquelas bugingangas místicas seria suficiente para encher um tomo.

Apelo ao mutismo para tentar descobrir que estranho jogo é este que a cigana joga para impressionar o freguês. Se eu começar a falar pelos cotovelos, estarei dando à cigana as informações de que ela necessita para, espertamente, formular suas previsões. Baixa em mim o espírito daquele ministro do governo militar que respondia as inquisições dos curiosos com uma frase-padrão :”Nada a declarar”. Declaro o mínimo possível à cigana. Faço mistério. Quero ver se ela é capaz de decifrar esta esfinge precária , com a ajuda daquele exército de entidades.

A cigana é personagem do conto que Jorge Luis Borges poderia ter escrito

O jogo começa em desvantagem para o consulente. A paisagem do quarto de empregada – transformado em altar de supostas divindades ciganas – dá a Esmeralda uma posição de indiscutível superioridade sobre quem a visita. Ali, literalmente, quem dá as cartas é ela. Ao visitante, cabe o papel de ouvinte. Quem bate às portas deste oráculo cigano na esperança de enxergar as feições do futuro sente-se como um paciente que espera ouvir do médico um prognóstico qualquer – de preferência,otimista. O médico é o senhor da situação. A cigana também.

A cena lembra um conto que Jorge Luis Borges nunca escreveu. Uma porta maciça, no fundo do Salão do Tempo Presente, protege um mistério inalcançável : o futuro. É impossível enxergá-lo . Quando finalmente o viajante consegue abrir a porta maciça , o feitiço se quebra : o futuro deixa de ser futuro. Desvendado aos olhos do curioso, o futuro transforma-se em tempo presente. Mas o mistério se renova com a aparição de outra porta maciça, ao fundo do salão recém-conquistado : lá estará,novamente invisível, o futuro que a todos fascina – arredio , inalcançável , fora do campo de nossa visão. Ciganas como Esmeralda se dizem capazes de enxergar através da porta indevassável, esta barreira que mantém o futuro protegido contra as investidas de nossa pobre curiosidade . Deve ser esta a principal razão que leva ciganas a atrair a curiosidade de crentes ou céticos envergonhados que, como eu, pagam setenta reais pelo direito de entrar neste quarto de empregada de um prédio em Copacabana.

Eis agora a Cigana Esmeralda tentando exercer diante de mim seus pretensos poderes divinatórios. Ciganos, videntes e outros supostos donos de bolas de cristal têm também o dom de provocar medo em almas impressionáveis. Porque há, na vida ou nos palcos, qualquer coisa de trágico e intrigante em previsões. É assustadora a voz da vidente que, misturada à multidão, grita para César “cuidado com os idos de março !” na cena shakesperiana. César manda chamar o autor do aviso : “O que me dizes agora ? Repete !”. O vidente : “Cuidado com os Idos de março”. Mas César não dá ouvidos ao vidente :”É um sonhador.Pode esquecer. Passemos”. Quando os idos de março chegam, César é apunhalado no senado romano.

As sobrancelhas da cigana que agora olha nos meus olhos foram desenhadas a lápis. Os cabelos com certeza passaram por um tintura. A cigana começa a manusear as cartas, avisa que meus dias de sorte são terça e sexta à tarde (depois, numa busca na Internet, vejo que outro horóscopo cigano indica o dia segunda-feira como dia de sorte. Em qual das duas entidades acredito : Internet ou cigana ? ).

Começo a avaliar a possível tática que a cigana usa para impressionar o visitante

De vez em quando, em meio a caudalosos informes sobre saúde (“boa”),vida (“longa”),pedra de nascença ( “turmalina verde”), elementos da natureza (“ouro branco” e prata velha”), número de sorte (“trinta e três”), cristal de sorte (“branco transparente”), cor (“verde”),recomendações (“atenção a modificações na pele”), a cigana faz perguntas repentinas : “Quem é Sérgio ?”,”quem é José ? “,”quem é Paulo ou Paulinho ? “. Respondo que não me lembro de alguém com estes nomes. A cigana informa : um “Sérgio” vai me ajudar; um “José”,”já morto”, intercede por mim; um “Paulo” pode trazer problemas se eu assinar documentos com ele.

Começo a avaliar a possível tática da cigana. Faz perguntas genéricas envolvendo nomes ou situações razoavelmente comuns. Quem não conhece um “Sérgio”,um “José” ou um “Paulinho” ? A certa altura, ela pergunta, depois de bater no meu joelho direito : “O que é que você sente aí ? “. Respondo que nada. Mas poderia perfeitamente ter um problema qualquer no joelho, o que com certeza alargaria a lista dos possíveis acertos da cigana. Se houver pelo menos uma coincidência entre as suposições da cigana e a vida do visitante , o caminho estará aberto para que o ouvinte saia dali impressionado.

Adiante, a cigana lê nas cartas que tive “preocupação com aquisição de residência”, mas os problemas ligados à documentação “estão se desembaraçando” – o que é verdade. “Você pode fazer uma viagem ao exterior de repente de uma hora para outra”.

Depois de descobrir que tenho três filhos , insiste : “você teve preocupação com um dos filhos este ano” . Rebato : “Qual é o pai que não tem preocupação com filhos ? “. A cigana não entrega os pontos : “Mas você teve uma preocupação especial com um dos três, sim.Vejo o sol clareando a situação”.

Uma constatação feita sob medida para assustar almas ingênuas : cuidado com um carro prateado!

O segundo conselho é precedido por uma pergunta : “De quem é esse carro prateado ? “. A cigana simula ver alguma coisa nas cartas. Respondo que nunca tive carro dessa cor. Mas ela insiste :”Cuidado quando entrar num carro prateado, porque ele pode estar com problema nos freios. O carro pode ser de um amigo .Você pode se dar mal. Você tem de ficar atento . Cuidado com velocidade, cuidado com acidente”.

Que fique registrado : se um dia o autor dessas mal traçadas linhas se meter em trapalhadas num carro prateado, a cigana Esmeralda merecerá ser entronizada no altar as pitonisas.

Quando a consulta se aproxima do fim, Esmeralda me informa que uma entidade cigana,um certo Vladimir, me dá proteção. A cigana sugere que eu um dia faça uma oferenda a Vladimir : podem ser frutas, ofertadas ao “povo cigano” ao pé de uma árvore. Esmeralda me oferece dois conselhos. Primeiro : “Não use perfume de Alfazema ! Dá azar. É das múmias !”. Uriel,”anjo da Noite”, igualmente me protege – é o que dizem as cartas de Esmeralda.

O Grande Jogo das Coincidências vai se armando neste quarto de empregada travestido de oráculo. Um pai que tivesse tido uma “preocupação especial” com um dos filhos ficaria, com certeza, impressionado com a insistência da cigana sobre esta particularidade. Quem acredita em “avisos” pensaria dez vezes antes de embarcar num carro prateado depois de ouvir a recomendação. Embalada pelas cartas, Esmeralda ainda me daria dois conselhos que são um primor de incorreção política : “Afaste-se de quem é homossexual. Cuidado ao lidar com judeus”.

A cigana dá um palpite nada absurdo sobre a intenção do cliente

Não revelo minha condição de repórter. Deixo sem resposta a pergunta que a cigana me faz com insistência : “Por que você tem dúvida quanto à profissão”? Entre uma e outra informação, tento perguntar à cigana por que ela se acredita capaz de enxergar o que ninguém enxerga :

- É espiritual. Não sei explicar. É uma mediunidade espontânea dada por Ele (refere-se a Deus, aponta para uma imagem na parede). Faço este trabalho desde os oito anos de idade. Já estou com sessenta e nove.

Esmeralda sabe capitalizar o dom de impressionar os outros.Trabalha “de segunda a segunda”,como diz,orgulhosa. Em dias de movimento intenso, pode dar “de doze a treze” consultas. Façam-se as contas. Treze vezes setenta igual a 910 reais – um faturamento diário nada desprezível. Se apenas três almas penadas batessem por dia à porta da cigana em busca de um facho de luz sobre os mistérios do futuro, ela teria um faturamento mensal de 6.300 reais. Caixinha, obrigado.

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A cigana : jogo de coincidências (Imagem: TV Globo)

Peço para tirar fotos da cigana,com a desculpa de que uma de minhas filhas gostaria de ver em que ambiente ela trabalha. Em nenhum momento digo que aquela consulta eventualmente poderia servir de matéria-prima para um reportagem que penso em publicar numa revista. Quando me preparo para me despedir,a cigana me diz, textualmente :

- Se sair em alguma revista, mande para mim…

Fico pensando : quem sabe,ela notou em minha curiosidade um ou outro traço típico de jornalista. Observadora atentíssima – porque precisa pescar nas palavras do visitante informações que lhe permitam arquitetar previsões – ela pode perfeitamente ter imaginado minha intenção. Arriscou, então, um palpite nada absurdo.

De qualquer forma, quer tenha sido mero palpite ou não, devo dizer, em nome da veracidade factual, que a cigana se referiu a uma revista que era segredo. As palavras de Esmeralda ficaram registradas no meu gravador.

É assim: quem entra neste quarto embarca num jogo de espelhos sem fim

Piso novamente no terreno movediço das suposições, divagações, coincidências. Quem entra neste quarto de empregada em Copacabana ingressa num jogo de espelhos sem fim. Uma suposição leva a outra, numa teia que não se acaba nunca.

Deixo o oráculo depois de uma consulta que durou exatos cinqüenta minutos. Chove lá fora. Um carro prateado (são tantos,na cidade) sai do túnel que dá para a rua Raul Pompéia. Tenho a sensação de que paguei setenta reais para adquirir uma dúvida (“cuidado com um carro prateado”) e um alívio (“a carta forte do sol saiu várias vezes. Sol não pode ser ruim,porque clareia”).

O Santo Protetor da Racionalidade me sopra, enquanto tento driblar as poças d’água na calçada neste começo de tarde de sábado : é ridículo acreditar que generalidades pronunciadas por uma mulher que se diz dona de poderes premonitórios. Somente quem já chega ao Oráculo de Esmeralda preparado para acreditar em platitudes sobre o futuro é capaz de dar credibilidade às palavras da cigana.

Penso que a chave do enigma é este : só acredita em previsões assim quem chega ali preparado para acreditar. Caso contrário, é possível derrubar uma por uma todas as sentenças da cigana . Prever que um piloto de Fórmula-Um vai sofrer um “acidente fatal” numa curva não chega a ser uma demonstração genial de clarividência. Igualmente, dizer a um pai que ele teve “preocupação especial” com um dos filhos é apostar no mais do que possível . Por fim, quem nunca se preocupou com documentos de imóveis ?

O segredo : jogar na loteria das coincidências. A chance de acertar pelo menos uma vez é grande

Noventa e nove por cento das evidências dizem que tudo não passa de um esperto jogo de adivinhações. A própria cigana é mestra em jogar na loteria das coincidências : quer saber – por exemplo – se o visitante tem um problema no joelho. Se ele tiver, vai acreditar que ela é dotada de poderes no mínimo estranhos. É tudo ilusão. O iludido é o visitante. A ilusionista é a cigana.

Mas devo confessar : é impossível não se deixar fascinar por este Grande Jogo das Coincidências, tão habilmente manipulado por uma observadora arguta, cercada de ícones por todos os lados, num minúsculo quarto de empregada. O ambiente, algo lúgubre, é propício a divagações de todo tipo. Um encontro como este deixa sempre uma fagulha de dúvida no peito de quem descrê.

Caio por cinco minutos na tentação de perguntar a mim mesmo, enquanto espero pela condução (felizmente, não há táxis prateados no Rio de Janeiro) : e se o José de que ela fala for o meu avô, já morto ? Como é que ela adivinhou que fiz a consulta pensando em escrever para a revista ? O que é que levou a cigana a dizer que eu tinha tido um problema com documentação de uma “residência” ? Rendo-me por quinze minutos à certeza de que não custa nada dar uma chance ao imponderável, ao invisível, ao insondável, nem que seja por mera curiosidade jornalística. É um gesto inofensivo.

A tempestade que estava se armando no céu de Copacabana finalmente se dissipa. Pego um táxi – amarelo,é claro. Nada de carro prateado. A rua Raul Pompéia fica para trás. A cigana permenece no quarto- quem sabe,à espera do próximo visitante.

Vou adiante : intimamente, decreto a suspensão temporária de meu ceticismo. Resolvo dar um crédito de confiança às entidades que – jura a cigana – me oferecem proteção : então, bem-vindo,Cigano Vladimir. Bem-vindo, Uriel, Anjo da Noite. Obrigado, pedra de Turmalina, ouro branco, prata velha. A partir desta tarde de sábado, conto com vocês.

Mas, lá no deserto de minha descrença, onde não há espaço para pedras de turmalina nem anjos da noite nem carros prateados, eu sei : é tudo um mero jogo de espelhos, um labirinto de adivinhações.

Copacabana me engana.

Quatro meses depois da consulta,bato de novo à porta da cigana. Quero saber se é verdadeira a informação de que ela teria morrido dias antes do Natal. O porteiro confirma : “É verdade. Dona Esmeralda morreu de repente. Fecharam o apartamento. Desligaram o telefone. Acabou o movimento”.

Posted by geneton at 02:15 PM

outubro 13, 2009

WOODY ALLEN É UM “CINEASTA PEQUENO”, “UM CARETA” DE “VISÃO ESTREITA” E “FRASES BRILHANTES”. ASSINADO: CAETANO VELOSO

Woody Allen vem aí. Deve fazer um filme no Brasil. O Dossiê Geral publicou dois posts sobre o homem nos últimos dias.

O Festival Woody Allen ganha, hoje, um último acréscimo, graças a um acaso : um exemplar de um suplemento literário me foi entregue quando eu flanava pelos corredores da Bienal do Livro de Pernambuco.

Por coincidência, justamente ele, Woody Allen, é um dos temas de uma entrevista que Caetano Veloso concedeu ao Correio das Artes, suplemento literário do jornal paraibano A União. Bem editado, o suplemento circula há sessenta anos. É gol da pequenina Paraíba!

“É um careta, um cineasta pequeno”, declara Caetano Veloso sobre Woody Allen, em depoimento que se estende por onze páginas. Assunto exclusivo da entrevista : cinema.

Eis a íntegra do que Caetano Veloso diz sobre Woody Allen no depoimento a Sílvio Osias :

“Fizeram uma espécie de festival Woody Allen no Telecine Cult. Vi por acaso: passavam os filmes nas horas em que vou me deitar. Gostei de todos: dos que revi e dos que nunca tinha visto. Mas sei que ter saído de casa para ir ao cinema era um pouco demais para filmes tão estreitos. A TV é o perfeito veículo para Allen.O primeiro filme dele que vi foi Boris Gruschenko e achei que parecia um programa de TV meio malfeito”.

“Depois, ele melhorou a estrutura dos roteiros e o uso da câmera. Passou a fazer filmes melhores. Mas sempre muito anti-sixties,um tanto reacionário. Muito hétero, muito reverente com os amantes de ópera que vivem no Upper East Side, muito chegado a uma decoração creme por trás de roupa bege. Careta até não poder”

“Gay, maconha, rock, Bob Dylan, tudo isso é desprezado por ele. Eu entendo: vemos peças da Broadway pós-rock (o pós-rock que se usa na Broadway) e pensamos em quão genial eram Porter, Gershwin e Rogers: essas baladas que se ouvem nos espetáculos novos ( dos 70 para cá) são chatérrimas- o mesmo se dando com os desenhos animados em longa metragem: em Branca de Neve, quando os personagens param para cantar é um alumbramento; em Aladim ou Moisés, Príncipe do Egito, é um bocejo: são uma mistura de campo com igreja, um negócio que sempre parece que a Mariah Carey vai cantar, com dramaticidade negra de igreja mas abastardada, sem a malícia e a urbanidade, a inteligência de uma canção de Berlin ou de Kern. Então, é gostoso que um cara velho seja sincero a esse respeito. E muitas das piadas ( “one liners”) são excelentes. Mas sempre se revela uma visão estreita”.

“O público que o adorava quando ele era uma novidade com filmes ruins não gosta nem dos bons que às vezes ele faz. Meu filme favorito dele é Bullets Over Broadway: é uma comédia de verdade. Diane Wiest está genial (nada da chatice que ela apresenta quando faz personagens “sensatos” em filmes de outros diretores: ela é falsa, parece uma maluca fingindo que é sã),tem situações ótimas. E Allen tem a grande elegância de dar a seus filmes a duração que os filmes tinham quando ele era menino. Talvez isso contribua para para o seu relativo frascasso comercial nos EUA: o público exige supersized movies”.

“Os produtores descobriram que o povo pensa que se um filme não dura mais de duas horas e quinze ele não está sendo “bem servido”. É como um restaurante vulgar – e como o ar-condicionado dos cinemas: os idiotas pensam que, quanto mais frio, melhor”.

“Allen faz filmes do tamanho de filmes. Adoro Nova Iorque – e ele a conhece e sabe filmar a arquitetura da cidade. Além disso, ele é o grande herdeiro do cinema novaiorquino, independente de Los Angeles. Ele não é nenhum Cassavetes, mas merece estar ligado à tradição que este iniciou. É um careta, um cineasta pequeno, mas é um cara legal, com frases brilhantes, com algunas cenas espetaculares como ator- e canta muito, muito bem na cena curta em que o faz, em Everybody Says I Love You. Considero uma conquista imensa ele ter o “final cut” dos seus filmes”

Posted by geneton at 12:29 AM

outubro 12, 2009

WOODY ALLEN

DOCUMENTO : A ÍNTEGRA DE UMA ENTREVISTA EXCLUSIVA COM WOODY ALLEN, NA SUÍTE DE UM HOTEL COM VISTA PARA O HYDE PARK, NUM DIA DE INVERNO

Presente do Dia das Crianças : eis a íntegra de nossa entrevista com Woody Allen (ver post anterior). Palavra por palavra, sem cortes.

Uma das dez mil maravilhas da internet é o espaço ilimitado. Ao contrário do que acontece nos jornais de papel, é possível escrever – e publicar – sem que um editor texticida (ou seja: assassino de textos) invada de repente o ambiente com um serrote ensanguentado nas mãos, disposto a trucidar, por exemplo, qualquer entrevista que exceda um punhado de linhas. Vade retro, texticidas! Tratem de procurar um mausoléu confortável no Cemitério dos Mamutes Extintos. A internet matou vocês.

Um último aviso : equipes de busca continuam vasculhando os arquivos implacáveis do blogueiro-que-vos-fala, para localizar a tal foto que a megera-assessora-de-imprensa tirou, a contragosto, em cena descrita com detalhes no post anterior sobre mr. Allen.

Divirtam-se. O entrevistado é esperto, bem-humorado, levemente melancólico e espirituoso.

“Quero a imortalidade é no meu apartamento!”

GMN : Fazer filmes, no fim das contas, é a melhor maneira de superar a morte – ou pelo menos ter a ilusão de que é possível?

Woody Allen: “Não há como superar a morte. O que cada um deve fazer é se esforçar bastante para se encontrar em suas tarefas seja você um diretor de cinema, um motorista de táxi, um dentista ou um professor. Se você se concentra no trabalho, não vai ficar pensando na morte. Se, pelo contrário, você não pode se concentrar, a mente vai começar a se ocupar dessa nuvem escura que nos acompanha o tempo todo. Fica difícil, então. O fato de ser diretor de cinema não nos torna menos vulneráveis…”.

GMN : Mas, nesse sentido, há sim, uma diferença entre o motorista de táxi e o diretor de cinema, porque um ator ou um realizador de certa maneira não morre: daqui a cem anos alguém poderá estar vendo Woody Allen numa tela…

Woody Allen: “Mas eu não me preocupo em atingir a imortalidade através do meu trabalho. Eu quero a imortalidade é no meu apartamento! Isso é que conta! Imortalidade artística é catolicismo de intelectual. Os católicos pensam que existe vida depois da morte. Intelectuais que eventualmente podem nem ter relação alguma com o catolicismo pensam que existe vida depois da morte através da arte. Mas os dois estão errados”.

GMN : Se um crítico disser que você é um gênio e outro disser que você é um idiota, em qual dos dois você teria a tentação de acreditar?

Woody Allen: “Não leio nada que sai sobre mim nas resenhas. Porque tenho uma tendência de acreditar na última coisa que eu li. Se o crítico de um jornal escrever ‘esta pessoa é um gênio’, vou pensar aqui comigo: ‘Ah é? Sou gênio porque foi o New York Times que disse… ’ Se, por outro lado, alguém escrever ‘ele é um tolo; o filme não presta’, vou pensar: ‘Eu realmente fiz um filme ruim. Sou um bobo`.
A verdade é que coisas assim não são reais, não têm nenhuma relevância para um projeto. O fato de dez milhões de pessoas dizerem algo sobre um filme – ‘é ótimo ou ‘é horrível’ – não significa nada. O filme, por si mesmo, anos depois é que vai ver qual é a verdade. Não há como saber, agora – tanto em relação a filmes como em relação a qualquer obra de arte. Filmes que há anos eram considerados ótimos são esquecidos depois. Transformam-se em nada. Outros filmes – que não eram tão considerados quando do lançamento – permanecem em nossas consciências. Adquirem importância. ‘A Regra do Jogo’, filme de Jean Renoir, não foi bem recebido quando apareceu. Hoje é um clássico”.

“O fato de um diretor dizer que detesta um filme não quer dizer nada”

GMN : Você pediu ao estúdio para jogar fora o filme ‘Manhattan’ quando a versão final ficou pronta, porque mão gostou do resultado. Mas ‘Manhattan’ se transformou num dos seus filmes mais elogiados. A má opinião que você tinha sobre o filme é uma prova de que você não é nem um pouco confiável como crítico?

Woody Allen: “Um diretor não é confiável quando fala sobre o próprio trabalho. O fato de um diretor declarar que detesta um filme não quer dizer nada. Igualmente, é estúpido dizer ‘os críticos são uns bobos, não sabem de nada, não entendem nada.’ Porque quem não entende, na verdade, é o diretor. Os críticos entendem, o público entende – o diretor é que não.”

GMN : Você divide os realizadores em duas categorias: os que fazem prosa e os que fazem poesia. Woody Allen faz o quê: poesia ou prosa?

Woody Allen: “Todo diretor tem filmes que adotam uma abordagem poética – e outros que utilizam a prosa. Filmes meus, como ‘Bullets Over Broadway’ e ‘Manhattan Murder Mistery’, são prosa. Já ‘Another Woman’ é poético.”

GMN : Quem é o melhor poeta da história do cinema?

Woody Allen: “Ingmar Bergman. Para mim, é o melhor. Kurosawa, com certeza, é um grande poeta. Bunuel, igualmente. Os três são os maiores poetas.”

GMN : A poesia é superior à prosa?

Woody Allen: “Não necessariamente, porque filmes como ‘Ladrões de Bicicletas’, ‘A Grande Ilusão’ ou ‘A Regra do Jogo’ são prosa: não são poéticos. Isso não quer dizer que não sejam grandes filmes. ‘Oito e Meio’ é um filme poético, assim como ‘Persona’. Não acho, então, que uma seja superior a outra.”

“Sou um não-artista de público pequeno”

GMN : Você lamenta que nem sempre exista uma correlação entre os melhores filmes de um diretor e o sucesso comercial.

Woody Allen: “É verdade! Frequentemente, não existe…”

GMN : “A Rosa Púrpura do Cairo”, um dos seus filmes favoritos, atraiu o que você chama de “pequeno público”. Você acredita então que existe uma contradição entre boa qualidade artística e mercado de massa?

Woody Allen: “É interessante o que você me pergunta. Saul Bellow articulou o conceito de artista de público pequeno e artista de grandes públicos. Fiz uma distinção entre um autor como Charles Dickens – um artista de grande público – ou James Joyce, consumido por um público pequeno. Isso é verdade também no cinema. Chaplin e Buster Keaton têm um público grande – e são artistas! Bergman e Bunnuel têm um público pequeno. Fico numa posição desconfortável, no meio do ar…Eu sinto que não sou um artista desse nível. Sou um não–artista de público pequeno…(ri)”

GMN : Mas você é considerado um diretor intelectual que atinge o mercado de massa…

Woody Allen – “Não concordo nem com uma coisa nem com outra. Não sou um intelectual. Não atinjo o mercado de massas. Meus filmes não atingem. Bem que eu gostaria. Também gostaria de ser intelectual. Mas não sou.”

“A realidade da vida é desagradável, difícil e dolorosa. Mas você pode criar uma realidade própria”

GMN : Você gostaria que seus filmes tivessem a popularidade de um filme de aventuras de Indiana Jones?

Woody Allen – “Não me incomodaria. Quando lanço um filme, gosto que o público goste. Prefiro ver o público satisfeito. Mas jamais faria algo para atrair o público- como, por exemplo, mudar o filme. Quando o público gosta, fico feliz.”

GMN : Você diz que tem problemas para delimitar o terreno entre a realidade e a fantasia. É esta a razão que o levou a se tornar um realizador: tentar resolver, através do cinema, a confusão entre fantasia e realidade?

Woody Allen : “Que bom que você tocou neste assunto. O que acontece é que a realidade da vida é desagradável, difícil, dolorosa. Quando você trabalha com pintura, com poesia, com literatura, com cinema, com teatro, você pode criar uma realidade própria, sobre a qual você exerce controle: você usa os personagens de que gosta, no cenário que prefere, para fazer com que o destino de cada um se realize da maneira que você quer. É ótimo.”

GMN : Você já sentia a confusão entre realidade e fantasia antes de se tornar cineasta?

Woody Allen- “Não é bem uma confusão. A verdade é que eu sentia que a fantasia é boa. A realidade é ruim. Muitos dirão: a verdade é bela, a realidade é bonita. Fantasia, não. Mas não sinto as coisas dessa maneira. Para mim, a fantasia é que é boa. A realidade não é nem um pouco atraente.”

GMN : Uma pergunta direta e boba: por que você faz filmes?

Woody Allen – “Faço porque cresci gostando de filmes. Quando entrei no show business me pareceu que todo mundo queria fazer cinema. Parecia ser a mais expressiva forma de arte, a de maior comunicação com o público. Além de tudo, você poderia exercer um controle sobre o produto- o filme. Depois, vi que havia gente disposta a me dar dinheiro. Em filmes- como na arquitetura- você precisa de um bocado de dinheiro para realizar um projeto. As empresas, então, começaram a me dizer: ‘Você terá cinco milhões de dólares para ou dez milhões de dólares para fazer um filme.’ Nem discuti.”

“Não me incomodo de ter encontros assim, com jornalistas – uma vez por ano”

GMN : Você não reconhece a ‘integridade’ ou a ‘credibilidade’ dessas escolhas do “melhor filme do ano.” Você quer ser visto sempre como um outsider?

Woody Allen – “Não comecei com essa história de outsider, mas ela terminou acontecendo. Vivo em Nova Iorque, Faço meus filmes. Acontece que, devido à minha personalidade e à maneira como vivo, me transformei num outsider, sem necessariamente querer ser. Eu teria disposição, se houvesse uma comunidade cinematográfica em Nova Iorque, para sair com outros diretores e amigos, almoçar com eles. Mas não tenho amigos nem diretores.”

GMN : Quando um filme como Manhattan estreou, nem em Nova Iorque você quis ficar. Igualmente, você não compareceu à cerimônia do Oscar. Agora, para divulgar o filme “Mighty Aphrodite” (“Poderosa Afrodite”), você aceita falar sobre cinema diante de um jornalista de um país distante- o Brasil. O que foi que mudou?

Woody Allen- “Geralmente não vou a cerimônias de premiação. Mas ficou caro promover e anunciar filmes. Quero, então, cooperar. Se dependesse de mim, eu faria o filme e diria: ‘Fiz; vocês que vendam.’ Mas os produtores dizem: ‘Por favor, ajude. Não podemos comprar espaço em jornais e na TV’. Eu prefiro, então, ser amigável…
Quanto aos encontros com jornalistas, não me incomodo de ter encontros assim. Eu não faria o ano todo, mas uma vez por ano, ou uma vez cada dois anos, não me incomodo de ter esses contatos, porque quero ouvir o que é que os jornalistas dizem ou que tipo de pergunta fazem.

GMN : Se você fosse convidado a escrever o verbete “Allen, Woody” numa enciclopédia, quais as primeiras palavras que você usaria para se definir?

Woody Allen- “Eu diria que Woody foi um realizador que fez filmes – alguns bons; outros não. Creio que seria um retrato exato.
Eu ficaria feliz se um dia, quando eu deixar de fazer filmes, pudesse ter feito um ou dois que fossem tão bons quanto os melhores que vi. Eu me sentiria realizado se fizesse um filme tão bom quanto ‘A Regra do Jogo’ ou ‘O Sétimo Selo’. Para mim, seria o suficiente.
Ah, eu ficaria muito feliz, sim.”.

“Sempre que faço um aniversário significativo, tenho um sentimento desagradável. Datas assim dão um tom dramático ao fato de que estou envelhecendo”
GMN : Você já confessou que prefere os romancistas russos, como Dostoievski, porque eles se ocupam de “temas espirituais”, ainda que outros romancistas, como Flaubert, sejam ‘tecnicamente superiores’. Você- que também se ocupa de temas espirituais no cinema- gostaria de ser visto como o Dostoievski das telas?

Woody Allen- “Não necessariamente. Sou muito mais engraçado do que Dostoievski”.

GMN : Todo mundo fala da “crise dos quarenta.” Agora, depois de completar sessenta anos de idade, você já entrou em crise? ( a entrevista foi feita duas semanas depois do aniversário de sessenta anos de Woody Allen, em dezembro de 1995)

Woody Allen: “Eu me senti mal quando fiz cinqüenta anos, um tempo pouco prazeroso para mim. Fazer sessenta também não é agradável. Sempre que faço um aniversário significativo, tenho um sentimento desagradável. Porque datas assim dão um tom dramático ao fato de que estou envelhecendo”.

“Quando vou a um país, passo a acompanhar os esportes locais”

GMN : Você – que é um grande fã de esporte – também gosta de futebol?

Woody Allen- “Conheço melhor o futebol americano. Gosto de todos os esportes, na verdade. Quando vou a um país, passo a acompanhar os esportes locais. Posso ver uma partida de críquete. Já fui a jogos de futebol.”

GMN : Já teve algum ídolo brasileiro, na área do futebol?

Woody Allen- (depois de uma pausa para pensar) “Ídolo brasileiro? Há pouco tempo, li Machado de Assis. Achei que é um escritor excepcional. Uma amiga me deu um livro de Machado de Assis- ‘Epitaph for a Small Winner’ (título da tradução para o inglês de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’). Fiquei muito, muito impressionado. Dei o livro a meus amigos. Porque Machado de Assis não é bem conhecido.”

GMN : O que é impressionou tanto você no livro?

Woody Allen – “Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irônico. Alguns dirão: ele é cínico. Eu diria que Machado de Assis é realista.”

GMN : Quem lhe passou o livro?

Woody Allen- “Nem me lembro agora do nome da pessoa que me passou o livro. Apenas ela disse: ‘Você deve gostar…’ Respondi: ‘Nunca ouvi falar de Machado de Assis.’ Mas li- e gostei muito.”

GMN : Você consideraria a possibilidade de filmar ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’?

Woody Allen- “Gosto de escrever meus próprios filmes. Mas Machado de Assis é um maravilhoso momento na literatura. Dei cópias do livro para minha filha e para os meus amigos.”

GMN ; Você é um símbolo de Nova Iorque. Teria coragem de viver um dia numa cidade pequena e calma, longe de tudo?

Woody Allen- “Eu ficaria louco. Não poderia viver num lugar assim nem por dois dias- nem por um fim-de-semana. Preciso de cidades- seja Londres, Paris, Nova Iorque…Preciso de atividade, barulho, carros, restaurantes, livrarias, filmes. Sou viciado em civilização.”

GMN : Além de só gostar de cidade grande, é verdade que você detesta sol?

Woody Allen- “Adoro este tempo (olha para a janela do hotel; lá fora tudo cinzento: a chuva fina cai há umas doze horas).Gosto de Londres e Paris no inverno. Todo dia é bonito. É como um fotógrafo que gostasse de tons suaves.”

GMN : Você jamais viveria num país tropical?

Woody Allen : “Não! Não gosto de calor.”

Posted by geneton at 12:31 AM

outubro 10, 2009

WOODY ALLEN

OS BASTIDORES DE UM ENCONTRO COM WOODY ALLEN: O DIA EM QUE ELE CONFESSOU QUE TINHA UMA PAIXÃO BRASILEIRA. QUEM SERÁ?

Woody Allen, um dos poucos cineastas que ainda conseguem imprimir uma marca pessoal a seus filmes, deve usar o Rio de Janeiro como cenário de uma de suas próximas investidas.

Bela escolha. Tomara que dê certo.

Tive a chance de entrevistá-lo longamente numa suíte do sétimo andar do Hotel Dorchester, diante do Hyde Park, em Londres. É uma dessas situações surrealistas que a gente vive no exercício do jornalismo: a chance de interrogar um cineasta de fama mundial.

Quando Woody Allen começa a falar, a gente sempre espera que vá soltar uma daquelas tiradas: “Eu me separei da minha primeira mulher porque ela era infantil demais. Toda vez que eu estava tomando banho na banheira ela vinha e afundava os meus barquinhos todos sem dar a menor explicação.”.

Ou então: “Não, eu nunca estudei nada na escola. Ou outros é que me estudavam.”.

A coleção de tiradas de Woody Allen traz, como marca registrada, uma auto-ironia marcada por um sentimento de inadaptação à realidade. A fantasia, repete Allen, é sempre melhor.

A entrevista aconteceu assim: um belo dia, você recebe um telefonema em casa. A produtora de um filme de Woody Allen oferece de mão beijada uma entrevista com o homem. Você comparece ao local na hora marcada. Não movi uma palha para conseguir o “furo de reportagem”. Só tive o trabalho de pegar o metrô. Nem sempre os repórteres suam a camisa.

A antessala estava entulhada de jornalistas estrangeiros. Woody Allen vai recebê-los em grupos de cinco. O assessor cronometra as mini-entrevistas coletivas. Com sorte, cada um terá tempo de disparar umas duas perguntas à celebridade.

De vez em quando, o estúdio resolve fazer um agrado a um jornal ou a uma emissora de tevê. Oferece uma entrevista exclusiva porque sabe que, assim, o espaço será maior. É tiro e queda. Eu era, na época, correspondente do Globo em Londres.

A assessora de imprensa me puxa para um canto: diz que Woody Allen falará “a sós” comigo. A megera faz uma recomendação e um pedido. A recomendação: não devo fazer fotos, para não incomodá-lo. O pedido: que eu ficasse calado. Eu não deveria dizer aos outros jornalistas que tinha sido agraciado com a chance de fazer uma entrevista exclusiva com o homem.

A mulher me faz um sinal discreto. Já posso entrar na suíte. Fico sozinho, à espera do astro.

Lá vem o bicho. A assessora tinha escoltado Woody Allen até a porta. Depois, desapareceu. Woody Allen caminha sozinho em minha direção, na suíte quilométrica. A pele de mister Allen exibe uma palidez de cera ( pergunto a meus botões : há quantos anos ele não toma um bom banho de sol ?. Mas intelectual não vai à praia : intelectual faz filmes, pelo menos no caso de Woody Allen. Adiante, como para confirmar as suspeitas, ele diria que jamais se habituaria a morar numa cidade ensolarada. Gosta é de chuva, tempo nublado, engarrafamento, livraria, loja de disco, bons restaurantes, barulho, enfim, todas essas pequenas delícias e horrores que formam a civilização).

Primeira impressão pessoal: não há diferença alguma entre o Woody Allen da vida real e o Woody Allen das telas. A fala é apressada. Um olhar tímido dirigido ao chão pontua o sorriso. Quando solta uma frase engraçada, para dizer, por exemplo, que quer a imortalidade aqui e agora – e não nas cinematecas, daqui a um século -, ri um riso tímido, entrecortado por suspiros. De calça de veludo marrom e suéter verde, dá a impressão de ter alguma dificuldade para ouvir, porque se aproxima exageradamente do rosto do repórter a cada pergunta. Fico pensando: ou o Woody Allen das telas imita o Woody Allen da vida real ou é o Woody Allen da vida real que imita o Woody Allen das telas. Porque um é a cópia do outro.

O bê-a-bá do jornalismo diz que entrevista boa é aquela que traz pelo menos uma declaração inesperada. Se tivessem o despudor de dizer em voz alta o que intimamente esperam dos entrevistados, os repórteres repetiriam algo como “senhor, fazei com que este desgraçado me confie pelo menos um segredo”.

Quando ouvi Woody Allen dizer que adorava acompanhar “qualquer tipo” de esporte em tevês de quartos de hotel, imaginei que estava a ponto de colher uma bela pepita. Bastaria perguntar qual era o brasileiro que ele admirava. Com certeza, ele citaria uma de nossas estrelas dos gramados. Quem sabe, Ronaldinho Gaúcho. Ou Ronaldo Gorducho. Num rasgo de generosidade, ele poderia citar Adriano, o bonde que ganhou fama de craque. Mas não. Woody Allen me surpreendeu: o brasileiro que ele mais admira é…..Machado de Assis!

Meus arquivos implacáveis preservam a fita. Trechos:

1
Você – que é um grande fã de esporte – também gosta de futebol? ( faço a pergunta certo de que ele vai cobrir de glórias o futebol brasileiro. Quebro a cara pela primeira vez).

Woody Allen: “Conheço melhor o futebol americano. Gosto de todos os esportes, na verdade. Quando vou a um país, passo a acompanhar os esportes locais. Posso ver uma partida de críquete. Já fui a jogos de futebol”

2
Já teve algum ídolo brasileiro, na área do futebol? ( aqui, tenho certeza de que ele citará nossos craques. Quebro a cara pela segunda vez).

Woody Allen: “Ídolo brasileiro? Há pouco tempo, li Machado de Assis. Achei que é um escritor excepcional. Uma amiga me deu um livro de Machado de Assis- ‘Epitaph for a Small Winner’ (título da tradução para o inglês de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’). Fiquei muito, muito impressionado. Dei o livro a meus amigos. Porque Machado de Assis não é bem conhecido.”

3
O que é impressionou tanto você no livro ?

Woody Allen: “Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irônico. Alguns dirão: ele é cínico. Eu diria que Machado de Assis é realista.”

4
Quem lhe passou o livro ?

Woody Allen- “Nem me lembro agora do nome da pessoa que me passou o livro. Apenas ela disse: ‘Você deve gostar…’ Respondi: ‘Nunca ouvi falar de Machado de Assis.’ Mas li- e gostei muito.”

5
Você consideraria a possibilidade de filmar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” ? ( Jogo a cartada final, na esperança de que ele vá me revelar em primeiríssima mão que planeja levar às telas um autor brasileiro.Quebro a cara pela terceira vez).

Woody Allen: “Gosto de escrever meus próprios filmes. Mas Machado de Assis é um maravilhoso momento na literatura. Dei cópias do livro para minha filha e para os meus amigos.”

6
Você é um símbolo de Nova Iorque. Teria coragem de viver um dia numa cidade pequena e calma, longe de tudo ?

Woody Allen: “Eu ficaria louco. Não poderia viver num lugar assim nem por dois dias- nem por um fim-de-semana. Preciso de cidades – seja Londres, Paris, Nova Iorque…Preciso de atividade, barulho, carros, restaurantes, livrarias, filmes. Sou viciado em civilização.”

7
Além de só gostar de cidade grande, é verdade que você detesta sol ?

Woody Allen: “Adoro este tempo (olha para a janela do hotel; lá fora, tudo cinzento: a chuva fina cai há umas doze horas). Gosto de Londres e Paris no inverno. Todo dia é bonito. É como um fotógrafo que gostasse de tons suaves.”

8
GMN : Você jamais viveria num país tropical ?

Woddy Allen: “Não! Não gosto de calor”

Uma nota pós-entrevista: encerrada a gravação, faço algo que não costumo fazer. Tiro de dentro de um envelope uma máquina fotográfica. Pergunto a Woody Allen se ele se incomodaria se eu fizesse uma foto. “Não, nenhum problema”, ele diz. Neste momento, a assessora – que tinha me dito que eu não fizesse fotos - entra na suíte, para avisar que o tempo estava esgotado. Quando vê que empunho uma máquina, ele me lança um olhar que faria um guarda de campo de concentração parecer um animador de festa infantil.

É óbvio que ela tinha sido mais realista que o rei. Ao contrário do que ela tinha dito, Woody Allen não se incomodaria em ser fotografado, pelo menos ali. Cometi, então, um sacrilégio. Passei a máquina para as mãos da megera. Pedi a ela que fizesse uma foto: o entrevistador ao lado de Woody Allen. Como não poderia ser indelicada diante da estrela Allen, a megera nos clicou. Woody Allen lança um olhar levemente inquisidor para a lente da câmera. Já o entrevistador-que-vos-fala é o desastre fotográfico habitual, um amontoado desconjuntado de ossos, músculos e espantos. Nada de novo, portanto: o de sempre. A foto deve estar no fundo de uma gaveta, para preservar os olhos de internautas sensíveis.

Posted by geneton at 12:36 AM

outubro 09, 2009

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FLORES (OU: O QUE TERÁ ACONTECIDO COM O CABELEIREIRO DE HERTA MULLER, PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA ?)

Um internauta sugere que o blogueiro-que-vos-fala responda aos comentários. Falta tempo, esta mercadoria escassa. Como se diz lá no Xingu, I am so sorry.

De qualquer maneira, quero declarar aqui e agora que os visitantes do Dossiê Geral serão, sempre, incondicionalmente bem-vindos – inclusive os que jogam pedras no nosso telhado de vidro. Acontece. O que posso dizer, além de recomendar que caprichem na pontaria ? O pior: tenho a sincera tentação de concordar com a maioria das “ofensas”.

Quanto aos que jogaram flores de toda espécie : como dizem os vereadores de cidadezinhas do interior, “faltam-me palavras para agradecer”. Voltem sempre.

Aos que se dão ao trabalho de escrever : informo que cada um dos comentários é lido com toda atenção. Faz de conta que a voz do povo é a voz de Deus. Uma ou outra agressão fica de fora, porque é preciso cumprir o regulamento do campeonato: nada de violência.

O Dossiê Geral pretende ser, essencialmente, jornalístico: minha especialidade, já deu para notar, é entrevista e reportagem. Não é opinião.

Mas….de vez em quando, posso me dar ao luxo de dar um pitaco sobre o estado geral das coisas.

Ninguém deve, no entanto, levar cem por cento a sério pitacos assumidamente amadorísticos como os que dei sobre o requebrado da supermodelo Gisele Bundchen na passarela. Aquilo é apenas uma daquelas perguntas que todo bípede faz intimamente a si mesmo, sem esperar resposta.

Pichadores, calma. Não há motivo para irritação.

Assustado com a avalanche de comentários provocada pela minha rapidíssima incursão no universo das passarelas, prometo que, nos próximos dias, manterei um silêncio respeitoso sobre o mundo da moda e dos penteados.

Uma observação que, prometo, será a última (por enquanto) : todos viram, nas TVs e nos jornais, a ganhadora do prêmio Nobel de Literatura, Herta Müller. É uma escritora respeitável, viveu na pele os horrores de uma ditadura sufocante. Palmas para ela.

Só não resisto à tentação de perguntar : o cabeleireiro de Herta Muller continua solto ?

Posted by geneton at 12:38 AM

outubro 08, 2009

PROCURA-SE! QUEM FOI O GÊNIO QUE ESCREVEU O ANÚNCIO DE UMA LOJA CHAMADA "ÓTICAS CAROL" ?

Parece mentira, mas, horas depois de publicar o post anterior, sobre publicitários analfabetos, eis que o Sopa de Tamanco leva um tapa nos olhos e nos ouvidos: inadvertidamente, nosso olheiro testemunhou, na TV, a exibição de outro anúncio que fala em "o óculos" - assim,no singular. "O" óculos!

O anúncio é de uma ótica chamada Carol. "O" óculos é um soco nos ouvidos.

A velha pergunta volta a ser feita: quanto será que a agência de publicidade autora do anúncio ( qual será ?) cobrou do cliente para cometer erro tão primário de concordância ?

Não há meio termo: a palavra "óculos" exige artigo no plural.

Como já lembrou o Sopa de Tamanco, escrever "o óculos" é como escrever "a casas" e "o carros".

O inacreditável é que um anúncio assim é aprovado por alguém.

Pior: alguém pagou por ele!!

Conclusão definitiva: a cada minuto, nasce um otário na terra.

Assim é, assim foi - e assim será, por séculos e séculos.

Posted by geneton at 04:37 PM

DÚVIDAS INÚTEIS DE UM LEIGO ABSOLUTO EM MATÉRIA DE MODA: POR QUE É QUE UMA SUPERMODELO COMO GISELE BUNDCHEN SE MOVE NA PASSARELA COMO SE FOSSE UM BONECO DO CARNAVAL DE OLINDA ?

Senhores jurados : perdoai.

O Dossiê Geral pede licença para lançar ao vento uma daquelas perguntas estúpidas que de vez em quando afloram, irresistíveis, em nossas florestas interiores.

São aquelas interrogações que, em respeito às normas da civilização, a gente pronuncia em voz baixa, para ninguém, num monólogo que dispensa espectadores.

Feita a ressalva, transmito aos senhores jurados esta dúvida de um leigo absoluto em matéria de desfiles de moda: em nome de todos os santos, alguém poderia esclarecer o que quer dizer aquele andar de Gisele Bundchen na passarela ? O que é aquilo ? Defeito físico ? Falta de coordenação motora ? Trauma de infância ?

Não se discute aqui a beleza da chamada “supermodelo”. Deve haver um fundo de razão no boato de que ela é a mulher mais bela do mundo. Pode ser. Deve ser. Parece simpática, além de tudo. O problema das celebridades é a obrigação de dar entrevistas.

Sou insuspeito para falar, porque desde que me entendo por gente vivo importunando a paciência alheia em busca de declarações que mereçam ir para o papel ( ou para o vídeo ou para uma tela de computador).

Em verdade, vos digo: noventa por cento das celebridades – especialmente, as que não precisam cultuar os prazeres da leitura – passam a vida pronunciando obviedades. Podem-se incluir nesta lista modelos, jogadores de futebol, atrizes, atores, cantores etc.etc.

As modelos vivem a um milímetro do vexame quando abrem a boca. Faça-se uma pesquisa na imprensa nacional dos últimos dez anos. O nível das declarações de modelos como Gisele Bundchen é digno de um estudante secundarista relapso. Uma alma caridosa poderia dizer: mas quem disse que elas deveriam saber falar ? Basta que desfilem. Que assim seja.

Mas aí uma dúvida devastadora invade a alma dos leigos: em nome das vítimas do tsunami, alguém poderia explicar o que é que faz uma supermodelo multimilionária se mover numa passarela como se fosse um boneco do carnaval de Olinda? É verdade que ganha cachês de milhares de dólares para balançar o esqueleto como se fosse uma marionete descontrolada ?

Jamais vi desfiles de moda. Faço, desde já, um juramento: pretendo morrer sem ver. Não me fazem a menor falta.

Ainda assim, cultivo esta dúvida primal: alguém pode dizer em português claro o que é que faz uma supermodelo tão bonita quanto Gisele Bundchen andar com um pé na frente do outro, como se estivesse querendo provar ao guarda de trânsito que não bebeu ?

O que é aquilo ? O que quer dizer ? Deixo no ar minha dúvida. Não é só minha. É de milhões de telespectadores que, como eu, jamais se incomodaram com o fato de nunca terem pousado as patas num desfile de moda. É só ver o elenco de interesses e a compulsão exibicionista dos que, com as exceções de praxe, fazem e frequentam estes festivais de humor involuntário. Repito: com as exceções de praxe.

Nós, aqui do extremo oposto da escala animal, agradecemos penhoradamente pelas boas risadas que estes convescotes nos proporcionam sempre que aparecem na TV. Alguém, em algum lugar do planeta, já viu um ser bípede minimamente dotado de senso de ridículo andar pelas ruas com aquelas roupas inviáveis e aqueles penteados patéticos ? Certamente, não. Quá-quá-quá. Nunca,nunca se fez tanto humorismo involuntário na face da Terra.

Posted by geneton at 12:39 AM

outubro 07, 2009

O BRASIL NÃO PODE SE DAR AO LUXO DE ESQUECER O “MAIOR MEMORIALISTA BRASILEIRO”. O NOME: ANTÔNIO CARLOS VILAÇA. A PROFISSÃO DE FÉ: “EU QUERIA AS GRANDEZAS, EU SONHAVA COM ALTURAS LÍMPIDAS”

RECIFE – Entre um aeroporto e outro, o Dossiê Geral dá sinal de vida, para não perder o hábito.

Aviso aos caríssimos transeuntes : o Dossiê Geral não é exatamente um blog de opinião. O blogueiro é, sempre foi e será um mero coletor de declarações alheias. Em outras palavras: um perguntador. É o suficiente. Já há, espalhados pelo planeta, milhões de blogs pontificando sobre tudo e sobre todos. O Dossiê Geral fez, então, a opção preferencial pela reportagem e pela entrevista.

Feita esta ressalva, abro uma exceção para bradar aos quatro cantos do universo blogueiro uma opinião descarada : “O Nariz do Morto” é um dos mais belos livros já publicados no Brasil.

O autor: Antônio Carlos Vilaça.

A lembrança de Antônio Carlos Vilaça, morto faz quatro anos, surgiu durante a gravação de uma entrevista, hoje, em Olinda, com um escritor : sem titubear, ele deu a Antônio Carlos Vilaça o título de maior memorialista do Brasil ( em breve, detalhes da entrevista. A gravação foi marcada por uma coincidência comovente: justamente quanto o entrevistado recitava, emocionado, os versos do poema “Consolo na Praia”, obra-prima de Carlos Drummond de Andrade, os sinos do Mosteiro de São Bento começaram a tocar, ao fundo. Eram seis da tarde, em ponto. O entrevistado, um homem intensamente apaixonado pela poesia, recordava uma cena que vivera décadas antes. Publicara, num jornalzinho recifense, os versos imortais de Drummond ( aqueles: “Vamos,não chores/A infância está perdida/A mocidade está perdida/Mas a vida não se perdeu/O primeiro amor passou/O segundo amor passou/O terceiro amor passou/Mas o coração continua/(…)A injustiça não se resolve/À sombra do mundo errado/murmuraste um protesto tímido/Mas virão outros/Tudo somado, devias precipitar-te de vez nas águas/Estás nu, na areia, no vento/Dorme, meu filho”).

Um homem - que estava disposto a se matar – disse ao nosso entrevistado que desistira de cometer a loucura depois de ler os versos de Drummond no jornaleco.

O que fica de um escritor ? A beleza das palavras escritas. Ponto. Parágrafo.

Todo o resto é desperdício, desencontro, extravio. Tive pouco contato com Antônio Carlos Vilaça. Depois que li “O Nariz do Morto”, livro que garimpei num sebo, passei a admirá-lo. É um escritor que produziu pouco, mas fez um voto irrevogável de devoção à literatura.

Vivia asceticamente. Era despojadíssimo, gordo, suado, efusivo. Que eu saiba, morava de favor na sede do Pen Club, um caso único no mundo. Jovem, renunciou a tudo para se internar num mosteiro, em busca daquele silêncio que purifica, consola e enleva. Terminou voltando às turbulências da vida “civil”.

Pensei em um dia gravar um longo depoimento com Antonio Carlos Vilaça, uma entrevista em que ele poderia, quem sabe, descrever seus descaminhos de escritor e crente. A entrevista, aceita, nunca foi gravada: os desperdícios, os desencontros, os extravios de sempre.

Mas, feitas as contas , o que fica é que o foi escrito. As entrevistas não gravadas com Antônio Carlos Vilaça guardarei no mausoléu dos projetos irrealizados.

Um conselho: procurem, nas livrarias, sebos, nas calçadas, nas estantes empoeiradas, um exemplar de “O Nariz do Morto”. Que belo texto !

O livro de Antônio Carlos Vilaça não é tão conhecido quanto deveria. Pior para quem não o conhece. Não vale a pena gastar tempo lamentando : é apenas um capítulo do imenso, interminável e robustíssimo catálogo de injustiças brasileiras.

Em uma passagem de “O Nariz do Morto”, Vilaça – um homem tocado pela fé religiosa, a ponto de ter passado temporadas num mosteiro – queixa-se de que, diante do impenetrável silêncio de Deus, a devoção dos crentes se assemelhava, às vezes, a um monólogo. Era a esta a sensação que ele viveu entre as paredes do claustro:

“Ó paredes, dizei-me. “Eu quero a estrela da manhã !”. Dizei-me o endereço dela. Ó sala capitular, ó claustros, ó antifonários com iluminuras, ó sinos brônzeos, estatuazinhas , capitéis, afrescos, casulas, pesadas estalas, pedras, faces, madeiras e ouro, tapetes, cálices, relicários , retábulos e móveis, crucifixos e virgens, falai ! Um sussuro que nos chegue. Que monólogo é este, dia e noite entretido ? Sombras, sombras, sussurai-me, segredai-me. Todo esse passado, esse peso, essa pátina, pureza, pecado”.

“Ó dias, ó noites, ó vermes, que perfurais em nós a essência nossa. Que essência ? Que vermes ? Ó países em nós soterrados, ó escombros, ó múmias, ó gigantes mutilados, terras absurdas e quietas, colinas, mausoléus ,incógnitas e nós, bichos da terra, pitorescos, à procura”.

“A vida é numerosa. E então os sinos súbito anunciam em nós a morte,que virá. A morte vem. Cada dia, a morte vem”.

“A fé religiosa como que me assaltou. Vi-me subjugado pelo entusiasmo. A vida de rapaz que amava as letras e sabia de cor os seus poetas preferidos, a vida simples, descuidada, solitária, tantas vezes, de um rapaz estudioso (e reto) ganhou esse frêmito novo e desconhecido, essa audácia, essa loucura, essa vibração absurda”.

“Eu gostava das sublimidades. Eu queria as grandezas. Eu sonhava com alturas límpidas. Eu queria as nuvens. Muito menos, o duro chão dos homens”.

“O homem morre para sempre. O abismo da morte não devolve ninguém. E então, lentamente, fui percebendo que só nos resta uma atitude, menos que atitude, uma postura – a tranquila dignidade de quem sabe e não se desespera”.

“Ó interminável estrada, ó ruas do mundo, ó caminhos da vida, ó rio dos homens por onde incessantemente rolamos como gloriosos destroços !”.

“Ó caminhante sombrio e só ! Sempre sentiste o efêmero de tudo. Nunca pousaste, nem repousaste em nada. Nunca tiveste sossego. Foste sempre um peregrino em perigo”.

“Isto é apetecível, uma casa, com mulher e meninos, para a noite do homem. Nunca terás isto, ó incauto viajante, ó ser noturno, abandonado e trágico, nunca terás o limpo sossego dos homens. Não o terás, porque o recusas, ó louco, ó orgulhoso, ó só. Não conhecerás nunca a meiga tranquilidade dos serões sem agitação : viverás como um condenado, sem casa, entregue à nostalgia do paraíso absurdo, sem chave, sem nada. Caminharás sem fim. Nunca chegarás”.

Posted by geneton at 12:41 AM

outubro 02, 2009

JOEL SILVEIRA

“O CÚMULO DO RIDÍCULO, BEIRANDO O GROTESCO: UM MARMANJO GORDO E BARRIGUDO TOCANDO CAVAQUINHO…”

Pausa para um refresco. Recupero em meus Arquivos Implacáveis as anotações de um encontro com Joel Silveira, o maior repórter do Brasil. Voilà.

Eis a víbora:

esparramado numa poltrona na sala deste apartamento na rua Francisco Sá,quase no limite entre Copacabana e Ipanema, Joel Silveira acompanha com um certo ar de enfado o telejornal da TV a cabo.

O peso dos oitenta e três anos é visível no olhar mortiço. O aparente cansaço diante do desfile de horrores planetários e provincianos no telejornal não impede o velho repórter de soltar imprecações contra – por exemplo – Fernando Henrique Cardoso :

- É o tipo do presidente que sabe falar mas não sabe dizer. Fala mas não diz. Nunca vi falar tanto,sobre qualquer assunto. Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola. Tenho a impressão de que todo dia, ao acordar, logo de manhã, Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta : “Por favor,qual é o mote de hoje ?”. O assessor diz -por exemplo – “indústria siderúrgica”. E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo. Um dia depois, muda de mote. Assim por diante, até o fim dos tempos.

Não foi por acaso que Joel recebeu de Assis Chateaubriand o título de “víbora” : um de seus esportes prediletos sempre foi destilar veneno e ironia em doses industriais.

Num país em que tantos títulos são injustamente atribuídos , o rótulo inventado por Chateaubriand para definir Joel é um exemplo de justiça. Além do apelido de “víbora”, Joel carrega também um título que o acompanha há décadas – o de “maior repórter brasileiro”.

Poucos terão – como Joel – um texto que reúne com tanta maestria Jornalismo e Literatura. A nossa víbora descreveu assim a cena que viveu depois de sair do Palácio do Catete,no Rio de Janeiro,ao fim de uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas :

- “Lá para a meia-noite,entrei no Danúbio Azul,um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas,desde que existem mundo e manhãs de abril”.

Pergunta-se: em que jornal ou revista se lêem hoje textos dessa qualidade ? A resposta é um silêncio ensurdecedor. Joel pode exercer aqui e ali um lirismo que já rendeu páginas memoráveis, mas nunca abandonou o gosto pela maledicência. Adora falar mal de da fauna humana – aí incluídos personagens perfeitamente inofensivos, como, por exemplo, os alpinistas, os turistas e os tocadores de cavaquinho.

É pura implicância. Cheio de certeza,constata:

-“O cúmulo do ridículo, beirando o grotesco,é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”….

Adiante,pergunta, a sério:

-Pode existir coisa mais idiota do que um alpinista ? Por que é que eles não pegam um avião, meu Deus do céu ? Por que não vão de helicóptero ? Pra que subir naquelas montanhas, se eles poderiam ver tudo da janela de um avião, no maior conforto ?

Provoco a víbora. Quero saber quem ele não levaria sob hipótese alguma para uma ilha deserta, se fosse condenado a passar o resto da vida isolado do mundo:

- Eu não levaria João Gilberto de forma nenhuma, com aquele violãozinho, uma coisa horrorosa. Aliás,o melhor talvez fosse deixá-lo numa ilha deserta, sem violão ! Assim,eu poderia ir embora. Não entendo o fenômeno João Gilberto : é um dos mistérios que minha inteligência não consegue alcançar. Eu até me esforço para entender tanta idolatria, porque ,como sou repórter, gosto de saber das coisas. Mas confesso que não consigo.

Joel nunca morreu de amores por um ex-colega de redação que entraria para a galeria dos brasileiros notáveis do Século Vinte :

- Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues.Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação.Gosto da peça “Vestido de noiva”,mas a verdade é não nos entrosávamos. Uma vez,eu estava escrevendo alguma coisa – escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo. De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção,fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: “Patético !”. Em seguida,foi embora, em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever.Depois,disse,simplesmente : “Dramático ! ”. Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – “patético” e “dramático”.

Depois de seis décadas de jornalismo, que outros tipos a víbora Joel incluiria na galeria nacional do ridículo,além dos tocadores de cavaquinho gordos e alpinistas ?

- Eu incluiria o turista numa Galeria Internacional do Ridículo. Porque o turista é de um ridículo sem par. De bermuda, cheio de máquinas penduradas no pescoço, suando em bicas, é roubado a toda hora nos restaurantes. Ridículo é também o velho que quer parecer moço- aquele que pinta cabelo, rebola e faz uma operação plástica por mês.

Joel vai fazendo confidências nesta tarde em Copacabana. Diz, por exemplo, que ouviu uma confissão de fraqueza de um dos maiores cronistas já surgidos no Brasil, Rubem Braga – um amigo do peito que até hoje lhe dá saudade. Os dois – Joel e Braga – foram correspondentes de guerra na Europa. Joel resolveu dar de presente a Rubem Braga um exemplar de um livro clássico de Stendhal – “O Vermelho e o Negro” . Semanas depois,Braga confessa a Joel que não conseguira de forma alguma passar da página noventa e dois do livro.O motivo:

- Rubem me disse que tinha interrompido a leitura porque o livro tinha personagem demais.E ninguém ficava parado….

Joel confessa que nunca conseguiu chegar ao final de “Os Irmãos Karamazov”,a obra-prima de Dostoievski. Agnóstico,alista-se entre os que concordam sem vacilar com o que disse o poeta Murilo Mendes :

-Deus existe, mas não funciona.

Cinco da tarde. É hora de dar um descanso ao guerreiro.Depois de tanta pergunta,peço que a víbora responda a um mini-interrogatório.São apenas cinco as dúvidas que quero tirar. É claro que ele aceita a proposta.Lá vai:

1

GMN : Quem foi a celebridade mais idiota que o senhor conheceu ?

Joel : “Deus me perdoe,mas foi o Papa Pio XII.Fui a uma audiência com ele no Vaticano.Diante do nosso grupo ,ele disse :”Brasileiros ? O português é uma bela língua. “Sabia” é do verbo saber. “Sábia” é uma mulher inteligente.”Sabiá” é um pássaro”. Que idiotice !”.

2

GMN : Se fosse escrever uma autobiografia,que fato vexaminoso o senhor faria questão de esconder ?

Joel : “Uma vez,em Roma,depois da guerra,vi Ernest Hemingway tomando conhaque sozinho num bar que ele costumava freqüentar.Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo.Fui ao banheiro remoendo a dúvida.Quando voltei,ele já tinha ido embora.É um dos meus grandes fracassos profissionais.O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway.Nesse caso,pelo menos o lead estaria garantido”.

3

GMN : Se o senhor fosse nomeado ditador de Sergipe,qual a primeira providência que tomaria ?

Joel : “Proibir a entrada de João Gilberto no Estado. Já seria um bom começo.Não existe nada tão chato quanto a Bossa-Nova”.

4

GMN : Qual a cena mais grotesca que o senhor já testemunhou ?

Joel : “Não precisa ir longe.Basta desembarcar num boteco qualquer do Rio numa noite de sábado.Repito : não existe nada mais grotesco do que um sujeito barrigudo e suado tocando cavaquinho”.

5

GMN : De quem o senhor não compraria um carro usado ?

Joel : “Não quero parecer ranzinza,mas alguém pode me dizer para que servem os alpinistas ? Por que aqueles idiotas não pegam um avião para olhar as montanhas do alto,em vez de tentar a subida ridiculamente amarrados em cordas ? . Eu jamais compraria um carro de um alpinista.Não se pode confiar em seres que não têm senso de ridículo”

Posted by geneton at 12:41 AM

outubro 01, 2009

DUAS PERGUNTAS DEFINITIVAS. A PRIMEIRA É: “POR QUE SERÁ QUE ESTES BASTARDOS ESTÃO MENTINDO PARA MIM ?”

Entre um aeroporto e outro, em trânsito, o blogueiro amador lamenta informar que se encontra temporariamente vitimado pela SFT, a temível Síndrome da Falta de Tempo.

Mas, para não dizer que não assinei o ponto, repasso aos caríssimos frequentadores duas rápidas “pílulas de vida”.

A primeira é uma lição imortal, deixada por um jornalista inglês ( by the way : comparado, sob qualquer ângulo e qualquer parâmetro, com o que se faz no Brasil, o jornalismo que se pratica na Inglaterra, especialmente nos chamados “jornais de qualidade”, é uma humilhação impressa imposta diariamente a nós, brasilíndios. Não falo em qualidade industrial. Falo em qualidade editorial : as pautas, as sacadas, os títulos, os textos. Faça-se um teste. Pegue-se uma edição do Sunday Telegraph (disponível na Internet). Por contraste, pegue-se um jornal brasileiro qualquer. Agora, compare-se quanto tempo é necessário para ler um e outro. O resultado diz tudo. Assinado: um selvagem que, em matéria de imprensa, confessa-se um anglófilo de carteirinha).

Como eu ia dizendo antes de ser bruscamente interrompido por esta divagação anglófila:

um jornalista inglês chamado Louis Heren ouviu, no início da carreira, um conselho que fez questão de deixar registrada numa autobiografia.

O conselho deveria ser seguido ao pé-da-letra por todos os jornalistas, sem exceção, especialmente aqui no Brasil, a terra do tapinha-nas-costas e do compadrismo:

“Toda vez que estiver ouvindo presidentes e ministros, líderes sindicais ou empresários, iogues ou delegados de polícia, o repórter deve sempre perguntar a si mesmo: por que será que estes bastardos estão mentindo para mim ?”.

A outra pergunta aprendi com Paulo Francis. Se fosse capaz de articular uma frase cinco minutos depois de nascer, ele gostaria de ter perguntado aos presentes, ainda na maternidade:

“Quem disse que eu queria vir pra essa joça ?”.

É o que qualquer ser bípede também dotado de um par de neurônios deve se perguntar de quinze em quinze minutos, ao contemplar o Grande Circo Diário.

São duas perguntas definidoras. Uma vale para o jornalismo : por que será que estes bastardos estão mentindo pra mim ?

A outra vale para tudo: quem disse que eu queria vir pra essa joça ?

A boa notícia é que a procura por respostas para uma e para outra pode ser – e é – divertida.

Então, pé na estrada e velas ao mar ! Como diria o velejador que passeava inocente entre as ondas, sem enxergar o tsunami que se aproximava : tudo azul até agora.

Que assim seja.

Posted by geneton at 12:45 AM