setembro 29, 2009

DA SÉRIE CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS – 1

1: Um OVNI na boca do astronauta

Pode ter sido uma ilusão de ótica, mas tive a clara, nítida e inarredável impressão de que testemunhei uma cena estranha, em Brasília, durante a gravação de uma entrevista com um astronauta que pisou na lua: a arcada dentária superior do herói do espaço se moveu ligeiramente para frente, em meio a uma resposta.

Palpite :não eram dentes naturais. Dente não sai do lugar. Se os dentes se mexeram em bloco, o herói do espaço usava dentadura.

Há quem veja OVNIs no céu. Vi um OVNI – objeto voador não-identificado – logo ali, na boca do astronauta que pisou na lua.

O nome do herói do espaço era Edgard Mitchell, um dos astronautas da Apolo 14.

Ah, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, perdoai a indiscrição.

2: O bafo do Prêmio Nobel

Que as musas da literatura me perdoem, mas vou cometer uma indiscrição inútil, banal, desnecessária e dispensável : o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago exalava mau hálito quando me deu uma entrevista no Copacabana Palace.

Pronto. Contei.

Agora, disfarço, olho para o chão, saio da sala de fininho.

3. O chiclete invisível da Dama de Ferro

Tive uma vez a chance (fugaz) de dirigir a palavra à primeira-ministra britânica Margareth Thatcher (em breve, um post sobre o assunto). Vista a dois palmos de distância, a pele do rosto da chamada Dama de Ferro impressionava pela palidez. Os olhos eram de um azul fulminante. Mas um detalhe idiota me chamou a atenção: por alguma disfunção odontológica, compreensível numa senhora de idade, a Dama de Ferro de vez em quando movimentava estranhamente as mandíbulas, como se estivesse mastigando um chiclete invisível. Não era chiclete, óbvio. Era um tique da velhice. O tempo passa.

4.Um mico num quarto de hotel, em nome da fé e dos olhos de Darlene Glória

A atriz Darlene Glória era um símbolo sexual indiscutível nos anos setenta. Brilhou em “Toda Nudez Será Castigada”, a versão cinematográfica que Arnaldo Jabor concebeu para a peça de Nelson Rodrigues. Um belo dia, jogou a carreira para o alto para se converter de corpo e alma à fé religiosa. Virou pregadora fervorosa. Apareceu no Recife para fazer sermões. Fui entrevistá-la, com três parceiros jornalistas.

A musa nos recebeu no quarto num quarto do Hotel São Domingos. Estava linda. Terminada a entrevista, ela me olhou nos olhos e disse: “Eu estou notando, nos seus olhos, que você precisa de Deus!”. Convocou, então, a pequena troupe de entrevistadores a fazer uma oração, em círculo, no centro do quarto. Eu não tinha ido ali para rezar, mas para fazer uma entrevista. Mas não tive como negar o convite. Olhei para o chão e, por ordem da pregadora, comecei a rezar - de mãos dadas logo com quem : com ela, Darlene Glória, minha musa das telas do cinema. Jamais imaginei que um dia estaria de mãos dadas com a musa de Toda Nudez Será Castigada num quarto de hotel. Mas estive, na circunstância mais solene possível.

C´est la vie.

5. Meu ídolo de infância responde : não

Uma das lembranças imbatíveis de minha infância : ver as comédias estreladas por Jerry Lewis nas matinês. Décadas depois, o meu ídolo passa por Londres, para uma curtíssima temporada num teatro. Vi a peça. O Jerry Lewis que subiu ao palco do teatro não fazia concessões ao Jerry Lewis que fazia palhaçadas impagáveis nas telas: nada de contorcionismos impagáveis nos músculos do rosto, nada do ar abobalhado, nada de olhares enviezados. Por um breve momento, fez um trejeito que lembrava o Jerry Lewis do cinema. A platéia veio abaixo. Tento uma entrevista com o homem pelos meios civilizados: um fax para a assessoria. Resposta seca: não, Jerry Lewis não vai dar entrevista ao senhor. Ponto. Sucintamente, o motivo: ele só falaria com jornalistas que escrevessem para o público que pudesse ir ver a peça. Não era o caso de um repórter de um país distante. Brasil ? Não, neca, não interessa. Pode tirar o time de campo.

Tirei.

Acrescentei o verbete “Lewis, Jerry” à minha Enclopédia de Entrevistas Perdidas.

Novas confissões inconfessáveis em breve – ou a qualquer momento, em edição extraordinária.

Posted by geneton at 12:45 AM

setembro 28, 2009

FERNANDO GABEIRA

UMA “PROVOCAÇÃO” DE GABEIRA CONTRA UM TABU DA ESQUERDA: POR QUE É QUE NINGUÉM É CAPAZ DE PARTICIPAR DE UMA MANIFESTAÇÃO EM HOMENAGEM A UM POLICIAL MORTO EM SERVIÇO?

O repórter-que-vos-fala gravou uma longa entrevista com o ex-guerrilheiro Fernando Gabeira. O regime foi de esforço concentrado: seis horas quase sem interrupção. O depoimento serviu como balanço da trajetória de uma geração que, entre erros monumentais e acertos indiscutíveis, tentou mudar o Brasil. Ponto. Parágrafo.

Um pequeno esclarecimento à praça: não tenho qualquer vinculação política ou partidária com Fernando Gabeira. Meu interesse na gravação do depoimento que terminou virando livro (“DOSSIÊ GABEIRA : O FILME QUE NUNCA FOI FEITO”) foi puramente jornalístico. Sou do Partido dos Perguntadores do Brasil. That´s all.

O blog já teve a chance de tratar de uma das revelações feitas por Fernando Gabeira na entrevista: a participação do ator Carlos Vareza na operação para disfarçar guerrilheiros que tinham sequestrado o embaixador.

A certa altura do depoimento publicado,na íntegra, no “DOSSIÊ GABEIRA”, o ex-guerrilheiro lança uma “provocação” : por que, até hoje, ninguém se mostra disposto a participar de uma manifestação a favor de um policial morto em serviço, por exemplo ? Quem vai transformar em tema de denúncia a indiscutível opressão e o domínio territorial exercidos por criminosos contra populações das grandes cidades ?

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Fernando Gabeira : provocações no depoimento (Foto:Editora Globo)

Eis uma pergunta e uma resposta do longo depoimento:

GMN: Em Diário da Salvação do Mundo, você fez uma espécie de profissão de fé otimista: “Entre falar das misérias do presente e do potencial do futuro, talvez seja melhor optar por este último, localizar os pontos mais positivos do cotidiano, projetá-los para a frente, compreender que, por pior que seja a vida, o desejo de mudá-la significa a introdução de um elemento subjetivo novo, cuja simples existência é um dado de felicidade num vale de lágrimas”. Quais são os “pontos mais positivos do cotidiano” que Gabeira identifica no Brasil de hoje, quarenta anos anos depois de 68?

Fernando Gabeira: “O primeiro ponto é o aprofundamento da democracia que, hoje, no Brasil, é muito mais sólida do que no passado. É mais sólida do que em países vizinhos. Demos um grande passo, como se estivéssemos coroando um caminho de duzentos anos em busca da democracia”.

“A justiça social sempre foi um grande desejo. O Brasil é um país que vive, ainda, com uma grande disparidade de rendas e de recursos. Mas é uma disparidade que nos últimos anos foi combatida – no governo de Fernando Henrique e, mais acentuadamente, no governo Lula”.

“A luta sobre direitos humanos é permanente. O trabalho de direitos humanos no Brasil quer proteger o indivíduo contra a violência do Estado, como, por exemplo, no caso da menina que foi deixada numa cela no Pará ao lado de presos comuns. Eis um caso típico de direitos humanos desrespeitados pelo Estado”.

“Ao longo desse período, no entanto, formou-se um crime organizado que exerce domínio territorial sobre parte das cidades e pratica uma grande opressão sobre os moradores. Não tivemos a capacidade de incluir esta questão na agenda dos direitos humanos !”

“Vem daí a grande dúvida da sociedade sobre a nossa sinceridade: “Vocês só trabalham quando se trata de um indivíduo atingido pelo Estado ? Por que não trabalham quando se trata de um indivíduo atingido pelo crime organizado ?” É uma lacuna que terá que ser respondida de alguma forma”.

O ex-guerrilheiro quer saber por que ainda hoje não há a “mínima possibilidade” de fazer campanha contra a prisão de intelectuais em Cuba, por exemplo

“Há resistência, por exemplo, na hora de aderir a uma manifestação pela morte de um policial que tenha perdido a vida em serviço. É algo que não existe hoje, ainda, no movimento de direitos humanos. Mas o movimento cresceria se pudesse se reaproximar da sociedade”.

“O que a sociedade diz é claro. É o que ela diz historicamente para a esquerda: “Direitos humanos existem dos dois lados!”. A esquerda é hábil em discutir direitos humanos quando se trata de um desrespeito cometido por um país capitalista, mas, quando se trata de um desrespeito em um país socialista, o silêncio baixa”.

“Quando houve o caso da prisão de setenta e tantos intelectuais em Cuba, tentei fazer uma campanha aqui. A repercussão era mínima: não havia nenhuma possibilidade de criar um verdadeiro movimento de solidariedade àqueles intelectuais” .

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PS: Pausa para uma divagação jornalística. A trajetória acidentada de Fernando Gabeira desde os tempos da luta armada contra o regime militar é jornalisticamente interessante. Promessa: se um dia eu achar que uma história tão atribulada quanto a de um jornalista que resolveu participar da guerrilha contra o regime militar não é jornalisticamente interessante, prometo que terei a “clarividência” de guardar a viola, apagar a luz do meu palco mambembe e ir plantar pitanga em algum sítio da zona rural de Santa Maria da Boa Vista. Se todo jornalista burocrata fizesse ao planeta o imenso favor de abandonar imediatamente a profissão para ir plantar pitanga num sítio remoto, a imprensa seria dez,vinte, cem vezes mais interessante. Mas, não. Nossa imprensa é “previsível, empolada, chata – meu Deus, como é chata”, para repetir as palavras de São Paulo Francis. Faz parte do folclore jornalístico : desde o tempo dos dinossauros, as redações sempre estiveram povoadas de jornalisticidas, os imbatíveis assassinos do jornalismo, gente especializada em tornar cinzento, burocrático e entediante tudo o que poderia ser vívido, interessante e envolvente. Lástima, lástima, lástima. Fraude, fraude, fraude. Fim da divagação).

Posted by geneton at 12:49 AM

setembro 26, 2009

PAUL JOHNSON

OS ESTILISTAS TRANSFORMAM AS MULHERES “EM MACACAS”. E A MENTALIDADE POLITICAMENTE CORRETA É UM NOVO TIPO DE “TOTALITARISMO” (PAUL JOHNSON DISPARA CHUMBO GROSSO, NA ENTREVISTA QUE PAULO FRANCIS NÃO TEVE TEMPO DE FAZER)

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Paul Johnson: a fera do Tâmisa (Imagem:Paulo Pimentel/TV Globo)

Faço um ranking imaginário. Qual terá sido a declaração mais “politicamente incorreta” que já tive a chance de ouvir de um entrevistado ?

Uma candidata forte a levar a medalha de ouro: a declaração que um dos mais polêmicos intelectuais britânicos, o historiador Paul Johnson, fez sobre os estilistas, costureiros e assemelhados, numa longa entrevista que gravei com ele em Londres.

Em resumo: Johnson diz que, por serem majoritariamente homossexuais, os estilistas criam vestimentas ridículas que só servem para transformar as mulheres em “macacas”. O pior: as mulheres se prestam a este papel.

Uma registro dos bastidores: quem deveria ter feito a entrevista com Paul Johnson era Paulo Francis – sim, ele, o lobo hidrófobo. De passagem pelo escritório da TV Globo em Londres, Francis estava à procura de entrevistados para o programa “Milênio” da recém-inaugurada Globonews. O prédio onde funciona a Globo, ao final de uma rua sem saída chamada Oval Road, em Camden Town, é uma construção de tijolos aparentes que, por algum motivo que só Freud explicaria, me lembra o Depósito de Livros Escolares do Texas. Por sorte, nenhum Lee Harvey Oswald apareceu por lá.

Fiz um punhado de sugestões. Francis aceitou imediatamente a proposta de entrevistar Paul Johnson. Ampliados por uma lente fundo de garrafa, os olhos míopes e azuis de Francis bilharam. O encontro Francis x Johnson seria um choque de monstros: o encontro entre o Lobo Hidrófobo (Francis) e a Fera do Tâmisa ( Johnson). Eu faria questão de assistir à contenda de camarote.

Fiz a sugestão. Paulo Francis topou. O entrevistado seria Paul Johnson. Ia ser encontro do Lobo Hidrófobo com a Fera do Tâmisa. Desgraçadamente, Francis não teve tempo de voltar a Londres. Resultado: Bibiu entrou em campo no lugar de Pelé.

Havia pontos em comum entre a trajetória dos dois. Paul Johnson também tivera um passado de esquerda. Virou um conservador de carteirinha. Orgulhava-se de jamais ter pousado os pés num concerto de música pop, por exemplo. Tinha horror a ícones como Picasso. Motivo: as simpatias comunistas do artista. Aqui e ali, lembrava Paulo Francis.

Nesta passagem por Londres, Francis dizia-se orgulhoso de uma declaração que fizera no Brasil: numa entrevista à TV, dissera que se sentia “tecnicamente morto” numa sociedade dominada pela vulgaridade. Pergunta-se: o que Francis diria hoje ao ver idiotas marombados e louras oxigenadas trocando grunhidos em rede nacional?

Francis viajou para Nova Iorque em seguida. Ficou de voltar a Londres, como sempre. Poucos meses depois, no dia quatro de fevereiro de 1997, morreu fulminado por um ataque cardíaco, num início de manhã, no apartamento em que morava em Nova Iorque. Não teve tempo de fazer a entrevista que eu sugerira.

Por artes do destino, coube a mim a tarefa de entrevistar Paul Johnson. Sem falsa modéstia: eu me senti como se fosse Bibiu, ex-zagueiro-central do Sport Clube do Recife, entrando no lugar de Pelé. A vida pode ser cruel com o jornalismo. Ali,foi. Com toda certeza, o encontro de Paulo Francis com Paul Johnson produziria um diálogo de altíssimo nível. Minha entrevista com Paul Johnson produziu declarações interessantes - o mínimo que um repórter espera colher de um interrogatório. Paul Johnson tinha aceitado o pedido de entrevista. Alguém precisava entrevistar o homem. Desgraçadamente, Paulo Francis estava morto. Cumpri a tarefa na medida de minhas possibilidades. Assim caminha a humanidade.

Eis a entrevista que Paulo Francis não teve tempo de fazer:

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O intelectual Paul Johnson já foi chamado de reacionário, direitista, manipulador, antiquado, intransigente, preconceituoso e tarado

Defensores da mentalidade politicamente correta,tremei. Paul Johnson vem aí. Os fãs da fera o consideram um dos mais brilhantes historiadores britânicos. Os detratores ficam horrorizados quando lêem os freqüentes petardos que ele dispara contra, por exemplo, a arte moderna.

Colunista da revista Spectator,colaborador do Daily Telegraph, Paul Johnson pode ser acusado de tudo, menos o de ser um historiador pouco ambicioso : depois de escrever “A História dos Judeus”, mergulhou na fundo tarefa de produzir “A História do Cristianismo”.

Paul Johnson é um caso clássico de intelectual que nunca teve medo de nadar contra a corrente. Minorias que se julgam perseguidas devem ou não ser criticadas ? Devem, sim, responde a Fera do Tâmisa.

Picasso é um grande artista ? Não é não – brada Johnson, autor de um livro de ensaios chamado “To Hell With Picasso” (algo como “Que Picasso vá para o Inferno”). Picasso – garante ele – não passa de um stalinista que apoiou um regime totalitário.

A flexibilidade de conceitos morais é uma conquista do pensamento do século XX ? Não é, nunca foi nem poderia ter sido – rebate o impaciente Johnson. O relativismo moral –diz ele – é uma praga que faz os ingênuos acreditarem que não existe nada que seja absolutamente condenável.

As universidades ? Não passam de “fábricas de ignorantes”

Conservador assumido, crítico feroz da arte moderna, pintor nas horas vagas, religioso praticante e alpinista amador, Johnson é um polemista profissional. Faz parte de uma tribo minoritária: a dos intelectuais que não temem dar opiniões aparentemente fora de moda, fora de lugar e fora dos manuais de “bom comportamento” ideológico.

Johnson já foi chamado de reacionário, direitista, manipulador, antiquado, intransigente, preconceituoso: é uma espécie de Paulo Francis às margens do Tâmisa. O incômodo que Francis sentia deve ser igual ao sentimento de inadaptação que abastece a ira de Johnson contra a mediocridade, as nulidades e a empulhação.

As universidades, tidas por tantos como templos intocáveis do saber, se transformaram em centros de intolerância, irracionalidade, extremismo e preconceito. São fábricas de ignorantes, uma empulhação custosa, na avaliação devastadora de Johnson.

Orgulha-se de jamais ter-se dado ao trabalho de ver um show de música pop ou um jogo de futebol. Opiniões assim renderam a ele uma coleção de críticos e detratores. Mas ele não parece disposto a dar trégua.

Paul Johnson vem se ocupando da morte de Deus, o grande fato que não aconteceu no século vinte. Grandes tragédias do século XX, como o extermínio de seres humanos em escala industrial nos campos de concentração, poderiam ter contribuído para abalar a fé dos homens em Deus. Mas Paul Johnson diz que a ocorrência de tragédias terminou, paradoxalmente, reforçando a fé. Os descrentes procuraram proteção e consolo na idéia de Deus, porque o culpado de tudo é, como sempre, o homem.

“Ao contrário do que se esperava – festeja Johnson -, este não foi o primeiro século do ateísmo”.

“O relativismo moral afirma que todo bem ou todo mal é relativo. Acontece que há coisas que são absolutamente certas e coisas que são absolutamente erradas, sim!”

Quando o século XIX acabou, todo mundo esperava que a ciência iria tomar, de uma vez por todas, o lugar da fé. O avanço do conhecimento científico destruiria a idéia de que um Deus,seja qual for, existe. Um século depois,essa previsão falhou.

Nesta entrevista,feita em Londres,a Fera do Tâmisa ruge contra a mentalidade politicamente correta,a arte moderna e o relativismo moral.

Gravando !

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GMN : Qual foi o pecado capital do século XX ?

Paul Johnson : “É o que chamo de relativismo moral : a negação de que haja valores absolutos. Acontece que há coisas que são absolutamente certas e outras que são absolutamente erradas,sim !. O relativismo moral afirma – pelo contrário – que todo bem ou todo mal é relativo.Todos os valores seriam relativos, portanto. Vejo o relativismo moral sob toda maldade totalitária e todo tipo de pecado do século XX. Precisamos voltar -acho que já estamos voltando- a cultivar valores absolutos”.

GMN : O senhor diz que já não há uma idéia absoluta sobre o que é errado e o que é certo. Pode dar um exemplo do que é certo e do que é errado,no mundo de hoje ?

Paul Johnson : “O exemplo mais comum é o da sexualidade humana. A maioria das pessoas da minha geração – que viveu a década de trinta – foi educada para acreditar que havia certos e errados absolutos na sexualidade humana. É um fato que o relativismo moral esconde e ofusca. Crianças de hoje não aprendem que há certos e errados ! Aprendem que devem fazer o que os outros fazem. Isso é relativismo moral ! É um grande mal. Devemos lutar contra ele”.

“A pior idéia do Século XX é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos”

GMN : O senhor se declara um combatente na guerra das idéias. Qual foi a pior e a melhor idéia política do século XX?

Paul Johnson : “A pior idéia – que começou antes da Primeira Guerra, ainda por volta de 1910 – é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos. Mas há poucas coisas em que o Estado é melhor que o indivíduo. A verdade é que a idéia de que o Estado age bem é a pior de todas. Aprendemos agora esta lição. A melhor idéia é a seguinte : sempre que possível, os indivíduos devem ser deixados sós para fazerem o que puderem com os próprios recursos. Quanto maior a liberdade, maior a justiça, maior a eficiência e maior a felicidade humana.

O Brasil é um desses países que têm um futuro incrível. Chegará a esse futuro, dourado e glorioso, se acreditar mais em liberdade individual e menos no Estado”.

GMN : Por que o senhor diz que a mentalidade politicamente correta é uma nova forma de totalitarismo?

Paul Johnson : “Não gosto que venham me dizer como pensar, que palavras e expressões devo ou não usar. Para mim, esta é a origem do totalitarismo. Hoje,o totalitarismo vem começando de novo, no campus das universidades, nos Estados Unidos, sob o disfarce politicamente correto. Temos de lutar – muito ! – contra este fenômeno, antes que o totalitarismo disfarçado de posições politicamente corretas se estabeleça de verdade”.

“Picasso não lutava contra o totalitarismo. Ficou ao lado da União Soviética totalitária durante quase toda a vida. É um escândalo!”

GMN : Quanto o senhor pagaria por um quadro de Picasso? Por que o senhor é tão rigoroso na hora de julgar mestres da arte moderna, como Picasso e Cézanne?

Paul Johnson : “A arte precisa ter um propósito moral. Acontece que nunca pude detectar qualquer propósito moral claro na obra de Picasso. Era um homem perverso e imoral. Não vejo, em nenhuma de suas obras, um esforço para mostrar a arte com um propósito moral. Tal esforço é a essência do grande artista. Então, desconsidero Picasso completamente”.

GMN : A obra mais famosa de Picasso, “Guernica”, é uma denúncia contra a violência do totalitarismo. Por que é,então,que o senhor diz que não havia nenhum sentido moral na obra de Picasso?

Paul Johnson : “Porque Picasso não lutava contra o totalitarismo ! Picasso não era comunista : era stalinista ! . Ficou do lado da União Soviética totalitária, durante quase toda a vida. É um escândalo ! Não acreditava na liberdade, exceto para si próprio”.

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GMN : O senhor diz que a religião aprendeu a absorver todos os impactos da ciência. Agora que até seres humanos podem ser criados em laboratório, o senhor acredita que a fé religiosa vai sobreviver?

Paul Johnson : “A rapidez no avanço da ciência, especialmente nas ciências da vida – aquelas que afetam os seres humanos – vem tornando a religião mais importante do que nunca. Porque, em cada estágio do avanço da ciência, devemos trazer Deus à discussão. Devemos dizer: “Isso é moral? É Justo? É algo que se encaixa no plano divino para a Humanidade? Ou é algo que vai contra ele?”. O fator “Deus” na ciência é,hoje,mais importante do que nunca”.

Uma prova da existência de Deus, para Paul Johnson: testemunhar o alvorecer, a bordo de um avião, a doze mil metros de altura

GMN : Um astronauta, que é um homem da ciência, diz que procurou sinais de Deus numa viagem pelo espaço, mas não encontrou nada. Que argumento o senhor usaria para convencer este astronauta de que,por trás do vazio do espaço, existiria um Deus?

Paul Johnson : “Quando nos deparamos com um evento científico supremo, o modo de reagir a ele é uma questão de imaginação. Quando Robert Oppenheimer viu a primeira Bomba H explodir, em Alamos, ele citou Bhagavad Gita: “Eu me tornei a morte, o destruidor de mundos”. Um homem pode ver algo miraculoso ou científico, sem que tenha reação alguma. Se ele for um homem de grande imaginação, pode ter uma enorme reação. Quando, a bordo de um avião, a cerca de doze mil metros de altura, vejo o amanhecer, esta cena, para mim, é uma revelação da existência de Deus. De qualquer maneira, não preciso estar no espaço para fazer esta constatação. A maioria das pessoas,igualmente,não precisa : basta que tenham imaginação para que Deus venha à tona”.

GMN : O senhor consegue irritar as feministas e os esquerdistas com suas opiniões. Os dois são seus inimigos prediletos?

Paul Johnson : “Não sou, certamente, um inimigo das feministas. Sou pró-mulher : acredito que o século XXI será o século das mulheres. Dei palestras em Londres para milhares de senhoras japonesas : disse que elas têm o dever de tomar o poder que hoje parece disponível para elas no Japão – que era uma sociedade muito machista. Sou muito a favor das mulheres. Quanto à esquerda, não gosto de dividir pessoas em setores rígidos – esquerda e direita. Posso até dizer que sou radical – especialmente nas questões femininas, por exemplo. O meu ponto-de-vista é o de que todos os assuntos devem estar abertos à discussão. Não estou do lado da esquerda ou da direita : estou do lado da razão e da justiça”.

GMN : Por que o senhor diz que a esquerda tenta deixar os outros deprimidos? O senhor tem tomado Prozac?

Paul Johnson : “Não estou de forma alguma deprimido! O século XX foi,como um todo, um fracasso horrível. Mas aprendemos muitas lições. Não estou nem um pouco deprimido : Tenho uma imensa confiança : previa-se que Deus desapareceria da vida das pessoas. Mas Deus estará forte e vivendo nos corações de bilhões de homens, mulheres e crianças. É uma constatação que me torna o contrário de um deprimido: eu estou otimista”.

“Os estilistas, principalmente porque, na maioria, são homossexuais, transformam as mulheres em macacas”

GMN : Se é verdade que a idéia de Deus sobreviveu, quais são os três argumentos que o ssenhor usaria para convencer um ateu a acreditar em Deus?

Paul Johnson : “A primeira razão é a verdade. Deus existe – e a verdade é mais importante do que tudo. A segunda é a felicidade: com Deus, estamos mais felizes, mais satisfeitos, mais seguros do que sem Deus. A terceira razão : sob o ponto-de-vista puramente social, um mundo em que Deus fosse amplamente acreditado e respeitado seria um mundo muito mais seguro e melhor”.


GMN : O senhor diz que a moda é uma conspiração de costureiros para ver até onde eles podem forçar as mulheres a fazer macaquices. A moda é um sintoma da decadência?

Paul Johnson : “Não há nada de novo nesse fenômeno. A “alta moda de Paris” existe desde 1850 : é um século e meio de vida. Os estilistas –principalmente porque, na maioria, são homossexuais – sempre transformam as mulheres em macacas. Acham que as mulheres aceitarão o que eles fazem. As mulheres – não apenas as ricas – compram as roupas oferecidas pelos estilistas. Há coisas idiotas. Como essas roupas são fabricadas em massa – e levadas às lojas – não apenas as mulheres ricas,mas também as mulheres comuns, usam o que esses estilistas produzem. As mulheres é que escolhem. Ninguém faz uma mulher vestir roupas idiotas se ela não quiser”.

GMN : Quem será a próxima vítima de Paul Johnson ?

Paul Johnson : “Quero levar ao Parlamento uma lei de privacidade que impeça a mídia de invadir a privacidade alheia. Ingleses e americanos não têm essa lei. Quero que a Inglaterra tenha”.

GMN : É possível resumir o Século em uma só palavra?

Paul Johnson : “Não em uma palavra, mas em uma frase: “O Século XX foi um desastre total,suavizado pela capacidade humana de aprender lições da História”.

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Paul Johnson por Paul Johnson :

“De todas as calamidades que se abateram sobre o Século XX, além das duas guerras mundiais, a expansão da educação universitária nos anos cinquenta e sessenta é a mais duradoura. É um mito a crença de que as universidades são o berço da razão. São o abrigo de todo tipo de extremismo, irracionalidade, intolerância e preconceito; um lugar onde o esnobismo intelectual e social é propositadamente instilado e onde professores passam para os estudantes os seus próprios pecados de orgulho”.

“A nova forma de totalitarismo – a Mentalidade Politicamente Correta – é, inteiramente, uma invenção universitária”.

“O que me provoca reflexões sombrias é a lembrança de todo o desperdício produzido pelo modernismo. Perdemos duas gerações – meio-século- na busca pela feiúra. Talentos da pintura, desenho e escultura se perderam”.

“Nunca fui a um concerto de música pop ou a um jogo de futebol, nunca acompanhei novela de TV, nunca vi “A Ratoeira” ou “E o Vento Levou”, nunca concluí a leitura de “Em Busca do Tempo Perdido”, nunca li a revista “The Economist” ou “Time Out”, nunca tive um carro, nunca passei do limite da conta bancária, nunca compareci a tribunal. Ninguém nunca me ofereceu drogas, convidou-me para uma orgia ou me vendeu um contraceptivo. Jamais tive a menor vontade de possuir um quadro de Picasso, ter uma Ferrari, vestir um Armani ou morar em Aspen”.

“Jamais matei um peixe,cacei uma raposa ou esmaguei uma aranha – se bem que, uma vez,tentei esmagar uma tarântula no Recife”

“Já fiz Charles de Gaulle se benzer, Churchill chorar e o Papa sorrir”

“Considero-me um típico inglês do meu tempo, classe e idade, cujos pontos-de-vista,simpatias e antipatias são compartilhadas com multidões. Posso estar errado a esse respeito.Quando perguntada o que pensa sobre mim,minha mulher Marigold respondeu : “Difícil”.

(Trechos de “To Hell With Picasso”;Editora Weidenfeld & Nicolson,Londres)

Posted by geneton at 01:01 AM

setembro 24, 2009

INGLESES PEDEM O INÍCIO DE UMA NOVA GUERRA DAS MALVINAS (MOTIVO:”JÁ QUE VAMOS PERDER MESMO A PRÓXIMA COPA DO MUNDO, É MELHOR ARRANJAR LOGO ALGUMA COISA PARA COMEMORAR”)

Desde que a praga politicamente correta tomou de assalto as mentes simplistas, pega mal dizer que o feio é feio, a gorda é gorda, o negão é negão, o gay é gay, o branquelo é branquelo, o burro é burro, o bêbado é bêbado, o idiota é idiota.

Qual é o problema? “Pega mal” dizer que um cego não pode ser fotógrafo. Mas peço licença à patrulha para dizer: não pode! Vi outro dia um fotógrafo cego pontificando na TV sobre enquadramento. Falava francês, claro ( não há língua que se preste tanto a imposturas intelectuais). Cego falando de fotografia é algo tão grave e despropositado quanto este locutor participando de desfile de moda. Não há qualquer desrespeito na constatação do absurdo.

Fiz ao meu demônio-da-guarda a pergunta que todos fazem na surdina : por que é que o fotógrafo ceguinho não arranja outra profissão ? Por que não aprende música ? Por quê ? Por que precisa aparecer na televisão falando de enquadramento fotográfico ? Por quê ? Por quê ? O demônio-da-guarda se quedou silente.

Diante da mudez do bicho, desisto de lançar perguntas ao vento sobre o fotógrafo ceguinho e a miríade de personagens absurdos que compõem, com ele, o elenco desta nossa grande comédia de erros. Quem sabe, o melhor é deixar que o circo planetário siga adiante, sem ser importunado.

Dupla de escritores declara guerra contra os idiotas politicamente corretos

Mas…vasculho meu Museu de Miudezas Efêmeras ( era assim que Jorge Luís Borges definia os jornais) em busca de um relato sobre dois ingleses que, faz algum tempo, lançaram um livro para provocar a estupidez politicamente correta reinante. Voilà:

Defensores dos bons costumes e das boas maneiras, fiquem alertas. Militantes da mentalidade ”politicamente correta”, saiam da frente. Mal-humorados que levam tudo a sério, preparem o estômago.

Porque desembarcou nas livrarias da Inglaterra um dos mais ”politicamente incorretos” textos já produzidos. Não por acaso, a obra se chama ”O Manual Oficial do Politicamente Incorreto”(”The Official Politically Incorrect Handbook”).

Os autores : dois escritores “free-lancers” ingleses, chamados Mark Leigh e Mike Lepine. A editora : Virgin Books.

A missão : demonstrar aos incrédulos que,ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, a Inglaterra não parece disposta a tolerar os excessos da mentalidade politicamente correta.

Os defensores da mentalidade ”politicamente correta”, como se sabe, condenam todo e qualquer gesto que possa ser visto como remotamente ofensivo contra quem quer que seja. A intenção pode até ser louvável. O problema é que o temor de ferir susceptibilidades alheias terminou criando exageros. Piadas sobre minorias ? Nem pensar ! Resta uma pergunta : onde é que fica o senso de humor – uma instituição secularmente cultuada na Grã-Bretanha ?

Com o lançamento do livro da dupla Leigh & Lepine,os ”politicamente incorretos” lançam um novo – e bem-humorado- golpe contra os militantes radicais da pretensa correção política. Sem medo das patrulhas politicamente corretas,os dois ingleses reúnem, em 271 páginas, opiniões,tiradas e comentários que farão corar de raiva os apóstolos do ”politicamente correto”.

A África -por exemplo- serve para quê ? ”Para preencher o espaco vazio entre a América do Sul e a Índia e como cenário de filmes de Tarzan” – escreve a dupla.

Por que a arte moderna é uma porcaria ? “Qualquer coisa que nos parece melhor quando estamos bêbados é suspeita”

O manual traz uma variadíssima lista de afirmações politicamente incorretas, seguidas de uma justificativa. A dupla pede, por exemplo, uma nova Guerra das Malvinas, entre Inglaterra e Argentina. Como se sabe, os ingleses venceram a Guerra das Malvinas, em 1982. Houve festa em Londres, na volta das tropas que tinham sido enviadas à América do Sul para retomar o domínio britânico sobre as ilhas, invadidas por militares argentinos).

Eis uma amostra das estocadas politicamente incorretas da dupla inglesa:

1.”Por que é hora de comecar logo uma nova Guerra das Malvinas? Como a gente vai perder mesmo a próxima Copa do Mundo,então é melhor arranjar logo alguma coisa para comemorar”.

2.”Por que estudar matemática na escola é uma completa perda de tempo? Ninguém jamais ficou rico por saber calcular o mínimo denominador comum”.

3.”Por que é tão bom ser estúpido? Porque um estúpido sempre encontrará o que ver na televisão”.

4. ”Por que a guerra é melhor que a paz? Dê um pulo no vídeo-clube.Quantos filmes de paz existem lá ?”.

5. ”Por que o sexo feminino é inferior? Tente se lembrar do nome de uma batalha importante vencida por uma mulher….”

6.”Por que a França pode continuar a fazer testes nucleares no Pacífico? Porque seria uma completa irresponsabilidade fazer os testes no centro de Paris”.

7.”Por que é bom frequentar prostitutas? Porque,na hora H,elas dizem coisas como ”oh,baby !”,”oh,sim,sim !”,em vez de ”você levou o gato pro quintal ?”.

8.”Por que é indispensável ver o discurso de Rainha na televisão no Dia de Natal? É uma excelente oportunidade para toda a família ir ao banheiro,antes de começar a ver,pela quinta vez,os ”Caçadores da Arca Perdida”.

9.”Por que ninguém deve se preocupar com a poluição das águas? Porque não vivemos nos rios”.
10.”Por que é perfeitamente aceitável usar casaco de pele? Todos os animais usam.Ninguém nunca reclamou”.

11.”Por que é bom ser um branco anglo-saxão? A polícia nunca dá em cima de você”.

12.”Por que precisamos dos políticos? Porque,quando nos comparamos com eles,nos sentimos honestos e virtuosos”.

13.”Por que que é bom ensinar religioes alternativas nas escolas? Porque assim saberemos que não estamos perdendo nada.Além de tudo,cânticos e rezas de outros povos sao em geral hilariantes…”.

14.”Por que a Inglaterra deve gastar mais dinheiro recrutando soldados para o exército do que contratando médicos para os hospitais publicos? A Rainha ia achar um tédio passar em revista uma tropa de especialistas em ouvido,nariz e garganta…”.

15.”Por que a arte moderna é uma porcaria? Qualquer coisa que parece melhor quando estamos bêbados do que quando estamos sóbrios é suspeita. Além de tudo,um tijolo é um tijolo : qualquer criança de cinco anos sabe. E um carneiro morto é um prato : nao é um objeto de arte”.

16.”Por que a Previdência Social deve financiar as operações para aumentar os seios,em vez de gastar dinheiro com transplantes? Porque, ao contrário do que acontece com os seios, os homens jamais poderão enfiar o rosto entre rins transplantados e dizer ”glub,glub,glub”.

17.”Por que o Império Britânico era bom? Se o império não tivesse existido,o Cinema Império,no centro de Londres,provavelmente se chamaria hoje Odeon,o que criaria confusão no público,porque já existe um outro Cinema Odeon na cidade”.

18.”Por que o Budismo jamais pegará na Inglaterra? Porque os ingleses acham que é melhor ir para o inferno do que viver aqui por não sei quantas encarnações”.

19.”Por que os castigos corporais devem ser adotados novamente na Grã-Bretanha? Poderemos gravar os castigos e vender as fitas todas para a Alemanha”.

20.”Por que as companhias não devem dar emprego a ninguém com mais de sessenta anos? Porque os aparelhos de surdez podem causar interferências nos sistemas de alarme contra incêndio”.

Antes de comecar a entrevista, Mike Lepine pediu licença para cometer o que chama de ”um ato politicamente incorreto” : acender um cigarro. O ”Manual Oficial do Politicamente Incorreto” pretende fazer o público rir,mas há um traço sério na obra:

-”A propagação da mentalidade politicamente correta me faz lembrar o livro ”l984”, em que George Orwell fala da manipulação das palavras através da criação de um novo idioma – a ”novilíngua”. É o que os politicamente corretos estao fazendo, na prática : querem mudar nossa maneira de pensar mudando as palavras. Mas não queremos ser manipulados por eles !”.

Uma constatação: a mentalidade politicamente correta é nociva porque não permite que se façam julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim. Mas os “padrões de julgamento” são necessários

O politicamente incorreto Lepine admite que a mentalidade politicamente correta ”pode até ter bons aspectos. Ninguém obviamente quer viver num mundo em que uns odeiem os outros. Ninguém – diz Lepine – quer racismo ou sexismo. O problema é como os politicamente corretos atuam : terminam se tornando, eles proprios, ofensivos ! . A correção política é uma camisa de força . Os adeptos desta mentalidade ficam brigando com as palavras, em vez de se ocuparem dos reais problemas. A mentalidade politicamente correta não permite que você faça julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim. Não há padrões, portanto. Isto é nocivo ! Quem luta contra a mentalidade politicamente corrreta tenta, na verdade, estabelecer padrões de julgamento – que são necessários!”.

Lepine se defende de eventuais críticos:
-”Tudo o que fizemos,no Manual, foi escrever coisas que as pessoas normalmente dizem nos pubs, numa roda de amigos. Ali,a verdadeira opinião de cada um aparece. As pessoas são todas, por natureza, politicamente incorretas. Mas eu simplesmente não consigo ver que danos ou prejuízos o senso de humor pode causar”.

Ninguém escapa da pena afiada dos dois autores politicamente incorretos – nem Tarzan e muito menos a classe operária. Aqui,eles explicam por que Tarzan é o “modelo ideal para um operário” – um exemplo tipico do humor politicamente incorretíssimo:

”1.Só se comunica através de grunhidos;2.Gosta de andar sem camisa; 3.Não tem a menor idéia sobre a identidade do pai;4.Aprendeu suas maneiras com um chimpanzé;5.Carrega uma faca;6.E vive aterrorizando a população negra da vizinhança”.

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setembro 23, 2009

PAUSA PARA REFRESCO: ANOTAÇÕES SOLTAS, PERGUNTAS INÚTEIS , PALAVRAS AO VENTO

O que é mais divertido e causa menos danos à saúde física e mental ?

a) morrer ;
b) estar na platéia do Cirque du Soleil e ser chamado ao palco ;
c) ver a cinquentenária Madonna requebrando ao som de uma música inclassificavelmente chata ;
d) testemunhar um senador de cabelo pintado falando na TV ;
c) passar trinta segundos na frente de um mímico

Tenho certeza absoluta de que a opção A é a correta.

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Você olha para o céu cinzento, mira o Grande Nada e pergunta a si mesmo:
você seria capaz de sair de casa para ir ver um show de um grupo chamado Sorriso Maroto ? De novo: Sorriso Maroto. Outra vez : Sorriso Maroto.

A última de suas vísceras repete instintivamente o que Jaqueline Kennedy disse, horrorizada, quando viu os miolos do marido explodirem dentro daquele carro em Dallas : “Oh,no!”

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Nunca, jamais, sob hipótese alguma, receba um cheque de quem:

A) chama TV de “telinha”
b) desenha um sinal de aspas no ar com dois dedos de cada mão
c) acrescentou uma letra ao nome por sugestão de um numerólogo
d) chama o marido de “maridão”, o filho de “filhão” ou, se for o caso, a mulher de “amorzão”
e) usa rabo-de-cavalo
f) alguma vez na vida já usou ou pensou em usar bandana
g) desfila de camiseta na rua para mostrar aos outros os músculos marombados
i) toma cafezinho com o dedo mindinho estirado

É pule de dez: o cheque é sem fundos.

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Uma dúvida irremovível : dizei, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, o que é que leva um ser bípede e falante a posar para uma revista de “celebridades” diante de uma mesa de café-da-manhã fake ? Qual é a força que move aquele aglomerado de ossos e músculos a fazer este papel ?

Dou-lhe meio século para achar uma resposta razoável.

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Posted by geneton at 01:15 AM

DESCOBERTO O SORRISO QUE OS ROBÔS JAMAIS CONSEGUIRÃO REPRODUZIR!

A TV mostrou, não faz tempo, o comovente esforço de cientistas japoneses que tentam reproduzir, na face de um robô, expressões humanas.

Digo “comovente” porque a causa é nobre: os cientistas estão, na prática, preparando robôs que, com toda certeza, serão uma companhia mais agradável, menos barulhenta e menos inconveniente do que noventa e oito vírgula nove por cento dos seres humanos.

Um mecanismo instalado dentro do robô distende ou retrai o rosto do bicho, feito de matéria plástica. Assim, o rosto passa a demonstrar “sentimentos” como espanto, alegria e tristeza.

Os cientistas podem suar seus jalecos durante décadas nos laboratórios de robótica, mas jamais conseguirão sucesso total na empreitada. Pelo seguinte: há uma expressão humana que é absolutamente irreproduzível por robôs.

Preste toda atenção. Há uma fila de espectadores esperando a hora de entrar na sala do cinema. De repente, um celular começa a emitir musiquinhas engraçadinhas. O dono do celular bota a mão no bolso e atende. Aquele ar de completa idiotia que o dono do celular exibe enquanto tateia o aparelho no bolso jamais será reproduzido por um robô: é um meio-sorriso estúpido que desmente todas as teorias sobre a evolução da espécie.O dono do celular que emite ruidinhos e musiquinhas supostamente engraçadinhos tenta mostrar, aos passantes, que é um sujeito espirituoso. Quá-quá-quá.

Podem juntar todos os PHDs do Japão, todos os gênios do MIT, todos os nerds de todas as escolas suíças: nunca, jamais, em tempo algum a ciência poderá reproduzir o meio-sorriso estúpido-dos-idiotas-donos-de-celulares-com-musiquinha-engraçadinha-na-fila-do-cinema.Leonardo Da Vinci não ousaria reproduzir numa tela movimento tão perfeito. O sorriso da Monalisa é obra de amador.O meio-sorriso-estúpido-dos-idiotas-donos-de-celulares-com-musiquinha-engraçadinha-na-fila-do-cinema é uma criação essencialmente humana; uma obra-de-arte perfeita porque retrata, sem retoques, a essência do espírito de quem o ostenta.Nenhum artista, nenhum cientista jamais ousaria recriá-lo.
Cientistas, recolhei seus robôs. Pintores, aposentem seus pincéis. Não adianta: a originalidade da idiotia humana é irreproduzível.

E assim será, por séculos e séculos. Não há avanço possível: a civilização estancou ali, no meio-sorriso-do-idiota-do-celular-de-musiquinha-engraçadinha.

Dali não avançará.

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setembro 22, 2009

PAUL MCCARTNEY

10 VEZES PAUL McCARTNEY : POR QUE A IGNORÂNCIA MUSICAL SALVOU O “MAIOR COMPOSITOR POPULAR DO SÉCULO XX”…

O ex-beatle Paul McCartney começa a falar, numa sala do Royal Albert Hall, em Londres. O locutor-que-vos-fala grava as palavras daquele que o jornal Daily Telegraph chamou de ” o maior compositor popular do Século XX” ( ver post anterior).

Jornalistas – ingleses – presentes à entrevista não resistiram à tietagem. Uma moça cobriu Paul de elogios, antes de fazer uma pergunta. Meu demônio-da-guarda me soprou ao pé do ouvido: “Eu bem que disse! Jornalista bancando o amiguinho da celebridade é um mal planetário. Você pensou que que essas patetices só aconteciam com os subdesenvolvidos brasileiros que vivem jogando flores uns nos outros…”.

A observação feita ao pé-do-ouvido pelo meu demônio-da-guarda não me impede de declarar solenemente, diante deste tribunal, que sou um beatlemaníaco. Paul McCartney é,sim, o maior compositor popular do Século XX. Nenhum grupo jamais fez algo parecido com o álbum Abbey Road. Milton Nascimento – que nunca se notabilizou por ser autor de frases inspiradas – disse recentemente, numa entrevista ao G1, que os Beatles são os melhores: “O resto é palhaçada”, sentenciou.

O compositor que fala agora diante do punhado de jornalistas esteve – de uma ou outra maneira – presente na vida de milhões de ouvintes ao longo das últimas décadas. “Take a sad song and make it better”, como diz a letra de Hey Jude. Em última instância, ao compor tantas canções inesquecíveis, ajudou a tornar suportável nosso circo de horrores diários. É o suficiente. Que outra coisa um compositor de canções populares pode querer na vida?

É o que me ocorre, enquanto acompanho Paul McCartney falar, com a simpatia habitual, sobre a arte de compor música popular.

Guardei a fita. É hora de ouvir as palavras de Sir Paul:

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Paul McCartney: revelações sobre a "ignorância" (Imagem: TV Globo)

1. “Sempre achei que seria uma boa idéia aprender mais sobre o que eu estava fazendo. Contaria como um “plus”. Quando se sentam diante do piano para compor, amigos meus, altamente treinados musicalmente, ficam inibidos na hora de criar uma melodia nova, porque já têm informação excessiva na cabeça, acumulada a partir de todo o Bernstein, todo o Beethoven, todo o Mozart ou todo o Mendelssohn que ouviram. Sou sortudo, porque, nesse sentido, tenho um “buraco negro” na cabeça. Quando me sento, é como se não tivesse nada. De certa maneira, penso que é muito bom. Porque o que eu escrever possivelmenTe será mais original. Há vários exemplos. Em West Side Story, por exemplo, há uma música de Leonard Bernstein, There is a Place for Us : ouvi dizer que a melodia composta por Bernstein já teria sido feito por outra pessoa. A gente vê que até grandes como Bernstein podem misturar as informações, inconscientemente. Não saber tanto pode ser uma vantagem, então.A ignorância é uma bênção, no meu caso”.

2. “O importante, sobre o fato de escrever música para orquestra, é que tive sorte: não conheço tanto sobre música clássica. Quando eu era criança, meu pai desligava o rádio quando entrava música clássica. Dizia: “Desligue esse negócio…” (imita a voz de desprezo). Como fã de jazz, ele não gostava daquilo. Depois, ouvi Bach. Você pode citá-lo como meu compositor preferido. Quando eu estava nos Beatles, citei Bach como um dos meus compositores favoritos. Recentemente, ouvi um pouco Monteverdi ( compositor italiano). Mas, quando eu estava escrevendo uma peça para orquestra (Standing Stone, lançada em 1997) , não ouvia realmente nenhum dos compositores clássicos, a não ser para ver o que é que eu não deveria fazer! Porque eles já tinham feito! Ouvi Beethoven, para ver como ele fez. Gostei de Monteverdi porque vi que ele tinha algo em comum com a música do começo dos Beatles: ele não conhecia muitos acordes…Havia um link interessante ali. Depois, descobri os Noturnos de Chopin – que todos conheciam mas só vim a conhecer há pouco. São excelentes”.

3. “Tentei, em minha vida, aprender a ler e a escrever música três vezes, mas não fui bem sucedido. A primeira vez aconteceu quando eu era menino – com uma velha senhora lá da minha rua. A segunda quando eu tinha dezesseis anos. A terceira, aos vinte e um. Nunca consegui me dedicar ao estudo da música. Porque, na verdade, eu já estava compondo. Já tinha feito, por exemplo, When I´m Sixty Four. Nesta época, eu estava tentando. Desisti, no fim das contas. O que aconteceu, com Standing Stone, é que descobri um programa de computador que permite que eu, primeiro, trabalhe no teclado. Depois, transfiro para o computador. Posso aprender como orquestrar enquanto trabalho no computador. Isso foi um salto para mim. Porque não sou bom em matéria de computador. Preciso de uma equipe para descobrir como me livrar da confusão em que me meti….”

4. “Eu estava ouvindo,nos anos sessenta, peças de Stockhausen e algumas das coisas mais estranhas da música contemporânea. Pensei em fazer um álbum com sons eletrônicos. Ia chamar o disco de “Paul McCartney Goes Too Far”. Nunca cheguei a fazer. Fiz outras peças desde então – que não cheguei a lançar. Talvez lance um dia. Mas nunca pensei em fazer com a Orquestra Sinfônica de Londres. Ou fazer peças tão grandes como Standing Stone. Eu já tinha gostado de fazer o Liverpool Oratorio (primeiro exercício de Paul McCartney com música clássica, lançado em 1991) com orquestra. Queria fazer de novo algo assim. Quando surgiu a oportunidade, peguei”.

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5. “Não esperava escrever peças como Standing Stone. Já tinha sido divertido botar violinos em Yesterday ou em Eleanor Rigby. Eu tinha, na época, meus vinte e poucos anos. Não pensava : “Quando eu tiver meus trinta anos e for velho…..”. Mas imaginava que poderia fazer algo nessa linha, não tão ambicioso quanto viria a acontecer. Considerava que música para orquestra era algo que eu poderia fazer, depois do rock-and-roll”.

6.“Eu não sabia como compor na tradicional maneira clássica - que é pegar um tema e desenvolvê-lo, numa peça em que a música é usada como uma jornada. Ao compor, senti que precisaria de uma história como base, para me manter “nos trilhos”. Fiz contato com Allen Ginsberg, poeta, amigo dos anos sessenta. Comcei a curtir poemas. Cheguei a trabalhar com poema escrito. Tentei fazer Standing Stine como um poema, caso precisasse usar de letras. Mas terminei não usando muito do poema. O que aconteceu é que o poema se tornou uma história, para o caso de o ouvinte precisar de algo em que se apoiar enquanto ouve a música. Compus peças menores como preparação para a peça maior. É como escrever contos antes de escrever um romance”.

7. “Não diria que estou fazendo música clássica. Estamos usando apenas orquestra, ao invés da combinação rythm & blues - guitarra, baixo e bateria. Era divertido usar ocasionalmente trompete ou quarteto de cordas. Porque a gente trabalha com outro tipo de músicos. Não vejo limites entre os gêneros. Para mim, era tudo música. Quando olho para trás, vejo que o rock-and-roll estava começando a flertar com músicas orquestradas. Penso em “Save the last dance for me”, com The Drifters. Ou “It doesn´t Matter Any More”, com Buddy Holly. Estava começando a acontecer. Não vejo barreiras. Não divido entre música clássica, “easy listening” ,rock-and-roll. Para mim, o que há é música boa e música ruim”.

8.”É tudo uma questão de amar a música. Tenho sorte de ser pago para fazer o que amo. Compus muita coisa em minha vida. Em geral, são coisas curtas. A música Hey Jude foi a mais longa: cerca de sete minutos. É um grande desafio. Você pode perguntar a um escritor de contos por que ele se preocupa em escrever um romance. Ora, porque é um desafio. Se você gosta de música, é interessante, então, fazer uma peça maior. É bom trabalhar com orquestra e animador trabalhar com gente com este tipo de virtuose. Se você gosta de talento, é algo animador a fazer”.

9.”Um dos motivos por que lancei o cd Flaming Pie (um dos melhores álbuns da fase pós-beatle de Paul McCartney), junto com Standing Stone, foi porque queria mostrar a todos que faço meu rock-and-roll. Não vejo estas barreiras. Em “Eleanor Rigby”, já havia os violinos e minha voz. Não se dizia que eu estava virando “clássico”. Gosto de vários tipos de música. O fato de tocar uma tradicional música irlandesa – por exemplo – não quer dizer que estou indo nesta direção. Quer dizer que eu gosto desse tipo de música assim como outros. Ainda amo o rock-and-roll”.

10.”Alguém me perguntou se eu estava confortável com o título de Sir (honraria concedida pela realeza britânica). Eu disse que sim : estava altamento honrado. Mas me ocorreu que tenho orgulho também do título de mister ( tratamento usado por e para cidadãos comuns). É working class. Você ganha quando tem vinte e um anos” ( idade em que se passa a ser chamado de “senhor”). Vou tentar descobrir se terei de deixar o título de mister para usar o de sir. Se for obrigatório, vou tentar burlar o sistema….Tenho orgulho de mister me lembra de onde vim e quem sou. Mas estou orgulhoso do título de sir”. Não é que não goste de usar o título de sir. É que me apego ao título de mister também. Não sei se você pode usá-lo”.

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Posted by geneton at 01:20 AM

setembro 21, 2009

PAUL MCCARTNEY

A “CHAVE” PARA ENTENDER UM FENÔMENO: O DIA EM QUE O EX-BEATLE PAUL McCARTNEY REVELOU QUE SÓ CONSEGUE FAZER TANTA MÚSICA PORQUE É “IGNORANTE”

Quem é o maior compositor popular do século XX ?

Não faz tempo, o jornal Daily Telegraph cravou : é Paul McCartney.

Não é patriotada nem exagero do jornal inglês. Que outro compositor terá produzido, sozinho ou em parceria com um tal de John Lennon, tantas canções reconhecíveis por tanta gente em tantas partes do mundo? Nenhum.

Fazer música popular, em última instância, é criar canções que possam ser assoviadas numa caminhada. Simples assim. Pouquíssima gente fez tantas quanto nosso personagem de hoje.

O repórter-que-vos-fala faz questão de ser tendencioso quando o assunto é Beatles. O melhor álbum da história da música pop é Abbey Road, lançado faz exatamente quarenta anos, no remoto setembro de 1969.

É possível ouví-lo por horas seguidas sem pular uma faixa sequer ( faça-se o teste: dá para contar nos dedos da mão de um mutilado de guerra quantos álbuns passariam pela Prova da Audição Sem Pulo).

Tive a chance de testemunhar duas aparições de Paul McCartney em Londres ( uma das aparições aconteceu numa daquelas cenas que ocorrem uma vez na vida: Paul McCartney subiu ao palco do Royal Albert Hall, em companhia de Eric Clapton, Elton John, Phil Collins e Marc Knopfler, entre outras feras, num show beneficente, para executar um repertório que incluía faixas do Abbey Road, como o hino “Golden Slumbers”, seguida por “Carry That Weight” e “The End”. Carimbei meu diploma de beatlemaníaco ao ver um beatle tocando três músicas do álbum Abbey Road “ao vivo e a cores”, devidamente acompanhado por uma banda de primeiríssimo time. Em breve, falo desta cena).

A outra aparição de McCartney testemunhada pelo repórter-que-vos-fala aconteceu numa entrevista, também no Royal Albert Hall.

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O "maior compositor popular do Século XX" na entrevista : "ignorância" abençoada (Imagem: TV Globo)

Beatlemaníacos, exultai: acabo de localizar, no meu baú de raridades, uma fita cassete em que Paul McCartney faz uma confissão que, sem exagero, pode servir como chave para entender por que ele foi capaz de produzir uma coleção de canções assoviáveis : ao explicar suas ligações com a música clássica, ele relembrou as três tentativas que fez de estudar e ler partituras. Fracassou nas três.

Adiante, ele confessa : se tivesse uma grande cultura musical estocada em algum escaninho de seus neurônios, certamente se sentiria tolhido na hora de sentar diante do piano para compor.

Paul McCartney diz que amigos seus, compositores, donos de uma vasta cultura musical, vivem uma experiência curiosa: eventualmente, se sentem bloqueados na hora de compor, porque, a cada novo fraseado, são invadidos por uma dúvida. E se alguém tiver feito algo assim antes?

Com uma ponta de ironia, Paul McCartney diz que, a partir de suas próprias experiências como compositor, pode declarar que “a ignorância foi uma bênção. O fato de não saber tanto pode ser uma vantagem”, confessa, sem vacilar.

Ou seja: se tivesse realmente estudado música, é provável não tivesse composto pérolas como “Hey Jude”, “Yesterday” e uma infinidade de outras, igualmente “assoviáveis”.

O “maior compositor popular do Século XX” estava dando ali – de mão beijada – para um punhado de jornalistas, numa sala do Royal Albert Hall, a chave para que se entendesse a raiz do fenômeno que ele próprio representa.

O tema alimentaria um ano de debates num seminário de música : se não fosse “ignorante”, Paul McCartney não seria um compositor popular tão extraordinário.

Anotações sobre a aparição londrina de sir Paul McCartney:
Dou plantão numa das entradas do Royal Albert Hall, na vã esperança de arrancar uma declaração exclusiva do meu ídolo ( repórter não deve nunca, never, jamais, sob hipótese alguma, fazer papel de tiete, mas, enquanto esperava a chegada de Sir Paul McCartney eu não tinha como não lembrar dos tempos em que passava horas, horas e horas ouvindo o lp Abbey Road em meu quarto de adolescente nos fundos de minha casa no bairro de Nossa Senhora do Rosário da Torre, Recife, Pernambuco. De qualquer maneira, não abro mão de uma convicção pétrea: o jornalismo dará um imenso, um extraordinário, um indescritível salto de qualidade no dia em que forem banidas da face da terra as entrevistas em que o entrevistador se comporta diante do entrevistado não como repórter mas como praticante de uma modalidade de esporte que poderia ser batizada de “voleibol jornalístico” : são os “jornalistas” que passam a vida levantando bolas para o entrevistado, especialmente as celebridades. A cena é invariavelmente triste e patética. O mal não é apenas brasileiro: diante de Paul McCartney, uma jornalista se derreteu em salamaleques antes de conseguir articular uma pergunta. Patética. Como diriam os estudantes rebelados que pichavam muros na Paris de 1968, a humanidade só será feliz no dia em que o último jornalista deslumbrado for enforcado nas tropas do penúltimo).

Faço uma combinação com o cinegrafista Luís Demétrio. Em vez de nos dirigirmos ao auditório que servirá de palco para a entrevista, ficaremos do lado de fora, próximos à entrada principal do Royal Albert Hall. Quem sabe, num golpe de sorte, não conseguimos uma declaração do homem.

Fãs capazes de qualquer sacrifício descobrem, não se sabe como, que Paul desembarcará ali dentro de instantes. Lá estão elas, indiferentes ao frio de rachar, num canto da calçada, à espreita. De repente, noto que um magrelo vestido de preto começa a falar discretamente num walkie-talkie.
Faço um sinal para o cinegrafista. A celebridade deve estar chegando.

Um carrão preto, com vidros indevassáveis, se aproxima lentamente da entrada do prédio. Quando notam, as fãs se agitam. O carro pára. Quem desce do banco dianteiro? Só podia ser ele. E era. Eis Sir Paul McCartney, recém-condecorado pela Rainha.

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O canto dos olhos exibe pés-de-galinha. O tom da pele, pálido, sugere que o rosto passou por uma maquiagem – quem sabe, para esconder as rugas. A cor das cabelos não deixa dúvidas: uma tintura passou por ali. A idade manda lembranças. Mas – de calça jeans, casaco preto e blusa clara - o eterno Beatle parece, na medida do possível, jovial.

Avanço em direção à presa, com o microfone em punho. Fãs soltam gritos. Os brutamontes – popularmente conhecidos como seguranças – entram em ação para afastar todo e qualquer intruso – eu, inclusive.

Paul acena para a turba. Em meio ao tumulto, a única declaração que consigo captar é um monossílado – “Hi!” – versão inglesa para “Olá!”. Paul se limita a fazer um “V” de vitória com os dedos.

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Em questão de segundos, desaparece dentro do prédio, cercado de seguranças por todos os lados. É uma luta inglória: enfrentar um daqueles brutamontes corresponde a desafiar Mike Tyson para um duelo, no meio da rua, numa manhã de inverno. Faltam-me proteínas para tanto.
Lá dentro, na coletiva, o assessor de imprensa de Paul McCartney - ou o próprio – apontam aleatoriamente para um ou outro jornalista – que, bafejado pela sorte, pode balbuciar uma pergunta. Supercelebridade é assim. O dedo indicador do beatle me desconhece solenemente. Fica para a próxima. Não havia tempo para que cada um fizesse uma pergunta. “Paul precisa ensaiar”, diz o assessor.
Além das declarações que o astro fez na coletiva, volto para a redação com a entrevista “exclusiva” mais sucinta das tantas que tive a chance de tentar: “Hi!”.
Mas preservei a fita com a íntegra do que Paul McCartney disse ali. A declaração sobre a “vantagem” de ser ignorante em matéria de formação musical é preciosa.

Beatlemaníacos, aguardai:
em um próximo post, o Dossiê Geral publica, na íntegra, as palavras do “maior compositor popular do Século XX” naquela manhã de inverno de 1997 em Londres.

Posted by geneton at 01:25 AM

setembro 20, 2009

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

O DIA EM QUE O METALÚRGICO (E EX-TINTUREIRO) LUIZ INÁCIO CONFESSOU QUE NÃO TINHA “VOCAÇÃO POLÍTICA”

Faz trinta anos: um pernambucano que se tornara estrela ascendente do movimento sindical volta a Pernambuco pela primeira vez depois de ficar famoso nacionalmente. As declarações que o visitante ilustre fez naquele dia soam hoje surpreendentes, se confrontadas com o que viria a acontecer com ele. O Lula sindicalista dizia que não se considerava uma “liderança”. Confessava não ter “vocação política”. Desencava os partidos políticos.

Meninos, eu vi e ouvi:

O sobrenome não era um sobrenome. Era uma profissão: metalúrgico. O nome não era um nome. Era um apelido: Lula. A combinação esquisita de um nome que era apelido e um sobrenome que era uma profissão servia para identificar aquele sindicalista que despontava para a fama: “Lula Metalúrgico”. Era assim que nós, repórteres que cobríamos a visita do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva ao Recife, no remoto ano de 1979, o chamávamos.

Lula já tinha sido capa de uma revista semanal. Começava a atrair a atenção do Brasil como o primeiro líder sindical surgido sob o regime militar. Fazia, ali, a primeira visita a Pernambuco depois de ficar conhecido. Ainda não era uma celebridade.

O pernambucano que visitava Pernambuco pela primeira vez depois de ficar conhecido em todo o Brasil só queria uma coisa: encontrar tempo para se dedicar à família…

Quem poderia imaginar que aquele pernambucano que voltava ao Recife para defender um “novo sindicalismo” iria, um dia, subir a rampa do Palácio do Planalto como presidente? Ninguém.

O Partido dos Trabalhadores não existia. Era apenas uma idéia na cabeça daquele sindicalista, que, ao abrir a boca diante de platéias, subtraía o “s” do plural das palavras com a mesma desenvoltura com que soltava imprecações contra governos militares que manipulavam os índices de inflação.

O Lula que desembarcou no Recife era um líder sindical que resistia às cantadas para se engajar em partidos políticos – não importa quais fossem. Descubro em meus arquivos uma gravação em que ele avisa:

“Não sou filiado a partido político algum. Não sou filiado à Arena, não sou filiado ao MDB. Fui contra o bipartidarismo quando ele foi instituído. Por uma questão pessoal, enquanto houver bipartidarismo, não vou me filiar a partido político algum. Quem sabe, um dia, surja um partido em que os trabalhadores tenham voz, onde os trabalhadores sejam maioria. Quando surgir esse partido, serei – não tenham dúvida – um dos filiados”.

O sindicalista Lula estava a um milhão de anos-luz do candidato Lula que, quase um quarto de século depois, seria capaz de dar bom-dia a poste em troca de um voto – como faz todo candidato que se preza.

O Lula Metalúrgico pichava gente da Arena e do MDB, dispensava a ajuda de estudantes que se ofereciam para distribuir panfletos a operários, acabrunhava-se com a intromissão de intelectuais na atuação do sindicato, fazia restrições à ótica das pastorais operárias da Igreja Católica, esculachava a conduta da chamada “grande imprensa”.

Aos que tentavam sondar seus planos futuros, oferecia uma resposta que, hoje, soa como curiosidade arqueológica. Lula dizia que, simplesmente, não tinha “vocação política”. Dava-se por satisfeito no exercício da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos.

O sindicalista Lula quebra logo a solenidade de um encontro com o arcebispo de Olinda e Recife: “Dom Hélder, meu filho tem nome de costureiro, Sandro, mas é macho!”
O então presidente da seção estadual do MDB – Jarbas Vasconcelos, oposicionista brigão que, duas décadas depois, se elegeria duas vezes governador de Pernambuco – é o cicerone na visita que o sindicalista barbudo faz ao arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara.

O arcebispo vivia numa casa modestíssima, nos fundos da Igreja das Fronteiras, no bairro das Graças, no Recife. Um poster de Martin Luther King – com a inscrição “Eu tenho um sonho” – ornamentava a parede da sala. Lula troca gentilezas com Dom Hélder. Diz que a trajetória do arcebispo servia de exemplo para os trabalhadores. Dom Hélder ouve o elogio com um meio-sorriso nos lábios. O metalúrgico apresenta aos anfitriões o filho caçula, um menino de um ano e poucos meses: “Ele tem esse nome de costureiro, Sandro, mas é macho!” Dom Hélder, Jarbas Vasconcelos e a mulher de Lula, Marisa, riem.

Aquela viúva que atraíra os olhares do também viúvo Luiz Inácio Lula da Silva se tornaria, tanto tempo depois, a primeira-dama do país. O primeiro marido de Marisa, um motorista de táxi, morreu assassinado num assalto. A primeira mulher de Lula morreu de parto – junto com o primeiro filho do casal.

Depois da visita a Dom Hélder, a estrela emergente do sindicalismo brasileiro fez uma pausa no périplo recifense para conversar com os repórteres. Hoje a cena seria impensável, mas na época era assim que acontecia: em vez de convocar a imprensa para o local da entrevista, Lula é que se dava ao trabalho de ir a uma redação. A gravação foi feita na então sucursal do Recife do Jornal do Brasil, perto da casa de Dom Hélder.

As palavras do “sapo barbudo” ( apelido que ganharia de Leonel Brizola dez anos depois, durante a campanha presidencial de 1989) naquele final de manhã no Recife se transformaram, com o tempo, em relíquias preciosas para os que tentam entender a trajetória política de um presidente que um dia foi um metalúrgico irritado com partidos:

O “sapo barbudo” (apelido que ganharia dez anos depois, durante a campanha presidencial de 1989) revisita, então, memórias distantes: Em que situação você saiu de Pernambuco para morar em São Paulo?

Uma passagem pouco conhecida da biografia do metalúrgico Lula em São Paulo : “Trabalhei quase três anos como tintureiro”

Lula: “Não me lembro se foi em 1951 ou 1952. Mas saí de Pernambuco para não morrer de fome. Fui com toda a família. Meu pai já estava lá. Minha mãe tinha um pedaço de terra em Garanhuns, trabalhava na roça e não conseguia sustentar a família. Então, a única forma que ela encontrou para sobreviver – na época, eu era criança – foi ir embora, para onde estava o marido, para poder tentar cuidar dos filhos. Eu tinha uns seis anos”.

Quando você começou a trabalhar em São Paulo?

“Comecei a trabalhar em 1958, com 13 anos de idade. Trabalhava como tintureiro, numa tinturaria. Trabalhei quase três anos como tintureiro. Depois, entrei numa empresa metalúrgica. Trabalho hoje nas Indústrias Villares”.

Como é que você entrou no sindicato?

“Eu entrei no sindicato em 1969. Um dia, fui lá ver uma assembléia, gostei e fiquei”

Você reconhece que é o primeiro líder político que surgiu fora do âmbito parlamentar nesses últimos tempos?

“Nem me considero uma liderança. Eu me considero, muito mais, um elemento que conseguiu captar os desejos de uma classe. Tentei levar os desejos dessa classe adiante e transformá-los numa bandeira de luta. Acho que a sociedade inteira tem muita responsabilidade – como os estudantes, com aqueles movimentos de 1977- e os intelectuais. Nós, os trabalhadores, somos um dos setores que entraram na briga”.

Você se considera, então, um resultado da abertura comandada pela sociedade civil?

“Exatamente. Porque faço parte dessa sociedade”.

Além da circunstância política concreta da abertura, o fato de você ter conseguido se tornar porta-bandeira de uma classe pode ser atribuído a quê? Haveria uma vocação pessoal ou foram apenas as circunstâncias políticas que favoreceram?

“Já começa a ficar difícil falar da gente… Gostaria que, aí, você colocasse de sua cabeça como é que você vê a coisa. Porque, para mim, fica muito difícil falar…”.

Alguma experiência passada de partidos políticos no Brasil entusiasmou você?

“Não. Lamentavelmente, nenhuma”.

Que experiência chegou perto do que você espera de um partido representativo?

“Nenhum partido me entusiasmou. O Partido Comunista, por exemplo, sucumbiu da mesma forma que nasceu. Quer dizer: nasceu e morreu. Não foi obra dos trabalhadores. Veio de cima para baixo, um negócio imposto à classe trabalhadora. Alguns partidos que se diziam representantes da classe trabalhadora, como o PTB, o PC e o próprio Partido Socialista, nunca foram legitimamente representantes dos trabalhadores, porque não nasceram da classe trabalhadora. Foram impostos à classe”.

Quais são, afinal, os planos de Lula na política?

“Não sei. Não pensei ainda. Deixe contar uma coisa: toda essa vida que tenho levado tem me afastado muito de minha mulher e dos meus filhos. Hoje, praticamente, não disponho de um horário para minha família. Não posso permitir que minha mulher fique sozinha na hora de cuidar da família. A única coisa de que tenho certeza é que, no dia 25 de abril de 1981, eu me desligo do sindicato. O que vai acontecer depois daí só vou saber a partir do dia 25. Não tenho vocação política. Por enquanto, o que pretendo é continuar o trabalho no sindicato”.

Posted by geneton at 12:50 AM

setembro 18, 2009

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

O DIA EM QUE O AUTOR DE “MORTE E VIDA SEVERINA” DESABAFOU CONTRA O EXIBICIONISMO: “NINGUÉM É TÃO INTERESSANTE PARA FALAR DE SI MESMO O TEMPO TODO” (O QUE ELE DIRIA DO FESTIVAL NARCISISTA DE HOJE ?)

Se os jornais publicassem tudo o que se fala numa redação (ou, pelo menos, tudo o que os repórteres vêem mas não escrevem), nossa imprensa certamente não mereceria o julgamento que um dia Paulo Francis fez :
“Nossa imprensa : acadêmica, empolada, previsível, chata. Meu Deus, como é chata…”

Ponto. Parágrafo.

Já se disse que o melhor jornal é aquele que jamais chega ao conhecimento do leitor. O que acontece nos bastidores de uma reportagem pode ser tão interessante quanto o que sai nas páginas dos jornais.
Minha pequena coleção de entrevistas com o super-poeta João Cabral de Melo Neto foi marcada por desencontros, vexames, incidentes e mal-entendidos – sem maior gravidade, mas suficientes para fazer ruborizar qualquer tímido.

Vexame número 1

Cenário : saguão do Aeroporto Internacional dos Guararapes. Ano : 1973. Dou meus primeiros passos como repórter. O chefe de reportagem me despacha para o Aeroporto. Missão : cobrir a chegada do mais ilustre dos poetas pernambucanos. O diplomata João Cabral vivia no exterior, na época.

Lá fomos nós, em busca da celebridade . O único problema é que o fotógrafo não sabia que João Cabral era pernambucano. Assim que o poeta desembarca, o fotógrafo o convoca a posar em frente a um painel turístico que mostrava uma imensa foto do Recife. A pose em frente ao painel provaria que o poeta esteve na cidade…Pouco à vontade ,o poeta concorda em posar. Lá pelas tantas, o fotógrafo quer saber se o poeta por acaso já conhecia a capital. João Cabral responde com algum som inaudível.

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O poeta de Morte e Vida Severina: desencontros com o repórter ( Imagens: TV Globo)

Vexame número 2

João Cabral aceita receber o repórter na casa do irmão, à beira-mar, em Olinda. Horário da entrevista : onze da manhã. O repórter chega vinte minutos atrasado. Formalíssimo, João Cabral nem parece estar de férias. Aparece no portão metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola.

Primeira frase que pronuncia : “Você chegou com uma pontualidade nada britânica…”. O repórter quase estreante procura, em vão, um buraco no chão para se esconder. Não encontra. Entre mortos e feridos, todos se salvam : a entrevista segue adiante.

Vexame número 3

De volta ao Brasil depois de se aposentar da carreira diplomática , João Cabral escolhe o Rio de Janeiro como endereço . O repórter que, anos antes, cometera o pecado de chegar com uma “pontualidade nada britânica”, telefona em busca de uma nova entrevista. Quem sabe, agora consiga fazer uma entrevista sem incidentes.

João Cabral se desculpa : “Vamos marcar outra hora… Minha mulher morreu ontem”. Já não tão estreante, o repórter procura de novo um buraco no chão para se esconder – em vão. Um silêncio que parece durar uma eternidade se instala nos dois lados da linha telefônica. O que dizer numa situação dessas ? Nada. Meus pêsames. Desculpe. Eu sinto muito. Socorro !

Vexame número 4

O homem marca a entrevista : vai receber o repórter em casa – um apartamento na Praia do Flamengo . Por coincidência , o jornal O Globo marca, para a mesmíssima hora, uma sessão de fotos de João Cabral com Ferreira Gullar . Os dois poetas aguardam a chegada do fotógrafo do jornal.

Aperto a campainha . “Pode entrar”. Cabral e Gullar vão para a janela do apartamento . A vista, ao fundo, é bela. Fazem pose. Ficam olhando para as minhas mãos, à espera de que eu saque a máquina fotográfica . Pensam que eu sou o fotógrafo que estavam esperando. Mas não tenho máquina nenhuma . Carrego apenas meu gravador .

“Não quer fazer a foto agora ?“ Dois dos maiores poetas brasileiros estavam ali,diante de mim, à espera da impossível foto. Não, não quero, não sei , não posso fazer. Deve ter havido algum engano. Nunca fui fotógrafo em minha vida. Um buraco no chão, pelo amor de Deus !

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Desfeito o equívoco, os dois desistem de esperar pelo clique de minha máquina inexistente. Cinco minutos depois, o fotógrafo (o verdadeiro) desembarca no apartamento. Os dois voltam a posar na janela. Livre da tarefa, João Cabral finalmente dá a entrevista pedida pelo locutor-que-vos-fala.

O poeta – um dos maiores que o Brasil já teve – confessava que o gosto do fracasso não lhe era estranho. Devo ter comentado com meu demônio-da-guarda : fracasso ? Se depender do meu histórico de fracassos nos bastidores das entrevistas com João Cabral, posso dizer que sou diplomado no assunto.

Vasculho meus “arquivos implacáveis”, dez anos depois da morte do poeta, para fazer um pequeno decálogo de declarações feitas ao repórter pelo autor de “Morte e Vida Severina”:
1. “Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras “pedra” ou “faca” ou “maçã”, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que “tristeza”, “melancolia” ou “saudade””

2.”Não gosto de carta. Tanta gente escreve até diário… Escrever o meu diário é, para mim, uma coisa inconcebível. Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo. Em carta, você acaba falando de si próprio”.

(o que o poeta diria hoje da imensa avalanche narcisística impulsionada pela maravilha da Internet ?)

3.”A popularidade é uma coisa terrível. Acaba cercando o escritor e o artista de um mundo artificial – e um interesse inteiramente artificial. O sujeito acaba fazendo aquilo que sente que o público gosta, em vez de fazer aquilo que acha que deve ser feito”.

4.”O êxito teatral de “Morte e Vida Severina” é que tornou o meu nome conhecido. Mas não creio que minha poesia seja popular”.

5.”A atividade intelectual é uma coisa que seduz. Vivo para ela. Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa”.

6. “A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso”.

7. ” Manuel Bandeira e Carlos Drummond são sujeitos de tal integridade que não foram corrompidos pela popularidade. Nem todo mundo tem integridade para resistir. Em geral, o sujeito acha bom e barateia a produção para ser agradável. Baixa o nível para ser agradável…”

8. “Morte e Vida Severina” foi um poema que escrevi: não trabalhei. Eu escrevi a pedido de Maria Clara Machado. Não trabalhei como trabalho em outras coisas minhas. Eu sinto que é um poema que não me satisfaz. Mas foi um poema bem levado para o teatro e a televisão”

“Esta cova em que estás, com palmos medida,
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio

Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo

É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo, te sentirás largo
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas à terra dada nao se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio” ( trecho de Morte e Vida Severina)


9.”Pelo meu temperamento, nunca gostaria de ser um escritor popularíssimo. O fato de não ser popular me dá tranqüilidade. Não vivo de escrita. Se vivesse de escrever, gostaria de ser popular, porque os direitos autorais seriam grandes. Mas, como não vivo de escrever, a falta de popularidade não me frustra. Ao contrário”.

10. “Não tenho nenhum ouvido musical. Você pode tocar uma música conhecidíssima. Eu não distinguirei uma da outra! O que lembro é que, desde menino, eu era o filho desentoado. Já no coro do Colégio Marista, mandavam que eu fingisse que estava cantando, mas não cantasse, porque saía tudo desentoado”.

Posted by geneton at 01:26 AM

setembro 16, 2009

QUEM É O GÊNIO QUE ESCREVE OS ANÚNCIOS DA CERVEJA SKOL ? UM PROFESSOR DE PORTUGUÊS PARA ELE, URGENTE!

Se ninguém se der ao trabalho de apontar as demonstrações públicas de ignorância, o que será da Última Flor do Lácio ?

Quem será o genial redator encarregado dos textos dos anúncios da cerveja Skol exibidos na TV?

A última imagem do anúncio é um letreiro que avisa:

"Se for dirigir não beba"

A não ser que tenham revogado as mais elementares regras de pontuação, há uma vírgula obrigatória entre o "dirigir" e o "beba".

Se for dirigir, vírgula, não beba"

Mas os grandes gênios da publicidade fazem questão absoluta de escrever errado ( ver outros posts sobre anúncios que trazem, por exemplo, a palavra "antibraço" (!) e a expressão "encarar de frente").

Aposto minha mão direita como os criadores deste anúncio estão neste exato momento fazendo palestras para estudantes ingênuos, com a pose característica: a de reis da cocada preta.

Ah, Nossa Senhora das Vírgulas e dos Verbos, por que será que o estoque de imposturas parece interminável ?

Posted by geneton at 02:23 PM

O MELHOR CONSELHO DO MUNDO: “QUANDO TIVER UM PROBLEMA SEM SOLUÇÃO, VÁ À MATINÊ”

O cansaço deixou marcas no rosto de Gabriel García Márquez: os olhos estão vermelhos, os cabelos desgrenhados são uma moldura perfeita para o tédio que se desenha em cada sulco da face, a camisa branca exibe marcas de suor nas axilas. São 11 e 45 da noite.

A fama cansa. Deixe-me em paz. Quero dormir – é o que diria, se quisesse ser brutalmente franco com o repórter que o importuna neste fim de noite.

Se pudesse escolher, García Márquez estaria dormindo o quarto sono agora. Mas o Prêmio Nobel é homem de palavra. Cumpre a promessa feita horas antes : depois de passar a tarde inteira falando a estudantes de cinema sobre os segredos da criação literária, como se os talentos da imaginação pudessem ser transmitidos numa sala de aula, ele chega sozinho à recepção deste hotel de terceira categoria em Havana.

Desaba o peso do corpo sobre uma poltrona vagabunda. Acende um charuto. Aceita com um meneio de cabeça a oferta do garçom : um copo de água mineral.

GGM acha que qualquer tempo concedido a repórteres é puro desperdício. Mas aceitara dar uma entrevista desde que o assunto não fosse literatura. Por imposição do entrevistado, o único tema permitido em nossa conversa seria o mais improvável e aparentemente mais desimportante de todos os assuntos por ventura merecedores de menção num diálogo com um prêmio Nobel de Literatura : o fascínio que as matinês de cinema exercem sobre ele até hoje.

Como todo grande escritor conquista o direito de exercitar pequenas excentricidades sem precisar dar explicações aos intrusos, GGM também determinou com antecedência o número de perguntas: somente seis. Nada além. Número cabalístico ? Jamais se saberá. Não pude perguntar. Não era este o assunto da entrevista.

Eis as descobertas de Gabriel García Márquez sobre as matinês:

1
Por que o senhor considera as matinês tão fascinantes ?

“À hora da matinê – uma palavra francesa metida a empurrões no castelhano – ,no interior dos cinemas, respira-se uma atmosfera lúgubre. Parece que os passos ressoam menos no piso atapetado, mas a verdade é que os que assistem à sessão das três procuram, inconscientemente, passar despercebidos. “É o sentimento de culpa da matinê”, já disse alguém, definindo dessa maneira a atmosfera de mistério e clandestinidade que têm os cinemas às três da tarde”

2
O que é que diferencia, então, o frequentador de matinês dos das outras sessões ?

“Um cinema à hora da matinê se parece a um museu. Ambos têm um ar gelado, uma quietude funerária. E, entretanto, é a hora preferida dos verdadeiros cinéfilos. O verdadeiro cinéfilo vai ao cinema sempre sozinho. Senta-se invariavelmente nas laterais da sala. Não mastiga chiclete nem come qualquer tipo de guloseima. Não lê jornais nem revistas, pois permanece nas nuvens, concentrando a tela com ar de concentrada estupidez até começar a projeção”

3
Pelo que o senhor conseguiu observar no escuro, como é que este cinéfilo se comporta depois de iniciado o filme ?

“Desaperta o cinto, desamarra os cordões dos sapatos e o nó da gravata e trata de apoiar os joelhos ou pôr os pés no espaldar da poltrona dianteira. Cinco minutos depois de começada a a projeção, pode estourar uma bomba no cinema que o verdadeiro cinéfilo não se dará conta”

4
Mas não é possível que as matinês sejam povoadas somente por cinéfilos fanáticos. Quem é, então, que faz companhia a eles ?

“Vai também à matinê aquele a quem o cinema não tem a menor importância. É muito provável que a clientela das matinês diminuiria sensivelmente se os colégios secundários fossem fechados. Os estudantes que comumente vão ao cinema em grupos não têm outro interesse além de se refugiar em lugar seguro enquanto as aulas passam”.

5
O fato de estudantes se refugiarem nas matinês para escapar das aulas explica o ar de estranha clandestinidade dessas sessões de cinema ?

“Como todos nós o fizemos alguma vez, é também muito provável que essa seja a origem do “sentimento de culpa” e da sensação de clandestinidade de que nós, adultos, padecemos na matinê. Devido a esse pequeno público, um cinema às três da tarde é o lugar mais seguro para um encontro escondido, para os amores secretos – por qualquer motivo – e para fugir a uma obrigação inadiável”.

6
Qual foi a melhor definição que o senhor já ouviu sobre as matinês ?

” “Quando tiver um problema sem solução, vá à matinê´´, dizia, há algum tempo, o gerente de uma importante empresa ao chefe de relações públicas : na quarta-feira da semana seguinte, eles se encontraram à saída de uma matinê”.

Meia-noite e meia. Gabriel García Márquez disfarça o bocejo, mas, dois minutos depois, emite um suspiro de cansaço e impaciência, como a dizer que chega, basta, já tinha dito o que queria sobre o mistério das matinês, um assunto mais importante do que todas as inúteis teorias literárias.

Despede-se com um aperto de mão pouco convincente. Em vinte segundos, desaparece de vista, na penumbra de um corredor de hotel mal iluminado nesta noite de julho em Havana.

***************************
(*) PS: Tanto os encontros com Gabriel García Márquez em Havana quanto as perguntas da entrevista são imaginários : um exercício de realismo mágico amador. Mas as divagações de García Márquez sobre as matinês são verdadeiras : foram extraídas do texto “Por que você vai à matinê ?”, publicado no livro “Textos Andinos” (Editora Record)

Posted by geneton at 01:36 AM

setembro 15, 2009

BERT KEIZER

O MÉDICO-FILÓSOFO ENSINA COMO ENCARAR A MORTE SEM PÂNICO : CADA UM DE NÓS JÁ ESTEVE MORTO POR MILHÕES DE ANOS, ANTES DE NASCER. NÃO FOI NADA DIFÍCIL. MORRER É COMO DORMIR SEM SONHAR

CENA 1.EXTERIOR.DIA. AMSTERDÃ, HOLANDA

O Dr.Morte anda por uma rua chamada Vondelstraat, no centro de Amsterdã, numa bicicleta de aros cor de prata. Veste um casaco de couro preto. Os cabelos, embranquecidos pelos cinqüenta e nove anos, estão ralos. Os óculos de aros finos ampliam um olhar inquisidor. O céu encoberto por nuvens escuras dá à paisagem um toque apropriadamente melancólico.

Depois de prender a bicicleta a um poste com uma corrente, numa atitude que revela uma precaução exagerada, o Dr. Morte caminha para o encontro marcado com o entrevistador.

CENA 2. FLASH BACK: O AVISO DA CIGANA

Pausa para uma digressão: a visão da bicicleta de aros cor de prata evoca a lembrança da única consulta que fiz a uma cigana, a serviço de uma edição especial do Almanaque Fantástico, em 2005.
A Cigana Esmeralda disse que eu tomasse todo cuidado antes de viajar em carros prateados, porque as cartas do baralho que ele manuseava diante de meus olhos descrentes revelavam que havia risco de um grave acidente. Problemas no freio. Mas ela nada disse sobre bicicletas de aro prateado circulando sob o céu de chumbo de Amsterdã. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres, sopra-me com uma voz claudicante: “Vá em frente! Sinal verde para a entrevista”

CENA 3. PEQUENA INTERVENÇÃO DO NARRADOR

É bom prestar toda atenção ao que este homem diz. Porque o que ele diz tem tudo a ver com o destino de cem por cento dos seres humanos: a morte. Não é recomendável fazer de conta que o assunto não é fascinante. Porque é. Não adianta chamar o assunto de “mórbido”, “deprimente”, “lastimoso”, “incômodo”, “desagradável”.

É bobagem recorrer a este velho arsenal de adjetivos, porque eles, no fim das contas, servem apenas como desculpa para que não se encare um fato irrevogável: um dia, o planeta seguirá existindo sem nossa presença.

“Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a idéia morte faz que com tudo passe a valer a pena. E torna tudo impossível, também. É, portanto, um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas!”, ele diria, durante nossa entrevista. “Não, eu não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”.

CENA 4. O PERSONAGEM PRINCIPAL ENTRA EM CENA

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O médico que encara a morte: autor de um belo livro (Foto:GMN)

Hora das apresentações. O homem se chama Bert Keizer. É um caso raro de médico que é filósofo. Ou filósofo que é médico. Formou-se em Filosofia na Inglaterra. Em seguida, decidiu estudar medicina, na Holanda, no início dos anos setenta. Formado, passou uma temporada no Quênia. Desde o início dos anos oitenta trabalha com pacientes terminais.

Pai de um casal de filhos, Bert Keizer pratica eutanásia, quando um paciente terminal lhe pede. Ou seja: ajuda o paciente a morrer. O debate jamais terminará: um médico – o profissional encarregado de zelar a todo custo pela vida – deve ou não apressar a morte de um paciente? Deve, sim, se médico e paciente estiverem na Holanda.

Keizer faz um cálculo aproximado: já deve ter tratado de cerca de 1.500 pacientes terminais. Destes, 25 optaram pela eutanásia. Pediram – e receberam – ajuda do médico para que morressem logo.

A bem da verdade, é injusto chamar Keizer de “Doutor Morte”. O médico-filósofo pratica, sim, eutanásia, a pedido de pacientes, mas é incapaz de pronunciar uma palavra de simpatia à morte. Prefere, sempre, oferecer consolação e alívio a quem vê o apagão final se aproximar.

CENA 5: DE COMO O MÉDICO SE TORNOU UM SUCESSO EDITORIAL

Durante anos, Keizer fez anotações sobre a morte. Nunca publicara nada. Um dia, resolveu reunir as anotações num livro, publicado por uma pequena editora holandesa. Sucesso imediato. O texto do médico-filósofo é envolvente, inspirado. Não resvala jamais na pieguice. Uma grande editora inglesa se interessou pela aventura literária do médico, uma espécie de Drauzio Varella holandês. O livro “Dancing With Mister D” (“Dançando com A Morte”) fez sucesso na Inglaterra. A Editora Globo lançou a edição brasileira.

Neste momento, o narrador passa a palavra para o médico-filósofo. O que ele diz nos ajuda a falar sobre o indizível, a entender o incompreensível.

CENA 6. O NARRADOR SAI DE QUADRO. CLOSE DO MÉDICO – QUE FALA OLHANDO PARA A CÂMERA

“ Nem sempre é possível salvar vidas. Uma das coisas que devemos lembrar é que a porcentagem de pessoas que morrem é de cem por cento! Todo mundo vai morrer um dia. A medicina tenta nos afastar da morte. Mas não funciona. Porque todos nós temos de morrer.

Uma das razões por que entrei na Medicina foi a vontade de procurar formas de diminuir o sofrimento alheio. Ao insistir, por exemplo, em lançar mão de recursos tradicionais, a Medicina pode até aumentar o sofrimento de quem se aproxima da morte. Mas o médico pode diminuir o sofrimento se tiver a coragem de encarar o fato de que aquela pessoa vai morrer. Assim, ele poderá transformar este processo em algo suportável”.

“O que ocorre na eutanásia é que você dá ao paciente um comprimido para dormir. Barbitúricos . Você não dá em forma de comprimido. Dá em forma de pó, dissolvido em glicerina e álcool. É uma poção, um drinque. Metade de uma xícara de café. Você dá. O paciente bebe. Em um, dois minutos, minuto, adormece. Não morre: adormece. Você, médico, faz uma promessa ao paciente: se ele, depois de adormecer, não tiver morrido depois de cerca de quarenta e cinco minutos, você dará uma pequena injeção letal, uma substância que se usa em cirurgias. Mas o paciente sabe que, quando tomar o comprimido dissolvido, morrerá. Se o paciente não puder engolir, você dará uma injeção, para administrar os barbitúricos. Também neste caso, os pacientes,primeiro, adormecem. Depois, morrem durante o sono. Parece terrível, mas não é uma maneira ruim de morrer. É cair no sono na melhor das companhias”

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Keiser: só há duas maneiras de pensar sobre a morte (Foto:GMN)

CENA NUM QUARTO DE HOSPITAL: O MÉDICO ESPERA PELO SUSPIRO FINAL DA MULHER QUE TINHA PEDIDO PARA MORRER. MAS ELA DIZ: “AINDA ESTOU PENSANDO….

“Aconteceu uma vez com uma senhora que tinha tomado esta poção de barbitúricos. Eu e a filha desta mulher estávamos em pé, ao lado da cama, à espera do momento em que ela adormecesse e, em seguida, morresse. A mulher sentiu esse silêncio, notou nossa expectativa de que ela perdesse a consciência. Neste momento, ela nos disse: “Ainda estou pensando….”, o que foi, realmente, engraçado. Mas sei que ela tinha a sensação de estar deslizando rumo a um abismo. Mas o que ela disse trouxe alívio para aquele momento”.

EUTANÁSIA SÓ EXISTE QUANDO O PACIENTE, CONSCIENTE, PEDE PARA MORRER. QUALQUER OUTRO CASO NÃO É EUTANÁSIA: É MEDICINA PALIATIVA

“Aqui, no meu país, a eutanásia é definida como “suicídio assistido por um médico”. Ou seja: o médico dá a você uma overdose, em caso de sofrimento insuportável sem qualquer perspectiva de recuperação. O médico pode, ao invés de dar a dose a você, administrá-la ele mesmo, se você pedir. Isso é que é eutanásia.

Mas as pessoas têm idéias confusas sobre a eutanásia, porque pensam que é o que ocorre quando, ao tratar de um paciente terminal, que entrou mais ou menos em coma, o médico dá a ele uma dose extra de morfina, para que ele morra um pouco mais rápido. Isso não é eutanásia! Isso é tratar de um paciente terminal. Para nós, o pedido feito pelo próprio paciente para que se pratique a eutanásia é fundamental.

Para que haja eutanásia, é preciso que alguém, em plena consciência, peça para morrer. Somente nestes casos, a eutanásia é possível. Em todos os outros casos, fala-se de medicina paliativa. Ou seja : o bom tratamento de um
paciente terminal”.

UM INSTANTE DE DÚVIDA: DEVERIA OU NÃO TER AJUDADO UM HOMEM “COM RAIVA DA VIDA” A MORRER ?

“Eu me lembro de um caso de eutanásia que me deixou intrigado…Um homem me fez ajudá-lo a se suicidar. Era um doente terminal de câncer de pulmão. Ia morrer. Mas ele fez aquilo com raiva. Estava com raiva dos médicos que o trataram, porque ele pensou que seria curado. Mas os médicos não o curaral. O homem ficou, então, furioso. Nesta raiva, ele contou com minha ajuda para se “vingar” da vida. Hoje, acho que é errado, não é um ato equilibrado de um homem sábio, mas um ato raivoso de um homem ferido. Não me sinto bem com relação a este caso”.

O MEDO ÍNTIMO DO MÉDICO QUE MATA: MORRER NAS MÃOS DE UM MÉDICO INÁBIL

“Tenho medo da extinção, sim. Isso me preocupa. Mas, biologicamente, sei que não existe escolha. Tenho também medo de morrer nas mãos de um médico que não saiba como cuidar de mim. Ou seja: um médico que continue tirando raios-x, em vez de me consolar e me dar analgésicos.

Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a morte faz com que tudo valha a pena. E torna tudo impossível. É um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas”.

SÓ HÁ DUAS MANEIRAS DE PENSAR NA MORTE. UMA É BOBA. A OUTRA É ESTÚPIDA

“Há duas maneiras de pensar na morte. Você pode pensar na morte o tempo todo, o que é uma bobagem. Também pode não pensar nunca, o que é igualmente estúpido. É difícil encontrar um meio termo. Há quem diga que perco tempo demais me preocupando com a morte. Mas, quando a gente envelhece, estatisticamente passa a ficar mais próximo da morte do que quando tínhamos quinze anos, por exemplo. Não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”

NÃO SE PODE OLHAR DIRETAMENTE PARA O SOL. NEM PARA A MORTE: “A GENTE NÃO PODE ENCARAR O NADA”

“Penso em La Rochefoucauld – que disse: “Não se pode olhar diretamente para o sol – ou para a morte”. É verdade: a gente não pode encarar o Nada, assim como não pode treinar os olhos para encarar o brilho do sol. Não se pode olhar para o Nada. É um abismo. Nem os que estão se aproximando da morte olham para ela! Pelo contrário. Preferem olhar para os que estão próximos e dizer: “Obrigado”, “aproveite”, “você é inesquecível”.

A morte é, portanto, uma daquelas condições que não podemos imaginar. Podemos, por exemplo, olhar para a noite passada. Ali, estávamos “mortos”. Porque estar dormindo sem sonhar é como estar morto. É o que todo mundo faz toda noite. Não é nada de grandioso. Mas o medo de uma situação irrecuperável – o “não-ser” – é uma das piores coisas sobre as quais temos de pensar. Porque não podemos imaginar o universo sem nós. A gente pensa: se morremos, todo o universo morre. É inimaginável que as coisas continuem depois”

A GRANDE SAÍDA É IMAGINAR: “DURANTE MILHÕES DE ANOS NÃO ÉRAMOS NASCIDOS. ISSO NUNCA FOI UM PROBLEMA PARA NÓS!”

“A vida não é perfeita. O que acho que serve de consolo é o fato de que podemos olhar para a morte com alguma distância, com clareza. Não se pode viver sem ilusões. Mas deve-se ter o menor número possível de ilusões. A tarefa de se livrar das ilusões é a Filosofia. Buscar a clareza na vida é uma atitude que nos ajuda a combater o pessimismo. A filosofia é uma maneira de criar clareza sobre nossas confusões.
É impossível contemplar o nada, o não-ser. Mas devemos pensar nos milhões de anos em que não éramos nascidos. O fato de não termos existido antes não é um problema para nenhum de nós. Qualquer criança pode entender!

É algo que não incomoda a ninguém. Mas aí nós nascemos, vivemos por sessenta anos – por exemplo – e morremos. Por milhões de anos adiante, estaremos mortos. O fato de não termos existindo antes não é um problema, mas o fato de que estaremos mortos por milhões de anos adiante nos incomoda! É engraçado este incômodo, porque não faz sentido. Creio que este incômodo acontece porque, neste caso, estamos falando de nossa própria morte, algo que não podemos imaginar. Não podemos nos imaginar não estando aqui!

Mas, antes de nascer, você esteve morto por milhões de anos. Isso não foi nada difícil. Ou foi ? Claro que não”.

Posted by geneton at 01:38 AM

setembro 14, 2009

ABDEL BARI ATWAN - PARTE 3

O HOMEM QUE CAMINHOU AO LADO DE BIN LADEN PELAS MONTANHAS GELADAS DO AFEGANISTÃO: A AL-QAEDA DESCOBRE O PODER DA INTERNET NA GUERRA DE PROPAGANDA!

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Bari Atwan & Bin Laden: caminhada numa montanha no Afeganistão (Foto: cortesia Abdel Bari Atwan)

Jornalista é bicho esquisito. O entrevistado dá os anéis, mas ele quer os dedos. O entrevistado dá um boi, mas ele quer a boiada.

Assim caminham as redações.

Abdel Bari Atwan, o jornalista que foi convocado pela Al Qaeda para um diálogo olho-no-olho com Osama Bin Laden, aceitou nos dar uma longa entrevista, em Londres – depois de alguma relutância.

Terminada a gravação, pedi encarecidamente ao entrevistado que me cedesse cópias das fotos que ele tirou do megaterrorista Bin Laden.

Atwan tinha me dado um boi : a entrevista. Eu estava pedindo a boiada.

Faz parte.

A insistência, desta vez, foi premiada : o homem nos “brindou” com cópias de fotos que ele próprio tirou de Bin Laden, nas montanhas geladas do Afeganistão.

Um militante da Al Qaeda fez, a Atwan, o favor de clicá-lo ao lado do chefe Bin Laden. Assim, Atwan pôde descer das montanhas para a planície com uma prova indiscutível de que o encontro existiu ( Bin Laden não permitiu gravações).

Bari Atwan chama a atenção para um detalhe que nem sempre é levado em conta: a Al-Qaeda, hoje, já não precisa fazer, pessoalmente, a catequese de militantes. A “ideologia” da organização se espalha via Internet.

Eis a terceira e última parte de nossa entrevista com Abdel Bari Atwan sobre os encontros que ele teve o chefão da Al-Qaeda, Osama Bin Laden, antes dos atentados do 11 de Setembro:

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Atwan e Bin Laden: diálogos e caminhadas, sem gravador por perto (Foto: cortesia Abdel Bari Atwan)

“Amo a experiência americana. Mas, para nós, árabes, muçulmanos, povos do Terceiro Mundo,o problema é a política externa americana – que vem nos destruindo!”

Que tipo de sentimento o senhor tem em relação aos Estados Unidos?

“Amo os Estados Unidos. Amo a experiência americana. Imigrantes de todas as partes do mundo foram ao país. Criaram uma superpotência. É um país multicultural, multiétnico, multirreligioso. Nós encontramos nos Estados Unidos todas as cores, todas as culturas, todas as religiões que, ao trabalharem juntas, conseguiram criar uma grande superpotência. A igualdade, a democracia, os direitos humanos, a constituição, tudo forma uma bela experiência. Gostaria que tivéssemos esta experiência em todo o mundo.

Mas, para nós, árabes, muçulmanos, povos do Terceiro Mundo,o problema é a política externa americana – que vem nos destruindo!

Os Estados Unidos apóiam ditaduras no Oriente Médio e lançam guerras. Hoje, enfrentamos três guerras no mundo islâmico: estão nos combatendo no Afeganistão, estão nos combatendo no Iraque, estão nos combatendo na Palestina, porque apóiam ocupações israelenses. É este o nosso problema com os Estados Unidos.

Se os Estados Unidos tivessem uma política externa justa, que nos tratasse, a nós, árabes e muçulmanos, como trata o povo americano, com igualdade, sob as regras da lei, não haveria problema. Se tivéssemos um sistema judiciário independente, como eles têm, seria excelente”.

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Bin Laden: livros e armas (Foto: Abdel Bari Atwan)

Bin Laden convidou o senhor para entrevistá-lo. Por que ele não permitiu que o senhor gravasse a entrevista?

“Fui convidado por Osama Bin Laden para fazer a entrevista. Bin Laden chegou a ter um embaixador em Londres – que circulava em público. Não era, portanto, considerado um terrorista. Depois, o embaixador foi preso, porque os Estados Unidos queriam que ele fosse deportado, sob a acusação de que enviou telefones satélite para os acusados de atacar as embaixadas em Nairóbi e Dar es Salaam.

“Um dos colegas de Bin Laden disse-me que Bin Laden não gravou porque não queria cometer erros na construção das frases”
Quando cheguei diante de Bin Laden, fui surpreendido porque ele não queria que a entrevista fosse gravada! Atuei, então, como um estudante: fiquei tomando notas enquanto ele me dava as respostas. Detesto tomar notas assim! Sou editor de um jornal.

Eu nem poderia insistir para que a entrevista fosse gravada ou perguntar por que ele não queria que eu usasse o gravador. Mas, depois, Abu Musab, um dos colegas de Bin Laden, disse-me que Bin Laden não gravou porque não queria cometer erros na construção das frases. Não queria também cometer eventuais equívocos na citação de passagens do Alcorão. Porque erros poderiam ser usados contra ele, como prova de que ele não seria qualificado, depois, como Mullah ( n: uma espécie de clérigo).

Pareceu-me que Osama Bin Laden estava planejando tudo desde o início: um dia, ele seria o Califa, o líder de todos os islâmicos do mundo. Não queria, então, que alguém tivesse em mãos qualquer prova de que tivesse cometido erros ou de que não conhecia o Alcorão ou a gramática árabe!”

“Perguntei :”Onde é que fica o toilete?”. Responderam: “Toilete? Você pensa que aqui é o Sheraton ou o Hotel Hilton? Trate de encontrar uma árvore. Vá se lavar lá”.

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Bin Laden: os motivos do "ódio" (Foto: Abdel Bari Atwan)

O senhor rezou com Bin Laden?

“Rezei. Um grupo me esperava do lado de fora, às quatro horas da manhã, debaixo de uma temperatura gelada, algo como vinte e cinco graus abaixo de zero! Deram-me um pouco de água. Porque a reza da manhã é a única em que você precisa se lavar. Trouxeram-me, então, água numa espécie de bacia. Disseram que era para a higiene matinal. O que notei é que eles iam para fora da caverna, para se levar. Precisavam tirar as calças. Mas estava gelado. Perguntei :”Onde é que fica o toilete?”. Responderam: “Toilete? Você pensa que aqui é o Sheraton ou o Hotel Hilton? Trate de encontrar uma árvore. Vá se lavar lá”.

Como sou tímido, tive de ir para longe da caverna. Não sou como eles. E estava gelado! Tive a impressão de que minhas pernas iam ser separadas do meu corpo.

Terminei rezando depois de Osama Bin Laden. Graças a Deus, ele me pediu para deixar o grupo que estava rezando, porque minha participação poderia ter sido catastrófica.Eu poderia cometer equívocos ao citar passagens do Corão”.

A morte de Bin Laden hoje significaria o fim da Al-Qaeda?

“Se você me fizesse esta pergunta antes da invasão do Iraque ou antes do 11 de setembro, eu responderia que a morte de Bin Laden significaria o fim da Al- Qaeda. Porque no Oriente Médio, no mundo islâmico, as organizações giram em torno de um homem. Quando o líder é morto, a organização se desintegra. Mas a Al Qaeda é diferente. A organização se transformou.

“O que existia, antes, era uma Al-Qaeda. Hoje, há várias mini-Al-Qaedas. É como um franchising, uma rede de lanchonetes”

Osama Bin Laden desapareceu nos últimos anos. Mas a Al Qaeda vem se fortalecendo cada vez mais.

É dez vezes mais do que era antes, em consequência da guerra da política externa do presidente George Bush. A Al-Qaeda deixou de ser o que era antes: uma organização em forma de pirâmide, em que existia uma cúpula e uma base : hoje, a Al-Qaeda é uma organização que se espalhou.

O que existia, antes, era uma Al Qaeda. Hoje, há várias mini-Al Qaedas. É como um franchising, uma rede de lanchonetes como a Kentucky Fried Chicken. Hoje, existe Al Qaeda no Afeganistão, Al Qaeda no Paquistão, Al Qaeda na Arábia Saudita, Al Qaeda no Iraque, Al Qaeda na Somália. Amanhã, quem sabe, haverá Al Qaeda na Europa, Al Qaeda em Darfur.

As mini-Al Qaedas são totalmente independentes do quartel-general da organização. Igualmente, a Al Qaeda já não depende da TV Al Jazeera ou do jornal Al Quds para divulgar seus comunicados.

Hoje, a organização dispõe de uma mídia alternativa: os sites na Internet! Assim, a Al Qaeda consegue chegar na frente do governo e dos serviços de informação americanos. A ideologia da Al Qaeda pode ser vista na Internet. Qualquer pessoa pode acessar esta ideologia: hoje, ninguém precisa ir ao pregador ou ao líder ou esperar por instruções ou por lições sobre a ideologia da Al Qaeda. É este é perigo!”.

(A íntegra do depoimento de Abdel Bari Atwan aparece no “Dossiê História”/Editora Globo)


Posted by geneton at 01:38 AM

setembro 13, 2009

UMA ENTREVISTA SOBRE O LIVRO "DOSSIÊ GABEIRA" : FAZER JORNALISMO É SER IMPERTINENTE. FAZER JORNALISMO É JOGAR PEDRA NA VIDRAÇA

Aqui, uma entrevista sobre o livro "Dossiê Gabeira" :

http://www.geneton.com.br/archives/000320.html

Posted by geneton2 at 11:56 PM

UMA ENTREVISTA SOBRE "DOSSIÊ GABEIRA" : FAZER JORNALISMO É JOGAR PEDRA NA VIDRAÇA

O Jornal do Brasil de 13/09/09 publicou, em página inteira do Caderno B, uma entrevista sobre o livro "Dossiê Gabeira : o Filme que Nunca Foi Feito". Eis a íntegra da entrevista ao repórter Bolívar Torres:

Como foi o contato com Gabeira durante as entrevistas? Alguma questão específica provocou mal-estar ou má vontade da parte dele? Qual foi a duração total das entrevistas?

"O projeto era o de gravar uma longa entrevista em regime de esforço concentrado: de preferência, de uma só vez. Assim foi feito. Durante seis horas - somente interrompidas por um breve intervalo para refeição - , bombardeei Fernando Gabeira com as perguntas sobre temas que me pareceram relevantes. A editora alugou por um dia uma suíte de um hotel em Ipanema. Um fotógrafo - Gilvan Barreto - documentou a cena.Dois amigos jornalistas - Ricardo Pereira e Jorge Mansur - gravaram em vídeo. Depois, fiz outras duas entrevistas com Fernando Gabeira, para complementar a apuração. Sou suspeitíssimo para falar, mas garanto que quem mergulhar nas páginas do "Dossiê Gabeira" fará uma viagem pelas últimas décadas da aventura brasileira"


O episódio do sequestro já foi abordada pelo próprio Gabeira em O que é isso, companheiro?, além da adapação para o cinema do livro e do documentário Hércules 56. Por que revisitar esse fato? Havia questões ainda mal-resolvidas? Na sua opinião, qual o peso do sequestro na trajetória de Gabeira? O que representa?

"Respondo sem a menor dúvida: todos,todos os fatos merecem ser revisitados - especialmente pelos jornalistas. Eu diria que é uma obrigação profissional. O jornalista que dá um fato por "encerrado" ou "esgotado" pode estar fazendo qualquer coisa - menos jornalismo. Porque uma das funções básicas do jornalismo é justamente o de remover as camadas que encobrem os acontecimentos. Nem sempre a missão é bem sucedida. Mas o simples fato de tentar já é essência do jornalismo. Há dezenas, centenas de questões a serem discutidas sobre um acontecimento tão importante quanto foi o inédito sequestro de um embaixador estrangeiro no Brasil. Jamais se tinha feito algo parecido. O sequestro foi o mais "espetacular" golpe contra o regime militar, naquele momento. Ou seja: é um fato interessantíssimo. Qualquer jornalista que julga que um fato interessantíssimo pode ficar "velho" ou "superado" ou "esgotado" deveria mudar de profissão, para felicidade geral de leitores, ouvintes e telespectadores".

Por que a opção de dar um recorte cinematográfico à série de entrevistas, com introduções que evocam o roteiro de um filme ainda não realizado? Seria uma espécie de resposta ao fato de Hércules 56 ter ignorado Gabeira?

"Não. Não tive qualquer intenção de responder ao documentário Hércules 56, um filme, aliás, bem realizado. Não sou nem nunca fui assessor de imprensa de ninguém - menos ainda de políticos, por mais respeitáveis que eles sejam. O meu partido é outro. Pertenço ao PPB, o Partido dos Perguntadores do Brasil. As referências "cinematográficas" apenas realçam o tom aventuresco de certas passagens, como, por exemplo, o tiro que Gabeira levou ao tentar, em vão, fugir dos chamados "agentes da repressão" em São Paulo. O livro começa com um tiro. É como se dissesse: o pau vai comer. A história que se vai retratar aqui não é brincadeira"

Você acredita que ainda hoje há uma mitificação em torno de algumas figuras dos anos de chumbo, algum tipo de aura que prejudique sua real compreensão? Ao fazer o livro, ficou com medo de alimentar o "mito Gabeira"?

"Não. Mas é possível distinguir dois momentos diferentes em relação aos guerrilheiros que combateram a ditadura. Num primeiro momento, especialmente depois da volta dos exilados, houve uma (compreensível) glorificação da resistência. Com o passar do tempo, figuras como o próprio Gabeira passaram a desenvolver uma visão crítica sobre a prática da luta armada. Um exemplo bem específico: hoje, Gabeira diz que vê o sequestro com os olhos do refém - não dos sequestradores"

Ainda nessa questão, fica claro no livro que o episódio do sequestro persegue Gabeira, e até hoje - mesmo depois de demonstrar arrependimento - está associado à sua figura. A incursão na ilegalidade, que se estende às aventuras guerrilheiras no exílio, alimentam essa romantização da sua figura?

"Há uma certa aura romântica em torno de guerrilheiros. Aventuras vividas nos anos de chumbo de combate ao regime militar terminam envolvidas por uma névoa de romantismo. Mas, com o tempo, é possível ver que o filme não é nem poderia ter sido tão romântico assim. Houve violência, derramamento de sangue, vidas perdidas, guerras sujas. O Brasil de hoje deve respirar aliviado, porque dificilmente um quadro daquele se repetirá"

Paulo Cesar Pereio disse: "Uma das virtudes medulares do Gabeira é a inteligência. Mas ele é paradoxal". Mas talvez seja justamente este o ponto mais interessante de Gabeira. Pelas entrevistas, fica claro que, desde os tempos da polarização cultural que se estabeleceu no Brasil nos anos 60 e 70, já era um personagem complexo, capaz de questionar as ideias feitas dos dois lados - mesmo estando comprometido com um lado específico. A principal característica de Gabeira, dentro da história da política do Brasil nos últimos 40 anos, seria a de apresentar um alternativa pluralista às radicalizações e certezas que o cercavam?

"Minha tendência é a de concordar com esta avaliação. Bem ou mal, com erros e acertos, avanços e recuos, a trajetória de Fernando Gabeira parecve apontar para a defesa de uma pluralidade que é sempre saudável e necessária"

Quando perguntado se se considera um "rebelde fracassado", Gabeira diz que não é mais rebelde, apenas fracassado. Para muitos, Gabeira é a esperança de uma renovação e modernização de uma esquerda mais pragmática no país. Será que esta modernização passa justamente por um reconhecimento do "fracasso", ou seja, de que não há caminhos épicos ou românticos na política moderna? Como este "arrependimento" movimenta, de modo geral, a geração de Gabeira nos dias atuais?

"Não saberia falar em nome da geração de Gabeira. Mas eu diria que,independentemente de qualquer coisa, a atualização das visões do mundo é uma tarefa indispensável. Não é fácil. Pode ser um processo doloroso. Por exemplo: não é fácil admitir que as utopias - que provocaram paixões políticas em tantos jovens militantes por tanto tempo - foram, nas palavras de Gabeira, "sanguinárias", porque terminaram justificando um enorme rol de violências. É esta a leitura que ele faz do Século XX, na entrevista que me concedeu: as utopias foram sanguinárias. Isso é dito por um ex-guerrilheiro que se empenhou em implantar uma "utopia" socialista. Posições assim despertam rancores, polêmicas, discussões. Tomara que o "Dossiê Gabeira" possa cumprir este papel: o de provocar um debate sobre a trajetória de uma geração que tentou mudar o Brasil"

Por outro lado, para além do pragmatismo, Gabeira também defende a ideia de que política sem esperança é "insuportável". Até que ponto Gabeira se equilibra entre o realismo e o sonho, entre o político e o artista?

"Não é só a política sem esperança que é insuportável. A vida sem esperança pode ser uma sucessão cinzenta de dias. É preciso sonhar com o possível - e o impossível. O fogo que alimenta esses sonhos é que move o mundo para frente. É preciso, apenas, estar atento para não repetir erros do passado. Neste sentido, o depoimento de Gabeira no livro pode ser super-didático. Em resumo, ele diz que, hoje, já não há grandes roteiros de transformação a serem seguidos. Ninguém precisa pedir a bênção a Karl Marx todo dia de manhã. Mas há espaço para sonhos que podem ajudar a melhorar a vida de cada um e de todos. A diferença é que ninguém precisa acreditar, por exemplo, que o Estado deve mandar na vida de todos, como uma parte da esquerda achava nos anos sessenta, setenta e oitenta. Igualmente, não se deve acreditar que o "mercado" é que deve reger nossas vidas. O segredo da sabedoria, hoje, segundo Gabeira diz na entrevista, é saber qual a melhor combinação que pode ser feita entre estado e mercado, em momentos históricos específicos"

Quando você chega à questão recente do uso indevido de passagens aéreas na Câmara, Gabeira diz que se sente mais leve, que perdeu o "figurino de reserva moral". Até que ponto o episódio pode mudar a imagem - e a carreira política - do político e intelectual?

"Fiz perguntas duras sobre o assunto. Perguntei o que qualquer cidadão comum perguntaria, se tivesse a chance de confrontar Gabeira sobre a questão do uso indevido de passagens áeras cedidas aos parlamentares pela Câmara dos Deputados. Gabeira reconheceu o erro, plenamente"

O que Gabeira tem ainda a acrescentar ao desacreditado cenário político brasileiro, com sua ainda - jovem - democracia?

"Só ele poderá responder. Prefiro pensar na contribuição, mínima que seja, que os jornalistas podem dar ao cenário brasileiro. Que contribuição pode ser esta ? Criar memória, por exemplo. Creio que toda profissão, todo profissional precisa de um lema para ir em frente. Escolhi um: "Fazer jornalismo é produzir memória". Há outros. Fazer jornalismo é desconfiar. Fazer jornalismo é ser impertinente. Fazer jornalismo é incomodar. Fazer jornalismo é não dar tapinha nas costas dos outros. Fazer jornalismo é não tratar o entrevistado como amiguinho (é o que a gente vê, lastimavelmente, na esmagadora maioria das entrevistas com celebridades de todos os tipos, em jornais, rádios, TVs, blogs, seja onde for). I´am sorry, mas meu time é outro. Fazer jornalismo é jogar pedra na vidraça. Fazer jornalismo é ter a ilusão de que vale a pena"

Posted by geneton at 11:45 PM

O FIM DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL: OS CROQUIS DOS VESTIDOS DE SANDY E.....NOELY!

Lá estava eu, distraído, ocupado em navegar pela internet, quando, sem aviso prévio, sou atingido pela seguinte chamada, estampada na capa da Folha de S.Paulo on line:

Exclusivo
Veja os croquis dos vestidos de Sandy e Noely

Pergunto aos céus: quem disse que quero ver os croquis do vestido que dona Sandy usou para se casar ? Quem diabos é Noely ? Que tipo de ser vertebrado se interessaria, a sério, em contemplar os tais croquis? O que é que estou fazendo neste planeta ? Quem foi que me jogou aqui ? Onde é que fica a saída ? Qual é o número do resgate, pelo amor de Deus ? Se eu ligar 190, alguém vai me socorrer ?

A civilização ocidental, tal como se conhecia até hoje, acabou.

Posted by geneton at 02:28 PM

ABDEL BARI ATWAN - PARTE 2

UM TELEFONEMA ENIGMÁTICO DE UM MILITANTE DA AL-QAEDA. TEMPOS DEPOIS, VEIO O 11 DE SETEMBRO

Eis a segunda das três partes do depoimento de Abdel Bari Atwan, dono de um jornal de língua árabe sediado em Londres – o homem que encarou Bin Laden:

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Atwan: contatos imediatos com Bin Laden (Foto: GMN)

É verdade que o senhor recebeu informação prévia sobre aquele que viria a ser o pior ataque terrorista da história?

“Eu estava esperando um ataque da Al-Qaeda contra os Estados Unidos. Mas, para ser sincero, não esperava que fosse na escala do que aconteceu em Nova York, no 11 de setembro.

O braço direito militar de Bin Laden tinha me dito que a Al Qaeda iria ensinar aos Estados Unidos uma lição muito, muito grande , algo de que os americanos jamais se esqueceriam. Recebi, portanto,a informação de que “alguma coisa” iria acontecer, porque Osama Bin Laden estava se preparando para algo “grande”. A ligação telefônica que recebi dizia : “Pode esperar que alguma coisa vai acontecer”.

Imaginei que a Al-Qaeda iria atacar uma embaixada americana. Mas nunca me ocorreu que eles fossem tão longe, a ponto de planejar um ataque ao World Trade Center, o maior centro financeiro do mundo. Mas eles planejaram o ato muito bem, o que, para mim, foi uma surpresa” .

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Atwan : sinais da Al-Qaeda (Foto : GMN)

O senhor se arrepende de não ter avisado a ninguém sobre a possibilidade de um grande ataque?

“Recebemos, durante todo o tempo, informações sobre ataques que, no fim, terminam não acontecendo. Pensei, então, que este tipo de telefonema que recebi trazia um tipo de informação igual a tantas outras.

Nós, árabes, habitantes do mundo islâmico, estamos sempre ameaçando atacar ou praticar vingança. As ameaças às vezes se realizam mas, em outras, não. Eu não estava realmente certo de que eles estavam preparando um ataque da escala do que aconteceu. Não levei o aviso a sério. Mas, se eu pudesse evitar um ataque maciço como aquele, eu evitaria”

“Quando eu mencionava os Estados Unidos, podia ver o sangue subir à cabeça de Bin Laden”

Que tipo de comentário Bin Laden fez ao senhor sobre a possibilidade de fazer um grande ataque contra os Estados Unidos?

“Bin Laden estava cheio de ódio contra os Estados Unidos. Pude ver. O que ele queria era se vingar, fazer um grande ataque. Era o tempo todo assim. Quando eu mencionava os Estados Unidos, podia ver o sangue lhe subir à cabeça."

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Bin Laden me disse que queria se vingar. Queria atacar. Queria promover um ataque muito, muito grande. Queria atingir os Estados Unidos no bolso. Ou seja: abalar o nervo financeiro do país de uma maneira ou outra. Mas não havia como dizer. O que ele me disse é que um grande ataque exige muita preparação. Não é fácil. Um ataque assim demanda tempo e preparo. Ao me dizer estas coisas, talvez ele estivesse se referindo ao que viria a acontecer no 11 de setembro”.

Qual foi o momento mais assustador do encontro que o senhor teve com Bin Laden?

“Houve três coisas assustadoras.

Primeira: quando estávamos indo para o encontro, em Tora Bora, passamos por estradas primitivas e estreitas. Eram estradas feitas para camelos e burros, não para carros. Quanto mais alta a estrada, mais escorregadia. O motorista devia ter uns dezoito anos. Dirigia como se estivesse numa autoestrada. Fiquei morrendo de medo.

“O motorista respondeu: ” Um grupo estava passando por aqui. Uma grande pedra caiu. Esmagou o carro. Todos morreram. Estão com Deus agora, no paraíso. São mártires”

Segunda: quando a gente estava chegando ao topo da montanha, vi pedras que rolavam sobre a estrada. O motorista parava o carro na estrada, para remover as pedras do meio do caminho. Tudo indicava que outras pedras iriam cair, adiante. Perguntei: “Isso é normal?”. Porque era assustador ver pedras caindo na estrada. O motorista respondeu: “É normal! Dez dias atrás, um grupo estava passando por aqui. Uma grande pedra caiu. Esmagou o carro. Todos morreram. Estão com Deus agora, no paraíso. São mártires. Então, se acontecer algo assim, será bom, porque iremos para o paraíso!”.

Eu disse: “Talvez seja cedo para eu ir para o paraíso. Porque quero fazer a entrevista….”.

Terceira: cinco minutos depois de chegar à caverna, ouvi barulho de tiro, foguetes, tudo.Todo mundo que estava dentro da caverna correu para fora, com suas armas. Fiquei onde estava, na caverna. Quase não me mexi. O som de tiros durou uns quinze,vinte minutos. Eram foguetes, eram bateria anti-aérea.

Quando voltaram, eles disseram: “Isso foi um exercício militar. Os americanos poderiam ter seguido você. Fazemos estes exercícios rotineiramente”.

Quando o exercício ia começar pela segunda vez, segurei um dos soldados e disse: “Por favor, fique comigo! Estou assustado!”. Os outros foram para fora da caverna, mas este ficou comigo. Temi que os americanos poderiam nos atingir. Se atingissem, tudo estaria acabado para nós ali.

“Estava dormindo no mesmo quarto que Osama Bin Laden. Botei a mão embaixo da cama. Puxei. Era um revólver”

“Depois, quando eu estava dormindo no mesmo quarto que Osama Bin Laden, em camas que na verdade eram feitas de galhos de árvores, logo senti que havia alguma coisa incomodando minhas costas. Não eram camas apropriadas. Não estávamos no Hotel Sheraton, afinal de contas. Como a cama era ruim, eu não conseguia dormir direito. Tentei, então, ver o que estava me incomodando. Botei a mão embaixo da cama. Puxei. Era um revólver.

Puxei as outras coisas: era uma caixa de granadas de mão! Descobri que estava dormindo sobre um arsenal!

Bin Laden estava ao lado – dormindo. Posso dizer que ele não roncava. Se alguém quisesse matá-lo, aquela era a melhor oportunidade. Porque eu tinha os revólveres, as granadas, tudo. Mas eu pensaria em algo assim….”

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Atwan : escolhido pela Al-Qaeda para a missão (Foto:GMN)

Qual foi a impressão pessoal mais marcante que Bin Laden deixou no senhor?

“Fala pouco. Não é feito nós, árabes do Oriente Médio ou talvez latino-americanos, que são barulhentos e usam as mãos para falar…Não.

“É calmo. Ri raramente. Fala com suavidade. Jamais interrompe você”

É calmo. Ri raramente. Fala com suavidade. Jamais interrompe você. Espera que você termine de falar. Quando fala, usa poucas palavras. Não é feito nós, que falamos sem parar. Ao mesmo tempo, ele tem senso de humor. Disse-me: “Precisamos da América. Queremos cooperar com eles. Precisamos vender o petróleo que temos. Não podemos beber petróleo. Não dá para beber…”.

A partir do que ouviu de Bin Laden, como é que o senhor explica o ódio extremo que ele desenvolveu contra a civilização ocidental?

“Os Estados Unidos são odiados por Osama Bin Laden – que vive cheio de ódio contra a administração americana, não contra o povo. Bin Laden é contra as políticas americanas, porque sente que, quando estava combatendo as tropas soviéticas no Afeganistão , foi usado pelos americanos e,depois, descartado, como se fosse um lenço de papel. Milhares de árabes mujahedins foram mortos na luta para manter as tropas soviéticas fora do Afeganistão. Osama Bin Laden ficou amargurado. Depois que eles derrotaram as tropas soviéticas, os Estados Unidos os descartaram. Como se não bastasse, os combatentes passaram a ser considerados de terroristas. Ou seja: cumpriram um papel, foram abandonados e, no fim das contas, ainda foram acusados de ser terroristas.

Bin Laden lutou no Afeganistão para libertar o país de tropas estrangeiras. Mas, quando voltou para a Arábia Saudita, viu que havia meio milhão de soldados americanos lá, justamente no país em que ele nasceu. Perguntou: “Qual é a diferença? O que ocorria no Afeganistão era uma ocupação soviética. Aqui, é ocupação americana”.

Feitas as contas, ele sentia que tinha sido deixado de lado e traído pelos americanos. Para ele, os americanos estavam fazendo, na Arábia Saudita, a mesma coisa que os soviéticos tinham feito no Afeganistão”.

A SEGUIR: ÚLTIMA PARTE DO DEPOIMENTO. AS FOTOS DE BIN LADEN. UMA RADIOGRAFIA DA AL QAEDA, A ORGANIZAÇÃO TERRORISTA QUE ELEGEU OS ESTADOS UNIDOS COMO ALVO NÚMERO UM.

Posted by geneton at 01:55 AM

setembro 12, 2009

DIAGNÓSTICO: SOPA DE TAMANCO PERMANECE NA UTI, MAS OS SINAIS VITAIS ESTÃO PRESERVADOS

Ah, se não fossem os funcionários que usam o computador no trabalho para vadiar (ou seja: navegar por sites rigorosamente inúteis como este), o número de acessos do Sopa de Tamanco seria algo próximo de zero.

Obrigado, povo do Brasil! Enquanto os chefes desses especialistas em navegação vadia não desconfiarem de nada, o site estará salvo.

O número de acessos, é claro, continua igual a um macaco prego - patético e a caminho da extinção. Mas haverá sempre um punhado de internautas fiéis, dispostos a resistir até o último post.

Graças a estes anônimos heróis da resistência, o moribundo Sopa de Tamanco, há meses trancafiado numa UTI por absoluta inanição, avisa: os sinais vitais estão preservados.

As notícias sobre nosso desaparecimento foram, obviamente, exageradas.

Posted by geneton at 02:34 PM

ABDEL BARI ATWAN - PARTE 1

AS DESCOBERTAS DO HOMEM QUE ESTEVE FRENTE A FRENTE COM BIN LADEN : O SUPERTERRORISTA TEM MEDO DE GRAVADOR! (PARTE 1)

Perguntei ao Joel Silveira octogenário qual era a grande entrevista que ele gostaria de ter feito mas não fez.

Resposta na ponta da língua : Adolf Hitler.

O maior repórter brasileiro me disse que aproveitaria a entrevista para fazer uma ponderação: “Eu diria a ele : “Hitler, você deveria ter se dedicado à pintura! Não deveria ter abandonado seus quadros. O mundo ganharia um pintor medíocre. Em compensação, se livraria de um psicopata sanguinário”. É claro que, quando eu desse este conselho a Hitler, a entrevista seria imediatamente interrompida. Eu seria levado para fora da sala e executado dez minutos depois”.

Joel ria ao me descrever a cena imaginária.

A escolha de Hitler para a grande entrevista é perfeitamente compreensível.

Todo jornalista que se preza daria a mão direita para ter a chance de interrogar um vilão da magnitude de Hitler.

E hoje? Quem é o vilão que mereceria qualquer sacrifício em troca de uma entrevista ? Eu ofereceria meu time de botão preferido e uma foto autografada de Charlotte Rampling em troca de cinco minutos diante do megaterrorista Osama Bin Laden.

O motivo: o mal é, sempre foi e será jornalisticamente fascinante.

Bin Laden dificilmente sairá de seus esconderijos para brindar um repórter com uma entrevista – menos ainda um brasileiro.

Mas….tive a chance de colher, em Londres, um longo depoimento do homem que interrogou Bin Laden “ao vivo e a cores”, frente a frente, numa caverna no Afeganistão.

Eis o que escrevi depois de entrevistar Abdel Bari Atwan, um dos personagens mais desconfiados que tive a chance de encontrar:

Primeira (e surpreendente ) descoberta: Bin Laden não permite que suas palavras sejam gravadas. O cúmulo do perfeccionismo : não quer que um eventual vacilo na fala seja eternizado numa gravação

Apoiado por um cajado – que lhe confere um ar de pastor de ovelhas – Bin Laden caminha por uma trilha coberta de neve, nas alturas de uma montanha de Tora Bora, no Afeganistão. Com voz suave, descreve qual é a tática que pretende usar para infligir derrotas, vexames, danos e humilhações à superpotência que seus olhos fundamentalistas enxergam como a encarnação do mal na terra: os Estados Unidos da América.

Ao lado de Bin Laden, Abdel Bari Atwan - que detectou a “suavidade” no tom de voz do líder da organização terrorista Al Quaeda- , anota freneticamente tudo o que ouve. Tentou gravar a peroração, mas esbarrou na resistência de Bin Laden a gravadores.

( Atwan procurou saber por que diabos Osama Bin Laden preferia que suas palavras fossem anotadas, ao invés de gravadas. Um dos militantes da Al-Qaeda deu a ele uma informação que serve de pista sobre o que passa pela cabeça deste pastor de ovelhas antiamericanas : Bin Laden não queria gravar porque poderia, quem sabe, cometer um ou outro tropeço na construção de uma frase ou na citação de uma passagem do Alcorão. Diante do que viu e ouviu, Atwan elaborou uma explicação para este demonstração extremada de perfeccionismo : como espera um dia ser entronizado como o califa que comandará os muçulmanos de todo o planeta, Bin Laden não quer deixar, atrás de si, registros de imperfeições, por menores que sejam).

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Abdel Bari Atwan : frente a frente com Bin Laden ( Foto: GMN )

Terminada a peroração de Bin Laden, Atwan descobriu que tinha colhido na fonte, sem intermediários, as duas pontas de um novelo.
Primeira ponta: os motivos do ódio que o homem do cajado devotava aos Estados Unidos ( São dois. Bin Laden reclamou de que os Estados Unidos usaram – e depois abandonaram – guerrilheiros islâmicos “fervorosos” que, nos anos oitenta, lutavam contra as tropas soviéticas que tinham invadido o Afeganistão, um país islâmico. A derrota soviética atendia aos interesses americanos, porque a União Soviética era a grande inimiga dos Estados Unidos no cenário internacional. Segundo motivo: Bin Laden considerou um sacrilégio intolerável a presença maciça de soldados americanos em lugares sagrados do islamismo, na Arábia Saudita, durante o deslocamento de tropas que lutaram na primeira Guerra do Golfo, em 1991. As origens da guerra que ele declararia aos Estados Unidos remontam, então, ao Afeganistão e à Arábia Saudita. Bin Laden também se queixou do apoio americano a “ditaduras corruptas” no mundo árabe).

Segunda ponta: a revelação de Bin Laden sobre a tática que adotaria contra os Estados Unidos ( já, já, Atwan dará detalhes sobre o que ouviu).

O convite para um encontro frente-a-frente com Osama Bin Laden partiu da própria Al-Qaeda. O convidado não vacilou um segundo antes de aceitar

Atwan bate no peito: diz que os três dias que passou em companhia de Bin Laden em Tora Bora o transformaram no jornalista que mais tempo ficou com o líder da Al-Qaeda, antes ou depois do 11 de Setembro.

( Quem é, afinal, este homem a quem Bin Laden fez tantas confidências, antes dos ataques do 11 de setembro de 2001? Abdel Bari Atwan é um palestino, nascido na Faixa de Gaza. Radicado na Inglaterra, dirige um jornal de língua árabe que é publicado em Londres, o Al-Quds al- Arabi. A chance de um encontro face a face com Bin Laden nas montanhas de Tora Bora nasceu depois de um convite da Al Qaeda.

Não por acaso, Atwan se tornou especialista na Al-Qaeda. Disse sim ao nosso pedido de entrevista. Mas demonstrou ser um homem desconfiado. Vive olhando para os lados, como se estivesse se guardando contra a investida de algum intruso imaginário. Sobre a mesa de trabalho, mantém um terço ao alcance da mão, ao lado do teclado do computador. O bigode é de Sadam Hussein. Os cabelos devem ter passado por uma tintura rejuvenescedora).

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Pausa para uma oração no meio da entrevista ( Foto : GMN )

Jornais publicaram que Osama Bin Laden chegou a andar com um cartão de visita de Atwan no bolso. Atwan já declarou, escreveu e repetiu que não endossa nem apóia a “agenda da Al-Qaeda”. Mas é certo que o encontro nas montanhas de Bora Bora serviu para estabelecer uma relação de confiança entre o bigodudo Atwan e o candidato a califa Osama Bin Laden . Basta um exemplo: a Al Qaeda escolheu o jornal de Atwan para divulgar comunicados de repercussão mundial, como, por exemplo, o e-mail em que a organização assumia a autoria dos atentados que abalaram Madrid em 2005.

Aos olhos das autoridades americanas, no entanto, os contatos de Abdel Bari Atwan com a Al-Qaeda podem ter sido meramente profissionais, mas foram suficientes para envolvê-lo sob manto de suspeição. As tentativas que Atwan fez para obter visto de entrada nos Estados Unidos, para atender a convites de universidades, trombaram em dificuldades, restrições e vexames. Atwan desistiu de tentar de novo.

As instalações do jornal Al-Quds al Arabi são modestas. Ficam no primeiro andar de um prédio feio na King Street.

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Começa a gravação. Abdel Bari Atwan vai traçar um retrato falado sobre o homem que declarou guerra à maior potência militar do planeta:

Bin Laden me disse : “Se eu conseguir atrair os americanos para o Oriente Médio, para combatê-los em meu próprio terreno, em meu próprio chão, em meu próprio quintal, será perfeito”

Qual foi o comentário mais marcante que Bin Laden fez ao senhor sobre a luta contra os Estados Unidos?

“Osama Bin Laden me levou para uma “excursão turística” pelas montanhas de Tora Bora. Caminhamos sob um frio intenso. Disse-me: “Não posso combater os americanos nos Estados Unidos , porque é extremamente difícil. É algo que exige grande planejamento e grande esforço. Mas, se eu conseguir atrair os americanos para o Oriente Médio, para combatê-los em meu próprio terreno, em meu próprio chão, em meu próprio quintal, será perfeito. Prometo a você: farei maravilhas, porque esta será uma das melhores coisas que podem acontecer em minha vida: lutar contra os americanos em território islâmico, em território árabe”.

Parece-me que o presidente Bush, um homem esperto, cumpriu este desejo de Bin Laden ao invadir o Iraque e o Afeganistão….Hoje, a Al-Qaeda se reagrupa no Afeganistão; o Talibã, também, impõe perdas nas forças da Otan. Destruíram a reputação da América – política e militar – depois da invasão do Iraque. Veja-se o que a Al Qaeda e outras organizações estão fazendo contra as forças americanas no Iraque: cerca de três mil mortes! Deus sabe o que acontecerá ainda”.

O senhor diz que Bin Laden transformou os Estados Unidos em parte do Oriente Médio. Como é que o senhor explica esta estratégia?

“Bin Laden conseguiu enganar os Estados Unidos. Conseguiu ser mais rápido do que eles: fez o ataque contra o World Trade Center para fazer com que os americanos mandassem tropas para o Oriente Médio e para o Afeganistão. Lá, Bin Laden poderia combatê-las.

“Sabia que, se os Estados Unidos enviassem tropas para o Oriente Médio, enfrentariam o destino que enfrentaram no Vietnam ou que os soviéticos enfrentaram no Afeganistão”

Quem olha para a História vai ver que todos os impérios caíram porque tentaram expandir suas fronteiras e atacar países menores. Parece que Bin Laden estudou História muito bem. Porque sabia que, se os Estados Unidos enviassem tropas para o Oriente Médio, enfrentariam o destino que enfrentaram no Vietnam ou que os soviéticos enfrentaram no Afeganistão. Bin Laden planejou tudo. Deve estar satisfeito.

Escondido em algum lugar, ele deve estar esfregando as mãos, contente, porque não poderia imaginar que os Estados Unidos iriam fazer o que estão fazendo agora. Bin Laden não imaginaria que os Estados Unidos estariam sofrendo derrotas num país como o Iraque. Não esperaria que os Estados Unidos fossem gastar esta montanha de dinheiro, centenas de bilhões de dólares, além de perder três mil soldados, até agora.

Se Bin Laden morrer amanhã, morrerá feliz. Porque conseguiu se vingar dos Estados Unidos, grande país que ele considera o mal: Bin Laden fez com que os Estados Unidos fossem humilhados no Oriente Médio, na mão de muçulmanos e árabes. Deve estar extremamente feliz agora”.

“Disse que gostaria de ter morrido com seus companheiros que foram mortos na luta contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Porque ele considera esta vida precária. O que ele quer é a vida eterna. Quer ir para o paraíso”

Depois dos encontros com Bin Laden, o senhor escreveu que teve a impressão de que ele não era um homem comum. O que é que ele tinha de tão extraordinário?

“O que chamou minha atenção, no caso de Osama Bin Laden, é que ele é um homem corajoso. Não teme a morte. A verdade é que ele lamentava o fato de ainda estar vivo.

Bin Laden me disse que gostaria de ter morrido com seus companheiros que foram mortos na luta contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Porque ele considera esta vida precária. O que ele quer é a vida eterna. Quer ir para o paraíso. A declaração que Bin Laden me fez neste sentido me impressionou.

O que me impressionou também foi a humildade que Bin Laden cultiva. Um exemplo: ele comia a mesma comida que os seus colegas, como qualquer outro guerrilheiro mujahedin ( n: é este o nome dado a um muçulmano envolvido numa batalha. A palavra mujahedin significa “combatente”) . Por esta razão, era adorado e amado por eles. Bin Laden me mostrou coragem. Parecia ter paz de consciência. Não demonstrava ter medo de nada. É um personagem fascinante”.

“Não usa telefone. Não usa celular. Não usa qualquer tipo de equipamento eletrônico, porque sabe sabe que pode ser fatal”

É verdade que o senhor recebeu ligações da Al-Qaeda?

“Recebi várias chamadas telefônicas da Al-Qaeda, mas não de Bin Laden, pessoalmente. As ligações foram feitas pelo braço direito de Bin Laden na área militar, Abu Hafs al-Misri, depois do bombardeio de Kandahar, em 1998, quando o presidente Bill Clinton enviou mísseis Cruise como vingança contra o ataque a embaixadas americanas em Nairóbi (Quênia) e Dar es Salaam (Tanzânia).

Abu me telefonou. Disse-me que eles iam se vingar. Iriam dar aos Estados Unidos uma lição que os Estados Unidos jamais tinham recebido. É provável que ele estivesse dando sinais do que aconteceria no 11 de Setembro.

Osama Bin Laden pessoalmente não usa telefone. Não usa celular. Não usa qualquer tipo de equipamento eletrônico,porque sabe sabe que pode ser fatal. Mas os seus colegas e assessores usam telefone”.

A SEGUIR, NA PARTE II : POR QUE BIN LADEN ESTAVA “CHEIO DE ÓDIO”. O BLOGUEIRO GANHA UM “BRINDE” : FOTOS ORIGINAIS DO TERRORISTA NAS MONTANHAS DO AFEGANISTÃO!


Posted by geneton at 11:04 AM

setembro 11, 2009

O MEU SILÊNCIO SERÁ ENCICLOPÉDICO: COBRIRÁ TODOS OS ASSUNTOS DE TODAS AS ÉPOCAS. JÁ NÃO TENHO NADA A DECLARAR

Confesso-vos: pensava, até esta tarde, que somente queijo podre, rum de baixa qualidade e salame de beira de estrada fossem capazes de produzir vômito em meu estômago fatigado.

Ah, mera ilusão feita de álcool e leite....

Descobri que os textos aqui postados pelo sr. Nicomar Lael produzem efeito idêntico! São capazes de acionar, em meu estômago, o mecanismo que produz,primeiro, um leve,levíssimo mal-estar, irremediavelmente seguido de erupções de golfadas de vômito em quantidades industriais. Os vizinhos já se acostumaram com os ruídos produzidos por este movimento gastro-vomitivo. A trilha sonora da minha reação fisiológica aos absurdos do mundo já se incorporou à rotina das tardes sem fim do Leblon.

Por que abro por um instante uma fresta no muro que ergui em torno de minha privacidade para fazer esta confissão vomitiva ? É que me sinto compelido a explicar por que as diatribes do sr. Nicomar provocam reação física tão ostensiva.

Eis o que descobri: ao percorrer os textos do sr.Nicomar, constato, desolado, que ele recorre à mais infantil e inofensiva das armas para tentar chamar a atenção da platéia, como se fosse um adolescente literário marcado por cravos e espinhas estilísticas. O que ele faz ? Recorre a palavras de pouco uso para parecer sábio, mas tudo o que consegue é parecer parvo, além de provocar vômito, claro.

Eis as expressões que o sr. Parvo Lael cometeu ao tentar me agredir no último post:

"utilizar de meu vergalho em seu dorso pingue e lanudo"

"tornando inevitável a espadana de enfado"

"espaço irremediavelmente labrego e sensabor"

Minha paciência com o sr. Parvo Leal tropeçou na primeira frase, cambaleou na segunda e, finalmente, se esborrachou na terceira.

Já não gastarei munição com alvo tão pobre.

Direi apenas que a defesa indireta que o sr. Pascácio Leal faz dos usuários de expressões lamentáveis como "meu óculos" e "o óculos" serve de prova de que uns - os ignorantes - merecem o outro - o exibicionista. E vice-versa.

Feita esta declaração, dou por encerrada temporariamente a contenda. Recolho-me à minha poltrona aveludada para, entre um gole e outro de um chá importado de torrões arábicos, degustar os parágrafos imortais de "O Leopardo" até ser alvejado pelo sono, o inimigo número um da literatura.

Peço ao mundo que não me incomode. Já não tenho nada a declarar sobre nada. O meu silêncio será enciclopédico : cobrirá todos os assuntos de todas as épocas. É melhor assim.

Posted by geneton at 02:42 PM

CONFISSÃO COMPROMETEDORA: UM CHORORÔ CHAMADO "ROSINHA, MINHA CANOA"

Poucos terão coragem de fazer uma confissão tão comprometedora: quando eu tinha quatorze anos, chorei de perder o fôlego ao ler, num quarto de hotel no interior de Minas, "Rosinha, Minha Canoa", livro água-com-açúcar de José Mauro Vasconcelos,autor considerado subliterário e breguíssimo.

Depois, nenhum grande livro conseguiu provocar efeito semelhante : nem obras-primas imortais como Crime e Castigo nem Memórias Póstumas de Brás Cubas nem A Montanha Mágica.

Um psicanalista, por favor, para extrair uma conclusão qualquer deste capítulo lítero-lacrimejante de minha formação.

Posted by geneton at 02:39 PM

ACORDA, GLAUBER. ELES ENLOUQUECERAM (RELATO DE UM ENCONTRO COM O CINEASTA QUE DELIRAVA COM O BRASIL)

A imagem ressurge clara e límpida na memória: Glauber Rocha desembarca numa sala de cinema acanhada, no bairro de République, Paris.

Era uma manhã de sábado. O mês: fevereiro. O ano: 1981. Os cabelos estavam ligeiramente desgrenhados. Os olhos, inchados, pelo sono recente.

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Glauber Rocha : fagulhas no ar ( Fotos: TV Globo)

A nove mil quilômetros dali, o Brasil fervia à espera do carnaval. Mas, em République, fazia um frio desgraçado. Um inverno cinzento engolia a cidade. O homem chega envolto num sobretudo escuro.

Glauber Rocha reclama de críticos “burros”, espalha fagulhas de vitalidade e polêmica por onde passa. Mas não estava bem fisicamente

O Glauber das minhas lembranças era o cineasta falante que incendiava o vídeo nos fins de noite de domingo no programa “Abertura”, transmitido pela falecida TV Tupi. Mas o Glauber Rocha real que chega a esta sala, com uma cópia do recém-concluído filme “A Idade da Terra” debaixo do braço, não exibe o vigor incendiário que marcava aquelas aparições na TV.

Ainda assim, espalha fagulhas de vitalidade por onde passa: fala como se estivesse discursando, usa um tom apaixonado para tratar do cinema e do Brasil. Dispara um petardo verbal contra um crítico “burro” do Jornal do Brasil, quer saber o nome, a ocupação, a procedência dos forasteiros que lhe são apresentados ali, no hall do cinema, pouco antes do início da projeção.

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Anima-se quando sabe que nós – eu e o também brasileiro Marcos de Souza Mendes – somos estudantes de cinema em Paris. Aumenta o tom de voz, faz gestos largos com as mãos, chama a atenção dos críticos franceses que desfilavam no saguão do cinema com seus cachecóis entediados: “Olhem aí: são os jovens cineastas, é a juventude brasileira estudando cinema! Isso me interessa! Quero saber o que é que vocês vão achar do filme!”. Os franceses olham para nós, o objeto do entusiasmo glauberiano. Procuro um lugar no chão para me esconder.

O dedo indicador da mão esquerda de Glauber Rocha toca no dedo indicador da mão direita: “Como é? Fizeram as ligações ?”

Depois, Glauber Rocha reclama de que a cor da cópia não é ideal, começa a falar francês com sotaque nordestino inconfundível. “Je vais rester ici; j´attende un ami” – declama, diante da porta de entrada da sala, enquanto avisa que os espectadores já podem ocupar seus lugares.

Em seguida, vai até a cabine, falar com o operador. O filme começa. Glauber sairá da sala umas duas vezes durante a projeção. Terminada a sessão, ele, que estava sentado três fileiras adiante, se vira para trás, olha para nós, a dupla de estudantes: “Como é? Fizeram as ligações? Fizeram as ligações?”.

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O dedo indicador da mão esquerda de Glauber toca no indicador da mão direita. Ao perguntar a dois jovens estudantes de cinema se eles tinham absorvido o impacto de “A Idade da Terra”, Glauber cumpria ali, informalmente, o grande papel que sempre lhe coube: o de provocar reações.

Lá fora, pergunta pela mulher, a colombiana Paula, procura por ela no café ao lado, fala mal desses “filmes reacionários, com história”, dá o toque de que “o cinema materializou o desejo de ser imagem e som da palavra”.

“A Idade da Terra” seria o último filme de quem fizera obras-primas como “Terra em Transe” e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”.

As notícias não eram boas: Glauber Rocha tinha passado uma noite vomitando. Dormira durante uma sessão de documentários

Cinco meses depois daquele sábado em Paris, Glauber estava morto. Coincidência: o coração do guerreiro parou de bater num sábado.

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A saúde de Glauber já era assunto de conversas ao pé do ouvido. O guerreiro não andava bem. Tinha passado uma noite vomitando, dormira durante a projeção de documentários brasileiros no cinema “Le Denfert”.

Um diálogo sobre cinema brasileiro com um estudante brasileiro que fora visitá-lo na casa em que ele passava a temporada parisiense teve de ser interrompido. O estudante terminou tendo de ir a uma farmácia, para comprar remédios.

Pouco tempo depois, Glauber levantara vôo para Portugal, onde trabalharia num projeto. As más notícias não demoravam a chegar a Paris: falava-se de complicações cardíacas, coisas assim.

Ao noticiar a morte de Glauber Rocha, O Le Monde chamou Glauber Rocha de “grande autor lírico e barroco”

A última palavra surgiu, enfim, na primeira página do “Le Monde”: “o cineasta brasileiro Glauber Rocha, um grande autor lírico e barroco”, tinha morrido no Rio de Janeiro.

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Um articulista do “Le Monde” escreveu que ele ficará para as “gerações futuras” como um testemunho da “necessidade de mudar mundo”. Guardo comigo os jornais.

Por que diabos as imagens daquela manhã de inverno em Republique estão passando agora, nítidas e claras, na minha cabeça, como se saídas de um filme doméstico que a gente deixa guardado durante anos no fundo da gaveta ?

Uma imagem que vi por puro acaso numa TV a cabo funcionou como um gatilho detonador dessa torrente de lembranças : a voz de Glauber Rocha fazia um discurso grandiloquente sobre imagens de Brasília. Falava de Terceiro Mundo, capitalismo, socialismo, revolução soviética confrontando a riqueza americana, a roda da História, invasões, Europa conquistando o Novo Mundo, catequeses, cristianismo, utopias, barbáries, caudilhos, a América Latina pagando o preço da progresso alheio, o sonho de que aquela paisagem do Planalto Central produzisse iluminações planetárias.

O delírio de Glauber : o Brasil poderia ser uma voz que pronunciasse novidades para o resto do planeta. Por que não?

O discurso de Glauber Rocha acendeu um devaneio tropical numa madrugada sul-americana: quem sabe, o que falta ao Brasil, hoje, é um toque épico, uma fagulha daquele delírio que Glauber Rocha articulava sobre imagens de Brasília.

Glauber Rocha apostava tudo no sonho de que o Brasil poderia ser, sim, um país original, uma voz que pronunciasse novidades para o resto do planeta, um laboratório bárbaro que emitiria luzes belas e grandiosas. Por que não ?

Hoje, quando a mediocracia e ausência de ambição desfilam de mãos dadas diante do Cemitério das Causas Perdidas, a figura de Glauber Rocha faz uma falta terrível.

O Brasil precisa de delírios glauberianos de grandeza. Ambição de originalidade. Explosões de gestos, imagens e palavras. Torrentes e vulcões contra a pequenez. “Ondas de civilização”.

Meninos, eu vi, num sábado cinzento, a fagulha de um visionário brilhar no saguão de uma sala de cinema em Paris. Glauber Rocha sonhava grandezas para o Brasil, quebrava os catecismos políticos, imaginava um destino épico para esta república ancorada na porção sul da América.

”Acorda,Glauber.Eles enlouqueceram!”.

Posted by geneton at 11:22 AM

setembro 10, 2009

HARE BABA! O IMPOSSÍVEL ACONTECE NOS BASTIDORES DO JORNALISMO : O DIA EM QUE O BLOGUEIRO INTERROMPEU A TRANSMISSÃO DA NOVELA DAS OITO DA REDE GLOBO!

A novela das oito ( ou será das nove? ) termina esta semana. Os capítulos finais dão audiência de jogo importante de Copa do Mundo.

É hora de fazer uma declaração pensada sob medida para impressionar internautas distraídos :

o blogueiro-que-vos fala uma vez interrompeu a transmissão da novela da oito !

“Não é possível! Não é possível! Aposto um níquel que jornalista algum jamais conseguiria interromper o programa de maior audiência da TV brasileira !” – diz o espírito-de-porco sentado na quinta cadeira à direita de quem entra no Inferno dos Descrentes.

O meu demônio-da-guarda solta um sorriso de escárnio, idêntico aos das bruxas em filmes da Disney: “Consegue, sim ! Consegue,sim ! Basta que a Casa Branca resolva começar uma guerra!”.

Paulo Francis é que dizia:

“Todo jornalista decente é um urubu na sorte dos outros mortais. Ficamos esperando que as pessoas escorreguem numa casca de banana e batam com a cara no chão. Se tudo corre muito bem, para nós é muito mal”.

Joel Silveira, personagem de dois outros posts do Dossiê Geral, ia direto ao ponto:

- Adoro uma guerra!

Aos fatos, pois.

Por uma “conjunção de fatores” que acontece uma vez na vida, eu estava na hora certa no lugar certo para interromper a novela das oito.

A novela se chamava “Meu Bem, Meu Mal”. A data: dezoito de janeiro de 1991. O personagem principal era um tal de Dom Lázaro Venturini, um empresário que, depois de ficar mudo em consequência de um derrame, volta falar no fim da trama, para desmascarar seus inimigos. Lima Duarte era o ator.

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Sílvia Pfeifer e Lima Duarte: novela interrompida

Em nome da precisão, diga-se que o blogueiro-que-vos-fala teve dois cúmplices na tarefa de tomar de assalto a novela das oito.

Primeiro cúmplice: aquele rapaz que hoje é editor-chefe do Jornal Nacional, um certo William Bonner.

Segundo cúmplice: o técnico que estava de plantão, naquele momento, no chamado “controle-mestre” da Rede Globo, no Jardim Botânico. O controle-mestre, como o nome sugere, pode, em situações de extrema gravidade, interromper um programa para que o telespectador seja informado de uma notícia urgente.

A notícia, ali, era urgentíssima : estava começando uma guerra.

Vasculho meu pequeno Museu de Papel em busca de um relato que escrevi sobre o que aconteceu naquela noite na redação Jornal Nacional ( eu era, na época, editor-exectuvo do jornal. William Bonner apresentava o Jornal da Globo ) :

Quatro minutos depois do atentado contra o presidente Kennedy, o primeiro despacho das agências de notícias chegava às redações
Quando o ex-fuzileiro naval Lee Harvey Oswald apertou o gatilho do rifle Mannlicher-Carcano contra a comitiva do presidente John Kennedy, às 12:30 da sexta-feira, vinte e dois de novembro de 1963, Walter Cronkite, a estrela máxima do telejornalismo da rede americana CBS, estava no lugar errado – mas nem tanto.

Se pudesse adivinhar o que iria acontecer, Cronkite teria chegado na véspera a Dallas para, em algum ponto da praça Dealey, viver a aventura com que todo repórter sonha: ser testemunha ocular de um fato histórico. Mas Cronkite nunca foi candidato a Nostradamus.

O despacho que a agência de notícias UPI disparou para as redações exatamente às 12:34 – quatro minutos do atentado, portanto - pegou Cronkite na sala de teletipos de CBS.

O texto do despacho urgente era curto: “Three shots were fired at president Kennedy´s motorcade today in downtown Dallas” ( “Três tiros atingiram a comitiva do presidente Kennedy durante o desfile de carro no centro de Dallas”). Criou-se, claro, um tumulto na redação. Era preciso dar uma edição extraordinária imediatamente.

Cronkite descobriu que teria de esperar dez minutos até que as luzes e as câmeras do estúdio estivessem prontas para levar ao ar a bomba. Acontece que, numa situação dessas, dez minutos significam dez mil anos. É impossível esperar.

A primeira informação foi dada em off, sem a imagem do âncora Walter Cronkite. Não havia tempo de preparar a câmera e a luz

A CBS, então, interrompeu a novela na hora do almoço com um letreiro que anunciava a edição extraordinária. A notícia – que atingiu os Estados Unidos com a potência de um “soco no estômago” em plena hora do almoço – foi dada somente com a voz, sem a imagem de Cronkite no vídeo.

O flash fatal chegou logo depois, pelo telex. Num exercício desesperado de agilidade e precisão, o flash da UPI resumia em três palavras, a uma e trinta da tarde, uma das notícias mais dramática do Século XX: “President Kennedy dead”.

Quando a tragédia se materializou em forma de uma frase, as luzes e câmeras finalmente estavam prontas, na redação da CBS. Somente aí Walter Cronkite pôde aparecer no vídeo. Com voz grave, ele levantou os olhos do pedaço de papel que tinha nas mãos, tirou os óculos e pronunciou em tom solene a notícia que, quem viu, não esqueceu: “President Kennedy died”.

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Cronkite tira os óculos e anuncia a morte do presidente Kennedy

Tempos depois, Cronkite descreveria assim o que sentiu quando teve de ler o primeiro flash – o dos tiros – , em off, sem aparecer no vídeo:

- “Nós tínhamos, ali, uma notícia terrível. Tínhamos de nos mobilizar. Fiquei desapontado ao saber que as câmeras iram demorar tanto para ficar prontas. Mas o fato de termos ido ao ar é o que importa. Nós fomos os primeiros a noticiar. É o que vale”.

Quando a obrigação de informar é urgentíssima, a televisão se transforma em rádio

Quando a obrigação de informar é urgentíssima, a televisão se transforma em rádio. Se não é possível ter a imagem em questão de segundos, por que não usar apenas o som ?

O fenômeno se repetiu vinte e oito anos depois, na explosão da Guerra do Golfo, um conflito que a tevê transformou em acontecimento planetário em questão de minutos. A chuva de bombas sobre Bagdá foi transmitida, num primeiro momento, apenas com o som da voz dos repórteres da CNN. Ponto. Parágrafo.

Meu nome não é Walter Cronkite, não ganho em dólar, a TV Globo não é a CBS, o Rio de Janeiro não é Nova York, Jardim Botânico não é Manhattan. Mas vivi na pele a certeza de que, numa tevê, não se pode esperar sequer por uma câmera quando se tem uma notícia histórica nas mãos.

O ajuste das câmeras e luzes num estúdio exige minutos adicionais de espera, o que, num caso desses, é fatal na velha briga pelo “furo”. As tevês vivem brigando pelo privilégio de dar as notícias em primeiro lugar. É natural. Não custa nada lembrar que uma das diferenças visíveis entre um telejornalista e uma samambaia é a obstinação em dar notícias inéditas. As outras diferenças não descobri ainda. Continuo tentando.

A novela das oito estava no ar. Mas não havia tempo de esperar pelo intervalo comercial

Quando ouvi o grito de alerta dado diante de um dos terminais de computador da redação pelo editor Aníbal Ribeiro – “a guerra começou!” – disparei pelos corredores com uma velocidade que, modéstia à parte, fez jus ao meu passado de zagueiro central amador na praia do janga, Pernambuco, Brasil.

Se aparecesse ali, naquela hora, o anabolizado Ben Johnson seria reduzido ao papel de tartaruga enferrujada. Não houve tempo de escrever nada. Trancado numa ilha de edição, às voltas com a gravação de um texto para o Jornal da Globo, o apresentador William Bonner ouviu meu grito: “Começou a guerra, porra!”.

Numa “fração de segundo”, ele disparou, também, pelos corredores das ilhas de edição. Invadimos, juntos, a sala onde fica a cabine de locução. A rapidez da equipe técnica de plantão completou o serviço: entre o alerta de Aníbal e a interrupção da novela com a “edição extra” do Jornal Nacional, passaram-se exatos 41 segundos, conforme registram os relatórios de programação que tive o cuidado de consultar depois.

Só tivemos tempo de improvisar um texto que atribuía a informação às agências de notícias. Algo assim: “As agências internacionais acabam de informar que começou o bombardeio de Bagdá”.

(Dias antes, o então diretor da Central Globo de Jornalismo, Alberico de Sousa Cruz, tinha me perguntado qual o tempo mínimo necessário para botar no ar uma informação. Disse a ele que, numa situação extrema, era o tempo de correr da redação para a cabine. É o que terminou acontecendo….).

A revista ISTOÉ teve o cuidado de cronometrar a corrida. O plantão do Jornal Nacional foi ao ar dois minutos antes da emissora que tirou segundo lugar na batalha contra o relógio.

Numa hora dessas, quando acende o pavio de uma bomba que vai explodir diante dos olhos do telespectador, a TV cumpre o papel que o tantas vezes citado Marshall McLuhan descrevia: se o rádio é a extensão do ouvido e o cinema é a extensão do olho, a teve “é a extensão do sistema nervoso central dos telespectadores”.

É uma evidência científica indiscutível : quando o mundo vem abaixo, quando um louco atira na cabeça de um presidente, quando uma “chuva de bombas” desaba sobre Bagdá, o telejornalismo é C9H13N03 - a fórmula da adrenalina pura.

Posted by geneton at 11:22 AM

setembro 09, 2009

PAUSA PARA REFRESCO : O DIA EM QUE JOEL SILVEIRA ENTROU PARA O SERVIÇO PÚBLICO

Joel Silveira, meu saudosíssimo mestre e guru, repórter puro-sangue, contava essa:

uma vez, recebeu uma sondagem de um assessor direto do presidente Jânio Quadros. O assessor informou que ele, Joel, iria ser nomeado para o conselho consultivo da Companhia Brasileira de Álcalis.

Resposta imediata de Joel à oferta :

- Aceito o convite ! Só quero tirar duas dúvidas. Primeira : quanto vou ganhar ? Segunda : o que é álcalis, pelo amor de Deus ? ”.

Terminou nomeado.

Posted by geneton at 11:35 AM

setembro 08, 2009

NORMAN MAILER

O DIA EM QUE O GRANDE REBELDE NORMAN MAILER DECRETOU, SEM ALEGRIA, O FIM DE UMA ERA: “JÁ NÃO SOMOS UMA CULTURA LITERÁRIA. SOMOS UMA CULTURA TELEVISIVA”

Começo contando vantagem : testemunhei, gravei e fotografei uma das últimas aparições públicas de um monumento da literatura americana.

( Pausa para oração. Dizei, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres: além de contar vantagens, que outra arma um blogueiro acidental pode empunhar para implorar pela atenção de transeuntes apressados ? A padroeira fica em silêncio. Vou em frente).

Aos amantes da palavra impressa, lamento informar que as notícias não são boas.

Quando saí daquele auditório, tive a impressão de ter testemunhado o fim de uma era. Divido esta experiência com os frequentadores do DOSSIÊ GERAL. Vasculho meus arquivos implacáveis em busca do meu relato.

Ei-lo:

O lamento do velho lobo: um americano médio é incapaz de citar o nome de três bons escritores contemporâneos

Acabou. O fim de uma época em que os escritores tinham uma voz ativa na sociedade foi decretada por um porta-voz insuspeito: um grande escritor. Nome: Norman Mailer. Sem qualquer alegria, ele constata que, hoje, um americano médio, “razoavelmente inteligente”, não seria capaz de citar o nome de três bons escritores contemporâneos. Adeus, meninos.

It´s all over now, baby blue.

E agora?

Agora, vale a pena ouvir a palavra de Mr. Mailer. Eis o homem: o Grande Rebelde das Letras Americanas, o velho porta-voz das insurreições, o Eterno Dissidente, o “último ícone da literatura americana do Século XX” caminha apoiado por duas bengalas. Os cabelos, desalinhados, clamam por um pente. Traja uma camisa laranja de mangas compridas. Uma jaqueta protege-o dos rigores do inverno.

Primeira constatação: a longevidade – definitivamente – não vem de graça: o tempo cobra, ao Norman Mailer de 83 anos, o pedágio imposto aos octogenários que ousam desafiar a passagem dos séculos

(quando Mailer nasceu, no último dia de janeiro de 1923, em Long Branch, New Jersey, a Primeira guerra Mundial tinha acabado havia apenas cinco anos. Os horrores do delírio hitlerista, a viagem do homem rumo às estrelas, o rosto estilhaçado de John Kennedy em Dallas, a aventura americana no Vietnam, a rebelião dos jovens dos anos sessenta, todos estes temas que um dia ocupariam a pena do Mailer escritor ainda demorariam décadas para acontecer: eram apenas uma possibilidade escondida nas cartas de alguma cigana).

Mailer reclama : já não pode encarar o espoucar dos flashs

Quando fala, o Grande Rebelde pontua as frases com um pigarro renitente. Quando ouve, fixa os olhos limpidamente azuis no movimento dos lábios do interlocutor – um esforço para captar, no ar, as palavras que a quase surdez o impede de ouvir.

“Eu estou ficando surdo a cada minuto” – confessa, sem esforço para disfarçar a ruína auditiva. “Estou ficando velho. Já não terei tanto tempo” – diria, pouco depois. “Desculpe o pigarro. O motorista me disse outro dia, sobre minha voz: “Você soa como Richard Nixon no fim da vida…”.

Que ninguém se iluda com a aparente autocomiseração. O octogenário Norman Mailer provará já, já, que não lhe falta fôlego para disparar petardos verbais em todas as direções.

O Grande Rebelde me brindaria esta noite com uma confidência feita ao pé do ouvido – um pequeno prêmio concedido à minha impertinência. Assediado por fãs que pediam um autógrafo em exemplares do recém-lançado “The Big Empty”, o livro que reúne seus diálogos políticos com o filho John Buffalo , Mailer comete ali e aqui pequenas indelicadezas, facilmente perdoáveis quando se contam as décadas que já acumula sobre os ombros.

Um leitor estende-lhe um bilhete. Mailer nem olha para o pedaço de papel: “Não posso ler. Não posso”. Quando outro fã dispara flashs a dois palmos de seus olhos, resmunga: “Gente de minha idade não pode encarar flash….”.

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Norman Mailer : fim de uma era ( FOTO : GMN)

O desconforto diante do espoucar dos flashs parece legítimo. Diante do assédio ao nosso personagem, recorro a um caso extremo de concisão. Pergunto a Norman Mailer se ele poderia se definir em uma só palavra – e escrevê-la na folha de rosto do meu exemplar.

Colho uma confidência ao pé do ouvido. Noites de autógrafos ? Ah, “são brutais, rudes e desconfortáveis”

Não, não pode. Pega a esferográfica vagabunda para me presentear com um autógrafo, escrito em letra firme e legível. O assédio faz Mailer me confidenciar o que pensa dessas aparições: “São brutais, rudes e desconfortáveis”. Guardo o desabafo em meu gravador.

É inevitável: uma sensação de “fim de uma era” percorre a espinha dorsal de quem testemunha a aparição do Grande Rebelde das Letras neste início de noite gelado, no prédio que serve de sede à New York Society for Ethical Culture, no número 2 da rua 64, Nova Iorque.

Eis ali o escritor que, no auge dos anos sessenta, agitava os manifestantes que bradavam diante do Pentágono contra o envolvimento americano na Guerra do Vietnam. Hoje, apoiado por bengalas e aparelhos para surdez, emite impropérios contra o Presidente George Walker Bush para platéias não tão numerosas.

Os manifestantes que antes lotavam as alamedas de Washington hoje se resumem a duas centenas de almas que enfrentam o frio do inverno nova-iorquino para ouvir, em tom reverente, a pregação anti-establishment do Velho Rebelde

O que terá acontecido? Onde estão as hordas de ouvintes? O próprio Mailer dá o diagnóstico : “Já não somos uma cultura literária. Somos uma cultura televisiva. Os escritores já não são tão importantes quanto antes. É o que digo, sem nenhum prazer”.

Onde estão as equipes de TV da CBS, NBC, ABC, que não aparecem para documentar a pregação do Velho Lobo? A única equipe de TV presente é a de um canal francês.

O repórter cede à tentação de anotar um paralelo cruel : é como se a inevitável decadência física de Mailer tivesse acompanhado a não tão inevitável perda de importância da figura do escritor numa sociedade dominada pelas imagens.

As caixas de som espalham o som de “Mother”, a canção prodigiosa em que John Lennon resumiu em duas frases a história da psicanálise

As caixas de som espalham os acordes de canções militantes cometidas pelo John Lennon pós-Beatles, como “Power to the People”. Depois, a platéia é embalada pelos versos de Lennon em “Mother”, a canção que mereceria o Grande Prêmio Internacional de Concisão porque consegue resumir em duas frases tomos e tomos de tratados psicanalíticos: “Mother, don´t go/ Daddy, come home”: Mãe, não vá embora/Pai, venha para casa”.

Lá fora, uma solitária militante – que parece saída de uma passeata contra a Guerra do Vietnam – distribui panfletos anti-Bush. O alvo agora é a intervenção americana no Iraque.

Quem enfrentou a neve das ruas pelo privilégio de ouvir a pregação do Grande Rebelde teve a sensação de que o sacrifício foi recompensado.

A vitória da “cultura televisiva” sobre a “cultura literária” não é o único tema que ocupa as atenções de Mailer neste começo de século. A “lenda literária” (é assim que o jornal Village Voice se refere a ele) oferece aos ouvintes idéias originais sobre, por exemplo, a ligação que existe entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia.

Dá uma explicação quase psicanalítica sobre o medo do terrorismo. Cria uma tese controversa sobre a influência que os intervalos comerciais das TVs exercem sobre a capacidade de concentração dos telespectadores. Dá o que falar. Faz provocações. Não escorrega no ramerrame da obviedade.

Cumpre o papel que reservou para si desde que subiu ao palco literário: é um escritor que não se conforma em apenas escrever. Quer intervir. Intervém. A torrente verbal de Mailer incendeia a imaginação dos ouvintes. A ele, pois.

O terrorismo é cruel porque traz a morte sem aviso prévio: “Ser morto sem aviso é um ultraje à alma”

Em vez de discursar sobre o óbvio desconforto que a ameaça de ataques terroristas espalhou sobre a sociedade americana, Mailer detecta um efeito pessoal provocado pela onda de medo:

- Detesto terrorismo porque uma das minhas idéias religiosas favoritas é a de que nós devemos estar preparados para a morte. Ser morto sem aviso é um ultraje à alma. Uma das piores coisas sobre o 11 de setembro é que ninguém estava preparado para um ataque daquele. Preparar-se para a morte é importante. Acredito que há alguma coisa depois da morte. O terrorismo é particularmente horrível porque estilhaça a noção de que você deve estar preparado para morrer.

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Norman Mailer, em foto mal iluminada : não queria flashs no rosto (FOTO:GMN)

O Monumento Mailer estabelece uma surpreendente ligação entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia. Vale a pena ouví-lo:

- “Acontece que a democracia é a mais delicada forma de governo. A mais delicada! Por esse motivo, demorou tanto a ocorrer na História. A democracia depende de que a linguagem do povo se torne mais rica e mais elevada ao longo das décadas e dos séculos. Depende de criatividade, substância, boas instituições e alto desenvolvimento. George Bush é uma força que age negativamente sobre estes valores, porque ele reduz a linguagem. É um orador abominável”.

-“ Quero insistir neste ponto: a democracia depende da beleza da linguagem. Depende do aperfeiçoamento – e não da deterioração da língua. Os Estados Unidos eram maravilhosos nos tempos de Franklin Roosevelt, porque ele falava tão bem. O pouco que pudemos ter de John Kennedy nos deu uma mostra de que ele, um homem inteligente, queria elevar o nível da inteligência na política e na América. Democracias são delicadas. Digo: o inglês só não sofreu um colapso e só não se partiu em pedaços ao longo das turbulências do Século XX porque um dia existiu William Shakespeare. Sem James Joyce, a Irlanda seria bem menos. Faço essas constatações não por ser um semi-talentoso novelista, mas porque a linguagem é imensamente importante. Bush destrói a linguagem quando abre a boca. Em nome do terror, Bush cometeu crimes contra a integridade e a reputação do Estado. É o pior Presidente dos meus oitenta e três anos de vida. Isso significa um bocado, porque vivi sob Ronald Reagan”.

O Século XXI impõe uma exigência a todos nós: todos temos de conviver com uma dose de angústia e de incerteza

O guerreiro Mailer avisa aos ingênuos que não há com escapar de dois sentimentos que se espalharam pelo planeta depois de assentada a poeira do desabamento do World Trade Center:

- “Uma das exigências do novo Século é que nós temos de conviver com uma dose de angústia e incerteza. O Onze de Setembro derrubou os dois mais reluzentes monolitos da economia americana, as Torres Gêmeas. Além de tudo, as Torres falavam da fálica hegemonia americana sobre o mundo. A dona-de-casa típica ficou desolada diante da assustadora possibilidade de que alguém pode trabalhar durante anos para formar uma família- e perder tudo em uma hora”.

A quem interessar possa, Mailer vai logo se declarando um “conservador de esquerda” – uma classificação que, admite, nem sempre é aceita por mentes habituadas a simplificações ideológicas:

- “Pelo lado conservador, há instituições e valores que não devem ser desmentidos com um piada. Metade da população mundial se enquadra na vida familiar. Se você não se enquadra, não ridicularize. Porque família é, sob vários aspectos, uma forma de arte”.

Diante da platéia surpresa, Mailer articula uma nova teoria sobre a dificuldade de concentração das crianças

Mailer articula uma tese original sobre a televisão. Diz que a geração nascida e criada diante da luz azulada dos monitores de TV tem dificuldade de acompanhar raciocínios mais elaborados, porque toda história que a TV conta é interrompida de dez em dez minutos por comerciais :

- Quando liam, as crianças de antigamente desenvolviam o poder de concentração, pelo prazer da narrativa. Em outras palavras: elas podiam seguir um narrativa por horas. É quase como exercitar músculos: só que exercitavam a mente. Hoje, o equivalente a essas crianças espertas vêem na TV narrativas que são interrompidas a cada sete ou dez minutos por anúncios comerciais. Isso impede a continuação da narrativa. As crianças, então, ficam habituadas à idéia de que não são capazes de seguir nada que dure mais do que sete ou dez minutos. Perdem o poder de concentração. Acontece com todos: se alguém se interessa por um programa, logo vem um comercial para afetar a concentração e a capacidade de pensar mais profundamente sobre o assunto.

Uma confissão pessoal: o grande dissidente americano tenta enxergar luz depois da morte

Por fim, o Grande Rebelde causaria uma nova surpresa, ao pronunciar uma profissão de fé na reencarnação:

- Eu acredito em reencarnação, porque acredito que Deus é o criador. Para mim, a idéia de que Deus existe faz mais sentido do que a idéia de que Deus não existe. A reencarnação é um dos instrumentos profundos que Deus usa para tornar melhores suas criaturas. Quando você morre, acredito que você é julgado, não para ir ao inferno ou ao céu, uma idéia que nunca fez sentido para mim. O que faz sentido é a idéia de que você renasce. Há, espera-se, uma certa sabedoria na escolha feita no renascimento. Neste momento, você é punido pelos pecados que cometeu ou é recompensado pelo que conquistou na vida. Ou seja: a vida tem um sentido, para Deus e para você, na maneira com que você renasce. Você é premiado ou punido depois da morte.

O Grande Rebelde agarra-se à ilusão do renascimento. É como se erguesse a bandeira branca e fizesse um aceno para o invisível, o incompreensível e o improvável. Os ouvintes consomem em silêncio reverente a inesperada profissão de fé de Mailer numa vida além da morte. É como se o homem de 83 anos olhasse para o fundo do despenhadeiro – e, finalmente, depois de tantos embates, tantas protestos, tantos prêmios, tanta glória, pudesse enxergar com clareza o que antevira numa passagem de “Os Exércitos da Noite”:

“…Pois temos de ir até o final da estrada e alcançar aquele mistério onde a coragem, a morte e o sonho de amor nos prometem que poderemos, enfim, dormir”.

Norman Mailer dormiu no dia dez de novembro de 2007, meses depois de constatar, sem alegria, numa noite gélida, o triunfo da imagem sobre a palavra.


Posted by geneton at 11:37 AM

setembro 07, 2009

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

GRANDE POETA E PÉSSIMO PROFETA, DRUMMOND SE CONFESSA AO TELEFONE: “SOU UMA PESSOA TERRIVELMENTE CORAJOSA, PORQUE NÃO ESPERO NADA DE COISA NENHUMA”

Repórter existe para incomodar os outros. Ponto. Parágrafo.

A vocação para a inconveniência é defeito de fábrica. Vem no DNA. É caso perdido. Não há como corrigir, portanto.

Feita esta constatação, declaro: eu deveria cumprir dez anos de desterro por ter incomodado consistentemente o maior poeta brasileiro.

Repórteres em busca de declarações não deveriam perturbar a reclusão do autor de versos como “Consolo na Praia” :

“Vamos, não chores…

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu

(…) Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis casa, navio, terra.

Mas tens um cão.

(..) A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento…

Dorme, meu filho”

Ah, não, nem se discute. Fica decretado que o autor do poema “Hino Nacional” definitivamente não merecia ser importunado por repórteres que gastam a vida garimpando frases alheias :

“Precisamos descobrir o Brasil !

Escondido atrás das florestas,

com a água dos rios no meio,

o Brasil está domindo, coitado.

Precisamos colonizar o Brasil.

(…) Precisamos adorar o Brasil!

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão

no pobre coração já cheio de compromissos…

se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,

por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos”

Eu me penitencio. É óbvio que um repórter cometeria um pecado se pegasse o telefone para tentar extrair, a golpes de gravador, um punhado palavras de um poeta que já tinha oferecido ao Brasil versos como os de “América”:

“Sou apenas um homem.

Um homem pequenino à beira de um rio.

Vejo as águas que passam e não as compreendo

(…) Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.

O rosto denuncia certa experiência.

A mão escreveu tanto – e não sabe contar !

(…) Sou apenas o sorriso

na face de um homem calado”

Mas….o repórter-que-vos-fala confessa que perseguiu Carlos Drummond de Andrade – logo ele, o monumento que preferia se fechar “em copas”.

Usar o telefone. Era este o caminho das pedras para os repórteres que quisessem romper o muro de silêncio que o maior poeta brasileiro ergueu diante de si

O segredo para abordá-lo , com sucesso, era só um : usar o telefone como arma.

Atenção, pesquisadores de curiosidades zoológico-poéticas : o apartamento 701 do prédio número 60 da rua conselheiro Lafayette, em Copacabana, era palco diário de uma cena esquisita. Lá,um urso polar adorava falar ao telefone.

Desde que virou uma quase unanimidade nacional, Drummond ergueu em torno de si uma couraça para se proteger das investidas do mundo exterior. Era o exemplo acabado do mineiro arredio. Usava uma suposta timidez – desmentida por amigos íntimos – para manter longe de si, na medida do possível, as incoveniências da celebridade, descritas nos versos amargos do poema “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz” :

“Ah,não me tragam originais
para ler,para corrigir,para louvar
sobretudo,para louvar (….)

Respeitem a fera.Triste,sem presas,é fera”

Durante décadas, Drummond fugiu dos pedidos de entrevista. Preferia repetir a resposta-padrão : tudo o que tinha a dizer estava em seus poemas e crônicas. Mas mantinha um flanco aberto : o telefone.

Amigos chegaram a definir Drummond como um “ser telefônico”. Ziraldo escreveu que Drummond era “ao telefone, um derramado, com uma voz entre rouca e afunilada, meio tênue e fina, com a respiração difícil como quem tem desvio de septo”.

O “urso polar” cultivava esta pequena esquisitice : sempre que podia, fugia do contato pessoal, mas se mostrava surpreendentemente acessível a investidas telefônicas de intrusos como, por exemplo, este repórter-que-vos fala.

Quando era um dos editores do Jornal da Globo, cultivei, pelos idos de 1986, o hábito de incomodar o poeta pelo telefone,em busca de declarações que eram transformadas, no ar, em frases que exibiam a assinatura de Drummond.

“Não sou filólogo, não sou professor, não sou gramático.Sou um leigo em língua portuguesa”, disse-me o poeta Drummond. O caminho estava aberto para a abordagem : setenta e seis perguntas por telefone

O poeta jamais se esquivou de fazer rápidos comentários. A uma pergunta sobre o que pensava de uma reunião de professores de países de língua portuguesa em Lisboa para discutir uma proposta de unificação ortográfica, Drummond – tido como um dos maiores poetas já produzidos pela língua portuguesa – deu uma resposta tipicamente drummondiana :

- “Considero-me um usuário, não o proprietário da língua. Não sou filólogo, não sou professor, não sou gramático. Sou um leigo em língua portuguesa”.

Tive a chance de entrevistar outro gigante da poesia brasileira, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, sobre a idiossincrasia telefônica de Drummond :

- “Era uma coisa engraçada : pessoalmente,ele falava menos” – constatava Cabral. “Mas tinha uma conversa longuíssima ao telefone. Quer dizer : quanto mais longe a pessoa, mais afetuoso ele era. Tenho a impressão de que ele não gostava era do contato físico”.

O telefone terminou se transformando no caminho das pedras para a obtenção daquela que seria uma das maiores entrevistas já concedidas por Drummond, em julho de 1987.

Dezessete dias depois , o coração do poeta, já abalado por dois enfartes, parou de bater. Resultado: a entrevista gravada por telefone terminou se tornando uma espécie de testamento de Carlos Drummond de Andrade.

Ao todo, Drummond respondeu a setenta e seis perguntas que lhe fiz por telefone, em duas sessões. Transcrita, a gravação da entrevista rendeu cerca de duas mil linhas datilografadas. A íntegra foi publicada no “Dossiê Drummond” ( há os que se queixam de que repórteres não devem ficar trancafiados na redação diante de um telefone. Mas a experiência prova: investidas telefônicas podem dar grandes resultados, é claro. Por que não? ).

Duas semanas antes de morrer, Carlos Drummond de Andrade disse, a este repórter, que, em duas décadas, seus versos estariam esquecidos : “Ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”. A profecia estava errada.

As palavras do urso polar ficam. Diga-se que, em suas confissões telefônicas, o grande poeta revelou ser um péssimo profeta. Cometeu um monumental erro de avaliação : disse que, em duas décadas, estaria esquecido. Não foi. Não será. Errou feio.

Era um grandesíssimo poeta ? Era. Cometeu versos perfeitamente dispensáveis no fim da vida ? Cometeu. Era tão bom cronista quanto poeta ? Não era. Distribuiu elogios a torto e a direito ? Distribuiu, por gentileza. Mas o que fica, é claro, é a obra.

Versos como os de “A Máquina do Mundo”, obra-prima não tão conhecida quanto deveria, vão durar tanto quanto o mármore. Vai passar uma eternidade antes que alguém os iguale – em beleza, em brilho, em ouriversaria poética.

Em “A Máquina do Mundo”, o poeta tem a chance de decifrar o mistério do mundo numa caminhada de fim de tarde por uma estrada pedregosa de Minas. Mas dispensa a oferta. Prefere seguir a caminhada, solitário. Nada tão drummondiano. O final do poema:

“A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo

enquantio eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas”

Recolho um possível decálogo de nossa entrevista :

1
”Não tenho a menor pretensão de ser eterno.Pelo contrário : tenho a impressão de que daqui a vinte anos – e eu já estarei no cemitério São João Batista – ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”.

2
”A solidão em si é muito relativa. Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos ,uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler nunca está solitária, nunca estará sozinha. Terá sempre uma companhia : a imensa companhia de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”.

3
”Não fiz nada organizado. Não tive um projeto de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso. Não houve nenhuma programação. Por outro lado, não tendo tido nenhuma ambição literária, fui poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético”.

4
”A popularidade nada tem a ver com a poesia. A popularidade pode acontecer. Mas um grande poeta pode também passar despercebido”.

5
”Tive apenas o desejo de exprimir minhas emoções. Eu sentia necessidade de que eles se soltassem ; era um problema mais de ordem psicológica do que de outra natureza”.

6
”O jornalismo é uma forma de literatura. Eu,pelo menos,convivi – e mil escritores conviveram- com uma forma de jornalismo que me parece muito afeiçoada à criação literária : a crônica”.

7
“O que lamento é que as novas gerações já não tenham os estímulos intelectuais que havia até trinta ou quarenta anos passados. As pessoas que sabiam escrever a língua se destacavam na literatura e nas artes em geral. Hoje em dia,há escritores premiados que não conhecem a língua natal”.

8
”Sou uma pessoa terrivelmente corajosa, porque não espero nada de coisa nenhuma”.

9
”Considero-me agnóstico. Sou uma pessoa que não tem capacidade intelectual e competência para resolver o problema infinito que é se existe ou não existe uma divindade”.

10
”Minha motivação foi esta : tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo”.

Posted by geneton at 09:41 PM

setembro 05, 2009

MANOEL CYRILLO

2009. UM EX-GUERRILHEIRO DESCREVE OS DOIS GOLPES QUE NÃO FORAM FEITOS CONTRA O REGIME MILITAR : UM ATAQUE EM MASSA CONTRA AGÊNCIAS BANCÁRIAS EM SÃO PAULO E A OCUPAÇÃO DE UMA EMISSORA DE RÁDIO

O passado manda lembranças: o ano de 1969 voltou às páginas dos jornais e revistas esta semana. Motivo: num setembro como este, o embaixador americano do Brasil, Charles Elbrick , foi sequestrado por guerrilheiros que queriam forçar o regime militar a libertar presos políticos. Jamais tinha havido uma ação parecida.

2009. Procuro um dos guerrilheiros que participaram do sequestro do embaixador. Conclusão: tal como acontece com 1968, 1969 bem que pode também ser chamado de “o ano que não terminou”. Porque há sempre um acréscimo a ser feito.

Ei-lo: ao contrário do que se imaginava , o sequestro não deveria se encerrar com a libertação do embaixador. Não satisfeito, um dos cabeças do sequestro planejara outra ação espetacular – que deveria ser executada depois que o embaixador fosse solto.

O plano: guerrilheiros ligados à Ação Libertadora Nacional (ALN) iriam tomar uma emissora de rádio para divulgar um manifesto que denunciava a ingerência americana em assuntos internos do Brasil.

A guerrilha também planejou – mas não teve tempo de executar – um ataque em massa contra agências bancárias no bairro do Sumaré, em São Paulo.

O manifesto radiofônico seria escrito a partir dos papéis que o embaixador conduzia numa pasta no momento em que foi seqüestrado: relatórios que analisavam a atuação de personalidades públicas brasileiras.

Os guerrilheiros já tinham feito uma operação bem sucedida contra uma emissora de rádio, para transmitir palavras de ordem de Carlos Marighella

A ALN já tinha know-how em matéria de ocupação de emissoras de rádio: apenas três semanas antes do sequestro do embaixador, um comando da ALN ocupara a torre de transmissão da Rádio Nacional de São Paulo, localizada em Diadema. Tempos depois, a Rádio Nacional seria rebatizada como Rádio Globo.

O técnico de plantão foi obrigado a levar ao ar a gravação de um manifesto explosivo: Carlos Marighella, o líder da ALN, anunciava que, ainda naquele ano, a guerrilha chegaria ao campo. As ações urbanas seriam intensificadas: “Devemos aumentar gradualmente os distúrbios provocados pela guerrilha urbana, numa seqüência interminável de ações imprevisíveis, de tal modo que as tropas do governo não possam deixar a área urbana sem o risco de deixar as cidades desguarnecidas”.

Se a operação na rádio em São Paulo tinha dado certo, por que não repetir a façanha depois do desfecho do sequestro do embaixador ? – era o que se perguntava Manoel Cyrillo, guerrilheiro da ALN, com a autoridade de quem tinha tido participação decisiva nas duas operações.

Mas nem tudo iria sair como planejado.

Cyrillo foi um dos guerrilheiros que ocuparam a torre de transmissão para irradiar as palavras de ordem de Marighella.

Logo depois, viajara de carro para o Rio de Janeiro, para a Operação Sequestro. O comando da Ação Libertadora Nacional, em São Paulo, tinha decidido enviar para o Rio quatro pesos-pesados para participar diretamente da operação de captura do embaixador americano: Joaquim Câmara Ferreira, Virgílio Gomes de Sá, Paulo de Tarso Venceslau e Manoel Cyrillo.

Os relatórios que o embaixador transportava no dia em que foi sequestrado serviriam de base para denunciar a “ingerência americana” em assuntos internos do Brasil

Quando chegou ao cativeiro, Cyrillo teria um motivo para o que chama de “espanto”: a leitura dos relatórios que o embaixador transportava.

O guerrilheiro interpreta os papéis – até hoje – como uma prova material de que os americanos queriam meter o bedelho em assuntos internos do Brasil.

Por este motivo, imaginou um desfecho que, se executado, com certeza aumentaria a repercussão internacional do caso: a ocupação de uma emissora de rádio para leitura de um documento-denúncia.

A entrevista com o ex-guerrilheiro foi feita no Rio, como parte do trabalho de apuração do “Dossiê Gabeira”, recém-publicado.

Trechos do depoimento do guerrilheiro sobre o plano de completar o sequestro com uma investida-surpresa a uma emissora de rádio de grande audiência:
1
“A idéia de tomar uma emissora de rádio depois de terminado o sequestro do embaixador americano surgiu com um “furo de reportagem” que o embaixador nos deu: entre os papéis que estavam na pasta que ele conduzia, havia uma “bomba”, um documento a que ele atribuía um peso relativamente pequeno. Nós todos, brasileiros, até hoje não demos a importância que se deve dar a este documento. É um relatório que estudava alternativas civis para o Brasil, já que, na avaliação dos americanos, o regime militar estava seguindo por descaminhos que já não interessavam tanto à administração americana”.

2
“Diante deste “furo”, eu e Virgílio Gomes da Silva,o “Jonas”, também da Ação Libertadora Nacional, conversamos, ainda na casa onde estava o embaixador, sobre esta idéia: que tal se a gente, assim que chegar em São Paulo, fizer outra ação na rádio ? Repetiríamos o que fizemos na Rádio Nacional: botar no ar um pronunciamento em que a gente usaria palavras do embaixador”.

3
“A ação, infelizmente, não chegou a ser realizada porque, quando saímos da casa, depois de termos trocado nossos presos pelo embaixador, ao fim de toda a negociação com a ditadura, terminamos indo para um aparelho no bairro do Catete. Dormimos lá. De manhã, saímos. Ficamos sabendo, no fim do dia, que aquele aparelho tinha caído.( Cyrillo usa a expressão “o aparelho caiu” para dizer que o apartamento usado como esconderijo por ele foi invadido pela polícia. Os jornais do sábado, dia treze de setembro, menos de uma semana depois da libertação do embaixador, informavam que a polícia encontrara no apartamento 311 do prédio 180 da rua Santo Amaro,no Catete, “grande quantidade de material explosivo e de armamento“). Ficou tudo lá – inclusive o documento oficial da embaixada. O que transmitiríamos pelo rádio seriam trechos do documento que recolhemos com o embaixador”.

4
“Eu já tinha participado da tomada da rádio em São Paulo, pouco antes. Fui o “sargento” dessa ação. Nós levamos um gravador portátil. A fita que foi levada ao ar tinha sido gravada em estúdio, com locução boa. Era uma mensagem de Marighella. Nós levamos conosco um técnico em rádio que sabia fazer todas as conexões necessárias para que a gravação fosse levada ao ar. Fui do grupo operacional”.

5
“A missão era tomar de assalto a torre de transmissão da rádio. Não fomos para os estúdios: fomos, direto, para a torre de transmissão. Isso pegou a repressão de surpresa. Quando começaram a ouvir pela rádio a transmissão daquele material, os policiais foram imediatamente para a sede da emissora. Acontece que estávamos na torre, em outro município… Assim, a transmissão ficou vinte minutos no ar”.

6
“A torre tinha vigilância zero. Era um terreno enorme, vazio, com um pequeno estúdio. Só havia um técnico – que ficava ali cuidando de tudo. A ocupação ocorreu de manhã, horário de maior audiência da rádio. Pegamos o “horário nobre”. Pela manhã, havia o pico de audiência com aqueles programas que traziam notícias policiais e receitas de remédios…O documento, assinado por Marighella, anunciava o compromisso de lançamento da guerrilha rural no final daquele ano. Por esta razão, estávamos voltados para a preparação da guerrilha rural. Faríamos algo parecido depois da libertação do embaixador”.

7
“Nós estávamos preparando, também, aquela que poderia se tornar uma das últimas grandes operações de guerrilha urbana que faríamos em São Paulo : um ação de desapropriação que ocorreria em toda uma rua do setor bancário da cidade. Todos os bancos seriam desapropriados! Armas dos veículos de policiamento seriam apreendidas. Os caixas bancários, aliás, tinham sido arbitrariamente militarizados. Caixas – que eram funcionários dos bancos, civis – foram treinados pelo exército para defender os interesses do patrão – ou das seguradores. A rua ficava no Sumaré. Chamava-se Afonso Bovero. Desde aquela época, a rua tinha uma série de bancos. Fecharíamos os quarteirões em que ficavam quatro agências bancárias. Faríamos comícios-relâmpago no trecho. A ação seria de grande envergadura. O planejamento foi feito logo depois do sequestro do embaixador americano. Nós estávamos planejando, nestes últimos meses, a execução dessas expropriações”.

8
“Precisávamos de recursos para financiar nossas atividades – particularmente, a guerrilha rural -, além de fazer ações de propaganda política. Vem daí a importância do sequestro: era uma ação de propaganda política, assim como a tomada da Rádio Nacional”

“Não chegamos a escolher a rádio que usaríamos para fazer a transmissão sobre o embaixador, nestas conversas que tive com Jonas, o comandante da ação. Logo depois, o documento “caiu”. Assim, tivemos de descartar a operação. Sem o documento, não havia o que fazer”.

9
“O documento – e as análises do embaixador – significavam algo terrível para a gente, porque mostravam um grau quase ficcional de ingerência dos Estados Unidos. Nós nos acostumamos a ver coisas assim em filme ou em romance policial”

10
“A transmissão de um programa no rádio seria um belo golpe de propaganda política. Teria repercussão internacional, além de ser um acontecimento histórico: pela primeira vez, o movimento popular ia ter em mãos documentos que comprovavam este tipo de ação do governo americano. Mas o fato de não podermos ter feito a transmissão não me frustrou tanto. O que me frustou foi a gente não poder ter ido ao campo”.

Posted by geneton at 09:41 PM

setembro 04, 2009

“RECÉM-NASCIDOS ENFORCADOS EM FRALDAS” POVOAM A PEÇA QUE NÉLSON RODRIGUES PROMETEU MAS NÃO ESCREVEU NA SEMANA DO SEQUESTRO DO EMBAIXADOR AMERICANO!

Ah, as pequenas – mas inesquecíveis – compensações da vida de repórter: tive a chance de fazer uma longa entrevista com o gênio Nélson Rodrigues numa tarde em que, diante de nós, na TV sem som, a seleção brasileira derrotava a seleção do Peru por três a zero, no Maracanã.

(pausa para uma promessa: farei em breve uma reconstituição completa do fato. Que outra coisa de útil um jornalista pode fazer, além de tentar obsessivamente reconstituir o passado com palavras e imagens ? Não importa que o fato tenha acontecido faz cinco minutos, não importa que seja grandioso ou banal, como o encontro de um repórter com um cronista : já é passado, já virou destroço submerso. O jornalista é o escafandrista que entrará em cena para revirar os destroços em busca de indícios do que aconteceu).

Nunca me esqueci de uma queixa que Nélson Rodrigues repetiu na entrevista: dominada pelos chamados “idiotas da objetividade”, a imprensa brasileira tinha deixado de publicar pontos de exclamação nos títulos! O motivo da queixa rodriguena: os jornais tentavam ostentar uma frieza e um distanciamento que não correspondiam à fabulosa marcha dos acontecimentos. Os fatos da vida merecem, sim, um ponto de exclamação !

Nélson Rodrigues não se conformava: os “idiotas da objetividade” tinham banido os pontos de exclamação das manchetes dos jornais

Há uma crônica em que Nélson lamenta, desolado: o sangue do presidente John Kennedy ainda estava quente, mas os jornais brasileiros não se dignavam a conceder um ponto de exclamação à tragédia de Dallas. Majoritários nas redações, os “idiotas da objetividade” tratavam a notícia chocante como se estivessem falando de uma partida de biriba.

O pior de tudo: a situação só piorou dos tempos em que Nélson Rodrigues fez a queixa para cá. Em homenagem a Nélson Rodrigues, este post ganhou um ponto de exclamação no título!

2009. O repórter-que-vos-fala desembarca na sala de periódicos da Biblioteca Nacional, o santuário das “miudezas efemêras” estampadas ao longo do tempo nas páginas de jornais e revistas. Eu teria, ali, um encontro inesperado com a lembrança de Nélson Rodrigues.

O passado manda lembranças : num jornal amarelado, o maior cronista brasileiro analisa o manifesto dos guerrilheiros que sequestraram o embaixador

Percorro páginas de quarenta anos atrás. O ano: 1969. O mês: setembro. Descubro, por acaso, uma preciosidade amarelada : o maior cronista brasileiro, Nélson Rodrigues, escreveu uma espécie de resenha sobre o manifesto divulgado pelos guerrilheiros que sequestraram o embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, no dia quatro de setembro de 1969.

O principal autor do manifesto foi Franklin Martins, à época, militante de política estudantil convertido em guerrilheiro; hoje, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.

Os guerrilheiros obrigaram o regime militar a divulgar o manifesto nos meios de comunicação. Era uma das exigências feitas para que o embaixador fosse libertado são e salvo. A outra exigência era a libertação de quinze presos políticos. As duas exigências foram cumpridas pelos militares. O embaixador foi solto no dia sete de setembro, um domingo, com a marca de uma coronhada na testa – e, certamente, um sentimento de alívio que carregou pelo resto da vida. Jamais imaginou que viveria tão aventura no Brasil. Nunca, jamais, em tempo algum, diplomatas tinham sido usados como moeda de troca contra regimes militares.

O manifesto lançava um alerta ao regime militar : “Quem prosseguir espancando, torturando e matando ponha as barbas de molho”

“O sequestro do embaixador dos Estados Unidos foi a primeira operação do gênero no mundo, na história da guerrilha urbana”, escreveria o historiador Jacob Gorender em “Combate nas Trevas”.

Um trecho do manifesto:

“Com o rapto do embaixador, queremos mostrar que é possível vencer a ditadura e a exploração, se nos armarmos e nos organizarmos. Apareceremos onde o inimigo menos nos espera e desaparecemos em seguida(…)A vida e a morte do senhor embaixador estão nas mãos da ditadura. Se ela atender a duas exigências,o senhor Burke Elbrick será libertado. Caso contrário, seremos obrigados a cumprir a justiça revolucionária. Nossas duas exigências: a) a libertação de quinze prisioneiros políticos. São quinze revolucionários entre os milhares que sofrem as torturas nas prisões-quartéis de todo o país(…) b) A publicação e leitura desta mensagem, na íntegra, nos principais jornais, rádios e televisões de todo o país (…) Finalmente, queremos advertir aqueles que torturam, espancam e matam nossos companheiros: não vamos aceitar a continuação dessa prática odiosa. Estamos dando o último aviso. Quem prosseguir torturando, espancando e matando ponha as barbas de molho. Agora, é olho por olho, dente por dente”).

O que Franklin Martins não esperava era que o texto do manifesto fosse merecer uma “crítica” assinada por Nélson Rodrigues.

A promessa de Nélson Rodrigues: iria escrever uma peça em que guerrilheiros tomariam o berçário de uma maternidade…

Apenas três dias depois do desfecho do sequestro, Nélson Rodrigues escreveu, no jornal O Globo, uma crônica em que, além de criticar o manifesto, faz uma promessa que não viria a cumprir.

Melodramático, disse que, se encontrasse tempo, iria escrever uma peça de teatro em que seqüestradores simplesmente atacavam um berçário com cinqüenta recém-nascidos:

“Notem como há, no manifesto dos extremistas, um narcisismo indisfarçável. Redigiram um documento para o Brasil e para o mundo.Fazem questão de reivindicar a autoria de não sei quantas atrocidades (…) Não sei se será justo chamar os nossos terroristas de “brasileiros”. Eis a verdade: o brasileiro é muito mais suicida do que homicida. Sempre nos faltou a vocação do crime político (…)Os terroristas são brasileiros. Mas é fácil perceber no episódio do sequestro (tão anti-brasileiro, tão anti-Brasil) vários sotaques. Os rapazes que o executaram são brasileiros, sim,mas amestrados lá fora. Comandados por sotaques diversos, eles estão dispostos – e o dizem – a matar sempre e cada vez mais. Logo que encontrar uma brecha de tempo, farei uma peça política. É justamente uma história de terrorismo,passada no Brasil. Imaginem que um grupo de rapazes, socialistas radicais, ocupam um berçário. Entram lá de metralhadora, expulsam as freiras e lançam um “ultimatum” à nação. Das duas, uma:ou a nação lhes daria o poder ou eles fazem,ali, uma carnificina com os recém-nascidos. O governo tem um prazo de 24 horas. Durante dez, quinze, vinte horas,as autoridades não sabem o que pensar, o que dizer. São cinqüenta criancinhas. O país para. Mas ninguém acredita que homens, nascidos de mãe, cumpram a ameaça. A resposta aos extremistas é “não”. Cada recém-nascido foi enforcado na própria fraldinha”.

O que são os jornais ? “Museus de miudezas efêmeras”

Dou por encerrada minha expedição. Visto hoje, tudo o que um dia pulsou, dramático, nas páginas de um jornal antigo parece ter se transformado irremediavelmente em peça de museu, tudo se reduz a miudezas, tudo ganha um ar de efêmero. Mas o passado, quando manda lembranças, pode brindar os garimpeiros com pequenas surpresas, como a promessa que Nélson Rodrigues fez numa página de jornal.

Bem que Jorge Luis Borges chamava os jornais de “museus de miudezas efêmeras”. Acertou na mosca. Ponto.Parágrafo.

Tudo vira miudeza, tudo é efêmero – mas, no fim das contas, pelo menos uma lembrança remota dos fatos se salva, na superfície plana, frágil e retangular destes museus de papel – os velhos jornais armazenados em bibliotecas.

O apresentador daquele programa jurássico de televisão berraria “absolutamente certo!” se tivesse a chance de ouvir dos lábios de Jorge Luis Borges uma resposta tão precisa sobre a natureza dos jornais.

Posted by geneton at 09:48 PM

setembro 02, 2009

“DISPARAMOS PALAVRAS CONTRA A MORTE. MAS O TEMPO É UM DRAGÃO DE PELE IMPENETRÁVEL”

O nome : Rosa. É assim que se chama a mulher que telefona para a redação tarde da noite à procura de um repórter. Quer dar uma notícia sobre “a aparição de uma baleia”. O repórter suspira, desalentado: a mulher – que fala com sotaque espanhol – deve ser uma dessas loucas que escrevem cartas para as redações ou ligam de madrugada para dar notícias absurdas sobre profecias, iluminações, códigos, conspirações, segredos.

O sotaque só serve para agravar a suspeita: o espanhol é a língua preferida por cartomantes que inventam nomes e carregam no sotaque para impressionar os desesperados que as procuram.Rosa insiste : a notícia sobre a aparição da baleia merece ser ouvida porque é algo “sumamente importante”. A entrevista fica marcada para o dia seguinte, num lugar improvável : um banco de praça.

Por que diabos a aparição de um animal terá sido tão aterradora,tão reveladora e tão importante ?
Rosa chega na hora marcada: meio-dia ( Noto que os cabelos pretos estão penteados como se, numa subversão absurda do calendário, ela estivesse posando, em 2007, para uma foto que já nascia amarelada, num álbum dos anos setenta. Aquele corte de cabelo um dia foi chamado de Pigmalião. Virou febre, nos anos setenta, não em homenagem ao escultor da mitologia,mas porque era usado por uma atriz numa novelinha medíocre das sete da noite. Ah, o implacável poder simplificador da televisão…)

Informa a idade: 56 anos. Traz, nas mãos, um livro em que, na capa, a imagem de uma menina de vestido rosa se sobrepõe a uma velha foto de família. Os outros nove personagens retratados na capa estão em preto-e-branco. Só a menina ganhou a graça da cor.

Noto um detalhe banal: o título do livro que ela traz para a entrevista tem doze letras. Por um segundo, cedo às tentações da superstição: são doze os apóstolos, são doze os signos, são doze os meses do ano, são doze as horas que dividem as duas metades do dia. As doze letras do título terão algum significado ?

Não! – repreendo-me, em silêncio. Toda superstição é idiota.

“A escrita : o esforço de transcender a individualidade e a miséria humana, o desejo de sobrepor-nos à escuridão, à dor, ao caos e à morte”
A visitante se move com gestos rápidos

Não há tempo a perder. Pergunto como foi, afinal,a aparição da baleia. Por que diabos a aparição de um animal terá sido tão aterradora, tão reveladora e tão importante? Rosa move a cabeça em direção ao gravador que seguro nas mãos. Não quer que o alvoroço do barulho de carros na rua e de crianças na praça encubra o que ela vai falar:

- “De repente,sem nenhum aviso, aconteceu. Um estampido aterrador agitou o mar ao nosso lado : era um jato d´água, o jato de uma baleia, poderoso, enorme, espumante, uma voragem que nos encharcou e fez o Pacífico ferver em torno de nós. E o ruído, aquele som incrível, aquele bramido primordial, uma respiração oceânica, o alento do mundo. Essa sensação foi a primeira : ensurdecedora, ofuscante; e imediatamente depois emergiu a baleia. Primeiro, emergiu o focinho, que logo depois tornou a se meter debaixo d´água; e depois veio deslizando todo o resto, numa onda imensa, num colossal arco de carne sobre a superfície, carne e mais carne, brilhante e escura, emborrachada e ao mesmo tempo pétrea, e num determinado momento passou o olho, um olho redondo e inteligente que se fixou em nós, um olhar intenso vindo do abismo. Quando já estávamos sem fôlego diante da enormidade do animal, ergueu a toda altura aquela cauda gigantesca e afundou-a com elegante lentidão na vertical; e, em todo esse deslocamento do seu corpo tremendo, não fez qualquer marola, não provocou a menor salpicadura nem emitiu nenhum ruído além do suave cicio de sua carne monumental acariciando a água. Quando desapareceu, imediatamente depois de ter mergulhado, foi como se nunca houvesse estado ali”.


“A prodigiosa besta submerge e o mundo fica quieto e surdo e tão vazio”
Rosa fala sem tomar fôlego. Diz que a aparição da baleia pode significar para todos o que significou para ela : a descoberta do Cálice Sagrado, a visão inesquecível que lhe abriu as portas para desvendar o Grande Segredo das Palavras, esta obsessão que há séculos mobiliza tanta gente:

- “Com a escrita é a mesma coisa: muitas vezes, você intui que o segredo do universo está do outro lado da ponta dos seus dedos, uma catarata de palavras perfeitas, a obra essencial que dá sentido a tudo. Você está no próprio limiar da criação, e em sua cabeça eclodem tramas admiráveis, romances imensos, baleias grandiosas que só revelam o relâmpago do seu dorso molhado, ou melhor, fragmentos desse dorso, pedaços dessa baleia, migalhas de beleza que permitem intuir a beleza insuportável do animal inteiro; mas em seguida, antes de você ter tempo de fazer alguma coisa, antes de poder calcular seu volume e sua forma, antes de entender o sentido do seu olhar perfurante, a prodigiosa besta submerge e o mundo fica quieto e surdo e tão vazio”

Pergunto: o que fazer com as palavras, depois da revelação de que elas, no fim, não conseguirão desvendar a “beleza insuportável” do grande animal ? Que utilidade elas terão ?

-”Disparamos palavras contra a morte, como arqueiros de cima das ameias de um castelo em ruínas. Mas o tempo é um dragão de pele impenetrável que devora tudo. Ninguém vai se lembrar da maioria de nós dentro de alguns séculos: para todos os efeitos, será como se não houvéssemos existido. O esquecimento absoluto daqueles que nos precederam é um manto pesado, é a derrota com a qual nascemos e para a qual nos dirigimos. É o nosso pecado original”.

Se a batalha contra esse “dragão de pele impenetável” um dia estará perdida, por que, então, insistir na tarefa de erguer barricadas com as palavras ?

- “Isto é a escrita : o esforço de transcender a individualidade e a miséria humana, a ânsia de nos unir aos outros num todo, o desejo de sobrepor-nos à escuridão, à dor, ao caos, à morte”

Você diz que escolheu escrever romances para participar dessa batalha. Por que essa escolha ?

- “Escrever romances implica atrever-se a completar o monumental percurso que tira você de si mesmo e permite se ver no convento, no mundo, no todo. E, depois de fazer esse esforço supremo de entendimento, depois de quase tocar por um instante na visão que completa e fulmina, regressamos mancando para nossa cela, para o encerro de nossa estreita individualidade, e tantamos nos resignar a morrer”.

A fita termina. Rosa soletra o sobrenome : Montero, sem “i”. Rosa Montero. Deixa de presente o livro com o título de doze letras (“A Louca da Casa”).

Despede-se com um leve meneio de cabeça. Começa a caminhar em direção ao portão de ferro que, à noite, protegerá a praça da invasão dos mendigos. Dá meia volta, pede para o repórter checar se o gravador funcionou. Fica aliviada quando vê que as pilhas funcionaram, sim. “Gravou tudo”, digo. “Por supuesto”, ela responde.

E vai embora.

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Rosa Montero

**********

PS: Tanto os encontros com a escritora espanhola Rosa Montero quanto as perguntas da entrevista são imaginários. O repórter pede licença aos internautas para, uma vez na vida, inventar um cenário. Mas as respostas da escritora sobre as baleias e as palavras são verdadeiras : foram extraídas do livro “A Louca da Casa”, publicado no Brasil pela Ediouro. Recomendadíssimo.

Posted by geneton at 09:53 PM

setembro 01, 2009

HENRY METELMANN

UM SOLDADO NAZISTA, UM REPÓRTER BRASILEIRO: VAI COMEÇAR A LONGA TARDE DAS LEMBRANÇAS ATORMENTADAS

O repórter-que-vos-fala quer fazer diante deste tribunal imaginário uma confissão que pode parecer despropositada, mas não é : sempre tive vontade de interrogar um soldado nazista. Ponto. O problema é que veteranos de guerra nazistas fazem, quase sempre, a opção preferencial pelo silêncio. Por que se expor ao escárnio ?

Kurt Vonnegut chamava os repórteres de voyeurs da desgraça alheia. Ah, o inconfessável apetite de repórteres por dramas, derrocadas, derrapagens, tragédias, derrotas, arrependimentos; a íntima necessidade de vasculhar escombros, ruínas, destroços e estilhaços – físicos ou morais. Porque qualquer estagiário de jornalismo sabe que paisagens devastadas são um belo hábitat para personagens trágicos. Provocados, eles emergirão da névoa em que se encontram.

Durante anos imaginei o cenário: um veterano de guerra, octogenário, já pressentindo o blecaute final, expõe seus fantasmas mais íntimos a um repórter forasteiro que o procura, no meio da tarde, num casarão de uma rua deserta numa cidade obscura da Baviera - o berço do delírio hitlerista.

Minha insistência foi premiada. A cena que imaginei aconteceu, não numa cidadezinha da Baviera, mas no interior da Inglaterra. Tive a chance de interrogar um ex-soldado nazista, veterano da temidíssima Divisão Panzer. Nome: Henry Metelmann.

Steve McQueen, mocinho do filme de guerra, tenta escapar dos soldados alemães. O menino se pergunta: quem são esses cães de guarda que querem aprisionar nosso herói numa solitária ?

A fantasia de um dia dirigir a palavra a um nazista pode ter nascido, quem sabe, numa sessão do Cinema da Torre, no Recife, quando eu tinha doze, treze anos de idade. Eu me lembro de ter visto a platéia em peso torcendo por Steve McQueen, enquanto ele, a toda velocidade, a bordo de uma motocicleta, tentava escapar dos soldados alemães no filme Fugindo do Inferno (The Great Escape). A platéia batia palmas e gritava. O incentivo não deu certo. Recapturado, Steve McQueen voltou para a solitária.

Quem eram aqueles cães que puniam o herói com temporadas intermináveis na solitária ? Pela primeira vez, eu via uma platéia torcer pelo bem, contra o mal. O filme durava quase três horas. Vi três sessões, em três dias seguidos. Quase nove horas no cinema. Nenhum menino de doze anos escapa impunemente de tal maratona cinematográfica. A curiosidade de um dia interrogar um vilão instalou-se em algum escaninho de minhas florestas interiores.

O que um soldado nazista teria a dizer, na “vida real” ? Bato na porta da casa número 132 de uma rua sem movimento de uma cidade sem atrativos num ponto remoto da Inglaterra. O encontro tinha sido marcado a duras penas. Quando fiz o primeiro contato, por telefone, o ex-soldado alemão, radicado há décadas na Inglaterra, confessou que não tinha nem um pingo de orgulho pelo que fez no passado. Mas aceitou falar, porque queria “transmitir às novas gerações” as lições que aprendeu.

O ex-soldado de Hitler confessa que chorava ao ouvir a palavra do líder
Educado na Juventude Hitlerista, o jovem Metelmann chorava de emoção ao ouvir Hitler. Não tinha a menor dúvida da superioridade da “raça alemã” sobre os outros povos – a escumalha que deveria ser varrida do planeta em nome da supremacia ariana. Terminou se integrando à temida Divisão Panzer, a muralha de tanques que abria caminho para o avanço das tropas nazistas.

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O ex-soldado nazista: lembranças atormentadas (Foto: GMN)

Quando a guerra eclodiu, em setembro de 1939, Metelmann ainda não era soldado. Dois anos depois, foi personagem da ofensiva contra a Rússia.

Eis um decálogo das lembranças do homem que matava em nome de Adolf Hitler:

1.”Tudo o que me foi ensinado na Juventude Hitlerista e na escola dizia que eu pertencia a uma das maiores nações da terra: a alemã. Hitler era nosso líder. Para mim, ele era uma espécie de segundo Deus. Eu poderia morrer por ele!”.

Uma menina que corria para dar as boas-vindas aos soldados, um prisioneiro chamado Bóris, uma mulher chamada Celina: três tragédias que atormentam as lembranças do soldado

2. “Quando vi Hitler pela primeira vez, em Hamburgo, devo dizer que fiquei desapontado, porque ele era baixo. Pensei que ele era grande e forte, mas ele não era. Tinha um rosto sério. Não se via riso ao redor de Hitler. Assim era ele”.

3.”Quando me tornei soldado, achava que era um ser humano superior, em comparação a todos os outros. Éramos a raça ariana! Os russos, os poloneses, os povos eslavos era raças inferiores. Por essa razão, éramos superiores”.

4.”Precisávamos conquistar primeiro a Europa para, depois, conquistar o mundo. Eu apoiava inteiramente essa idéia! Pensava que ela era certa. Nossa missão, portanto, era impor nossa vontade às outras nações. Se as outras nações não acreditassem nessa idéia, teríamos de forçá-las. Era este o motivo de nossa brutalidade na guerra”

5.”A lembrança mais dolorosa que tenho é do ponto de vista humano. Estávamos em nosso tanque quando um colega disse : “Olhe, maçãs !”. Tínhamos chegado a uma espécie de sítio. Eu estava guiando o tanque. Desci, então, para colher maçãs para nós. Neste momento, vi uma mulher debruçada sobre uma menina que deveria ter uns doze anos. Tinha sido atingida por um disparo. O sangue saía da ferida aberta no corpo da menina. Pensei: “Não posso fazer nada”. A mulher – a mãe da menina – levantou-se, olhou para mim e disse: “Veja o que vocês fizeram ! Minha filha estava vindo para dar as boas-vindas a vocês, soldados ! O que ela estava trazendo para vocês era pão e sal – que é um sinal de boas-vindas. E vocês a mataram!”. Eu me lembro de que a menina ainda estava respirando. Voltei para o tanque. Um dos meus colegas perguntou: “Cadê as maçãs ?”. Eu disse : “Acabei de ter uma experiência terrível. Nós matamos uma menina! Ela está ali, no chão. Não podemos fazer nada!”. Meu colega disse : “Ah, não importa! É somente uma russa…”

6.”Conheci bem um prisioneiro, porque fui encerregado de vigiar,à noite, a área em que ele estava. Chamava-se Bóris. Eu sabia que todos seriam executados. Estava de guarda naquela que seria a última madrugada da vida de Bóris. Eram cerca de quatro da manhã. Pouco depois, às seis, ele seria fuzilado. Enquanto eu me afastava, ele apontou para o meu rifle: “Você pode fazer qualquer coisa! Pode matar muitos de nós, russos. Pode destruir! Pode causar mal! Mas não pode matar idéias!” . Ainda respondi: “Não consigo entender!”. Eu estava impregnado de minhas idéias nazistas. Fui embora. Mas ele repetiu: “Você pode fazer mal com este rifle! Mas não pode atingir as idéias. E essas idéias vencerão, não importa quanto demore!”. Participei da execução de Bóris e de outros prisioneiros – que foram fuzilados. Ouvi os tiros. De fato, fiquei triste por ele. Porque achei que ali estava um ser humano decente. Eu estava sentindo pena de Bóris. Mas devo dizer que também não achava que as execuções fossem exatamente erradas. Eu pensava na superioridade dos alemães. Nossa obrigação era limpar o lixo do mundo. Era este o motivo de estarmos fazendo aquelas coisas”

“A mulher disse: “Vocês são uns porcos nazistas! Espero que percam a guerra!”

7.”Vi uma mulher que, para mim, parecia velha: devia ter uns sessenta anos. As mãos da mulher tinham sido amarradas a uma árvore. Perguntei a um soldado que estava por perto: “O que foi que aconteceu?”. E ele: “Nós a capturamos na noite passada, quando ela se preparava para enterrar minas”. Ou seja: quando um tanque de nossa Divisão Panzer, um caminhão ou um carro alemão passassem, explodiriam. Eu disse a ela algo como: “Ah,bom, pegamos você! Como é que você se chama ?”. Ela respondeu: “Celina”. E eu: “Celina de quê ? “. E ela: “Não vou dizer nada!”. Nossos soldados, então, pegaram uma corda para que ela pudesse ser executada. Disse: “Porcos alemães! Vocês vieram aqui ocupar nosso país. Longa vida à revolução! Longa vida a Lênin! Vocês são porcos! Espero que percam a guerra!”.

Celina morreu. Nosso comandante disse: “Livrem-se do corpo. Enterrem-no”.

Fiquei pensando: “Celina era uma mulher muito corajosa. Sozinha, diante de nós, soldados fortes, disse: “Vocês são uns porcos nazistas!”. Pensei comigo: “Isso foi um gesto de coragem, Celina. Não importa de que lado as idéias estejam. Não importa. Você teve coragem”.

8.”Participei do combate contra os russos. A única maneira de sair daquele inferno era manter a coesão do nosso exército. Ou seja: nós, alemães, nos unirmos para tentar sair. Creio que essa foi uma das razões por que lutamos como demônios na Rússia: não queríamos ser capturados. Tínhamos ocupado um país! Além de tudo, matamos gente, matamos soldados. Éramos duros, difíceis. Pensávamos que tínhamos esse direito. Hoje, lamento”.

9.”Não posso dizer, hoje, que “lamento” o que fiz, porque não significa nada para para ninguém. Mas, hoje, sou totalmente internacionalista. Não acredito na superioridade alemã, porque essa idéia é estúpida, perigosa e, por fim, autodestrutiva”.

10.”Hoje, como existe uma espécie de guerra em andamento no Iraque e no Afeganistão, vejo jovens que são postos em uniformes e enviados para esses países. Vão matar e, provavelmente, morrer. É esta fonte de minha frustração: sei que é errado, mas não posso fazer nada”. ( o depoimento do ex-soldado foi publicado, na íntegra, sem qualquer corte, em “Dossiê História“).

Quando saí da casa do velho soldado, em companhia do cinegrafista Paulo Pimentel, ao fim de uma entrevista que se estendeu por uma tarde gélida de fevereiro de 2007, um detalhe me impressionava. Décadas e décadas depois do fim da guerra, o ex-soldado, então com 85 anos, não fazia grandes elucubrações geopolíticas nem alinhavava teses para justificar o horror. Não se estendia sobre Hitler nem Stalin nem Mussolini. Não tratava da Conferência de Yalta nem da divisão da Europa. Preferia falar de três lembranças que o acompanham, intocadas, desde então.

Três personagens literalmente perdidos no tempo, sem rosto, sem sobrenome, sem história : a menina que corria com um cesto de pão nas mãos, Celina e Bóris.

Feitas as contas, os três é que importam. A “dimensão humana” termina se impondo.

Depois de se despedir, o ex-soldado recolhe-se à solidão da viuvez, na andar térreo do casarão onde mora, longe de tudo e de todos. Lá dentro, as três lembranças de sempre estarão esperando por ele: a menina, Celina e Bóris; a menina, Celina e Bóris; a menina, Celina e Bóris.

Sempre foi assim.

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Foto: GMN

Posted by geneton at 09:57 PM