julho 30, 2014

UM ENCONTRO COM O CAVALEIRO DO APOCALIPSE: UM DOS HOMENS QUE JOGARAM A BOMBA ATÔMICA EM HIROSHIMA, ‘O ATO MAIS VIOLENTO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE’

O último tripulante do Enola Gay, o avião que jogou a bomba atômica em Hiroshima, na segunda Guerra Mundial, morreu aos noventa e três anos, neste final de julho, nos Estados Unidos. Vai ser enterrado no dia cinco de agosto.

Vasculho os arquivos das andanças deste repórter. Eis o relato de um encontro com o homem que participou diretamente de um ato devastador - que dividirá para sempre as opiniões:

Eis um dos cavaleiros do apocalipse: um homem colhe peras no pequeno pomar que cultiva no jardim de casa, num subúrbio de São Francisco, Califórnia. Oferece-me a fruta. “É boa e doce”. Faz sol. O azul escancarado do céu só é maculado pelo rastro deixado por um avião a jato.

Enquanto saboreia a pera que acabou de colher, ele se dirige, a passos lentos, para uma cadeira na beira da piscina. Os raios de sol acentuam a brancura dos cabelos ralos. O pomar em casa e o conforto sugerido pela piscina podem dar a impressão de que o homem que colhe peras é um milionário. Não é. O homem que colhe peras é apenas um militar aposentado.

A biografia deste octogenário não seria diferente da de tantos outros veteranos de guerra se ele não tivesse levantado voo, na madrugada de seis de agosto de 1945, a bordo do Enola Gay – o avião que conduzia a primeira bomba atômica usada numa guerra. Ao embarcar no Enola Gay, Van Kirk entrou para a História – para o bem e para o mal.

Os que criticam o uso da arma atômica chamam os militares que participaram do ataque de mensageiros da morte. Os que encontram uma justificativa histórica chamam-nos de guerreiros da paz. A polêmica durará séculos.

A missão que Theodore Van Kirk cumpriu em 1945 mudou a história da humanidade. Todos os superlativos já foram usados para descrever a enormidade do ataque nuclear a Hiroshima. “Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra” - diz Bob Greene, autor do livro-reportagem “Duty: a Father, His Son and The Man Who Won The War” - um jornalista que, desde criança, era fascinado pela Missão Hiroshima.

Que fantasmas povoam hoje os dias calmos do homem que colhe peras no pomar?

Se ele não tivesse embarcado para a Missão Hiroshima , certamente não teria o descanso dos seus dias de aposentadoria quebrado pela impertinência de repórteres que o procuram para tirar velhas dúvidas.
É o que faço agora. Van Kirk nos recebe - a mim e ao cinegrafista Sherman Costa - com um sorriso largo, uma pergunta bem-humorada (“Vocês conseguiram chegar? Pensei que tinham ficado presos no engarrafamento!”) e a disposição de abrir o armário onde se escondem os fantasmas de Hiroshima.

Pergunto se ele levou algum objeto pessoal quando embarcou no voo histórico. Van Kirk me surpreende com a resposta: o único “objeto pessoal” que ele levou a bordo do avião que carregava a bomba atômica foi uma Bíblia. Se precisasse de conforto espiritual durante a Missão, poderia recorrer àquela pequena relíquia familiar:

- A única peça pessoal que carreguei comigo foi uma Bíblia – que eu tinha recebido de minha mãe e de meu pai. Era pequena. Cabia no bolso. Durante o voo, eu me lembro de ter tocado a Bíblia com a mão. Mas não cheguei a ler nenhuma passagem. O exemplar da Bíblia não tinha meu nome, nada que pudesse identificar quem eu era. Se o avião por acaso fosse derrubado em território inimigo, os japoneses não poderiam me identificar pela Bíblia. Terminei perdendo-a, tempos depois.

Além do pequeno exemplar da Bíblia, Van Kirk carregava consigo uma pistola automática – que poderia ser usada numa situação extrema:

- Não havia rifles a bordo. Mas cada um de nós tinha uma pistola automática, calibre 45. Carreguei uma comigo, na missão rumo a Hiroshima. Se fôssemos derrubados sobre território japonês, poderíamos usar as pistolas para nos proteger ou – Deus nos livre – para destruir a nós mesmos, se necessário (Van Kirk evita a palavra “suicídio”). Mas, se algo desse errado na missão, a cena seria tão catastrófica que teríamos pouca chance de usar as pistolas.

Van Kirk orgulha-se de ter contribuído para o fim da guerra. É um fato histórico indiscutível. O uso das armas atômicas – primeiro, em Hiroshima e depois em Nagasaki - obrigou o Japão à rendição incondicional. Se o Japão continuasse em guerra, seria invadido por terra. O número de mortos poderia ter sido maior do que o causado pelas bombas – dizem os estrategistas. Mas o preço do uso das armas atômicas foi altíssimo. O horror causado pelo cogumelo atômico jamais se dissipou. Calcula-se que cem mil pessoas tiveram morte instantânea, nos dez segundos seguintes à explosão. As cicatrizes deixadas pelas explosões atômicas vão atravessar os tempos.

Que tipo de pensamento terá passado pela cabeça de Van Kirk quando ele viu Hiroshima pela primeira vez, ainda a bordo do Enola Gay?

Van Kirk faz uma pausa, reconstitui o cenário do apocalipse:

- Era um dia perfeitamente claro. A gente podia ver a cidade a milhas de distância. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a de que nossa missão tinha sido bem sucedida: nós tínhamos encontrado a cidade, cumprimos os horários previstos, tudo estava perfeito. O primeiro pensamento que tive depois da explosão da bomba foi de alívio. Porque aquilo era algo que tinha exigido um treinamento que durara meses. O segundo pensamento que tive foi: a guerra acabou!

A História dos tempos de guerra não é feita apenas de ordens militares grandiosas e decisões sem rosto. Há sempre alguém que cumpre as ordens. As decisões tomadas no Salão Oval da casa Branca pelo Presidente dos Estados Unidos podem exigir - por exemplo – que um grupo de militares entre num avião de madrugada, invada o espaço aéreo japonês, mire numa cidade lá embaixo e abra as comportas para que seja lançada, naquele alvo povoado por homens, mulheres e crianças, a arma mais mortífera já concebida pelo homem - uma bomba atômica.

O avião Enola Gay levanta voo da ilha de Tinian, no Oceano Pacífico, às 2 e 45 da manhã de seis de agosto de 1945 rumo a Hiroshima, com doze homens – e uma bomba atômica a bordo. A bomba explode às 9h16. Cem mil pessoas morrem instantaneamente na explosão. O número de vítimas chegaria a 145 mil no final de 1945.

“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastaram até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas seiscentos leitos e todos já estavam ocupados”, diria o jornalista americano John Hersey em "Hiroshima", texto clássico sobre a hecatombe.

“Nuvens de fumaça, próximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um céu silencioso ter causado tanta destruição (...) Zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos.”

A Missão Hiroshima foi o momento mais grave vivido por Van Kirk. Mas, para decepção dos fanáticos por guerra, ele constata:

- A guerra é mais interessante na TV do que na vida real. Guerra pode significar cinco minutos de extrema atividade – e um ano de monotonia....

Não havia lugar para monotonia a bordo de um avião que voava rumo ao Japão para cumprir uma missão que – não é exagero dizer - entraria para a História da humanidade:

- Havia a possibilidade de a bomba explodir no avião, o que seria desastroso. Poderíamos ter problemas no motor. Nós estávamos preparados para o pior – que, felizmente, não aconteceu. Não estávamos preocupados com os japoneses durante o voo em direção a Hiroshima, porque sabíamos que eles não tinham como nos alcançar naquela altitude – confessa Van Kirk. – Mas sabíamos que nosso avião seria atingido por ondas provocadas pelo deslocamento de ar, depois da explosão. Disseram-nos que, depois da explosão, iríamos sofrer o impacto. Houve até especulações sobre o risco de a explosão atingir o nosso avião. De volta à base, cheguei a ouvir de um dos cientistas o seguinte: “Quando vocês partiram para a missão, pensei que aquela seria a última vez que eu os veria....”. A turbulência durou pouco. O voo de volta pôde continuar.

O calor que se espalhou por Hiroshima e Nagasaki era o de “mil sóis”. Seres humanos “se desintegraram sem deixar qualquer vestígio”. O inferno se instalou na terra. O grande paradoxo é que tanta destruição foi cometida, em última instância, em nome da paz – para acabar com a guerra. O Japão se rendeu. A Segunda Guerra Mundial acabou ali. Mas Hiroshima e Nagasaki entraram para sempre na História como provas de que o homem é tecnicamente capaz de destruir a vida sobre a terra. Basta tomar a decisão.

“Os cientistas tinham dito que a temperatura no centro da explosão seria mais forte que a do sol – diz Van Kirk. Quando a bomba explodiu lá embaixo, nós já estávamos nos afastando de Hiroshima. Não havia janelas na parte traseira do avião. Usávamos equipamentos para proteger nosso olhos. Ainda assim, pudemos ver um clarão parecido com o de um flash fotográfico numa sala escura. Hiroshima estava inteiramente encoberta por uma fumaça negra e por poeira. Não se via a cidade. A nuvem que se formou tinha várias cores: eram tons de cor púrpura, rosa, branca – todos os tipos de cores".

A visão era bonita? – pergunto ao navegador.

“Não se pode chamar algo assim de belo. Era algo mais horrível do que bonito”.

Adiante, ele aprofunda a descrição:

- Minha primeira reação, ao ver as primeiras imagens de Hiroshima, foi de surpresa: como aquilo tudo pôde ser feito com apenas uma bomba? Aquilo reforçou a nossa certeza de que não havia meio de os japoneses resistirem a uma arma daquele tipo. O Japão iria se render logo depois.

O que é que a palavra Hiroshima significa para este homem?

“Para mim, Hiroshima significa, hoje, a ressurreição de uma cidade que foi destruída”, diz Van Kirk. “Hiroshima é também a prova de que o homem pode corrigir seus erros. Não é que a bomba atômica tenha sido um equívoco. O bombardeio foi perfeitamente legítimo como ato de guerra. A população de Hiroshima é hoje devotada à paz. É uma mensagem que vai para todo o mundo”.

Que resposta o navegador do Enola Gay dá, hoje, aos críticos da Missão Hiroshima, gente que condena o uso de armas atômicas?

- Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento específico e qual a alternativa que existia ao uso da bomba. O que aconteceu é que a bomba salvou vidas. Se não tivéssemos jogado a bomba, a guerra não teria terminado em agosto. Teria se estendido por um, dois meses. Durante este período, o Japão estaria exposto a um horrível bombardeio – com grande perda de vidas. Embora tenha havido uma horrível perda de vidas em Hiroshima – e também em Nagasaki – a alternativa seria pior : basta levar em conta o número de vidas que teriam sido perdidas se a guerra continuasse.

Ao contrário do esperado, o Japão não se rendeu depois da explosão da bomba em Hiroshima. Os Estados Unidos decidem, então, lançar uma segunda bomba atômica. O alvo era a cidade de Kokura. Mas, como a cidade estava encoberta por nuvens, a bomba foi jogada em Nagasaki. O Japão finalmente se rende. O documento da rendição incondicional é assinado no dia 2 de setembro

Pergunto se Van Kirk já teve pesadelo com Hiroshima:

- Nunca. Há quem me critique pelo fato de eu nunca ter tido pesadelo com a bomba atômica. Mas devo dizer que não tive. Porque acho que o que fizemos em Hiroshima foi apropriado.

Faria tudo de novo?

- Eu faria – diz Van Kirk , sem titubear. – Faria tudo de novo, se as circunstâncias que a gente tinha ali se repetissem: um conflito que se estendia por anos, com muita matança, com feridos, com o país inteiro em estado de guerra, não apenas as Forças Armadas. Mas creio que as circunstâncias não se repetiriam. Não acredito que nenhuma outra guerra dure mais que uma semana ou duas.

Se tivesse tido a chance de falar aos habitantes de Hiroshima momentos antes do lançamento da bomba, o que Van Kirka diria a eles?

- Eu diria: lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade. É um ato necessário. Vocês não aceitaram os termos da rendição incondicional – que nós oferecemos. O resultado é este.

Aos que dizem que o ataque a Hiroshima é discutível porque atingiu indiscriminadamente alvos civis, Van Kirk responde que não: Hiroshima era a sede das instalações militares japonesas encarregadas de defender o país em caso de invasão. Havia na cidade pelo menos cem “alvos militares”. Mas a população civil pagou o preço.

Van Kirk acha absurda qualquer comparação entre o ataque atômico ao Japão – um ato de tempos de guerra – e, por exemplo, o ataque dos "soldados" de Bin Laden ao World Trade Center. O sentimento antiamericano, aguçado na era Bush, deu margem a comparações desse tipo.

- Quando vi o ataque ao World Trade Center me perguntei: que tipo de gente pode fazer algo assim? É algo que não consigo imaginar: que eles tenham achado que algo de bom poderia sair dali. Quando houve Hiroshima, nós estávamos em guerra. Havia legitimidade. Não apenas nós estávamos envolvidos na guerra, mas todo mundo – os britânicos, os russos, todos. Mas o ataque ao World Trade Center foi feito em tempos de paz. Como puderam fazer? Não consigo entender. Eu não o faria. Nunca. Nunca.

Vida de personagem da história é assim: o navegador do avião que jogou a bomba atômica oferece ao repórter um autógrafo sobre uma foto do Enola Gay. A relíquia vai para meus arquivos implacáveis. Pai de dois filhos e duas filhas, avô de sete netos, Van Kirk vive com a mulher - parcialmente inválida.

Em seus momentos de solidão, Van Kirk se lembra das vítimas da bomba?

- Eu hoje me lembro das vítimas com menos frequência do que antes. Mas a cada vez que vejo uma foto, um filme ou uma menção de alguém, me lembro das vítimas da bomba atômica. É algo que acontece menos e menos, à medida em que envelheço e o tempo vai passando. Hoje, devo me lembrar das vítimas uma vez por mês. Pode acontecer de eu me lembrar das vítimas duas vezes em um mês e, em seguida, passar três meses sem me lembrar. Mas a média é de uma vez por mês.

Van Kirk fica em silêncio. Nessas horas, ele parece rever intimamente os fantasmas de Hiroshima: o pesadelo da guerra, o imenso cogumelo atômico, a decisão dramática, a destruição indizível.

É sempre assim: quando uma notícia qualquer de TV fala da guerra ou quando um repórter vem de longe para ouvi-lo sobre o dia histórico, Van Kirk embarca numa viagem feita de palavras, lembranças e silêncios - como agora. Não se recusa a falar. Não se esconde. Porque, desde o momento em que entrou no Enola Gay para voar rumo a Hiroshima, ele sabia que aquela viagem não acabaria nunca.

( A entrevista foi gravada em 2003, para o Fantástico)

Posted by geneton at 11:59 PM

julho 03, 2014

HORA DE MANDAR FLORES PARA OS NÁUFRAGOS DE 1950

Uma canção anarquista italiana pede que se mandem flores para os rebeldes que fracassaram. Os jogadores que falharam também merecem flores. Por que não?

A história do futebol é feita de gloriosos tropeços. É hora – então - de mandar flores - tardias – aos personagens do mais espetacular naufrágio já registrado na história do futebol brasileiro: a derrota do Brasil para o Uruguai, na decisão da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã.

Por que os náufragos de 50 merecem flores? Porque – justiça se faça – aqueles jogadores deram ao futebol brasileiro o primeiro título internacional de importância: o vice-campeonato mundial. Bem que merecem uma anistia ampla, geral e irrestrita.

A derrota diante do Uruguai foi tão traumática que poucos se dão ao trabalho de notar que, ali, o Brasil começou a despontar como “potência futebolística”. Mas o que aconteceu? Em vez de serem reconhecidos, os jogadores foram crucificados.


Tive a chance de entrevistar os onze jogadores brasileiros que entraram em campo, no Maracanã, para a festa que não houve. Havia uma mágoa generalizada: os jogadores lamentavam que, aqui no Brasil, o título de vice-campeão “não vale nada”.

O estigma da derrota de 1950 os acompanhou até a morte. Mas nunca é tarde para mandar flores para os rebeldes que falharam – ou para os náufragos que erraram. ( É claro que erraram: os jogadores, confessadamente, entraram em campo achando que iriam golear o Uruguai. O “excesso de otimismo” foi fatal. Mas não mereciam carregar a cruz que carregaram pelas décadas seguintes ).

NUNCA MAIS, NUNCA MAIS

O naufrágio brasileiro de 16 de julho de 1950 ganhou o status de mito porque é um daqueles acontecimentos que jamais se repetirão.

Jamais o Brasil jogará pelo empate numa decisão de Copa do Mundo ( as regras mudaram: naquele tempo, quatro países disputavam um quadrangular final. O Uruguai tinha vencido a Suécia – 3 a 2 – e empatado, no sufoco, com a Espanha – 2 a 2. Tinha, portanto, um ponto a menos que o Brasil – que vinha de dois passeios históricos: 7 a 1 sobre a Suécia e 6 a 1 sobre a Espanha. Por “artes do destino”, a tabela previu Brasil x Uruguai como última partida ). Jogar pelo empate numa decisão de Copa? Nunca mais, nunca mais.

Jamais o Brasil jogará novamente diante de 200 mil torcedores. Os estádios, desde então, encolheram ( o público pagante de Brasil x Uruguai foi de 173.850. Calcula-se que os não-pagantes levaram o total a cerca de 200 mil. É uma marca extraordinária: nada menos de 10 % da população do Rio de Janeiro na época, estimada em 2 milhões e 300 mil pelo censo de 1950). Quando é que 10% da população de uma grande cidade brasileira irão a um estádio para assistir a um jogo de futebol? É fisicamente impossível. Nunca mais, nunca mais.

O que parecia impossível, naquele domingo de julho, era uma derrota brasileira. Como para mostrar que não se contentaria com um mero empate, o Brasil fez um a zero, logo no primeiro minuto do segundo tempo: gol de Friaça. A taça estava na mão. Só uma catástrofe impediria a festa. Mas o impossível aconteceu: o Uruguai fez 2 a 1, gols de Schiaffino – aos 25 minutos – e Ghiggia, aos 34, naquela arrancada inesquecível que alvejou o sonho brasileiro de glória com um tiro seco e certeiro.

Como bem lembrou o jogador Juvenal, o Brasil, ali, foi campeão do mundo três vezes: quando o placar estava zero a zero, quando estava um a zero para Brasil e quando estava um a um. Três chances imperdíveis! Mas, não. Brasil, campeão do mundo de 1950? Never more, never more - diria o corvo do poema de Edgar Allan Poe.

BRASIL : A TERRA DA REINVENÇÃO

Pelas décadas seguintes, 1950 virou sinônimo de maldição para o Brasil. Aquela decisão deixou de ser um acontecimento meramente esportivo. Terminou produzindo ressonâncias históricas, sociológicas, psicológicas, antropológicas.

O Brasil x Uruguai deixou de ser um jogo. Virou uma lenda. Por quê? Pode-se arriscar uma explicação.

O Brasil – país periférico, agrário, subdesenvolvido - tinha, ali, uma grande chance de mostrar que poderia ser o melhor do mundo num esporte que já apaixonava o planeta. Mas veio o Uruguai, vizinho pequeno e incômodo, para acabar com a festa. Era como se a ambição de grandeza fosse desmentida, no último momento, por um acontecimento inesperado – algo que se repetiria em outros momentos de nossa história ( guardadas as proporções, quem não se lembra da noite de 14 de março de 1985? Tancredo Neves, o primeiro presidente civil depois de duas décadas de poder verde-oliva, vai parar no hospital, trêmulo de febre, horas antes de tomar posse. Só subiria a rampa do Palácio do Planalto morto. E o que dizer da saga de Ayrton Senna – naufragando na curva Tamburello a caminho do título de tetracampeão de Fórmula-Um ? ).

O Brasil teria também, em 1950, a chance de celebrar um traço fascinante do caráter brasileiro: a capacidade de reinventar o que foi trazido de fora. O futebol não é uma invenção brasileira: os ingleses é que o trouxeram para os gramados tropicais. Mas o Brasil teve a capacidade de reinventá-lo – a ponto de “futebol brasileiro” virar uma instituição reconhecida em todo o planeta como sinônimo de “futebol arte” ( aquilo que os europeus chamam de “beautiful game”). A chance se perdeu. ( Igualmente, o Brasil não inventou a música popular – mas foi capaz de produzir um “som brasileiro” que corre mundo ).

O ÚLTIMO GRANDE ACONTECIMENTO DA ERA PRÉ-TV: A IMAGINAÇÃO OCUPA O LUGAR DOS FATOS

O Brasil x Uruguai ganhou status de lenda, também, porque foi pobremente documentado em imagens. Poucos atentam para um fato importante: a Copa de 1950 foi o último grande acontecimento brasileiro antes da chegada a televisão ao país ( a TV Tupi foi inaugurada no dia 18 de setembro de 1950, dois meses e dois dias depois da final Brasil x Uruguai ).

Se aquela partida tivesse sido disputada na era da TV, não sobraria espaço para qualquer dúvida: as imagens documentariam tudo. Basta ver o que acontece nas transmissões de hoje. Mas o que ficou do drama de 1950? Imagens fragmentadas. Não há um registro da partida inteira. Sem as imagens, entram em campo a lenda e a imaginação. O fato dá lugar à fábula.

Como disse Paulo Perdigão, um dos espectadores de 1950 e autor de Anatomia de uma Derrota, o Brasil x Uruguai de 1950 “é um mito fabuloso que se conserva e se agiganta na imaginação popular”.

Talvez esteja aí um dos motivos do fascínio exercido pela Copa de 50: o Brasil x Uruguai não é uma história fechada, lacrada, indiscutível. É um mito que vai passando de uma geração a outra de brasileiros, como símbolo do que o esporte pode ter de mais fascinante e mais dramático: a capacidade de repetir o que a vida pode ter de inesperado, imprevisível, incontrolável.

O Brasil x Uruguai de 1950 parece revelar dois traços do comportamento brasileiro. Um: a imensa dificuldade de aceitar uma derrota. Dois: a extraordinária capacidade de superar um trauma ( depois do naufrágio, como se sabe, vieram cinco títulos mundiais. Não por acaso, os fantasmas de 1950 sempre voltam ao noticiário em época de Copa de Mundo ).

É hora de entregar – simbolicamente – flores para os náufragos do Maracanã: a seleção brasileira que disputou a Copa de 50.

Minha expedição em busca dos onze jogadores brasileiros produziu dois resultados: o livro “DOSSIÊ 50” - agora relançado, em papel, pela Editora Maquinária e, em edição digital, pela E-Galáxia - e um documentário, produzido pela Globonews: “Dossiê 50: Comício a Favor dos Náufragos”. O livro traz todos os depoimentos na íntegra, sem cortes.

Hoje, “estão todos dormindo”, como diria o poeta Manoel Bandeira. Os jogadores de 1950 não viveram para ver o Brasil tentar novamente conquistar, em casa, um título mundial.

Se eles estivessem aqui, bem que o repórter poderia procurá-los de novo. Iria encontrar o goleiro Barbosa, como encontrei, numa roda de amigos numa loja de instrumentos de pesca, numa tarde suburbana em Ramos, Rio de Janeiro:

“A vida tem dessas coisas: o atacante perde dez, vinte gols, mas, se faz um gol numa vitória de 1 a 0, é considerado herói. Já o goleiro, coitado, faz defesas durante 89 minutos, mas, se leva um gol no último minuto, é tido como o carrasco. É assim a vida da gente ( ....) A derrota pesou, porque o título de campeão do mundo pela Seleção Brasileira é o único que consegui na minha carreira. A maior lição que um homem pode tirar de uma derrota é usar os ensinamentos que ela traz, como a necessidade de ser humilde e a capacidade de reagir para procurar uma vitória maior. Cheguei a uma conclusão depois daquela Copa: a humildade é uma das coisas mais sublimes. Minha vida mudou depois de 50. Eu me julgava um sujeito prepotente. Depois, cheguei à realidade: vi que somos o que somos – nada mais! (...) A única coisa que me magoou foi o sujeito não respeitar o meu título de vice-campeão do mundo”.

O zagueiro Augusto – que, como capitão do time, ergueria a taça de campeão do mundo se o Brasil tivesse vencido – recordaria, em casa, na Tijuca:
“Várias vezes sonhei com aquele jogo contra o Uruguai. O placar era sempre diferente, no sonho. A gente ganhava, eu levantava a taça. Quantas vezes eu sonhei....(...) A derrota que ficou foi a de 50. Fui chamado de traidor! Aliás, todos nós: “traidores da pátria” ! Isso saiu nos jornais! Tive essa mágoa da imprensa. Não merecíamos ser tratados desse jeito. Éramos ídolos até a véspera do jogo”.


Juvenal diria, numa mesa de bar, em Salvador:
“A agitação para a final começou já na concentração. Políticos apareciam para tirar foto: um queria ser presidente, outro queria ser governador, outro queria ser vereador...Quando a política se mete no meio, acaba com o futebol. Porque no Brasil só existem três coisas: carnaval, política e futebol.(...) Eu me sentia um soldado defendendo o país. Não é só numa guerra que se defende o país: é nas disputas esportivas também. Perder aquele jogo contra o Uruguai foi como perder uma guerra”.

Bauer constataria, em São Paulo:
“O que aconteceu em 1950 foi o seguinte: nós, os jogadores, fomos envolvidos pela euforia geral durante aqueles três dias – sexta, sábado e domingo. O Brasil já era campeão. O problema, então, foi esse ( ...) Dizem que Bigode levou um tapa. É mentira! Coitado de Bigode, não pode estar numa roda de amigos, porque logo dizem: “Levou – ou não levou – um tapa na cara...”. Ora, se Obdúlio Varela, capitão do Uruguai, desse um tapa na cara de Bigode, no Maracanã, o jogo não terminaria! O time brasileiro iria, todo, para cima de Obdulio Varela!”.

Num apartamento na Lapa, no Rio de Janeiro, o “príncipe” Danilo falaria do assédio:
“Durante toda a semana, estivemos com vários políticos, porque era época de eleições. A gente tirava fotos, conversava com eles. Mas nunca vi uma dessas fotos que nós tiramos, nunca vi ninguém fazer propaganda eleitoral com elas. Depois do jogo contra o Uruguai, devem ter rasgado e jogado fora as fotografias (...) Depois de tudo, quando consegui chegar em casa, foi um problema descer do carro. Quando saltei, parecia que tinha chegado o presidente da República. Vaias, vaias. Era eu. Tive de sair do Rio”.

O lateral Bigode sofreu duplamente com a derrota. Primeiro, foi crucificado porque não interrompeu o avanço do ponta Ghiggia com a bola, no lance do gol. Depois, porque teria levado um tapa de Obdulio Varela, capitão do Uruguai – uma humilhação extra para o Brasil. Mas o tapa parece ser uma calúnia - que Bigode repelia com ardor sempre que se tocava no assunto. Não há imagens para tirar a dúvida. Mas, como bem lembrou Bauer, é improvável que o capitão uruguaio tivesse a ousadia de estapear um jogador brasileiro, numa final de Copa, no Maracanã. Bigode diria:
“Não houve agressão nenhuma de Obdulio Varela! A injustiça maior foi esta, contra mim. Eu sinto até hoje. É uma covardia o que fizeram. Uns dizem que Obdulio Varela cuspiu. Outros, que foi um tapa e eu não reagi. Não houve reação porque não houve agressão! O que aconteceu foi que Obdulio Varela deu um tapinha em mim, pelas costas, para pedir calma. Veio me dizer: “Muchacho, calma!” (...). De uma vez por todas: Obdulio Varela deu um tapinha aqui no meu pescoço para pedir calma. E eu estava olhando para o juiz – para ver se ele iria me expulsar, depois de uma entrada que eu tinha dado num uruguaio. Tentaram me jogar na sarjeta, mas não deixei”.


O ponta-direita Friaça realizou o sonho de todo brasileiro: fazer um gol no Maracanã superlotado, numa decisão de Copa do Mundo. Diria, em Porciúncula, no interior do Rio:
“O trauma da derrota foi enorme. Vim para o Vasco. Fiquei, em companhia de outros jogadores, andando de noite, em volta do campo, ali na pista. O assunto era um só: como é que a gente foi perder? Só me lembro que a gente subiu para o dormitório. Eram umas onze da noite. Tirei a roupa e me deitei. Não me lembro de nada do que aconteceu depois. Quando dei por mim, por incrível que pareça, eu estava em Teresópolis. Só sabia que estava debaixo de uma jaqueira. Não sei como é que saí com meu carro da concentração”.

Zizinho, apontado pela crônica da época como supercraque, chamaria atenção para o papel dos jornalistas:
“A imprensa também cooperou com aquele clima todo de carnaval antecipado. Afinal, quem montou a foto do “Brasil, campeão do mundo” no dia da partida contra o Uruguai foi um jornal. Aliás, a relação com a imprensa mudou nas Copas seguintes. Antes, um jornalista chegava à concentração para fazer uma matéria para o jornal que teria de ficar pronto daqui a pouco. A gente tinha de acordar para fazer a matéria!(...) Houve uma invasão na concentração em São Januário, na véspera do jogo. Não houve concentração para o jogo contra o Uruguai. Não mesmo! Cansei de assinar autógrafos como “Brasil, campeão do mundo”. São Januário estava lotado de gente. Aquilo não era uma concentração: era uma batalha de confetes! (...) Depois, o general Mendes de Morais, prefeito da cidade, jogou essa história em cima da gente: “Dei o estádio a vocês. Agora, quero de vocês o campeonato!” ( as palavras exatas do prefeito são estas: “Cumpri minha promessa construindo este estádio. Agora, façam o seu dever – ganhando a Copa do Mundo”)...Tive vontade de abandonar o futebol depois da Copa do Mundo. Quando ia dormir, tinha um pesadelo. Pensava que o jogo não tinha começado”.


Ademir entrou para a história como o maior artilheiro do Brasil numa Copa do Mundo: nove gols em seis jogos, marca até hoje não superada. Fui encontrá-lo no apartamento em que vivia, em Copacabana. Uma estante exibia troféus que recebeu do Uruguai:
“A Seleção de 50 foi injustiçada. Porque segundo lugar para o Brasil não serve. Quando um amigo me apresenta ao filho, diz: “Ademir – o que jogou na Copa de 50. Sempre dizem: é aquele que perdeu para o Uruguai, no Maracanã ( ...) Tive uma oportunidade de fazer um gol no final. Se sai o gol ali, o Brasil seria campeão. Eu iria me candidatar a deputado, hoje seria ministro de Estado...”.

Jair Rosa Pinto estava na Tijuca, cercado de crianças de uma escolinha de futebol:
“Meu único pensamento, no vestiário, era: “Perdemos a Copa do Mundo!” . Nessa hora, não se olha nem para o companheiro. Porque ele estava chorando. A gente nem pensa na torcida – porque você é que vai receber o diploma de campeão do mundo- não é o torcedor. Você pensa: “Duzentas mil pessoas! E perdemos o campeonato do mundo! “. É difícil. Então, você atravessa aquele túnel, chega ao vestiário, tira a roupa e começa a chorar”.

O ponta-esquerda Chico remoía as lições deixadas por aquele domingo que parecia não ter terminado nunca:
“Tínhamos como certa a Copa do Mundo. Depois da derrota, passamos a ver tudo de outra maneira. Fomos obrigados a aprender o que é o amargor de uma derrota. O maior orgulho de um jogador de futebol é fazer parte do escrete brasileiro – principalmente porque se trata de defender a pátria. Não pude dar a ela o título, mas tenho orgulho de ser vice-campeão. Dei alguma coisa de mim para que, depois, o Brasil fosse campeão”.

Tanto tempo depois, é hora de depositar, em algum recanto do Maracanã, flores imaginárias em homenagem aos que perderam a batalha de 50 mas, por todos os motivos, merecem uma anistia – ainda que tardia.

Posted by geneton at 06:32 PM

abril 08, 2013

A RESPOSTA DE THATCHER A FERNANDO COLLOR:”NÃO! NÃO! NÃO! NÃO CONTE COMIGO NEM COM O GOVERNO BRITÂNICO!” (A FHC, ELA DIRIA QUE MANDATO DE 4 ANOS É “RIDÍCULO”)

Fiel ao apelido que ganhara, a “Dama de Ferro” Margareth Thatcher já deu uma “bronca” num presidente brasileiro.

O presidente era Fernando Collor de Mello.

Recém-eleito para a Presidência da República, ele fez um “tour” de apresentação pelos gabinetes de governantes europeus. Queria apresentar seus planos. Uma das audiências era com a então primeira-ministra britânica. Collor propôs a ela uma alternativa para que a dívida externa dos países “emergentes” fosse reduzida.

A reação de Thatcher foi fulminante.

Quando perguntei a Fernando Collor – já ex-presidente – qual foi o comentário mais surpreendente que ele ouviu de um governante estrangeiro, nos anos da presidência, ele descreveu, assim, a cena com Thatcher:

“O mais surpreendente comentário que ouvi foi feito pela senhora Margareth Thatcher, no momento em que eu, presidente eleito mas ainda não empossado, visitava chefes de estado dos principais países, para comunicar que eu haveria de encerrar a moratória e, assim, inserir novamente o Brasil no contexto internacional e nos fluxos comerciais.

Para que a reinserção acontecesse, eu precisava de certa condescendência por parte dos credores, porque, assim, poderíamos reafazer nossas contas e regularizar nossa dívida. Eu tinha uma tese que, afinal, saiu vitoriosa: a redução da dívida de todos os países emergentes em 30%. Era algo que já se comentava. Os Estados Unidos acabaram encampando essa ideia dentro do chamado Plano Brady, em função do secretário do Tesouro americano à época, Nicholas Brady. Todos tinham simpatia em relação à ideia.

Quando chegou o momento de expor o assunto no encontro com a senhora Thatcher, ela disse: “Desculpe, mas não entendi o que o senhor falou….”. Pensei comigo mesmo: “Meu inglês não deve estar tão eficiente….”. Repeti tudo. A senhora Thatcher, então, me disse: “Deixe-me ver se entendi corretamente. O senhor quer dizer que, por exemplo, o senhor me deve 100, mas, em vez de pagar 100, quer pagar 70. É isso ? “. Respondi: “É exatamente isso!”. A senhora Thatcher respondeu: “O senhor me desculpe. Isso é uma brincadeira! Isso é uma brincadeira ! Não, não conte comigo nem com o governo britânico. Não! Não ! Não! Se o senhor deve 100, o senhor tem de pagar 100! Poderemos discutir como o senhor vai pagar, mas dever 100 e querer pagar 70, negativo! Comigo o senhor não conta!”.

Por coincidência., quando fiz pergunta parecida ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ele citou, também, o nome da então primeira-ministra Thatcher como autora de um comentários mais “surpreendentes” que ele teve a chance de ouvir de um dirigente estrangeiro:

“Nós estávamos na Embaixada do Brasil, num almoço com Margareth Thatcher. Era a Dama de Ferro. A certa altura, ela me pergunta : “Quanto tempo dura o mandato de um presidente no Brasil ?”. Eu disse: “Quatro anos”. Ela riu: “That´s ridiculous!” ( “É ridículo”). Em quatro anos, ninguém faz nada! Não é possível! “. Pensei : meu Deus do céu, será que não dá para fazer nada? Eu estava no começo do mandato….”

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PS: A íntegra de nossas entrevistas com os ex-presidentes Fernando Collor, Itamar Franco, José Sarney e Fernando Henrique Cardoso foi publicada no livro “Dossiê Brasília: os Segredos dos Presidentes” / Editora Globo

Posted by geneton at 11:37 PM

outubro 15, 2010

É IMPOSSÍVEL FICAR INDIFERENTE À BELEZA INDESCRITÍVEL DO TETO DA CAPELA SISTINA : MICHELANGELO DÁ UMA MOSTRA DO “PARAÍSO INATINGÍVEL”

Do caderno de anotações (com acréscimos) :

CIDADE DO VATICANO – Nem 11:59 nem 12:01. O relógio marca meio-dia em ponto quando uma das janelas do Vaticano se abre. Apequenada pela distância que a separa da multidão, uma figura se aproxima do parapeito para saudar os visitantes que, lá embaixo, na Praça de São Pedro, apontam para a janela um oceano de câmeras digitais .

De longe, é impossível discernir, a olho nu, as feições da figura que acena da janela. Mas quem usa o visor das câmeras como uma espécie de binóculo improvisado vai enxergar, com razoável clareza, o sorriso travado do personagem. Ei-lo: o papa Bento XVI acaba de fazer uma aparição no Vaticano.

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O Papa aparece na janela: a multidão reage (Fotos: Geneton Moraes Neto)

Justiça se faça: a taxa de carisma do Papa é algo perto de zero, comparada com a de João Paulo II. Mas uma aparição do sucessor de Saã Pedro é sempre capaz de espalhar pela multidão uma corrente de entusiasmo. É o que acontece. Os fiéis aplaudem. Bento XVI acena. Gritos. Novas palmas.

Depois que o Papa se recolhe, a multidão forma uma fila para entrar na Basílica. Um ponto de passagem quase obrigatório: os túmulos dos Papas. Despojado, como os outros, o túmulo de João Paulo II desperta comoção. Quem não se lembra da imagem comovente de João Paulo II se contorcendo de dores naquela janela do Vaticano, incapaz de pronunciar até o fim a bênção aos fiéis ?

Visitantes mais devotos choram lágrimas discretas diante do túmulo. Poucos resistem à tentação de fotografar. Um funcionário pede que a fila apresse o passo, para evitar um congestionamento humano nos corredores do Vaticano. A dois passos dali, outro túmulo atrai atenções: o de João Paulo I, o Papa que só reinou por trinta e três dias, em 1978. Um visitante anônimo deixa uma rosa vermelha sobre o túmulo de João Paulo I. É o único ornamento de um túmulo extremamente despojado. Silêncio, pedem os vigilantes do Vaticano. ”Um minuto, é só uma foto”, respondem os turistas.

A figura do Papa pode até parecer um anacronismo. Mas a aura de segredo que envolve aqueles corredores, a sincera comoção despertada – por exemplo – pela visão do túmulo de João Paulo II ou a corrente de eletricidade que percorre a multidão quando o Papa surge na janela deixam uma certeza: o fascínio produzido por estes rituais é que garante a permanência da Igreja.

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O túmulo de João Paulo I : rosas deixadas pelos visitantes

O que dizer da beleza indescritível do teto da Capela Sistina ? Ninguém passa imune pela experiência de olhar para o teto da Capela e contemplar em silêncio a obra-prima de Michelangelo - a mão de Deus dando vida ao homem.

Como bem disse Paulo Francis: “A morte é uma piada. A vida é uma tragédia. Mas, dentro de nós, mesmo no maior desespero, há uma força que clama por coisas melhores. Os artistas estão sempre aí nos lembrando disso. Existe um paraíso, pois Beethoven ou Gauguin já nos deram mostras convincentes. É inatingível permanentemente, mas devemos ser gratos pelas sobras que nos couberem”.

Michelangelo nos dá, na Capela Sistina, um exemplo épico do tal paraíso inantigível. A nós, tristes mortais, cabe contemplar a cena e seguir adiante – “de mãos pensas”, como diz o verso final de um poema estupendo de Carlos Drummondo – “A Máquina do Mundo”. É um dos mais belos já escritos na língua portuguesa. Ao caminhar num fim de tarde solitário por uma estrada pedregosa, embalado pelo som “pausado e seco” dos seus próprios passos, o poeta nota que a “máquina do mundo” se abre de repente diante de si, com todos os seus mistérios, grandezas e cintilações, como se pedisse para ser decifrada. Ali, ele tinha a chance de desvelar o enigma geral: “A memória dos deuses / e o solene sentimento de morte / que floresce no caule da existência mais gloriosa/ tudo se apresentou nesse relance/ e me chamou para seu reino augusto/ afinal submetido à vista humana”.

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A obra-prima de Michelangelo: a mão de Deus dá vida ao homem

Tive esta sensação ao vislumbrar o teto da Capela Sistina : a de que, ali, a “máquina do mundo” , afinal “submetida à vista humana”, se oferta, inteira, a todos nós. Mas somos, todos, incapazes de decifrá-la. O poeta de passos pausados e secos dispensara voluntariamente a oferta : não quis ver o enigma decifrado. Preferiu seguir adiante na estrada pedregosa de Minas, já mergulhada na treva mais “estrita”. Ao contrário do poeta – que dispensou a oferta – somos incapazes de alcançar o enigma da máquina do mundo. O que se pode fazer ? Imitar o gesto do poeta e seguir adiante – não por uma estrada pedregosa de Minas, mas pelos corredores infindáveis do Vaticano.

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O túmulo despojadíssimo de João Paulo II : ponto de visitação obrigatória

Uma dúvida agitava minhas florestas interiores : sem segredos, sem a pompa, sem a grandiosidade que se estende por corredores sem fim, o que restaria, afinal, à Igreja ?

Ainda assim, o Vaticano de vez em quando concede ao populacho a chance de espiar de relance uma nesga do que acontece por trás daqueles muros. O Museu do Vaticano abriu, no Palazzo Apostolico Lateranense, uma exposição chamada “Habemus Papa”. Lá estão relíquias como o martelo usado para constatar a morte dos Papas. O martelo exposto à curiosidade pública foi usado para cumprir o ritual fúnebre de Leão XIII, em 1903. Um ajudante bate três vezes na fronte do Papa morto com o martelo, para constatar a morte. Chama o nome de batismo do Papa. O silêncio é a resposta.

É assim que tudo acaba. O que fica ? A grandeza esmagadora do Vaticano e a beleza de rituais capazes até de acender uma fagulha de fé no peito de descrentes.

Posted by geneton at 12:45 AM

junho 26, 2010

O PASSADO MANDA LEMBRANÇAS : ARGENTINA EXIBE NOMES DE DESAPARECIDOS E DE “REPRESSORES”. E UM DEBATE DIVIDE OPINIÕES: COMO ENCARAR A HERANÇA DOLORIDA DOS “ANOS DE CHUMBO”?

A Globonews reexibe neste domingo, às 17:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS, uma reportagem especial que o locutor-que-vos-fala gravou em Buenos Aires sobre os desaparecidos políticos argentinos.

Anotações da expedição portenha:

A ditadura militar argentina durou de março de 1976 a dezembro de 1983.

Mas, na prática, ainda não terminou.

O motivo: a discussão sobre o que fazer com a herança ( sangrenta ) dos “anos de chumbo” argentinos ainda divide opiniões, corações e mentes.

Os que acham que não se deve simplesmente esquecer o passado estão ganhando a batalha.

Um exemplo : depois de polêmicas de todo tipo, Buenos Aires ergueu, às margens do Rio da Prata, o “Parque da Memória” : lá, quatro enormes muros de pedra exibem o nome dos desaparecidos políticos.

Calcula-se entre dezoite e trinta mil o número de desaparecidos nos sete anos de ditadura. Os nomes de oito mil e setecentos desaparecidos e a idade de cada um já estão gravados em pedra, para sempre. A lista parece interminável.

O local escolhido para a construção dos muros não é casual: depois de anestesiados, prisioneiros políticos eram jogados de avião no Rio da Prata, nos chamados “voos da morte”.

Sem meias palavras, uma placa na entrada no Parque avisa que aquele é um monumento “às vítimas do terrorismo de Estado”.

O Parque não ficou pronto ainda : das dezessete esculturas que lembrarão os desaparecidos, cinco já foram instaladas.

Uma polêmica parecida envolveu as discussões sobre o que fazer com um prédio que virou sinônimo de infâmia : a sede da Escola de Mecânica da Armada (Esma).

O que aconteceu ali, no prédio de número 8.300 da Avenida do Libertador, é indescritível : os relatos comprovam que a Esma foi transformada numa espécie de campo de concentração de prisioneiros políticos durante a ditadura argentina.

A estatística é macabra : calcula-se que – dos cinco mil prisioneiros levados para a Esma – somente cerca de duzentos e cinquenta saíram vivos.

Não por acaso, o endereço virou sinônimo de infâmia.

Hoje, depois de um grande debate sobre o que fazer com o prédio que foi cenário de tanto horror, a Esma ganhou um novo nome : Espaço para a Memória e para a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos.

O governo federal, a prefeitura de Buenos Aires e organizações de direitos humanos tomam conta do lugar.

A transformação da Esma num grande centro de memória é um capítulo importante de um debate sobre como tratar a herança da ditadura.

O governo de Raul Alfonsín – o primeiro civil a ocupar a presidência depois do fim do regime militar – baixou duas medidas polêmicas:

a Lei do Ponto Final fixava em trinta dias o prazo para que fossem apresentadas denúncias contra militares envolvidos em tortura: a partir daí, não se poderia fazer nada.

A Lei da Obediência Devida dizia que militares envolvidos em atrocidades não poderiam ser punidos porque estariam apenas cumprindo ordens superiores.

As leis do Ponto Final e da Obediência Devida foram anuladas pelo Congresso Nacional argentino em 2003 e declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte em 2005.

Agora, a justiça obriga envolvidos em atrocidades a participarem de audiências públicas.

Um dos mais célebres carrascos da Esma, o ex-tenente Alfredo Astiz, teve de depor, sob os gritos de manifestantes que conseguiram lugar na sala do tribunal.

A área da Esma é do tamanho de dezessete campos de futebol.

Já do lado de fora, um aviso: “Aqui, funcionou o Centro Clandestino de Detenção e Extermínio durante a ditadura militar que assaltou os poderes do Estado de março de 1976 a dezembro de 1983″.

Esculturas exibem fotos e nomes de prisioneiros que, depois de entrarem na Esma, jamais foram vistos de novo.

A palavra “vida” foi esculpida na grade. Numa das entradas, um painel expõe os nomes de militares e civis envolvidos em tortura.

São chamados de “repressores” e apontados como autores de “centenas de delitos cometidos na Escola de Mecânica da Armada durante a última ditadura militar”.

O mais célebre é ele – o ex-tenente Astiz, que era capaz de se infiltrar em reuniões de parentes de desaparecidos para fazer novas prisões e sequestros.

Uma sala da Esma guarda,hoje, fotos das Mães da Praça de Maio, as mulheres que exigiam do governo notícias de seus filhos desaparecidos.

O lugar mais temido dentro da Esma era o Cassino dos Oficiais. Quem passasse pela guarita que dava acesso ao Cassino estava, na prática, condenado à morte. O prédio de três andares tinha cinco salas que eram usadas para todo tipo de tortura. Presos eram submetidos a afogamento. Motocicletas pilotadas por oficiais passavam por cima de prisioneiros deitados nos corredores.

As celas ficavam no subsolo. Uma alameda ganhou um nome irônico: “Caminho da Felicidade”.

Dali saíam os presos que, depois de receberem anestesia, eram levados para aviões da Força Aérea e jogados no Rio da Prata ou no Oceano Atlântico.

Quando não eram mortas, as prisioneiras grávidas eram levadas a uma maternidade clandestina que funcionava na Esma.

Os recém-nascidos eram adotados por militares ou entregues a outras famílias – que nem sempre sabiam de onde eles tinham vindo. As mães – militantes políticas – eram eliminadas em seguida.

A expedição ao território deste pesadelo argentino terminaria com um encontro marcante : com o pai de três desaparecidos políticos. É um advogado e escritor de oitenta e dois anos.

A seguir.

Posted by geneton at 11:10 AM

fevereiro 10, 2010

UM ESTUDANTE CHAMADO ALCIDES DO NASCIMENTO LINS, UMA EX-CATADORA DE LIXO CHAMADA MARIA LUIZA – E A ENORME, A INDESCRITÍVEL, A MONSTRUOSA VERGONHA DE SER BRASILEIRO

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O estudante Alcides: vergonha, vergonha, vergonha

A TV é imbatível na arte de produzir lembranças marcantes. Uma imagem aparentemente banal pode ficar anos gravada nas nossos retinas fatigadas. Um exemplo: a alegria sinceríssima de uma ex-catadora de lixo chamada Maria Luiza ao receber a notícia de que o filho tinha sido aprovado no vestibular de Biomedicina da Universidade Federal de Pernambuco.

Detalhe: criado com as dificuldades imagináveis, o filho tinha tirado o primeiro lugar entre os alunos de escolas públicas aprovados no vestibular. A imagem da vibração da mãe tinha sido captada quase que casualmente pelo cinegrafista Marconi Pryston, durante a gravação de uma reportagem sobre o vestibular para o telejornal local da TV Globo Recife. A alegria da mãe ganhou repercussão nacional ao ser exibida no Fantástico, numa série conduzida por Zeca Camargo. Era comovente. O tema da reportagem era a felicidade. Em seguida, o exemplo do estudante ganhou espaço no Globo Repórter.

O filho de D. Maria Luiza iria se formar este ano. Mas foi assassinado a tiros, na porta de casa, no bairro da Torre, no Recife. Os dois assassinos procuravam por outro homem. Não o encontraram. Abordaram Alcides – que morava numa casa vizinha -, em busca de notícias. Como Alcides disse que não sabia onde estava o “alvo”, foi morto com dois tiros na cabeça, à queima-roupa. Execução sumária. Não há outra palavra para definir os autores do crime: são animais. Ponto.

Faltará alguém na festa de formatura da turma de biomedicina da Universdiade Federal de Pernambuco. A ex-catadora de lixo disse às tvs: “Minha vida acabou”.

O Brasil tem uma dívida enorme, indescritível, imensurável com Alcides do Nascimento Lins e com esta mulher. A dívida com Alcides jamais poderá ser paga. Uma vida foi desperdiçada em troca de quê ? De nada. Há qualquer coisa de terrivelmente errado num país que premia com dois balaços o filho de uma ex-catadora de lixo que, a despeito de tudo, chega à universidade na condição de primeiro lugar entre alunos de escola pública. Tinha vinte e dois anos de idade. Vinte e dois!

Neste momento, só há um sentimento possível : a enorme, a indescritível, a imensurável, a monstruosa vergonha de ser brasileiro.

aqui, a reportagem do Jornal Nacional sobre o caso :

eo.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1207407-7823-ASSASSINATO+DE+ADOLESCENTE+NO+RECIFE+PROVOCA+INDIGNACAO+EM+TODO+O+BRASIL,00.html

Posted by geneton at 12:36 PM

janeiro 08, 2010

VOCÊ CONHECE UMA DOENÇA CHAMADA “SÍNDROME DA FRIGIDEZ EDITORIAL”? EIS UM EXEMPLO ESCANDALOSO: JÂNIO QUADROS FINALMENTE REVELOU O MOTIVO DA RENÚNCIA. MAS A IMPRENSA NÃO PUBLICOU NADA,NADA,NADA

Se fosse feito um ranking dos gestos mais surpreendentes já cometidos por um presidente da República no Palácio do Planalto, a renúncia de Jânio Quadros seria forte candidata a ocupar o primeiro posto. Sob todo e qualquer critério, a renúncia é, até hoje, tema de interesse histórico e jornalístico. Mas…nossa querida imprensa é capaz de barbeiragens monumentais.

(Quando digo que o maior inimigo do Jornalismo é o jornalista, não estou cometendo frase de efeito. Estou constatando uma verdade límpida, cristalina, indiscutível – e facilmente demonstrável. Não nasci ontem. Ao longo de anos, anos & anos, fui testemunha ocular e auditiva de uma coleção de absurdos indefensáveis. Por falta de vocação para exercer tarefas realmente importantes na vida, como a medicina ou o futebol, comecei a trabalhar em redação aos 16 anos de idade. Tenho 53. Façam as contas. Ao longo dessas quase quatro décadas, perdi a conta das vezes em que vi notícias e histórias interessantes serem sistematicamente jogadas no lixo nas redações por burocratas travestidos de jornalistas. Especialistas fizeram um exercício de leitura labial para tentar descobrir o que Jaqueline Kennedy disse no exato momento em que o balaço disparado por Lee Harvey Oswald explodiu a cabeça do presidente Kennedy naquela praça em Dallas. Disse o seguinte: “Oh,no!”. Se pudessem se manifestar, as multidões de leitores, ouvintes e telespectadores que deixam de tomar conhecimento das histórias jogadas no lixo pelos burocratas do jornalismo certamente diriam em coro : “Oh,no! Oh,no! Oh,no!” ).

Vasculho meus arquivos implacáveis. Eis um registro que fiz sobre uma cochilada monumental dos nossos bravos jornalões e revistonas (o problema,neste caso, não é Jânio. É a imprensa. Os motivos que ele confessou para explicar a renúncia apenas confirmam o que já se suspeitava: o homem cometeu o gesto teatral porque queria voltar ao poder nos braços do povo. Não voltou. O indefensável é a absoluta indiferença da imprensa sobre a confissão de Jânio. O caso mereceria manchete: Jânio dá no leito de morte a explicação final sobre a renúncia. Duvido que um leitor minimamente interessado deixasse de ler. Cito o caso porque ele envolve um ex-presidente da República. É escandaloso. Mas, qualquer legume que frequente uma redação será capaz de contabilizar,em pouco tempo, um inacreditável inventário de casos, histórias, reportagens e notícias que foram jogadas fora religiosamente, sistematicamente, ardorosamente pelo exército de burocratas entediados que passam anos, anos e anos dedicados à tarefa de destruir tudo o que poderia ser vívido, interessante e empolgante no Jornalismo. Ainda assim, declaro solenemente aos leigos que esta pode ser uma profissão divertida. Que outro ofício daria a um terráqueo a chance de morrer de rir intimamente com a descabida pretensão de gente que se tranca numa sala para “decidir” o que é que o público deve ou não deve saber? Nem preciso falar da vaidade patética de quem se julga um milhão de vezes mais importante do que é. Quá-quá-quá. Seja lá quem for, quem inventou a Internet merece uma estátua de tamanho gigante em praça pública, porque, entre outras maravilhas, a rede mundial de computadores destruiu, na prática, a onipotência risível dos jornalistas. Hoje, qualquer legume (ou seja: alguém que em nada é inferior ao jornalista) pode testemunhar e reportar o que quiser. É só criar um blog, apertar um botão e o texto estará disponível, em tese, para todo o planeta).

O caso Jânio:

A mais sincera confissão já feita por Jânio Quadros sobre os reais motivos que o levaram a renunciar à Presidência da Republica no dia 25 de agosto de 1961 somente foi publicada em 1995, em escassas sete páginas de uma calhamaço lançado por uma editora desconhecida de São Paulo em louvor ao ex-presidente.

Organizado por Jânio Quadros Neto e Eduardo Lobo Botelho Gualazzi,o livro ‘’Jânio Quadros : Memorial à Historia do Brasil’’ é, na verdade, um bem nutrido álbum de recortes sobre o homem. Grande parte das 340 páginas do livro, publicado pela Editora Rideel, é ocupada pela republicação de reportagens originalmente aparecidas em jornais e revistas sobre a figura esquisita de JQ.

A porção laudatória do livro é leitura recomendável apenas a janistas de carteirinha. O ‘’Memorial’’ traz, no entanto, um capítulo importante : a confissão que Jânio, já doente,fez ao neto,num quarto do Hospital Israelita Albert Einstein,no dia 25 de agosto de 1991, no trigésimo aniversário da renúncia.

Jânio morreria no dia 16 de fevereiro de 1992, aos 75 anos de idade. O neto fez segredo sobre o que ouviu. Somente publicou as palavras do avô quatro anos depois. Ao contrário do que fazia diante dos jornalistas – a quem respondia com frases grandiloquentes mas pouco objetivas sobre a renúncia – Jânio Quadros disse ao neto, sem rodeios e sem meias palavras, que renunciou simplesmente porque tinha certeza de que o povo, os militares e os governadores o levariam de volta ao poder. Nâo levaram.

Talvez porque já pressentisse o fim próximo,Jânio admite, diante do neto, pela primeira vez, que a renúncia foi ‘’o maior fracasso político da história republicana do Pais, o maior erro que cometi’’.

A já vasta bibliografia sobre a renúncia ganhou, assim, um acréscimo fundamental, feito pelo próprio Jânio – a única pessoa que poderia explicar o enigma. Desta vez, a explicação parece clara.

Um detalhe inacreditável – que revela como as redações brasileiras são povoadas por uma incrível quantidade de burocratas que vivem assassinando o jornalismo : a confissão final de Jânio mereceu destaque zero nas páginas da imprensa brasileira,o que é estranho, além de lamentável.

A imprensa – que passou três décadas perguntando a Jânio Quadros por que é que ele renunciou – resolve deixar passar em brancas nuvens a confissão final do ex-presidente sobre a renúncia, acontecimento fundamental na historia recente do Brasil.

Tamanha desatenção parece ser um subproduto típico de uma doença facilmente detectável nas redações – a Síndrome da Frigidez Editorial .Joga-se notícia no lixo como quem se descarta de um copo de papel sujo de café . Leigos na profissão podem estranhar, mas a verdade é que há notícias que precisam enfrentar uma corrida de obstáculos dentro das próprias redações, antes de merecerem a graça suprema de serem publicadas.! Isto não tem absolutamente nada a ver com disponibilidade de espaço, mas com competência, faro jornalístico.

Se a última palavra do um presidente sobre um fato importantíssimo não merece uma linha sequer em jornais e revistas que passaram anos e anos falando sobre a renúncia, então há qualquer coisa de podre no Reino de Gutenberg. Quem paga a conta, obviamente, é o leitor, a quem se sonegam informações.

O caso da confissão de Jânio sobre a renúncia é exemplar : a informação fica restrita aos magros três mil exemplares do livro do neto. E os milhares,milhares e milhares de leitores de jornais e revistas, onde ficam ? A ver navios. É como dizia o velho Paulo Francis: “Nossa imprensa: previsível, empolada, chata. Como é chata, meu Deus!”.

Eis trechos do diálogo entre o ex-presidente e o neto,no hospital.As palavras de Jânio não deixam margem de dúvidas sobre a renúncia :
-‘’Quando assumi a presidência, eu não sabia da verdadeira situação político-econômica do País. A minha renúncia era para ter sido uma articulação : nunca imaginei que ela seria de fato aceita e executada. Renunciei à minha candidatura à presidência, em 1960. A renúncia não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 25 de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana do país, o maior erro que cometi(…)Tudo foi muito bem planejado e organizado. Eu mandei João Goulart (N:vice-presidente) em missão oficial à China, no lugar mais longe possível. Assim,ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. Escrevi a carta da renúncia no dia 19 de agosto e entreguei ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta,no dia 22. Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência. Pensei que os militares,os governadores e,principalmente,o povo nunca aceitariam a minha renúncia e exigiriam que eu ficasse no poder. Jango era,na época,semelhante a Lula : completamente inaceitável para a elite. Achei que era impossível que ele assumisse, porque todos iriam implorar para que eu ficasse(…) Renunciei no dia do soldado porque quis senbilizar os militares e conseguir o apoio das Forças Armadas. Era para ter criado um certo clima político. Imaginei que,em primeiro lugar,o povo iria às ruas, seguido pelos militares. Os dois me chamariam de volta. Fiquei com a faixa presidencial até o dia 26. Achei que voltaria de Santos para Brasília na glória. Ao renunciar, pedi um voto de confiança à minha permanência no poder. Isso é feito frequentemente pelos primeiros-ministros na Inglaterra.Fui reprovado.O País pagou um preço muito alto. Deu tudo errado’’.

Posted by geneton at 01:14 PM

setembro 10, 2009

HARE BABA! O IMPOSSÍVEL ACONTECE NOS BASTIDORES DO JORNALISMO : O DIA EM QUE O BLOGUEIRO INTERROMPEU A TRANSMISSÃO DA NOVELA DAS OITO DA REDE GLOBO!

A novela das oito ( ou será das nove? ) termina esta semana. Os capítulos finais dão audiência de jogo importante de Copa do Mundo.

É hora de fazer uma declaração pensada sob medida para impressionar internautas distraídos :

o blogueiro-que-vos fala uma vez interrompeu a transmissão da novela da oito !

“Não é possível! Não é possível! Aposto um níquel que jornalista algum jamais conseguiria interromper o programa de maior audiência da TV brasileira !” – diz o espírito-de-porco sentado na quinta cadeira à direita de quem entra no Inferno dos Descrentes.

O meu demônio-da-guarda solta um sorriso de escárnio, idêntico aos das bruxas em filmes da Disney: “Consegue, sim ! Consegue,sim ! Basta que a Casa Branca resolva começar uma guerra!”.

Paulo Francis é que dizia:

“Todo jornalista decente é um urubu na sorte dos outros mortais. Ficamos esperando que as pessoas escorreguem numa casca de banana e batam com a cara no chão. Se tudo corre muito bem, para nós é muito mal”.

Joel Silveira, personagem de dois outros posts do Dossiê Geral, ia direto ao ponto:

- Adoro uma guerra!

Aos fatos, pois.

Por uma “conjunção de fatores” que acontece uma vez na vida, eu estava na hora certa no lugar certo para interromper a novela das oito.

A novela se chamava “Meu Bem, Meu Mal”. A data: dezoito de janeiro de 1991. O personagem principal era um tal de Dom Lázaro Venturini, um empresário que, depois de ficar mudo em consequência de um derrame, volta falar no fim da trama, para desmascarar seus inimigos. Lima Duarte era o ator.

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Sílvia Pfeifer e Lima Duarte: novela interrompida

Em nome da precisão, diga-se que o blogueiro-que-vos-fala teve dois cúmplices na tarefa de tomar de assalto a novela das oito.

Primeiro cúmplice: aquele rapaz que hoje é editor-chefe do Jornal Nacional, um certo William Bonner.

Segundo cúmplice: o técnico que estava de plantão, naquele momento, no chamado “controle-mestre” da Rede Globo, no Jardim Botânico. O controle-mestre, como o nome sugere, pode, em situações de extrema gravidade, interromper um programa para que o telespectador seja informado de uma notícia urgente.

A notícia, ali, era urgentíssima : estava começando uma guerra.

Vasculho meu pequeno Museu de Papel em busca de um relato que escrevi sobre o que aconteceu naquela noite na redação Jornal Nacional ( eu era, na época, editor-exectuvo do jornal. William Bonner apresentava o Jornal da Globo ) :

Quatro minutos depois do atentado contra o presidente Kennedy, o primeiro despacho das agências de notícias chegava às redações
Quando o ex-fuzileiro naval Lee Harvey Oswald apertou o gatilho do rifle Mannlicher-Carcano contra a comitiva do presidente John Kennedy, às 12:30 da sexta-feira, vinte e dois de novembro de 1963, Walter Cronkite, a estrela máxima do telejornalismo da rede americana CBS, estava no lugar errado – mas nem tanto.

Se pudesse adivinhar o que iria acontecer, Cronkite teria chegado na véspera a Dallas para, em algum ponto da praça Dealey, viver a aventura com que todo repórter sonha: ser testemunha ocular de um fato histórico. Mas Cronkite nunca foi candidato a Nostradamus.

O despacho que a agência de notícias UPI disparou para as redações exatamente às 12:34 – quatro minutos do atentado, portanto - pegou Cronkite na sala de teletipos de CBS.

O texto do despacho urgente era curto: “Three shots were fired at president Kennedy´s motorcade today in downtown Dallas” ( “Três tiros atingiram a comitiva do presidente Kennedy durante o desfile de carro no centro de Dallas”). Criou-se, claro, um tumulto na redação. Era preciso dar uma edição extraordinária imediatamente.

Cronkite descobriu que teria de esperar dez minutos até que as luzes e as câmeras do estúdio estivessem prontas para levar ao ar a bomba. Acontece que, numa situação dessas, dez minutos significam dez mil anos. É impossível esperar.

A primeira informação foi dada em off, sem a imagem do âncora Walter Cronkite. Não havia tempo de preparar a câmera e a luz

A CBS, então, interrompeu a novela na hora do almoço com um letreiro que anunciava a edição extraordinária. A notícia – que atingiu os Estados Unidos com a potência de um “soco no estômago” em plena hora do almoço – foi dada somente com a voz, sem a imagem de Cronkite no vídeo.

O flash fatal chegou logo depois, pelo telex. Num exercício desesperado de agilidade e precisão, o flash da UPI resumia em três palavras, a uma e trinta da tarde, uma das notícias mais dramática do Século XX: “President Kennedy dead”.

Quando a tragédia se materializou em forma de uma frase, as luzes e câmeras finalmente estavam prontas, na redação da CBS. Somente aí Walter Cronkite pôde aparecer no vídeo. Com voz grave, ele levantou os olhos do pedaço de papel que tinha nas mãos, tirou os óculos e pronunciou em tom solene a notícia que, quem viu, não esqueceu: “President Kennedy died”.

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Cronkite tira os óculos e anuncia a morte do presidente Kennedy

Tempos depois, Cronkite descreveria assim o que sentiu quando teve de ler o primeiro flash – o dos tiros – , em off, sem aparecer no vídeo:

- “Nós tínhamos, ali, uma notícia terrível. Tínhamos de nos mobilizar. Fiquei desapontado ao saber que as câmeras iram demorar tanto para ficar prontas. Mas o fato de termos ido ao ar é o que importa. Nós fomos os primeiros a noticiar. É o que vale”.

Quando a obrigação de informar é urgentíssima, a televisão se transforma em rádio

Quando a obrigação de informar é urgentíssima, a televisão se transforma em rádio. Se não é possível ter a imagem em questão de segundos, por que não usar apenas o som ?

O fenômeno se repetiu vinte e oito anos depois, na explosão da Guerra do Golfo, um conflito que a tevê transformou em acontecimento planetário em questão de minutos. A chuva de bombas sobre Bagdá foi transmitida, num primeiro momento, apenas com o som da voz dos repórteres da CNN. Ponto. Parágrafo.

Meu nome não é Walter Cronkite, não ganho em dólar, a TV Globo não é a CBS, o Rio de Janeiro não é Nova York, Jardim Botânico não é Manhattan. Mas vivi na pele a certeza de que, numa tevê, não se pode esperar sequer por uma câmera quando se tem uma notícia histórica nas mãos.

O ajuste das câmeras e luzes num estúdio exige minutos adicionais de espera, o que, num caso desses, é fatal na velha briga pelo “furo”. As tevês vivem brigando pelo privilégio de dar as notícias em primeiro lugar. É natural. Não custa nada lembrar que uma das diferenças visíveis entre um telejornalista e uma samambaia é a obstinação em dar notícias inéditas. As outras diferenças não descobri ainda. Continuo tentando.

A novela das oito estava no ar. Mas não havia tempo de esperar pelo intervalo comercial

Quando ouvi o grito de alerta dado diante de um dos terminais de computador da redação pelo editor Aníbal Ribeiro – “a guerra começou!” – disparei pelos corredores com uma velocidade que, modéstia à parte, fez jus ao meu passado de zagueiro central amador na praia do janga, Pernambuco, Brasil.

Se aparecesse ali, naquela hora, o anabolizado Ben Johnson seria reduzido ao papel de tartaruga enferrujada. Não houve tempo de escrever nada. Trancado numa ilha de edição, às voltas com a gravação de um texto para o Jornal da Globo, o apresentador William Bonner ouviu meu grito: “Começou a guerra, porra!”.

Numa “fração de segundo”, ele disparou, também, pelos corredores das ilhas de edição. Invadimos, juntos, a sala onde fica a cabine de locução. A rapidez da equipe técnica de plantão completou o serviço: entre o alerta de Aníbal e a interrupção da novela com a “edição extra” do Jornal Nacional, passaram-se exatos 41 segundos, conforme registram os relatórios de programação que tive o cuidado de consultar depois.

Só tivemos tempo de improvisar um texto que atribuía a informação às agências de notícias. Algo assim: “As agências internacionais acabam de informar que começou o bombardeio de Bagdá”.

(Dias antes, o então diretor da Central Globo de Jornalismo, Alberico de Sousa Cruz, tinha me perguntado qual o tempo mínimo necessário para botar no ar uma informação. Disse a ele que, numa situação extrema, era o tempo de correr da redação para a cabine. É o que terminou acontecendo….).

A revista ISTOÉ teve o cuidado de cronometrar a corrida. O plantão do Jornal Nacional foi ao ar dois minutos antes da emissora que tirou segundo lugar na batalha contra o relógio.

Numa hora dessas, quando acende o pavio de uma bomba que vai explodir diante dos olhos do telespectador, a TV cumpre o papel que o tantas vezes citado Marshall McLuhan descrevia: se o rádio é a extensão do ouvido e o cinema é a extensão do olho, a teve “é a extensão do sistema nervoso central dos telespectadores”.

É uma evidência científica indiscutível : quando o mundo vem abaixo, quando um louco atira na cabeça de um presidente, quando uma “chuva de bombas” desaba sobre Bagdá, o telejornalismo é C9H13N03 - a fórmula da adrenalina pura.

Posted by geneton at 11:22 AM

julho 09, 2009

RELATO INCOMPLETO DE UM ENCONTRO COM O HOMEM QUE ASSINOU MINHA BÍBLIA: GAY TALESE, O GURU DO NOVO JORNALISMO


“A humanidade só será feliz no dia em que o último editor for enforcado nas tripas do penúltimo” foi a sentença que o meu demônio-da-guarda me soprou, nítida e clara, ao pé do meu ouvido esquerdo, no exato instante em que ouvi o cultuadíssimo jornalista Gay Talese fazer uma confissão sobre os bastidores do jornalismo.

A confissão: uma reportagem que ele fez, nos anos setenta, sobre o encontro de Fidel Castro com Cassius Clay, em Cuba, foi descartada por nada menos de dez publicações diferentes. Dez!

É possível imaginar a cena: uma dezena de editores entediados deve ter passado os olhos sobre o relato escrito por Talese antes de vomitar uma desculpa qualquer para justificar a recusa.

Editores açougueiros cometem atrocidades todos os dias em todas as redações do planeta. Mas o caso da reportagem escrita em Cuba é uma daquelas aberrações que fariam um recém-formado desistir imediatamente da profissão.


Não é para menos. Tratava-se de uma reportagem escrita por um dos maiores nomes do jornalismo do Século XX sobre duas figuras míticas: o boxeador que entrou para a história por ter nocauteado um punhado de adversários imbatíveis e o comandante de uma ilhota que cutucava com vara curta a superpotência americana. Gay Talese, Cassius Clay e Fidel Castro. A camarilha de editores deu o veredito: não. Um dos argumentos que usaram: o texto estava grande. Precisava ser reduzido. Talese disse que não. Não poderia reduzir.

Os burocratas da profissão são exatamente assim: passam a vida inteira querendo provar que o público leitor detesta ler. Assim, todo e qualquer texto deve ser imediatamente trucidado. Ah, como são pateticamente pretensiosos...

Depois de três décadas e meia de observação, posso declarar diante do tribunal a única certeza que adquiri nesta profissão: o maior inimigo do Jornalismo é o jornalista. Não existe outro. Ponto. Parágrafo.


O resultado da investida do exército de editores burocratas foi este: o relato da expedição cubana de Gay Talese só chegou às mãos do público quando foi incluída num livro, anos depois.

Talese – um jornalista quase sexagenário na época da recusa – confessou, candidamente, que sentiu uma lufada de humilhação agitar suas florestas interiores ao ser brindado pelos editores com dez pontapés no traseiro.


Pergunta-se: quem é capaz de recordar o nome de um desses texticidas (assassinos de textos) que jogaram a reportagem de Talese no lixo ? Ninguém. Foram engolidos, um por um, pelo esquecimento.

Já Gay Talese sobreviveu.


Ei-lo agora, tanto depois, narrando suas desventuras numa noite tecnicamente cálida deste inverno na Cidade do Rio de Janeiro.


A confissão de Talese sobre o pesadelo que sofreu na mão de editores foi feita diante de uma fauna de tietes, curiosos, estudantes, aspirantes e dinossauros do jornalismo, reunida numa sala de cinema que fazia as vezes de palco de conferência no Instituto Moreira Salles, na Gávea, Rio de Janeiro. O jornalista Arthur Dapieve cumpriu com garbo o papel de mestre de cerimônia.

Quem conseguiu uma vaga na platéia ouviu um dos pais do New Journalism dizer que, lá no início da carreira, nos anos cinqüenta e sessenta, dava predileção a personagens anônimos, ao invés de cortejar os famosos.

Não por acaso, uma das primeiras reportagens que escreveu tinha como personagem central o redator de obituários do New York Times, um jornalista que vivia esquecido, numa mesa no canto da redação, ocupado em ruminar seus mortos.

Talese não teve dúvida em transformar um jornalista em notícia, o que quebrava um dos mandamentos da profissão (“jornalista só é notícia quando morre”). Não é verdade. Ao retratar o redator de obituários, Talese mostrou que jornalista que escreve sobre morte pode ser notícia, sim. Basta que tenha a sorte de atrair a atenção de um repórter inspiradíssimo, como ele.

A reportagem de Talese sobre um redator de obituários chamado Alden Whitman é um clássico imbatível do jornalismo. Pode ser lida no livro “Fama e Anonimato”, relançado no Brasil pela Companhia das Letras.

Estudantes, amadores, profissionais, correi: o que estão esperando antes de devorar o texto de Talese sobre o “mister Bad News”?


Um repórter burocrata diria que não, um mero redator de obituários não “rende matéria”. Talese dá uma lição perene: personagens anônimos podem ser,sim, fascinantes, extraordinários, comoventes. É uma regra universal. Tudo depende – única e exclusivamente - da sensibilidade do repórter.

Ao falar sobre a gênese da célebre reportagem sobre Frank Sinatra, igualmente clássica, Talese fez outra confissão: disse que nunca se sentiu atraído a escrever sobre gente famosa. Preferia lançar seus faróis sobre gente anônima, o que parecia uma “contradição”. Afinal, o jornalismo se alimenta da fama.

Não por acaso, quando recebeu de um editor a tarefa de escrever sobre Frank Sinatra, Talese teve a tentação de recusar a encomenda. Imaginou: que pergunta Frank Sinatra já não tinha respondido um milhão de vezes?

(Neste exato momento da fala de Talese, meu demônio-da-guarda entra em cena novamente, para sussurrar uma confissão ao pé do meu ouvido direito. Diz que, se tivesse a chance de interpor uma ressalva às palavras de Talese, declararia, solenemente: “Ah, não,oh guru do Novo Jornalismo, permita-me um momento de petulância: ao contrário do que Vossa Excelência diz, haverá sempre uma maneira de perguntar o que não tinha sido perguntado. Não há celebridade que não possa ser confrontada. Mas... quem sou eu para discrepar?”. Feito este exercício de autocrítica, meu demônio-da-guarda recolhe-se a um silêncio reverente).

Hoje, Talese pode dizer que, por sorte, Frank Sinatra não quis lhe dar uma entrevista. Assim, o caminho ficou livre para que o repórter transferisse todas suas atenções para o entourage de anônimos que cercavam o ídolo dos palcos.

O homem que fazia o papel de double de Frank Sinatra – um personagem chamado Johnny Delgado – parecia, aos olhos de Talese, tão fascinante quanto o original. Talese descreve a cena em que viu se aproximar um vulto que ele jurava ser Sinatra em pessoa. Não era. Quem se aproximada era o dublê.


É bola na rede, gol de Talese: sem que tenha sido a chance de interrogar o objeto principal da reportagem, Talese produziu uma reportagem definitiva sobre mister Sinatra. Bingo.

Talese faria outra confissão – que arrancaria suspiros de espanto da platéia: não usa a internet como instrumento de trabalho. Diz que a “tecnologia” da internet pode ser usada, por exemplo, para confirmar uma data. Mas não pode substituir, nunca, o contato “olho no olho” com a realidade.
Repórter deve ir para a rua.Não pode passar o dia contemplando o retângulo luminoso de um monitor.

Neste instante, lembrei-me de uma máxima de Joel Silveira, grande repórter da linhagem de Talese: a “víbora” Joel dizia que não existe nada mais triste do que ver um repórter contemplando o teclado de uma máquina de escrever na redação, enquanto os assuntos, todos, estavam lá fora, na rua, à espera de quem pudesse descobrí-los.

Por princípio, Talese diz que, ao retratar seus personagens, não gravava nem fazia anotações : preferia observa-los com toda a atenção. De volta ao hotel, à noite, redigia o que tinha visto.

Ao fazer este relato, lanço da mão da “técnica Talese”: não estou recorrendo a gravações nem anotações. Tento reproduzir – de memória – o que acabei de ouvir. Já se disse que a memória guarda o que interessa. O resto some no abismo do esquecimento.

Guardei – de memória - estas lições do guru do New Journalism. Há outras. Prometo: voltarei ao assunto, em breve ( Em nome de São Gutemberg: que outra coisa pode fazer um repórter, além de passar adiante o que viu e ouviu?).


Terminado o pronunciamento, mister Talese se dispôs a assinar autógrafos .

( Pausa para um registro bibliográfico: raríssimamente peço um livro emprestado. Dos pouquíssimos que pedi, o único que não tive a chance de devolver ao proprietário foi justamente um título de Talese: a primeira edição de “Fama e Anonimato”, lançada no Brasil nos anos setenta, pela editora Expressão e Cultura, com o título de “Aos olhos da Multidão”. Era a Bíblia de quem cultuava as pérolas de papel que Talese produziu, como o perfil do redator de obituários ou a reportagem sobre Frank Sinatra. Um colega jornalista, chamado Luiz Edmundo Monteiro, me emprestou o exemplar, no final dos anos oitenta. Depois, se mudou para o Paraguai. Jamais tive a chance de reencontrar o dono do exemplar – que ficou comigo esses anos todos. Hoje, ao me dirigir para o Instituto Moreira Salles, levei o livro que um dia, antes de ser relançado, era tratado como relíquia. A capa, frágil, ameaça se romper).

Sentado numa mesa, com os óculos na ponta do nariz, Talese veste-se como um dândi (sempre fez questão de cultuar paletós, jaquetas, coletes, sobretudos, sapatos, meias e lenços elegantes). Simpático, estende a mão para pegar o exemplar em ruínas.

Digo a ele:

- O senhor pode assinar a minha Bíblia?

Talese ri:

- É sua Bíblia ? Mas parece meio velha.... ( agora, ele manuseia a capa puída).

- É velha, mas funciona...

O guru ri de novo, assina, agradece.

Termina o rapidíssimo diálogo sobre o meu devastado exemplar de "Aos Olhos da Multidão" , minha Bíblia jornalística, meu Evangelho Para Repórteres Segundo Gay Talese.

Eu poderia ter dito a ele que acendo uma vela para "Aos Olhos da Multidão" e outra para uma entidade inventada por Kurt Vonnegut : Nossa Senhora do Perpétuo Espanto.

Se tivesse tido tempo de se manifestar, meu anjo-da-guarda finalmente levantaria a voz para interferir no diálogo, como se fosse um estudante ingênuo num comício de DCE : "Ah, com licença, oh guru do New Journalism, eu me arrisco a acrescentar que, se o Vaticano estivesse preocupado em combater as calamidades jornalísticas, deveria nomear Nossa Senhora do Perpétuo Espanto padroeira universal e plenipotenciária dos jornalistas. Porque só são dignos de povoar as redações os jornalistas que fazem da profissão um culto diário à Nossa Senhora do Perpétuo Espanto: são aqueles que tentam a todo custo não perder a capacidade de olhar a vida - e os personagens que a povoam - como se estivessem vendo tudo pela primeira vez. Em resumo: os que se recusam a perder a capacidade de se espantar. Somente assim, poderão narrar - da maneira mais atraente possível - a marcha dos fatos e dos personagens, anônimos ou famosos, que movem a máquina do mundo. Os que não são tocados por este espanto pertencem à triste linhagem dos que jogaram no lixo o que o senhor, Mister Talese, escreveu sobre Cassius Clay em Cuba. Já os que cultuam Nossa Senhora do Perpétuo Espanto serão sempre capazes de descobrir, em personagens como o redator de obituários, histórias que, claro, merecem ser contadas. Sempre mereceram !".

Mas não, não houve tempo de falar com Gay Talese sobre velas, redações, obituários e espantos nem de ouvir as perorações de anjos e demônios da guarda.

A fila dos que buscavam um autógrafo se estendia pelo pátio do Instituto. São dez e meia da noite. Hora de pegar a Bíblia e bater em retirada.

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Posted by geneton at 01:12 AM

dezembro 21, 2008

A PALAVRA FINAL SOBRE A RENÚNCIA : DEITADO NUMA CAMA DE HOSPITAL, JÂNIO QUADROS REVELA OS MOTIVOS DO GESTO

A mais sincera confissão já feita por Jânio Quadros sobre os reais motivos que o levaram a renunciar à Presidência da Republica no dia 25 de agosto de 1961 somente foi publicada em 1995,em escassas sete páginas de uma calhamaço lancado por uma editora desconhecida de São Paulo em louvor ao ex-presidente

Organizado por Jânio Quadros Neto e Eduardo Lobo Botelho Gualazzi,o livro ‘’Jânio Quadros : Memorial à Historia do Brasil’’ é,na verdade,um bem nutrido album de recortes sobre o homem. Grande parte das 340 páginas do livro,publicado pela Editora Rideel, é ocupada pela republicação de reportagens originalmente aparecidas em jornais e revistas sobre a figura esquisita de JQ.

A porção laudatória do livro é leitura recomendável apenas a janistas de carteirinha. O ‘’Memorial’’ traz,no entanto,um capítulo importante : a confissão que Jânio, já doente,fez ao neto,num quarto do Hospital Israelita Albert Einstein,no dia 25 de agosto de 1991, no trigésimo aniversário da renúncia.

Jânio morreria no dia 16 de fevereiro de 1992, aos 75 anos de idade. O neto fez segredo sobre o que ouviu. Somente publicou as palavras do avô quatro anos depois. Ao contrário do que fazia diante dos jornalistas - a quem respondia com frases grandiloquentes mas pouco objetivas sobre a renúncia - Jânio Quadros disse ao neto, sem rodeios e sem meias palavras, que renunciou simplesmente porque tinha certeza de que o povo,os militares e os governadores o levariam de volta ao poder. Nâo levaram.

Talvez porque já pressentisse o fim próximo,Jânio admite,diante do neto,pela primeira vez,que a renúncia foi ‘’o maior fracasso político da história republicana do Pais,o maior erro que cometi’’.

A já vasta bibliografia sobre a renúncia ganhou, assim, um acréscimo fundamental, feito pelo proprio Jânio - a única pessoa que poderia explicar o enigma. Desta vez, a explicação parece clara.

Um detalhe inacreditável - que revela como as redações brasileiras são povoadas por uma incrível quantidade de burocratas que vivem assassinando o jornalismo : a confissão final de Jânio mereceu destaque zero nas páginas da imprensa brasileira,o que é estranho, além de lamentável.

A imprensa - que passou três décadas perguntando a Jânio Quadros por que é que ele renunciou - resolve deixar passar em brancas nuvens a confissão final do ex-presidente sobre a renúncia, acontecimento fundamental na historia recente do Brasil.

Tamanha desatenção parece ser um subproduto típico de uma doença facilmente detectável nas redações - a Síndrome da Frigidez Editorial .Joga-se noticia no lixo como quem se descarta de um copo de papel sujo de café . Leigos na profissao podem estranhar, mas a verdade é que há notícias que precisam enfrentar uma corrida de obstáculos dentro das próprias redações, antes de merecerem a graça suprema de serem publicadas.! Isto não tem absolutamente nada a ver com disponibilidade de espaço, mas com competência, faro jornalístico.

Se a última palavra do um presidente sobre um fato importantíssimo não merece uma linha sequer em jornais e revistas que passaram anos e anos falando sobre a renúncia, então há qualquer coisa de podre no Reino de Gutemberg. Quem paga a conta, obviamente, é o leitor, a quem se sonegam informações.

O caso da confissão de Jânio sobre a renúncia é exemplar : a informação fica restrita aos magros três mil exemplares do livro do neto. E os milhares,milhares e milhares de leitores de jornais e revistas,onde ficam ? A ver navios. É como dizia o velho Paulo Francis: "Nossa imprensa: previsível, empolada, chata. Como é chata, meu Deus!".

Eis trechos do diálogo entre o ex-presidente e o neto,no hospital.As palavras de Jânio não deixam margem de dúvidas sobre a renúncia :


-‘’Quando assumi a presidência, eu não sabia da verdadeira situação político-econômica do País. A minha renúncia era para ter sido uma articulação : nunca imaginei que ela seria de fato aceita e executada. Renunciei à minha candidatura à presidencia, em 1960. A renúncia não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 25 de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana do país, o maior erro que cometi(...)Tudo foi muito bem planejado e organizado. Eu mandei João Goulart (N:vice-presidente) em missão oficial à China, no lugar mais longe possível. Assim,ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. Escrevi a carta da renúncia no dia 19 de agosto e entreguei ao ministro da Justica, Oscar Pedroso Horta,no dia 22. Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência. Pensei que os militares,os governadores e,principalmente,o povo nunca aceitariam a minha renúncia e exigiriam que eu ficasse no poder. Jango era,na época,semelhante a Lula : completamente inaceitável para a elite. Achei que era impossével que ele assumisse, porque todos iriam implorar para que eu ficasse(...) Renunciei no dia do soldado porque quis senbilizar os militares e conseguir o apoio das Forças Armadas. Era para ter criado um certo clima político. Imaginei que,em primeiro lugar,o povo iria às ruas, seguido pelos militares. Os dois me chamariam de volta. Fiquei com a faixa presidencial até o dia 26. Achei que voltaria de Santos para Brasília na glória. Ao renunciar, pedi um voto de confianca à minha permanencia no poder. Isso é feito frequentemente pelos primeiros-ministros na Inglaterra.Fui reprovado.O País pagou um preço muito alto. Deu tudo errado’’.


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dezembro 10, 2008

ASSIM BRIZOLA SAIU DO BRASIL EM 1964: A PALAVRA DA ÚNICA TESTEMUNHA OCULAR DA CENA

A saída do ex-governador e entao deputado federal Leonel Brizola do território brasileiro rumo ao exílio no Uruguai é um dos mais obscuros capítulos da história do movimento militar de 1964. Adversários de Brizola trataram de espalhar a versão de que ele saíra do território brasileiro vestido de mulher.

O próprio Brizola deu demonstrações públicas de que este é um assunto que não o agrada nem um pouco. Quando uma repórter o abordou durante a campanha presidencial de 1989, para saber se era verdade que ele tinha saído do Brasil vestido de mulher, Brizola reagiu,agressivo : disse que tinha usado as calcinhas da autora como disfarce. A frase de Brizola pode ter rendido bons títulos nos jornais,mas não acrescentou nada à historia de 1964.

A partida de Brizola rumo ao exÍlio, em maio de 1964, teve somente uma testemunha : o piloto do bimotor Cessna que conseguiu pousar o aviÃo na areia, numa praia no Rio Grande do Sul, numa operação de resgate articulada com requintes de um filme de espionagem.


A operação envolveu disfarces, senhas e códigos secretos - como uma nota de um cruzeiro partida em dois pedacos. Testemunha ocular de fatos importantes da crise de 1964, procurador do ex-presidente Joao Goulart, o piloto Manoel Leaes é um homem de poucas palavras. Preferiu viver sempre na sombra. Acompanhou dia-a-dia a odisséia do fazendeiro Joao Goulart.

Guarda em casa,em Porto Alegre,relíquias como o passaporte que o ex-presidente conseguiu do governo do general Ernesto Geisel, meses antes de morrer,em 1976. O passaporte jamais foi utilizado. Quando fazia viagens para a Europa durante o exílio, Jango se valia de outro passaporte - que,surpreendentemente, lhe tinha sido dado pelo general Alfredo Stroessner,na epoca ditador do Paraguai. Autodeclarado amigo do Brasil,Stroessner fez o que o governo brasileiro não quis fazer : dar a Jango um passaporte.

Neste depoimento, gravado em Porto Alegre, Manoel Leaes,testemunha solitária do resgate de Leonel Brizola,revela com detalhes como foi a aventura :

GMN- A única pessoa que pode contar a verdadeira historia sobre como Brizola saiu do Brasil em 1964 é o senhor - que estava no avião com ele. Há versões desencontradas sobre o que aconteceu.Qual é a verdade,afinal ?

ML - ‘’A verdadeira história da saída de Brizola é tensa. Perseguido pelas forcas da repressão, Brizola se encontrava em Porto Alegre,sem condições de sair do país. Já em fins de abril de 1964, eu, que já estava no Uruguai acompanhando o presidente Goulart, recebi a visita de um emissário que me propôs uma missão : resgatar Brizola no Brasil .

Tive um encontro com D.Neuza(mulher de Brizola). Combinamos,então,um plano de resgate. Dona Neuza chegou a me entregar metade de uma nota de um cruzeiro. Disse-me que a pessoa que me procurasse com a outra metade da nota seria o emissário com quem eu deveria combinar o plano para resgatar Brizola.

Poucos dias depois, fui procurado pelo emissário - que trazia a outra metade da nota.Durante dez dias, estudei, no Uruguai, a possibilidade de fazer a operação resgate em Porto Alegre. Eu pilotaria um avião que desceria no Aeroporto Salgado Filho, o que seria arriscado. A alternativa seria descer numa praia no litoral do Rio Grande do Sul. Optei pela praia.

A escolha da praia ficaria a critério dos amigos de Brizola no Brasil. Mas,para descer na areia da praia, eu precisaria saber do horário das mares. Por quê ? A maré baixa deixaria livre uma faixa de terra que possibilitaria a descida do avião.

Designamos,então, uma pessoa que ficou encarregada de estudar o movimento das marés. Somente assim, eu teria certeza de que poderia descer na praia. Recebi, então, um informe indicando em que horarios a maré estaria baixa ou estaria alta. Preferi o horário das sete da manhã. Nesse horário,com a maré baixa, eu teria espaço suficiente para descer na areia pilotando o bimotor.

Comecamos, então, a executar a operação resgate. Eu usaria o avião do presidente João Goulart para resgatar Brizola no Brasil. Era um aviaão Cessna 310, prefixo PT-BSB. Já exilado no Uruguai, o presidente João Goulart sabia de todo o plano. Autorizou-me a decolar de Punta del Este. Deixei Punta às cinco da manhã, em direção à praia do Pinhal, onde Brizola deveria estar me esperando. Eu pilotava o avião do presidente. Fui sozinho.

Quando me aproximei da praia, notei que nem todos os planos que havíamos feito estavam se confirmando. Pelo acerto que haviamos feito,deveriam estar na praia um grupo de pescadores, um Volks vermelho, um caminhão e outro carro. Mas,ao sobrevoar a praia, notei que o caminhão não estava la! Eu deveria regressar ao Uruguai, porque alguma coisa estava errada. Mas,num arroubo de juventude, resolvi me aproximar de qualquer maneira.

Quando eu estava vindo buscar Brizola,sintonizei durante o vôo a Rádio Guaíba.Uma autoridade do governo dizia que em quarenta e oito horas Brizola estaria preso.

Quando cheguei à praia, vi Brizola saindo de trás de um monte de areia. Estava acenando para mim. Pensei comigo : se Brizola veio,então vou aterrissar. O plano deve ter dado certo. Brizola não iria me entregar. Pousei na areia. Abri a porta do avião.

Quando Brizola ainda estava fechando a porta do avião, eu já estava decolando de novo, rumo ao Uruguai! Brizola estava vestido com a farda da gloriosa Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Trajava o uniforme de soldado. Tenso,mas feliz, Brizola parecia aliviado porque iria se encontrar com a família no Uruguai. Tinha saído de Porto Alegre num fusca, junto com uma senhora que demonstrou grande coragem pessoal ao levá-lo ao local do resgate. Passaram pelas barreiras sem serem vistos.

Quando eu disse a ele ‘’Dr.Brizola,já estamos no Uruguai ! Acabamos de passar pela fronteira !’’, ele apertou minha mao e me disse : ‘’Obrigado,Maneco !’’. Logo apos nossa decolagem,nos quinze minutos seguintes, tomei uma decisão como medida de precaução, para que nosso avião nao pudesse ser interceptado pela FAB : voei baixo,cerca de um metro acima das ondas do mar.

Brizola chegou a me dizer : ‘’Olhe para trás, para ver se vem vindo algum avião da FAB !’’. Respondi : ‘’Agora eles nao vêm mais. Porque, com o nosso tempo de vôo, já não há perigo de sermos interceptados’’. A viagem, com uma escala em território uruguaio, terminou em Solimar, um balneário nos arredores de Montevidéu, onde o presidente João Goulart nos esperava. Assim Brizola saiu do Brasil em 1964’’.


(Trecho do livro "DOSSIÊ BRASIL")

Posted by geneton at 02:05 PM

novembro 27, 2007

DOSSIÊ HISTÓRIA, O LIVRO-REPORTAGEM: A PALAVRA DE TESTEMUNHAS E PERSONAGENS DE FATOS QUE ABALARAM O MUNDO!

O locutor-que-vos-fala interrompe a programação normal para dar uma notícia que parece movida por interesse próprio, mas não é. O leitor caridoso pode se interessar também!

Chega às livrarias esta semana o DOSSIÊ HISTÓRIA , um livro-reportagem que traz o que a TV, por absoluta falta de tempo, não mostra: depoimentos completos, na íntegra, sem qualquer corte. Cenas de bastidores. O que se esconde por trás das reportagens. Os personagens do livro-reportagem são testemunhas e personagens de acontecimentos que, literalmente, abalaram o mundo.

O DOSSIÊ HISTÓRIA - um lançamento da Editora Globo - traz depoimentos do professor de Mohammed Atta, o estudante de aparência pacata que viria a se transformar no chefe dos terroristas que perpetraram o maior ataque terrorista da história, o 11 de Setembro. Atta, um egípcio, chegou à Alemanha para estudar arquitetura. Terminou recrutado por um olheiro da Al-Qaeda. Virou um terrorista suicida. Além do professor, o livro publica entrevistas completas com gente que conviveu intimamente com Mohammed Atta: um retrato falado do super-terrorista.

Você vai encontrar também, no DOSSIÊ HISTÓRIA, um depoimento do palestino que ouviu os segredos de Bin Laden numa caverna no Afeganistão. O que Bin Laden terá dito a ele ? E mais: uma entrevista com o agente alemão que tentou mas não conseguiu salvar os atletas israelenses atacados por terroristas palestinos nas Olimpíadas de Munique; as confissões do ex-soldado nazista que, aos oitenta e cinco anos, fala sem meias palavras sobre as atrocidades que cometeu;
o desabafo do filho de um carrasco nazista que até hoje faz companha contra o pai; o drama da mulher que descobriu que tinha um criminoso de guerra na família. Também: a palavra do militante que causou escândalo na Europa ao declarar que estaria disposto a se sacrificar como homem-bomba. Por fim, o DOSSIÊ HISTÓRIA traz um capítulo extra com um personagem que dá um aula de jornalismo: o "jornalista que derrubou um presidente".

Sou suspeitíssimo para falar, mas, dou um palpite: vale a pena embarcar nesta expedição rumo aos bastidores da história.

DOSSIÊ HISTÓRIA não é tese nem análise. É cem por cento reportagem. O jornalismo vive de quê ? De memória. O papel do repórter, como se sabe, é tentar reconstituir da melhor maneira possível o que aconteceu de importante. Não existe fonte melhor do que a palavra de quem viu e ouviu.

E a palavra de quem viu e ouviu é justamente o que você encontrará em DOSSIÊ HISTÓRIA - que começa a chegar agora às melhores casas do ramo.

Fim do intervalo.

http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=3223440

Posted by geneton at 12:21 PM

julho 07, 2007

O DIA EM QUE O QUINTO BEATLE ME CONTOU UM "SEGREDO"

Como se dizia antigamente, "direto ao assunto": tive a chance de ouvir do "Quinto Beatle", o super-produtor George Martin, qual é o segredo que explica a imbatível performance da dupla de compositores Lennon-McCartney.

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George Martin e a dupla

Aos fatos:

1) assim que começou a trabalhar com os Beatles, Martin descobriu que a melhor tática para garantir a qualidade das músicas seria incentivar ao máximo a competição - que já existia - entre Lennon e McCartney. O esquema "maquiavélico" deu certo. Certíssimo. Como George Martin aplicou esta tática? (Já,já, daqui a dois parágrafos, ele dirá).

2) meses antes de morrer, ao receber a visita de Martin em casa, no edifício Dakota, em Nova York, John Lennon fez a Martin uma confissão que resume a obsessão do ex-beatle com a qualidade musical - uma bela virtude num compositor pop.

A gravação completa do depoimento de Martin - colhido na igreja que ele transformou em estúdio, em Hampstead, no norte de Londres, em 1998, para o programa "Milênio"(Globonews) - repousa numa prateleira do Centro de Documentação da Rede Globo, o Cedoc. O repórter sai de cena. Passa a palavra para o Quinto Beatle, num depoimento agora publicado pela primeira vez:

"Os Beatles, no começo, não eram grandes artistas. Eram jovens muito inteligentes que, no entanto, não demonstravam sinal algum de que poderiam compor boa música. Não vi evidência alguma de que seriam bons compositores".

"A primeira vez que soube dos Beatles foi quando Brian Epstein, empresário do grupo, trouxe uma gravação para o meu escritório. Era horrível. Pude entender por que todos tinham dito "não" a eles. O melhor que poderiam me dar era "P.S.I Love You". Não era uma música muito boa. Copiaram o que ouviam dos Estados Unidos, mas também aprenderam o ofício bem depressa".

"A combinação entre John e Paul era bastante interessante, pelo seguinte: tínhamos, ali, dois jovens muito talentosos. Cada um de um jeito, os dois eram músicos e compositores muito bons - que trabalhavam juntos, numa espécie de competição: cada um tentava superar o outro. Um subia nas costas do outro o tempo todo".

"Quando comecei a trabalhar com os Beatles, logo no primeiro ano,depois que eles gravaram "Please, Please Me", eu disse: "Senhores, este é o primeiro sucesso..". Propus um desafio: "Agora, tragam-me algo melhor!". Os dois voltaram com "From Me To You" - que era boa. Depois, me trouxeram "She Loves You", melhor ainda. Em seguida, "I Wanna Hold Your Hand",fantástica! A cada vez, compunham algo diferente da anterior. Não era como "Guerra nas Estrelas I", "Guerra nas Estrelas II", "Guerra nas Estrelas III". Davam um tratamento original".

"Digo que esta curiosidade e este esforço para transpor o horizonte é que caracterizaram o pensamento de John e Paul. Isso é que os fez tão bons! Sempre tentavam melhorar, sempre tentavam ser mais originais. Perguntavam-me: "Que som podemos ter? O que é que você pode nos dar? O que é que não sabemos ainda? Ensine!".

Isso é que os tornou excelentes".

"O meu último encontro com John Lennon foi no Edifício Dakota, em Nova York, onde ele morava. Jantamos, meses antes de ele morrer. Yoko não interferiu. Ficou quieta a noite toda. John e eu ficamos, então, conversando sobre o nosso passado. Não tínhamos planos de trabalhar juntos. Eu tinha meus projetos, John tinha os seus. Eu não tinha intenção de voltar a trabalhar com ele. Mas falamos de nossas gravações. John se virou e me disse: "Quer saber? Se eu pudesse, gravaria de novo tudo o que fizemos!". Eu respondi: "Você não pode estar falando sério! Eu detestaria gravar tudo de novo, porque seria maçante". Mas John me disse que poderíamos fazer tudo ainda melhor. Isso foi extraordinário!"


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junho 11, 2007

O DIA EM QUE ENCAREI OS OLHOS VERDES DA CIGANA. OU: A ARTE DE IMPRESSIONAR OS CÉTICOS

Céticos, tremei. Quem se recusa terminantemente a dar um mínimo crédito de confiança a ciganas ,videntes,adivinhos e outros habitantes da Terra da Premonição deve ficar longe da fita de vídeo que uma cigana chamada Esmeralda gravou,em dezembro de 1993,para o Fantástico. Porque esta fita pode ter o poder de abrir uma fresta no paredão de descrença que os céticos profissionais erguem em torno de si.

Revejo a fita. Depois de tirar uma carta de um baralho na tentativa de prever o que o ano de 1994 reservava para o campeão Ayrton Senna,a cigana diz,textualmente,à repórter Fátima Bernardes : "Ayrton Senna poderá sofrer um acidente fatal numa curva". Menos de cinco meses depois, no dia primeiro de maio de 1994, as palavras "curva" e "acidente fatal" cruzaram o caminho de Ayrton Senna.

Durante a gravação da entrevista para o Fantástico, houve uma cena que não foi captada pela câmera . Com uma dramaticidade realçada por olhos esverdeados que fitam o fundo da retina do interlocutor, a cigana Esmeralda diz a Fátima Bernardes que ela não deve se preocupar com o problema de saúde que tinha sido descoberto na véspera. "Fiquei imóvel",diz,hoje,a apresentadora do Jornal Nacional. "Porque eu realmente tinha ido ao médico".

A cigana cravou pelo menos dois outros acertos. Disse,em dezembro de 1993, que a economia sofreria uma reviravolta em julho de 1994."A moeda terá um novo nome". Assim foi feito. Os bruxos da economia deram à luz o Plano Real. Por fim,os cartas disseram à cigana que o próximo ocupante do Palácio do Planalto seria um nativo do signo de gêmeos. Em outubro de 1994,as urnas deram a Presidência das República a um nativo de gêmeos - o professor Fernando Henrique Cardoso,nascido em dezoito de junho de 1931. Quando a cigana fez a previsão,ele ainda não era candidato. Acredite quem quiser.

A que estranhos poderes esta cigana recorre afinal para dar a impressão de que é capaz de enxergar, num amontoado de cartas de baralho, os desígnios do futuro ?

Uma década depois , desembarco no endereço da cigana numa manhã chuvosa de sábado. A consulta tinha sido marcada com a devida antecdência,por telefone. Nuvens cinzentas pairam, assustadoras, sobre Copacabana. O céu ameaça desabar a qualquer momento. O cenário parece perfeito para que uma cigana entre em cena. Que ela venha, com seus santos protetores, cartas de baralho, metais misteriosos e olhares esverdeados. Eu estarei pronto a espargir, sobre este exército de entidades sem rosto, todas as poções do meu ceticismo militante.

O porteiro avisa à moradora do apartamento 101 deste prédio de esquina na rua Raul Pompéia que o visitante, esperado para a consulta das 13 horas, chegou. Um homem de cabelos grisalhos, presos num extemporâneo rabo-de-cavalo, abre a porta dos fundos do apartamento. A cigana aguarda pelo visitante instalada, como uma soberana, num inacreditável quarto de empregada, decorado por imagens de entidades ciganas,medalhas, moedas espalhadas pelo chão, imagens de bruxas,gnomos,baralhos,véus,espelhos,dados,pedras,metais. A anárquica congregação de signos impressiona os olhos recém-chegados do cliente. As moedas, diz ela, são símbolo da fertilidade. As estatuetas representam os Ciganos da Lua Cheia. Um inventário do que significa cada uma daquelas bugingangas místicas seria suficiente para encher um tomo.

Apelo ao mutismo para tentar descobrir que estranho jogo é este que a cigana joga para impressionar o freguês. Se eu começar a falar pelos cotovelos, estarei dando à cigana as informações de que ela necessita para, espertamente, formular suas previsões. Baixa em mim o espírito daquele ministro do governo militar que respondia as inquisições dos curiosos com uma frase-padrão :"Nada a declarar". Declaro o mínimo possível à cigana. Faço mistério. Quero ver se ela é capaz de decifrar esta esfinge precária , com a ajuda daquele exército de entidades.

O jogo começa em desvantagem para o consulente. A paisagem do quarto de empregada - transformado em altar de supostas divindades ciganas - dá a Esmeralda uma posição de indiscutível superioridade sobre quem a visita. Ali, literalmente,quem dá as cartas é ela. Ao visitante, cabe o papel de ouvinte. Quem bate às portas deste oráculo cigano na esperança de enxergar as feições do futuro sente-se como um paciente que espera ouvir do médico um prognóstico qualquer - de preferência,otimista. O médico é o senhor da situação. A cigana também.

A cena lembra um conto que Jorge Luis Borges nunca escreveu. Uma porta maciça, no fundo do Salão do Tempo Presente, protege um mistério inalcançável : o futuro. É impossível enxergá-lo . Quando finalmente o viajante consegue abrir a porta maciça , o feitiço se quebra : o futuro deixa de ser futuro. Desvendado aos olhos do curioso, o futuro transforma-se em tempo presente. Mas o mistério se renova com a aparição de outra porta maciça, ao fundo do salão recém-conquistado : lá estará,novamente invisível, o futuro que a todos fascina - arredio , inalcançável , fora do campo de nossa visão. Ciganas como Esmeralda se dizem capazes de enxergar através da porta indevassável, esta barreira que mantém o futuro protegido contra as investidas de nossa pobre curiosidade . Deve ser esta a principal razão que leva ciganas a atrair a curiosidade de crentes ou céticos envergonhados que, como eu, pagam setenta reais pelo direito de entrar neste quarto de empregada de um prédio em Copacabana.

Eis agora a Cigana Esmeralda tentando exercer diante de mim seus pretensos poderes divinatórios. Ciganos,videntes e outros supostos donos de bolas de cristal têm também o dom de provocar medo em almas impressionáveis. Porque há,na vida ou nos palcos,qualquer coisa de trágico e intrigante em previsões. É assustadora a voz da vidente que, misturada à multidão, grita para César "cuidado com os idos de março !" na cena shakesperiana. César manda chamar o autor do aviso : "O que me dizes agora ? Repete !". O vidente : "Cuidado com os Idos de março". Mas César não dá ouvidos ao vidente :"É um sonhador.Pode esquecer.Passemos". Quando os idos de março chegam, César é apunhalado no senado romano.

As sobrancelhas da cigana que agora olha nos meus olhos foram desenhadas a lápis. Os cabelos com certeza passaram por um tintura. A cigana começa a manusear as cartas, avisa que meus dias de sorte são terça e sexta à tarde (depois,numa busca na Internet,vejo que outro horóscopo cigano indica o dia segunda-feira como dia de sorte.Em qual das duas entidades acredito : Internet ou cigana ? ).

De vez em quando,em meio a caudalosos informes sobre saúde ("boa"),vida ("longa"),pedra de nascença ( "turmalina verde"), elementos da natureza ("ouro branco" e prata velha"), número de sorte
("trinta e três"), cristal de sorte ("branco transparente"), cor ("verde"),recomendações ("atenção a modificações na pele"),a cigana faz perguntas repentinas : "Quem é Sérgio ?","quem é José ? ","quem é Paulo ou Paulinho ? ". Respondo que não me lembro de alguém com estes nomes. A cigana informa : um "Sérgio" vai me ajudar; um "José","já morto", intercede por mim; um "Paulo" pode trazer problemas se eu assinar documentos com ele.

Começo a avaliar a possível tática da cigana. Faz perguntas genéricas envolvendo nomes ou situações razoavelmente comuns. Quem não conhece um "Sérgio",um "José" ou um "Paulinho" ? A certa altura, ela pergunta,depois de bater no meu joelho direito : "O que é que você sente aí ? ". Respondo que nada. Mas poderia perfeitamente ter um problema qualquer no joelho, o que com certeza alargaria a lista dos possíveis acertos da cigana. Se houver pelo menos uma coincidência entre as suposições da cigana e a vida do visitante , o caminho estará aberto para que o ouvinte saia dali impressionado.

Adiante,a cigana lê nas cartas que tive "preocupação com aquisição de residência",mas os problemas ligados à documentação "estão se desembaraçando" - o que é verdade. "Você pode fazer uma viagem ao exterior de repente de uma hora para outra".

Depois de descobrir que tenho três filhos , insiste : "você teve preocupação com um dos filhos este ano" . Rebato : "Qual é o pai que não tem preocupação com filhos ? ". A cigana não entrega os pontos : "Mas você teve uma preocupação especial com um dos três,sim.Vejo o sol clareando a situação".

O segundo conselho é precedido por uma pergunta : "De quem é esse carro prateado ? ". A cigana simula ver alguma coisa nas cartas. Respondo que nunca tive carro dessa cor. Mas ela insiste :"Cuidado quando entrar num carro prateado,porque ele pode estar com problema nos freios. O carro pode ser de um amigo .Você pode se dar mal. Você tem de ficar atento .Cuidado com velocidade,cuidado com acidente".

Que fique registrado : se um dia o autor dessas mal traçadas linhas se meter em trapalhadas num carro prateado,a cigana Esmeralda merecerá ser entronizada no altar as pitonisas.

Quando a consulta se aproxima do fim,Esmeralda me informa que uma entidade cigana,um certo Vladimir,me dá proteção. A cigana sugere que eu um dia faça uma oferenda a Vladimir : podem ser frutas, ofertadas ao "povo cigano" ao pé de uma árvore. Esmeralda me oferece dois conselhos. Primeiro : "Não use perfume de Alfazema ! Dá azar. É das múmias !". Uriel,"anjo da Noite", igualmente me protege - é o que dizem as cartas de Esmeralda.

O Grande Jogo das Coincidências vai se armando neste quarto de empregada travestido de oráculo. Um pai que tivesse tido uma "preocupação especial" com um dos filhos ficaria,com certeza,impressionado com a insistência da cigana sobre esta particularidade. Quem acredita em "avisos" pensaria dez vezes antes de embarcar num carro prateado depois de ouvir a recomendação. Embalada pelas cartas, Esmeralda ainda me daria dois conselhos que são um primor de incorreção política : "Afaste-se de quem é homossexual.Cuidado ao lidar com judeus".

Não revelo minha condição de repórter. Deixo sem resposta a pergunta que a cigana me faz com insistência : "Por que você tem dúvida quanto à profissão"? Entre uma e outra informação, tento perguntar à cigana por que ela se acredita capaz de enxergar o que ninguém enxerga :

- É espiritual. Não sei explicar. É uma mediunidade espontânea dada por Ele (refere-se a Deus,aponta para uma imagem na parede). Faço este trabalho deste os oito anos de idade. Já estou com sessenta e nove.

Esmeralda sabe capitalizar o dom de impressionar os outros.Trabalha "de segunda a segunda",como diz,orgulhosa.Em dias de movimento intenso, pode dar "de doze a treze" consultas.Façam-se as contas. Treze vezes setenta igual a 910 reais - um faturamento diário nada desprezível. Se apenas três almas penadas batessem por dia à porta da cigana em busca de um facho de luz sobre os mistérios do futuro, ela teria um faturamento mensal de 6.300 reais.Caixinha,obrigado.

Peço para tirar fotos da cigana,com a desculpa de que uma de minhas filhas gostaria de ver em que ambiente ela trabalha. Em nenhum momento digo que aquela consulta eventualmente poderia servir de matéria-prima para um reportagem que penso em publicar numa revista que nem existe ainda. Quando me preparo para me despedir,a cigana me diz,textualmente :

- Se sair em alguma revista, mande para mim...

Fico pensando : quem sabe,ela notou em minha curiosidade um ou outro traço típico de jornalista. Observadora atentíssima - porque precisa pescar nas palavras do visitante informações que lhe permitam arquitetar previsões - ela pode perfeitamente ter imaginado minha intenção. Arriscou,então,um palpite nada absurdo.

De qualquer forma, quer tenha sido mero palpite ou não, devo dizer,em nome da veracidade factual, que a cigana se referiu a uma revista que era segredo. As palavras de Esmeralda ficaram registradas no meu gravador.

Piso novamente no terreno movediço das suposições,divagações,coincidências. Quem entra neste quarto de empregada em Copacabana ingressa num jogo de espelhos sem fim. Uma suposição leva a outra, numa teia que não se acaba nunca.

Deixo o oráculo depois de uma consulta que durou exatos cinqüenta minutos. Chove lá fora. Um carro prateado (são tantos,na cidade) sai do túnel que dá para a rua Raul Pompéia. Tenho a sensação de que paguei setenta reais para adquirir uma dúvida ("cuidado com um carro prateado") e um alívio ("a carta forte do sol saiu várias vezes. Sol não pode ser ruim,porque clareia").

O Santo Protetor da Racionalidade me sopra, enquanto tento driblar as poças d'água na calçada neste começo de tarde de sábado : é ridículo acreditar que generalidades pronunciadas por uma mulher que se diz dona de poderes premonitórios. Somente quem já chega ao Oráculo de Esmeralda preparado para acreditar em platitudes sobre o futuro é capaz de dar credibilidade às palavras da cigana.

Penso que a chave do enigma é este : só acredita em previsões assim quem chega ali preparado para acreditar. Caso contrário, é possível derrubar uma por uma todas as sentenças da cigana . Prever que um piloto de Fórmula-Um vai sofrer um "acidente fatal" numa curva não chega a ser uma demonstração genial de clarividência. Igualmente, dizer a um pai que ele teve "preocupação especial" com um dos filhos é apostar no mais do que possível . Por fim,quem nunca se preocupou com documentos de imóveis ?

Noventa e nove por cento das evidências dizem que tudo não passa de um esperto jogo de adivinhações. A própria cigana é mestra em jogar na loteria das coincidências : quer saber - por exemplo - se o visitante tem um problema no joelho. Se ele tiver, vai acreditar que ela é dotada de poderes no mínimo estranhos. É tudo ilusão. O iludido é o visitante. A ilusionista é a cigana.

Mas devo confessar : é impossível não se deixar fascinar por este Grande Jogo das Coincidências, tão habilmente manipulado por uma observadora arguta,cercada de ícones por todos os lados,num minúsculo quarto de empregada. O ambiente, algo lúgubre,é propício a divagações de todo tipo. Um encontro como este deixa sempre uma fagulha de dúvida no peito de quem descrê.

Caio por cinco minutos na tentação de perguntar a mim mesmo, enquanto espero pela condução (felizmente, não há táxis prateados no Rio de Janeiro) : e se o José de que ela fala for o meu avô, já morto ? Como é que ela adivinhou que fiz a consulta pensando em escrever para a revista ? O que é que levou a cigana a dizer que eu tinha tido um problema com documentação de uma "residência" ? Rendo-me por quinze minutos à certeza de que não custa nada dar uma chance ao imponderável, ao invisível, ao insondável,nem que seja por mera curiosidade jornalística. É um gesto inofensivo.

A tempestade que estava se armando no céu de Copacabana finalmente se dissipa. Pego um táxi - amarelo,é claro. Nada de carro prateado. A rua Raul Pompéia fica para trás. A cigana permenece no quarto- quem sabe,à espera do próximo visitante.

Vou adiante : intimamente, decreto a suspensão temporária de meu ceticismo. Resolvo dar um crédito de confiança às entidades que - jura a cigana - me oferecem proteção : então, bem-vindo,Cigano Vladimir. Bem-vindo, Uriel,Anjo da Noite. Obrigado, pedra de Turmalina, ouro branco, prata velha. A partir desta tarde de sábado, conto com vocês.

Mas, lá no deserto de minha descrença, onde não há espaço para pedras de turmalina nem anjos da noite nem carros prateados, eu sei : é tudo um mero jogo de espelhos, um labirinto de adivinhações.

Copacabana me engana.

Quatro meses depois da consulta,bato de novo à porta da cigana. Quero saber se é verdadeira a informação de que ela teria morrido dias antes do Natal. O porteiro confirma : "É verdade.Dona Esmeralda morreu de repente. Fecharam o apartamento.Desligaram o telefone.Acabou o movimento".

Posted by geneton at 09:15 PM

junho 09, 2007

POR QUE É HORA DE COMEÇAR LOGO UMA NOVA GUERRA DAS MALVINAS?

LONDRES - Defensores dos bons costumes e das boas maneiras,fiquem alertas.Militantes da mentalidade ''politicamente correta'',saiam da frente. Mal-humorados que levam tudo a sério,preparem o estômago.

Porque acaba de desembarcar nas livrarias da Inglaterra um dos mais ''politicamente incorretos'' textos já produzidos.Não por acaso,a obra se chama ''O Manual Oficial do Politicamente Incorreto''(''The Official Politically Incorrect Handbook''). Os autores : dois ingleses de trinta e cinco anos,escritores free-lancers,chamados Mark Leigh e Mike Lepine.A editora : Virgin Books.A missão : demonstrar aos incrédulos que,ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, a Inglaterra não parece disposta a tolerar os excessos da mentalidade politicamente correta.

Os defensores da mentalidade ''politicamente correta'',como se sabe,condenam todo e qualquer gesto que possa ser visto como remotamente ofensivo contra quem quer que seja. A intenção pode até ser louvável.O problema é que o temor de ferir susceptibilidades alheias terminou criando exageros. Piadas sobre minorias ? Nem pensar ! Resta uma pergunta : onde é que fica o senso de humor - uma instituicao secularmente cultuada na Grã-Bretanha ?

Com o lancamento do livro da dupla Leigh & Lepine,os ''politicamente incorretos'' lancam um novo - e bem-humorado- golpe contra os militantes radicais da pretensa correção política. Sem medo das patrulhas politicamente corretas,os dois ingleses reúnem,em 271 paginas,opiniões,tiradas e comentários que farao corar de raiva os apostolos do ''politicamente correto''.
A África -por exemplo- serve para quê ? ''Para preencher o espaco vazio entre a América do Sul e a Índia e como cenario de filmes de Tarzan'' - escreve a dupla.

NINGUéM ESCAPA DA PENA AFIADA DA DUPLA INCORRETA

O manual traz uma variadíssima lista de afirmações politicamente incorretas,seguidas de uma justificativa.Exemplos :

1.''Por que é hora de comecar logo uma nova Guerra das Malvinas? Como a gente vai perder mesmo a próxima Copa do Mundo,então é melhor arranjar alguma coisa para comemorar''.
2.''Por que estudar matemática na escola é uma completa perda de tempo? Ninguém jamais ficou rico por saber calcular o mínimo denominador comum''.
3.''Por que é tão bom ser estúpido? Porque um estúpido sempre encontrará' o que ver na televisão''.
4. ''Por que a guerra é melhor que a paz? Dê um pulo no vídeo-clube.Quantos filmes de paz existem lá ?''
5. ''Por que o sexo feminino é inferior? Tente se lembrar do nome de uma batalha importante vencida por uma mulher....''.
6.''Por que a França pode continuar a fazer testes nucleares no Pacífico? Porque seria uma completa irresponsabilidade fazer os testes no centro de Paris''.
7.''Por que é bom frequentar prostitutas? Porque,na hora H,elas dizem coisas como ''oh,baby !'',''oh,sim,sim !'',em vez de ''você levou o gato pro quintal ?''.

8.''Por que é indispensável ver o discurso de Rainha na televisão no Dia de Natal? É uma excelente oportunidade para toda a família ir ao banheiro,antes de começar a ver,pela quinta vez,os ''Caçadores da Arca Perdida''.
9.''Por que ninguém deve se preocupar com a poluição das águas? Porque não vivemos nos rios''.
10.''Por que é perfeitamente aceitável usar casaco de pele? Todos os animais usam.Ninguém nunca reclamou''.
11.''Por que é bom ser um branco anglo-saxão? A polícia nunca dá em cima de você''
12.''Por que precisamos dos políticos? Porque,quando nos comparamos com eles,nos sentimos honestos e virtuosos''.
13.''Porque que é bom ensinar religioes alternativas nas escolas? Porque assim saberemos que não estamos perdendo nada.Além de tudo,cânticos e rezas de outros povos sao em geral hilariantes...''.
14.''Por que a Inglaterra deve gastar mais dinheiro recrutando soldados para o exército do que contratando médicos para os hospitais publicos? A Rainha ia achar um tédio passar em revista uma tropa de especialistas em ouvido,nariz e garganta...''.
15.''Por que a arte moderna é uma porcaria? Qualquer coisa que parece melhor quando estamos bêbados do que quando estamos sóbrios é suspeita. Além de tudo,um tijolo é um tijolo : qualquer criança de cinco anos sabe. E um carneiro morto é um prato : nao é um objeto de arte''.
16.''Por que a Previdência Social deve financiar as operações para aumentar os seios,em vez de gastar dinheiro com transplantes? Porque, ao contrário do que acontece com os seios, os homens jamais poderão enfiar o rosto entre rins transplantados e dizer ''glub,glub,glub''
17.''Por que o Império Britânico era bom? Se o império não tivesse existido,o Cinema Império,no centro de Londres,provavelmente se chamaria hoje Odeon,o que criaria confusão no publico,porque já existe um outro Cinema Odeon na cidade''.
18.''Por que o Budismo jamais pegará na Inglaterra? Porque os ingleses acham que é melhor ir para o inferno do que viver aqui por não sei quantas encarnações''.
19.''Por que os castigos corporais devem ser adotados novamente na Grã-Bretanha? Poderemos gravar os castigos e vender as fitas todas para a Alemanha''.
20.''Por que as companhias não devem dar emprego a ninguém com mais de sessenta anos? Porque os aparelhos de surdez podem causar interferências nos sistemas de alarme contra incêndio''.

OS POLITICAMENTE CORRETOS SE TORNARAM PATRULHEIROS

Antes de comecar a entrevista, Mike Lepine pediu licença para cometer o que chama de ''um ato politicamente incorreto'' : acender um cigarro. O ''Manual Oficial do Politicamente Incorreto'' pretende fazer o público rir,mas há um traço sério na obra :
-A propagação da mentalidade politicamente correta me faz lembrar o livro ''l984'', em que George Orwell fala da manipulação das palavras através da criação de um novo idioma - a ''novilíngua''. É o que os politicamente corretos estao fazendo,na prática : querem mudar nossa maneira de pensar mudando as palavras.Mas não queremos ser manipulados por eles !
O politicamente incorreto Lepine admite que a mentalidade politicamente correta ''pode até ter bons aspectos.Ninguém obviamente quer viver num mundo em que uns odeiem os outros.Ninguém - diz Lepine - quer racismo ou sexismo. Mas o problema é como os politicamente corretos atuam : terminam se tornando, eles proprios,ofensivos ! .A correção política - constata - é uma camisa de forca .Os adeptos desta mentalidade ficam brigando com as palavras,em vez de se ocuparem dos reais problemas.A mentalidade politicamente correta não permite que voce faça julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim. Não há padrões, portanto. Isto é nocivo ! Quem luta contra a mentalidade politicamente corrreta tenta,na verdade,estabelecer padrões de julgamento - que são necessários!’’.

Lepine se defende de eventuais críticos :
-Tudo o que fizemos,no Manual,foi escrever coisas que as pessoas normalmente dizem nos pubs,numa roda de amigos.Ali,a verdadeira opinião de cada um aparece. As pessoas são todas,por natureza,politicamente incorretas. Mas eu simplesmente nao consigo ver que danos ou prejuizos o senso de humor pode causar.

Ninguém escapa da pena afiada dos dois autores politicamente incorretos - nem Tarzan e muito menos a classe operária. Aqui,eles explicam por que Tarzan é o modelo ideal para um operário - um exemplo tipico do humor politicamente incorretíssimo :
''1.Tarzan vive pra la e pra cá, rodeado por um bando de macacos...

2.Só se comunica através de grunhidos

3.Gosta de andar sem camisa
4.Não tem a menor idéia sobre a identidade do pai.
5.Aprendeu suas maneiras com um chimpanzé.
6.Carrega uma faca.
7.E vive aterrorizando a população negra da vizinhança.
---------------------------------------------(1997)

Posted by geneton at 05:54 PM

março 20, 2007

RELATO COMPLETO DE UM ENCONTRO COM O CARRASCO DO TEXAS

Se a palavra tédio pudesse ser escrita de outra maneira, teria dez letras : Huntsville.

É o fim do mundo : o turista que desembarcar nesta cidadezinha do interior do Texas terá a impressão de que bateu na porta errada. Quer se divertir? A melhor opção é uma lanchonete de fast food, em que os fregueses podem devorar hambúrgueres sem sair do carro.

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O desfile de jipes gigantescos no pátio da lanchonete funciona como um atestado motorizado da fartura americana. Não há carros velhos. A impressão (absurda ?) é de que também não há gente magra. A obesidade se alimenta de milk-shakes, batatas fritas e hambúrgueres consumidos em quantidades industriais.

O forasteiro fará bem em degustar o hambúrguer sem pressa. Se resolver se aventurar pelas ruas de Huntsville à noite, terá a sensação de que pousou num deserto, habitado por fantasmas. Onde estarão os quarenta mil habitantes ? Huntsville, abre as asas sobre nós : os repórteres em busca de bons personagens te saúdam com uma pontada de mórbida alegria no peito


Mas, se o forasteiro estiver interessado em assuntos menos divertidos do que a qualidade dos sanduíches servidos em lanchonetes fast foods, Huntsville pode se transformar de repente num lugar fascinante. O assunto é pena de morte ? Cadeira elétrica ? Injeção letal ? Cloreto de potássio ? Carrascos mal-encarados ? Prisões inexpugnáveis ? Cercas eletrificadas ? Huntsville, abre as asas sobre nós : os repórteres em busca de bons personagens te saúdam com uma pontada de mórbida alegria no peito.

Indefensável, a pena de morte faz parte da história do Texas há séculos. A execução de presos pode causar horror a forasteiros ou a militantes que fazem inúteis demonstrações de protesto diante da prisão a cada vez que o porta-voz anuncia a morte de um detento. Mas o ritual já se integrou à rotina de Huntsville. A não ser que o caso tenha repercussão nacional, há execuções que correm o risco de passar em brancas nuvens na cidade.

“Vá para um bar. Pergunte a quem estiver no balcão. Provavelmente ele não saberá que um preso vai ser executado naquele dia” – constata Larry Fitzgerald, porta-voz da prisão e advogado confesso da pena capital como método de justiça. “Fico irritado quando falam de Huntsville como capital nacional das execuções”, brada ele. “Por que diabos não chamam Huntsville de capital mundial dos direitos das vítimas?”.

A banalidade do ritual da morte em Huntsville pode ser facilmente constatada no jornal local, o centenário Huntsville Item. Uma notícia de execução só merece registro no espaço nobre da primeira página se for capaz de mobilizar a atenção daqueles freqüentadores de bar citados pelo porta-voz da prisão como representantes típicos da maioria silenciosa. Caso contrário, a notícia ficará confinada sem grande destaque nas páginas internas. Porque execução aqui é rotina. Não é exceção.

O Huntsville Item abriria manchete se um dia a cidade passasse um mês sem ter notícia de um preso executado. Assim caminha Huntsville, dona do título de campeã nacional de execução de presos. Em nenhuma outra cidade americana tantos presos são executados quanto aqui. Desde que uma lei de 1973 decidiu que o Texas voltaria a punir com a pena de morte os autores de crimes hediondos, nada menos de trezentos e cinqüenta e cinco presos foram executados aqui com injeção letal. Dá para lotar vinte e nove vans, daquelas que transportam doze passageiros.

Pode parecer estranho o fato de uma cidade tão pacífica ostentar a liderança nacional em número de execuções. Mas a aparente disparidade tem uma explicação: todos os condenados à morte no Texas são enviados para Huntsville, onde o Departamento de Justiça montou um aparato para que a mais rigorosa das leis seja cumprida.

Se o Estado decide punir com a pena de morte quem cometeu crimes considerados hediondos, alguém precisa cumprir a sentença.

Ei-lo : pai de um casal de filhos,55 anos de idade,fã de westerns , James Willett já comandou pessoalmente a execução de 89 presos. Método : injeção letal. Quando chega o dia da execução, o condenado à morte sai do corredor da morte de uma penitenciária chamada Polunsky , a cerca de setenta quilômetros do centro de Hunsville, para uma viagem de uma hora rumo ao local de execução. O prédio onde os presos levarão a injeção letal chama-se The Walls. Fica no centro da cidade.

Depois de amarrado a uma maca por seis cintos de couro – atados aos tornozelos, aos dois braços e ao tronco – o preso terá a chance de dizer suas últimas palavras,diante do carrasco e do capelão.

A primeira dose é de um anestésico – administrado em quentidade suficiente para provocar a morte. O preso perde os sentidos em questão de segundos. A segunda substância injetada nas veias do preso provoca um colapso pulmonar. A terceira causa uma parada cardíaca. Não há escapatória possível. É como se o preso morresse três vezes.

Há um código secreto na sala de execuções. O preso nem desconfia, mas um gesto aparentemente inofensivo funciona como uma senha para que a sentença de morte seja executada. Do outro lado de um vidro espelhado, numa sala contígua, um funcionário aguarda um sinal do carrasco para liberar as substâncias que serão conduzidas por tubos plásticos às veias do condenado. O carrasco tira os óculos. É o que basta.

Quando vê que os óculos estão nas mãos do carrasco, o funcionário já sabe o que deve fazer. Deitado na maca, o condenado nem imagina que aquele gesto tão banal – o de tirar os óculos – é, na verdade, uma senha irrecorrível.

Willett hoje dá expediente no Museu da Prisão de Huntsville. A pérola do museu é a cadeira elétrica usada para executar 361 presos – antes da adoção da injeção letal como método de execução. Quem pagar o correspondente a doze reais pode contemplar à vontade a cadeira elétrica. Criança paga meia. Diversão garantida.

O que passa pela cabeça do homem pago pelo Estado para executar o que a Justiça decidiu ?

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Procuro a fera no Museu da prisão. O carrasco se aproxima da cadeira elétrica, passa trinta segundos contemplando aquele monumento à morte, dá o veredito:

- A injeção letal é melhor do que a cadeira elétrica. É mais humana.Eu prefiro.

James Willett sabe do que fala. Diz que jamais perdeu um minuto de sono por exercer uma tarefa que almas sensíveis classificariam como macabra. Dorme como uma criança, desavisada sobre os horrores do mundo.


Uma das predileções de Willett pode soar como esquisitice no currículo de um homem que convive com tanta intimidade com a morte dos outros : o carrasco é apaixonado por flores. Usa as horas vagas para fotografar azaléas que florescem bonitas nos jardins de Huntsville.

O carrasco não é egoísta : quer compartilhar com o mundo o enlevo que sente diante da beleza de uma azálea.

Willett é, literalmente, a última face que os condenados à morte vêem, no momento em que tomam a injeção letal que os matará em questão de segundos. “O processo deve durar uns vinte, trinta segundos”, contabiliza Willett, com o tom profissional de um caixa de banco que, no final do expediente, atualiza os números do dia.

Ao lado de Willett e do preso, no instante da execução, só fica uma testemunha privilegiada : o capelão designado pelo sistema penitenciário para oferecer palavras de conforto a quem cometeu pecados capitais. Do lado de fora da sala, protegidos por uma tela de vidro, ficam as testemunhas : três escolhidas pelo preso,três escolhidas pela família da vítima.

Depois de cumprir a tarefa – comandar execuções que ocorrem pontualmente às seis da tarde,hora do Angelus -,Willett vai para casa tomar sopa, assistir a westerns na TV e dormir. “Adoro um bom western”, diz o carrasco.


Que demônios habitam a mente desse homem que tem um encontro com a morte dos outros justamente na hora em que almas devotas estão rezando a Ave-Maria ?

Quando aparece na cela de presos que o Estado do Texas considera irrecuperáveis, para escoltá-los rumo à sala onde a sentença final será executada, Willett é a face visível de uma enorme e complicada engrenagem . A história dos presos condenados à morte passou por delegacias, institutos de medicina legal, postos de polícia, laboratórios, salas de tribunais,gabinetes de governadores – um enorme teia que,no fim da linha, se materializa naquele homem de olhos azuis e estatuta mediana.

Se um cartunista fosse desenhar a face de um carrasco , poderia perfeitamente imaginar a figura de um homem de feições duras,olhar gélido,um discretíssimo sorriso apenas esboçado no canto inferior direito da boca,como convém a um mensageiro da morte. As feições de Willett jamais desapontariam um cartunista. Porque ele é exatamente assim : um homem de feições duras,olhar gélido,um discretíssimo sorriso apenas esboçado no canto inferior direito da boca.

Diante da cadeira elétrica, o carrasco fala:

O senhor diz que o último diálogo pode ser surpreendentemente bem-humorado.Que humor é este ?

Willett : “Um dos presos,quando já estava amarrado à maca,no momento em que os enfermeiros da prisão estavam inserindo as agulhas,fez um pedido : “Quero um bombom.Minha boca ficou seca”. O capelão deu a ele um bombom – daqueles que vêm embrulhados em papel celofane. O capelão jogou o bombom na boca do preso – que já estava imobilizado. Perguntei a ele : “Vai ser a última comunhão ?”. O preso me respondeu : “Vai ser a última. Mas tenho a impressão de que não vai funcionar”. ( aqui, o discretíssimo sorriso do carrasco manifesta-se no canto direito inferior da boca, mas o espasmo dura apenas um punhado de segundos )

O que é que o senhor diz aos presos sobre o que vai acontecer ?

Willett : “Nós discutimos sobre quais serão as suas últimas palavras. Digo a eles,no dia da execução : “Voltarei em torno das seis da tarde,para levar você até a cela”. Os presos já sabem o que esperar. Poucos fazem perguntas. Mas digo : você vai caminhar por conta própria,sem algemas, sem que ninguém toque em você até que você chegue à câmara. A grande maioria dos presos simplesmente me acompanha até o local da execução”.

Como é que o senhor explica a eles o método da execução ?

Willett : “Em geral, perguntam-me quanto tempo vai durar. Ou se vai doer. Digo,honestamente, que a execução em si dura trinta segundos. Ao fim desse tempo,eles estarão dormindo. Perguntam-me se dói. Sou honesto : digo que ninguém sabe realmente. Mas,para quem olha, é como se alguém estivesse adormecendo - pacificamente. Parece-me indolor. Quando um preso faz a última declaração, eu já saberei qual será a última frase. Porque terei discutido o assunto com eles,antes. De qualquer maneira,a maioria me diz que vai me avisar quando a declaração estiver concluída.Neste momento,tiro os meus óculos. É um sinal para que o funcionário – que fica do outro lado de um vidro espelhado – saiba que é hora de liberar as substâncias que chegarão às veias do preso.O funcionário pode nos ver.Nós não o vemos. Em trinta,trinta e cinco segundos o preso dará um suspiro profundo e adormecerá. Ainda espero um pouco. Chamo,então,o médico que constatará o que já se sabe: a morte do preso”.


O senhor já pensou na possibilidade de que pode ter executado um inocente ?

Willett : “Certamente,há a possibilidade de que um inocente tenha sido executado. Numa situação em que há tanta interação humana – com valores como culpa,inocência e punição – haverá sempre esta possibilidade.É algo que cruza a minha mente”.

Que sentimento o senhor tem diante desta dúvida ?

Willett :”É triste saber que nós, a espécie humana, consideramos a possibilidade de fazer tais coisas”.

O senhor se considera o homem mais temido do Texas ?

Willett : “Não.Tal idéia nunca passou por minha cabeça”.

Que argumento o senhor usaria contra a pena de morte ?

Willett : “Não sei se teria um argumento contra a pena de morte. Há aspectos negativos – como,por exemplo, a possibilidade de um inocente ser executado. Discordo dos que dizem que a pena de morte impede crimes. Não impede. A maioria desses crimes é cometida em momentos passionais. O criminoso não pára para pensar “Meu Deus,posso pegar a pena de morte !”. O que a pena de morte faz é dar a certeza de que aquele criminoso não vai cometer outro crimes”.

O senhor já teve algum pesadelo depois de uma execução ?

“Não. Sou um daqueles que não perdem o sono por nada”.

O senhor afinal prefere a cadeira elétrica ou a injeção letal ?

“ Falei com testemunhas. Não tenho dúvida de que a injeção letal é melhor. Porque é como se alguém tivesse caído no sono – e não acordasse depois. A cadeira elétrica é mais horripilante”.

Qual foi a maior surpresa que o senhor já teve no dia da execução ?

Willett : “Sempre me surpreendeu o fato de que os presos, em geral, pedem uma grande quantidade de comida na última refeição. Dá para notar pelo tamanho do estômago – que fica estufado. O que acontece é o seguinte: quando chega o dia da execução, os presos recebem finalmente a permissão para pedir um tipo de comida a que eles não tiveram acesso durante anos. O que me surpreende também é ver que presos que são amarrados à maca parecem mais à vontade do que estou aqui agora, diante de você, nesta entrevista.

Quero contar essas histórias: um dos presos, na hora da execução, no momento de pronunciar suas últimas palavras, pediu desculpas sinceras à família da vítima por toda a dor que tinha causado. Depois, virou-se para mim : “Guarda,é tudo”. Mas, antes de eu tirar os meus óculos, ele ainda me disse : “Como vão os Dallas Cowboys ? “. Pensei comigo : “Meu Deus ! Ele arruinou suas últimas palavras com essa pergunta sobre o time de beisebol !”

Um dos prisioneiros que levei para execução queria cantar “Noite Feliz” depois de pronunciar suas últimas palavras. Perguntou-me : “Posso cantar ”Noite Feliz” enquanto essas substâncias estiverem entrando pelas minhas veias ? “.Eu disse que sim. Logo em seguida, dei sinal para que as substâncias fossem liberadas. Mas, assim que ele começou a cantar, pensei comigo: “ Não haverá tempo para ele cantar a música inteira. Meu Deus, as testemunhas da execução - que estão lá do outro lado do vidro - vão ficar pensando que eu é que não deixei que ele cantasse a música toda...”. Eu bem que tinha dito a ele que não haveria tempo para tanto. Não ia ser possível cantar “Noite Feliz” inteira, ali, na maca”.


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julho 03, 2006

NORMAN MAILER DECRETA O FIM DE UMA ERA

NOVA IORQUE - Acabou. O fim de uma época em que os escritores tinham uma voz ativa na sociedade foi decretada por um porta-voz insuspeito: um grande escritor. Nome: Norman Mailer. Sem qualquer alegria, ele constata que, hoje, um americano médio, “razoavelmente inteligente”, não seria capaz de citar o nome de três bons escritores contemporâneos.
Adeus, meninos.
E agora?
Agora, vale a pena ouvir a palavra de Mr. Mailer.




Eis o homem: o Grande Rebelde das Letras Americanas, o velho porta-voz das insurreições, o Eterno Dissidente, o “último ícone da literatura americana do Século XX” caminha apoiado por duas bengalas. Os cabelos, desalinhados, clamam por um pente. Traja uma camisa laranja de mangas compridas. Uma jaqueta protege-o dos rigores do inverno.

Primeira constatação: a longevidade – definitivamente - não vem de graça: o tempo cobra, ao Norman Mailer de 83 anos, o pedágio imposto aos octogenários que ousam desafiar a passagem dos séculos (quando Mailer nasceu, no último dia de janeiro de 1923, em Long Branch, New Jersey, a Primeira guerra Mundial tinha acabado havia apenas cinco anos. Os horrores do delírio hitlerista, a viagem do homem rumo às estrelas, o rosto estilhaçado de John Kennedy em Dallas, a aventura americana no Vietnam, a rebelião dos jovens dos anos sessenta, todos estes temas que um dia ocupariam a pena do Mailer escritor ainda demorariam décadas para acontecer: eram apenas uma possibilidade escondida nas cartas de alguma cigana).

Quando fala, o Grande Rebelde pontua as frases com um pigarro renitente. Quando ouve, fixa os olhos limpidamente azuis no movimento dos lábios do interlocutor – um esforço para captar, no ar, as palavras que a quase surdez o impede de ouvir. “Eu estou ficando surdo a cada minuto” – confessa, sem esforço para disfarçar a ruína auditiva. “Estou ficando velho. Já não terei tanto tempo” – diria, pouco depois. “Desculpe o pigarro. O motorista me disse outro dia, sobre minha voz: “Você soa como Richard Nixon no fim da vida...”.

Que ninguém se iluda com a aparente autocomiseração. O octogenário Norman Mailer provará já,já, que não lhe falta fôlego para disparar petardos verbais em todas as direções.

( o Grande Rebelde me brindaria esta noite com uma confidência feita ao pé do ouvido – um pequeno prêmio concedido à minha impertinência. Assediado por fãs que pediam um autógrafo em exemplares do recém-lançado “The Big Empty”, o livro que reúne seus diálogos políticos com o filho John Buffalo , Mailer comete ali e aqui pequenas indelicadezas, facilmente perdoáveis quando se contam as décadas que já acumula sobre os ombros. Um leitor estende-lhe um bilhete. Mailer nem olha para o pedaço de papel: “Não posso ler. Não posso”. Quando outro fã dispara flashs a dois palmos de seus olhos, resmunga: “Gente de minha idade não pode encarar flash….”. O desconforto diante do espoucar dos flashs parece legítimo. Diante do assédio ao nosso personagem, recorro a um caso extremo de concisão. Pergunto a Norman Mailer se ele poderia se definir em uma só palavra – e escrevê-la na folha de rosto do meu exemplar. Não, não pode. Pega a esferográfica vagabunda para me presentear com um autógrafo, escrito em letra firme e legível. O assédio faz Mailer me confidenciar o que pensa dessas aparições: “São brutais, rudes e desconfortáveis”. Guardo o desabafo em meu gravador).

É inevitável: uma sensação de “fim de uma era” percorre a espinha dorsal de quem testemunha a aparição do Grande Rebelde das Letras neste início de noite gelado, no prédio que serve de sede à New York Society for Ethical Culture, no número 2 da rua 64, Nova Iorque.

Eis ali o escritor que, no auge dos anos sessenta, agitava os manifestantes que bradavam diante do Pentágono contra o envolvimento americano na Guerra do Vietnam. Hoje, apoiado por bengalas e aparelhos para surdez, emite impropérios contra o Presidente George Walker Bush para platéias não tão numerosas.

Os manifestantes que antes lotavam as alamedas de Washington hoje se resumem a duas centenas de almas que enfrentam o frio do inverno nova-iorquino para ouvir, em tom reverente, a pregação anti-establishment do Velho Rebelde

O que terá acontecido? Onde estão as hordas de ouvintes? O próprio Mailer dá o diagnóstico : “Já não somos uma cultura literária. Somos uma cultura televisiva. Os escritores já não são tão importantes quanto antes. É o que digo, sem nenhum prazer”.

Onde estão as equipes de TV da CBS, NBC, ABC, que não aparecem para documentar a pregação do Velho Lobo? A única equipe de TV presente é a de um canal francês.

O repórter cede à tentação de anotar um paralelo cruel : é como se a inevitável decadência física de Mailer tivesse acompanhado a não tão inevitável perda de importância da figura do escritor numa sociedade dominada pelas imagens.

As caixas de som espalham os acordes de canções militantes cometidas pelo John Lennon pós-Beatles, como “Power to the People”. Depois, a platéia é embalada pelos versos de Lennon em “Mother”, a canção que mereceria o Grande Prêmio Internacional de Concisão porque consegue resumir em duas frases tomos e tomos de tratados psicanalíticos: “Mother, don´t go/ Daddy, come home”: Mãe, não vá embora/Pai, venha para casa”.

Lá fora, uma solitária militante - que parece saída de uma passeata contra a Guerra do Vietnam - distribui panfletos anti-Bush. O alvo agora é a intervenção americana no Iraque.

Quem enfrentou a neve das ruas pelo privilégio de ouvir a pregação do Grande Rebelde teve a sensação de que o sacrifício foi recompensado.

A vitória da “cultura televisiva” sobre a “cultura literária” não é o único tema que ocupa as atenções de Mailer neste começo de século. A “lenda literária” (é assim que o jornal Village Voice se refere a ele) oferece aos ouvintes idéias originais sobre, por exemplo, a ligação que existe entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia. Dá uma explicação quase psicanalítica sobre o medo do terrorismo. Cria uma tese controversa sobre a influência que os intervalos comerciais das TVs exercem sobre a capacidade de concentração dos telespectadores. Dá o que falar. Faz provocações. Não escorrega no ramerrame da obviedade. Cumpre o papel que reservou para si desde que subiu ao palco literário: é um escritor que não se conforma em apenas escrever. Quer intervir. Intervém. A torrente verbal de Mailer incendeia a imaginação dos ouvintes. A ele, pois.

A CRUELDADE DO TERRORISMO:
A MORTE SEM AVISO PRÉVIO

Em vez de discursar sobre o óbvio desconforto que a ameaça de ataques terroristas espalhou sobre a sociedade americana, Mailer detecta um efeito pessoal provocado pela onda de medo:

- Detesto terrorismo porque uma das minhas idéias religiosas favoritas é a de que nós devemos estar preparados para a morte. Ser morto sem aviso é um ultraje à alma. Uma das piores coisas sobre o 11 de setembro é que ninguém estava preparado para um ataque daquele. Preparar-se para a morte é importante. Acredito que há alguma coisa depois da morte. O terrorismo é particularmente horrível porque estilhaça a noção de que você deve estar preparado para morrer.

“A DEMOCRACIA DEPENDE DA BELEZA DA LINGUAGEM. GEORGE BUSH É UM ORADOR ABOMINÁVEL”


O Monumento Mailer estabelece uma surpreendente ligação entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia. Vale a pena ouví-lo:

- “Acontece que a democracia é a mais delicada forma de governo. A mais delicada! Por esse motivo, demorou tanto a ocorrer na História. A democracia depende de que a linguagem do povo se torne mais rica e mais elevada ao longo das décadas e dos séculos. Depende de criatividade, substância, boas instituições e alto desenvolvimento. George Bush é uma força que age negativamente sobre estes valores, porque ele reduz a linguagem. É um orador abominável”.

-“ Quero insistir neste ponto: a democracia depende da beleza da linguagem. Depende do aperfeiçoamento – e não da deterioração da língua. Os Estados Unidos eram maravilhosos nos tempos de Franklin Roosevelt, porque ele falava tão bem. O pouco que pudemos ter de John Kennedy nos deu uma mostra de que ele, um homem inteligente, queria elevar o nível da inteligência na política e na América.
Democracias são delicadas. Digo: o inglês só não sofreu um colapso e só não se partiu em pedaços ao longo das turbulências do Século XX porque um dia existiu William Shakespeare. Sem James Joyce, a Irlanda seria bem menos. Faço essas constatações não por ser um semi-talentoso novelista, mas porque a linguagem é imensamente importante. Bush destrói a linguagem quando abre a boca. Em nome do terror, Bush cometeu crimes contra a integridade e a reputação do Estado. É o pior Presidente dos meus oitenta e três anos de vida. Isso significa um bocado, porque vivi sob Ronald Reagan”.


O SÉCULO XXI FAZ UMA EXIGÊNCIA: TEMOS DE CONVIVER COM UMA DOSE DE ANGÚSTIA E INCERTEZA

O guerreiro Mailer avisa aos ingênuos que não há com escapar de dois sentimentos que se espalharam pelo planeta depois de assentada a poeira do desabamento do World Trade Center:

- “Uma das exigências do novo Século é que nós temos de conviver com uma dose de angústia e incerteza. O Onze de Setembro derrubou os dois mais reluzentes monolitos da economia americana, as Torres Gêmeas. Além de tudo, as Torres falavam da fálica hegemonia americana sobre o mundo. A dona-de-casa típica ficou desolada diante da assustadora possibilidade de que alguém pode trabalhar durante anos para formar uma família- e perder tudo em uma hora”.

A quem interessar possa, Mailer vai logo se declarando um “conservador de esquerda” - uma classificação que, admite, nem sempre é aceita por mentes habituadas a simplificações ideológicas:

- “Pelo lado conservador, há instituições e valores que não devem ser desmentidos com um piada. Metade da população mundial se enquadra na vida familiar. Se você não se enquadra, não ridicularize. Porque família é, sob vários aspectos, uma forma de arte”.

OS COMERCIAIS DE TV DESTRÓEM O PODER DE CONCENTRAÇÃO, PORQUE INTERROMPEM A NARRATIVA DE DEZ EM DEZ MINUTOS

Mailer articula uma tese original sobre a televisão. Diz que a geração nascida e criada diante da luz azulada dos monitores de TV tem dificuldade de acompanhar
raciocínios mais elaborados, porque toda história que a TV conta é interrompida de dez em dez minutos por comerciais:

- Quando liam, as crianças de antigamente desenvolviam o poder de concentração, pelo prazer da narrativa. Em outras palavras: elas podiam seguir um narrativa por horas. É quase como exercitar músculos: só que exercitavam a mente. Hoje, o equivalente a essas crianças espertas vêem na TV narrativas que são interrompidas a a cada sete ou dez minutos por anúncios comerciais. Isso impede a continuação da narrativa. As crianças, então, ficam habituadas à idéia de que não são capazes de seguir nada que dure mais do que sete ou dez minutos. Perdem o poder de concentração. Acontece com todos: se alguém se interessa por um programa, logo vem um comercial para afetar a concentração e a capacidade de pensar mais profundamente sobre o assunto.


UMA CONFISSÃO PESSOAL: O GRANDE DISSIDENTE AMERICANO TENTA ENXERGAR LUZ DEPOIS DA MORTE

Por fim, o Grande Rebelde causaria uma nova surpresa, ao pronunciar uma profissão de fé na reencarnação:

- Eu acredito em reencarnação, porque acredito que Deus é o criador. Para mim, a idéia de que Deus existe faz mais sentido do que a idéia de que Deus não existe. A reencarnação é um dos instrumentos profundos que Deus usa para tornar melhores suas criaturas. Quando você morre, acredito que você é julgado, não para ir ao inferno ou ao céu, uma idéia que nunca fez sentido para mim. O que faz sentido é a idéia de que você renasce. Há, espera-se, uma certa sabedoria na escolha feita no renascimento. Neste momento, você é punido pelos pecados que cometeu ou é recompensado pelo que conquistou na vida. Ou seja: a vida tem um sentido, para Deus e para você, na maneira com que você renasce. Você é premiado ou punido depois da morte.


O Grande Rebelde agarra-se à ilusão do renascimento. É como se erguesse a bandeira branca e fizesse um aceno para o invisível, o incompreensível e o improvável. Os ouvintes consomem em silêncio reverente a inesperada profissão de fé de Mailer numa vida além da morte. É como se o homem de 83 anos olhasse para o fundo do despenhadeiro – e, finalmente, depois de tantos embates, tantas protestos, tantos prêmios, tanta glória, pudesse enxergar com clareza o que antevira numa passagem de “Os Exércitos da Noite”:

“...Pois temos de ir até o final da estrada e alcançar aquele mistério onde a coragem, a morte e o sonho de amor nos prometem que poderemos, enfim, dormir”.

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(*) PUBLICADO NA EDIÇÃO DE JUNHO DA REVISTA "CONTINENTE MULTICULTURAL"




Posted by geneton at 10:58 PM

abril 21, 2006

SHAUL LADANY. EIS O NOME DO HOMEM QUE NASCEU DE NOVO. ATLETA QUE ESCAPOU DO MASSACRE NAS OLIMPÍADAS DE MUNIQUE JÁ TINHA ESCAPADO DE UM CAMPO DE CONCENTRAÇÃO NA SEGUNDA GUERRA!

Quem? Um professor de engenharia chamado Shaul Ladany.

O quê ? Fará setenta anos de idade.

Onde? Em Israel.


O aniversário de um professor pouco conhecido dificilmente mereceria se transformar em notícia se não fosse por um detalhe: Shaul Ladany é personagem de uma das mais extraordinárias histórias de sobrevivência do Século XX.

A morte esteve no encalço de Ladany pelo menos quatro vezes. Por quatro vezes, Ladany escapou.





Primeira: judeu nascido em Belgrado, foi mandado para o campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, em 1944, quando tinha apenas oito anos de idade. Passou seis meses no inferno, cenário da morte 50.000 prisioneiros.

Segunda: pegou em armas para lutar pelo Exército israelense na Guerra dos Seis Dias – o ataque-surpresa feito por Israel, a partir do dia 5 de junho de 1967, contra Egito, Síria e Jordânia.

Terceira: maratonista, fazia parte da delegação israelense que foi atacada pelos terroristas palestinos da organização Setembro Negro no dia 5 de setembro de 1972 durante as Olimpíadas de Munique – um dos mais espetaculares atos de terrorismo da história moderna.

Quarta: um ano e um mês depois do pesadelo de Munique, participou da Guerra do Yom Kpur, provocada pelo ataque do Egito e da Síria contra Israel, em outubro de 1973.

“O que eu sou? Um sobrevivente” – resume Ladany. Professor de engenharia industrial da Universidade Ben Gurion, em Israel, pai de uma filha, avô de duas netas, este sobrevivente estará pensando em quê, na noite do aniversário?

”Vivi uma vida turbulenta. Quando a família se reúne, sabe sobre o quê a gente fala? Você não vai acreditar, mas é sobre o Holocausto”, diz. “Infelizmente, tive também a experiência das Olimpíadas de Munique. São lembranças que me acompanharão enquanto eu estiver vivo. Vou pensar sobre Munique no dia dos meus setenta anos, com toda certeza”.

O terror bateu à porta da delegação israelense, na Vila Olímpica, em Munique, às quatro e meia da manhã de uma terça-feira. Oito homens mascarados invadiram o alojamento israelense: eram terroristas da organização Setembro Negro. Queriam chamar a atenção do mundo para a causa palestina.

O treinador de luta Moshe Weinberg, 33 anos, foi morto a tiros no momento da invasão. O levantador de peso Yosef Romano foi a segunda vítima. Os terroristas matariam outros nove atletas israelenses no aeroporto, dentro de dois helicópteros, em meio à desastrada operação armada pelo governo alemão para tentar abortar o seqüestro. Cinco terroristas também morreram.

Horas antes, toda a delegação israelense tinha ido ao teatro, para ver “Um Violinista no Telhado”, uma peça baseada nas histórias de um autor israelense, Sholon Aleichem:

- “Ali, vinte e sete anos depois do fim da guerra, um elenco judaico encenava uma peça de um autor judaico em solo alemão. Parecia um absurdo, porque eu ainda me lembrava da Alemanha da era nazista. O sentimento era de felicidade para todos nós. Tiramos fotos. Nem em nossos piores pesadelos imaginaríamos o que estava para acontecer horas depois”.

Ladany foi despertado por um barulho estranho no alojamento da delegação israelense, o prédio número 31 da Connollystrasse. Quando abriu a porta, na madrugada daquela dia cinco de setembro, viu um homem de pele morena e de chapéu no final do corredor. Era um dos terroristas, mas Ladany não sabia:

- “Notei que algo estava errado quando ouvi o diálogo deste homem com guardas que tentavam convencê-lo a deixar equipes de socorro da Cruz Vermelha entrar no alojamento. Quando alguém pediu que ele fosse “humanitário”, ele respondeu : “Não! Judeus não são humanitários”. Não tenho certeza se ele disse “judeus” ou “israelenses”. Ali, entendi imediatamente que algo terrível estava acontecendo.O terrorista não chegou a me ver”.

O ex-maratonista Ladany – que conseguiu se afastar do alojamento - critica até hoje o governo alemão. Diz que as autoridades desperdiçaram a chance de alvejar os terroristas palestinos porque não queriam que a Alemanha fosse palco de derramamento de sangue:

- Pareceu óbvio que o governo alemão não quis usar a Vila Olímpica – que simbolizava uma atividade pacífica – como cenário de uma operação antiterror. O governo queria mostrar ao mundo que ali estava uma Nova Alemanha – não a Velha Alemanha nazista”.

Ladany foi testemunha de uma cena cinematográfica. Aquartelado numa sala escura da Vila Olímpica, em companhia de colegas da delegação isralense, viu quando os terroristas conduziam os atletas seqüestrados para os helicópteros que os levariam para o Aeroporto. Ao lado de Ladany, um atleta que fora participar das competições de tiro ao alvo fez uma confidência:

- Vi os terroristas no momento em que eles chegaram ao centro da Vila Olímpica. As luzes os focalizaram. Vi os nove reféns.Um estava amarrado a outro. Ao meu lado, estava um colega da delegação israelense. Era atirador. O local onde estávamos era totalmente escuro. O meu companheiro disse: “Oh! Sem problema algum, eu poderia atirar agora nos terroristas!”.

Ladany voltou para Israel no avião que conduzia os corpos dos atletas israelenses mortos nas Olimpíadas:

- “ A bordo do avião, eu pensava: como um idéia tão bonita - um evento olímpico que deveria significar uma trégua e um momento de paz e alegria para todos – pôde se transformar no cenário de um massacre?. É inacreditável”.

O pesadelo de Munique voltou a ser notícia em todo o mundo com o lançamento do filme dirigido por Steven Spielberg. “Munique” descreve – com um ou outro toque de ficção – a operação secreta que Israel armou para eliminar, um a um, os terroristas palestinos que participaram do atentado:

Se fosse convocado, o ex-atleta e ex-soldado Ladany participaria da Operação Vingança?

A resposta vem sem um segundo de hesitação:

- “Sim! Vou contar um fato: ali pelo final dos anos setenta, li um pequeno artigo num jornal dizendo que um dos terroristas envolvidos no massacre de Munique estava levando uma vida luxuosa no Líbano. Recortei a notícia. Em seguida, enviei o recorte para o Ministério de Defesa de Israel. A carta foi endereçada a Ezer Weisman – que viria a ser presidente de Israel, anos depois. Eu disse na carta que, em minha opinião, o longo braço da justiça israelense deveria atingir aqueles que cometeram o terrível massacre de Munique. Meses depois, recebi uma carta do Ministério da Defesa dizendo que minha carta tinha sido encaminhada aos “canais apropriados”. Não tenho ódio contra árabes, não tenho ódio contra muçulmanos. Mas quem comete atos terroristas deve ser punido”.

Ladany não cita nomes, mas o homem tido como um dos mentores do Massacre de Munique, Ali Hassan Salameh, foi morto num atentado armado por agentes israelenses no dia 22 de janeiro de 1979, numa rua chamada Verdun, em Beirute.

O filme “Munique” – dirigido por Steven Spielberg – foi criticado em Israel porque mostrava momentos de hesitação vividos por agentes israelenses encarregados de executar os terroristas envolvidos no ataque aos atletas. Ladany justifica recorre a uma lógica implacável para justificar a retaliação:

”Em primeiro lugar, não acredito que os terroristas tenham tido qualquer hesitação no momento de fazer o ataque. Em segundo lugar: não acredito que os agentes envolvidos na vingança – realizada para evitar a repetição de ataques terroristas – tenham tido qualquer hesitação também. Só lamento que inocentes tenham morrido também na operação vingança” ( Ladany se refere ao pior erro cometido pelos agentes israelenses: um jovem marroquino, chamado Achmed Bouchiki, foi morto com dez tiros à queima-roupa momentos depois de sair do cinema em companhia da mulher, grávida, no final da noite de sábado, 21 de julho de 1973, em Lillehammer, Noruega. Os agentes pensaram que ele era um dos terroristas de Munique. Bouchiki era inocente).

Aaron J. Klein, o autor de um livro recém-lançado no Brasil, “Contra-Ataque”, diz que os terroristas do Setembro Negro desembarcaram em Munique dispostos a cometer “um ataque sem precedentes, avassalador – um teatro de horrores que queimaria na consciência coletiva mundial por gerações”.

O que Ladany diz dessas palavras?

“ Concordo. Agora, neste exato momento, quando você me faz esta pergunta, eu recordo os menores detalhes de Munique: parece que posso ver tudo de novo, como se tudo tivesse acontecido há poucos minutos. Há coisas em nossas vidas que são importantes demais para serem esquecidas”.

Posted by geneton at 06:46 PM

maio 12, 2005

TRÊS CENAS ESTRELADAS POR RUBEM FONSECA

Cena 1

Rio de Janeiro, 2005

Os detetives dos livros de Rubem Fonseca são espertíssimos. Notam tudo. Quem navegou deliciado pelas páginas de um livro como Bufo & Spalanzanni certamente se surpreendeu com a argúcia dos investigadores criados pela imaginação de Fonseca. Mas lamento informar que o próprio Rubem Fonseca não é tão atento : não notou que eu segui seus passos sorrateiramente pelas ruas do Leblon. Fonseca nem desconfiou. O criador não é tão arguto quanto suas criaturas.

Faz pouco tempo: Rubem Fonseca estava na fila do Supermercado Zona Sul, na rua General Artigas. Sozinho. Anônimo. Silencioso. Usava um boné, não para se proteger do sol - porque já eram sete da noite -, mas certamente para se resguardar da investida de algum leitor inconveniente ou, pior, algum repórter intruso, como eu. O horror, o horror, o horror.

Pensei com meus botões: vou fazer uma foto de Rubem Fonseca, a Greta Garbo das letras, o homem que devota um consistente horror a repórteres e fotógrafos. O problema é que minha máquina - amadora - estava em casa. Resolvi acompanhar, à distância, a caminhada de Fonseca pelas ruas, na saída do supermercado. Quem sabe? Se ele passasse em frente ao meu apartamento, eu teria trinta segundos para correr, pegar a máquina lá dentro e voltar para a rua, a tempo de eternizar o flagrante num disquete.

Rubem Fonseca saiu do supermercado, entrou à direita na General Artigas, dobrou à esquerda na Ataulfo de Paiva e seguiu, anonimamente feliz sob a lua do Leblon. Guardei uma distância prudente: fiquei sempre a uns dez passos do homem, para não perdê-lo de vista. Não perdi.

Rubem parou diante de uma banca. Bela imagem: o homem célebre e solitário contemplava as manchetes dos jornais pendurados na banca como se fossem roupas num varal. Mas lamento informar que perdi a foto perfeita. Não deu tempo de ir buscar a máquina.

O homem sumiu de vista, entrou à direita na rua General Urquiza, caminhou em direção ao mar do Leblon. O repórter ficou a ver navios.

É tudo o que Rubem, o fugidio, sempre quis.

Cena 2

Londres, 1997

Quando cruza o Atlântico para falar a platéias estrangeiras, Rubem Fonseca se torna extraordinariamente falante, brincalhão, nada tímido. O Rubem Fonseca que enfrentou uma platéia de leitores - a maioria, brasileiros - num salão do Royal Festival Hall, às margens do rio Tâmisa, em Londres, em junho de 1997 - era o oposto da fera inacessível que ele parece ser.

O palco parecia a materialização de uma miragem: ao lado de Fonseca, outra celebridade arredia, o suposto tímido Chico Buarque de Hollanda, lia trechos do livro que acabara de lançar em terras inglesas.

Temeridade: quando foi concedida à platéia o direito de abordar as estrelas, perguntei o que é que Chico Buarque achava dos críticos que o consideravam um "intruso" entre os escritores. Rubem Fonseca tomou as dores. Não deve ter gostado da pergunta. (anotei: ele vestia um paletó marrom claro, sem gravata. A barba branca e grisalha e a cabeleira rala davam-lhe um ar de ancião). Tirou o charuto da boca e disparou :

- Quero dizer que Chico Buarque sempre foi um escritor - a vida inteira. E é um poeta. Noventa e nove por cento dos críticos elogiaram os livros de Chico. Somente um crítico o tratou como um ''outsider''. Somente um! Nós, escritores, consideramos Chico Buarque um escritor. Em nome de todos os escritores, quero dizer que temos orgulho de ter Chico Buarque entre nós !

Lá fora, os dois ofereceram autógrafos aos leitores. Quando chegou a minha vez, Rubem Fonseca me brindou com uma exclamação que soou algo irritada ("Qual é, oh cara?"). Depois, escreveu no meu exemplar do livro de Chico Buarque:

- Chico é um grande escritor. June,1997.

Guardei a relíquia.

Cena 3

Paris, 1987

Quase, quase, quase. Como diria Geraldo José de Almeida, o locutor da Copa de 70, "por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo". Quase que consegui uma entrevista com Rubem Fonseca. De passagem por Paris, eu soube que ele iria participar de um debate sobre cultura brasileira num auditório do Centro de Cultura Georges Pompidou. Peguei o gravador.

Eis a fera diante de mim, num corredor que dá acesso ao auditório: de gravata, suéter vermelho, sobretudo azul. Faço formalmente, em nome do povo brasileiro, um pedido de entrevista (os repórteres passam a vida na ilusão de que estão falando em nome das multidões). Rubem Fonseca responde com um sorriso malicioso: "Sou tímido" - o que, obviamente, é mentira. Faço nova investida. "Nem sonhar" - ele decreta, para desconsolo do autor do pedido. Pousa a mão sobre meu ombro, faz uma concessão : "Por que é que você não escreve sobre o que ouviu?". Parcialmente recompensado em minha teimosia, ligo o gravador assim que ele começa a falar.

De volta ao Brasil, transcrevo, vírgula por vírgula, as palavras da esfinge e encaminho tudo a Zuenir Ventura - grande amigo de Rubem. Dias depois, Zuenir me diz que Rubem Fonseca tomou um grande susto quando viu que o que tinha dito lá em Paris, a nove mil cento e quarenta quilômetros do Leblon, tinha rendido cento e quarenta linhas - um raríssimo depoimento de nossa Greta Garbo na primeira pessoa do singular.

Os principais trechos :

"Nasci em Juiz de Fora. Lá, aos dois meses de idade, eu tinha uma babá que me levava para passear de tarde. Mas, na verdade, ela ia ver o namorado, o lanterninha do cinema. Ela me sentava, ia namorar e eu via sessões atrás de sessões. Aos três anos, eu já tinha visto vinte mil horas de filme. Fui crescendo. E disse assim: "Quero fazer cinema!". Eu deveria fazer cinema. Mas, quando eu tinha oito anos, me deram uma máquina de escrever. Fiquei com aquela máquina de escrever dentro de casa e querendo fazer cinema. Era difícil...".

"As pessoas me dizem assim: "Ouvi dizer que você lê um livro por dia!". É verdade. Mas vejo três filmes por dia! Vejo um filme atrás do outro".

"Sou um cinéfilo que foi condenado a escrever. Uma vez, Arnaldo Jabor me disse: "Eu queria ser um romancista!". E eu: "Vamos trocar? O que eu queria era ser cineasta!".

"O que o bom diretor de cinema pretende é pensar de uma maneira criativa. Como romancista, sei que o romance cedeu o lugar como manifestação artístico-cultural de massa. Já se disse que Theodore Dreiser (romancista americano, autor de "Uma Tragédia Americana") cedeu lugar nas salas de aula a George Pabst, o grande diretor. É ótimo, é interessante que aconteça. O problema é que, hoje, parece que as pessoas não têm paciência de ficar vendo um filme durante duas horas, sem que haja um intervalo comercial no meio. O Pabst foi substituído pelo anúncio do Creme Ponds! É uma coisa séria".

"O problema principal - e o único que existe nessa coisa de o cinema substituir a literatura - é que a literatura tem mais significados. Do ponto de vista polissêmico, a literatura é superior ao cinema. Vou explicar. Cito um grande filme de um grande cineasta: São Bernardo - de Leon Hirzmann. Todos temos uma grande admiração por Leon Hirzmann, grande cineasta. Quandi vi São Bernardo, eu tinha uma idéia sobre o personagem principal, criado por Graciliano Ramos. Minha mulher tinha uma idéia sobre o personagem. Cada pessoa que tivesse lido o livro tinha uma idéia. Criava o personagem junto com Graciliano Ramos. Isso é a polissemia da literatura. Mas,no grande filme do grande Leon Hirzmann, o personagem era Othon Bastos. Se eu fosse ver o filme pela segunda vez, era Othon Bastos. Era sempre Othon Bastos! Da segunda vez que li São Bernardo, o personagem já era outro, no livro".

"Há uma crença de que fazer um roteiro de cinema é mais fácil do que fazer um romance. Não é absolutamente verdade. É fácil fazer um mau roteiro de cinema. Você pode fazer um roteiro com facilidade. Mas fazer um bom roteiro de cinema é tão difícil quanto escrever um bom romance".

"Um dia, depois de ter escrito alguns livros e ter visto mais cinema, fui fazer uma tradução de um livro de Joseph Conrad chamado "The Nigger of Narcissus". Há, no prefácio, uma frase que não consegui esquecer: "My task is to make you hear. My task is to make you feel. And, above all, to make you see. That`s all. And everything". Minha tarefa é fazer você ouvir. Minha tarefa é fazer você sentir. E,acima de tudo,fazer você ver. Isto é tudo. E é muito".

Posted by geneton at 01:14 AM

janeiro 05, 2005

"DOSSIÊ MOSCOU" : O DIA EM QUE O LOCUTOR QUE VOS FALA VIU A HISTÓRIA ACONTECENDO

Vai fazer vinte anos agora em 2005: um homem até então desconhecido no resto do mundo assumia, em 1985, o comando de uma superpotência - a União Soviética. Chamava-se Mikail Gorbatchev. Ninguém esperava, mas ele viria a se transformar num dos mais fascinantes personagens da história política do século vinte.

O mundo passou a olhar com extrema curiosidade para Moscou assim que Gorbatchev acenou com mudanças no fechadíssimo regime soviético. Durante décadas, o planeta se dividia em dois campos. De um lado, as nações capitalistas. De outro, o mundo socialista, guiado por Moscou.

As reformas prometidas por Gorbatchev tomaram um rumo imprevisto: a União Soviética, um conglomerado de repúblicas socialistas reunidas sob o comando monolítico de Moscou, simplesmente se dissolveu, em dezembro de 1991. A superpotência - que durante tanto tempo funcionou como um contraponto ao poder americano - deixou de existir.

Um a um, regimes comunistas europeus que viviam sob a influência direta de Moscou desmoronaram como num jogo de dominó. O ciclo de reformas iniciado por Gorbatchev só estaria cem por cento completo quando a Rússia pós-soviética finalmente fosse às urnas para eleger um Presidente. É aí que o locutor que vos fala teve a oportunidade (rara!) de ver a História acontecendo “ao vivo” - a um metro de onde me encontrava.

Todo repórter que se preza faz todo dia de manhã o seguinte pedido a São Gutemberg - o padroeiro da palavra impressa: que lhe seja dada a chance de um dia testemunhar um fato histórico.

Um personagem de “O Estrangeiro”, grande romance de Albert Camus, dá, sem querer, uma bela lição de jornalismo: "Quanto mais pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória. Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia poderia, sem dificuldade, passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar".

Pois é exatamente esta a sensação que invade a alma do repórter transformado em testemunha de um acontecimento importante: se tivesse cem anos para descrever o que viu, ele os usaria de bom grado, sem o risco de cometer o pecado do tédio.

O locutor que vos fala viveu uma experiência parecida: como correspondente do jornal O Globo em Londres, fui deslocado para Moscou, em 1996, para fazer a cobertura dos dois turnos da primeira eleição direta para presidente realizada na Rússia depois do fim da União Soviética.

Reuni tudo o que vi e ouvi naqueles dias na Rússia num livro recém-lançado - o “Dossiê Moscou”.

Um pequeno trecho:
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“Acorda, Lenin: eles enlouqueceram!”.

Quem terá escrito palavra de ordem tão bela e tão inútil? Jamais se saberá. Quando os tanques soviéticos chegaram à Tchecoslováquia na quarta-feira, 21 de agosto de 1968, para esmagar a chamada “Primavera de Praga”, um estudante anônimo pichou este grito de protesto num muro.

A Tchecoslováquia - país satélite da União Soviética - estava tentando criar um “socialismo com face humana”. Mas o socialismo de face dura de Leonid Brejnev, o homem-forte da União Soviética, resolveu mandar lembranças, em forma de tanques. Moscou não estava para brincadeiras. Os países-satélites deveriam seguir o figurino do Kremlin.

O bloco soviético só voltaria a falar em “socialismo com face humana” quando um homem que, até então, era um ilustre desconhecido para o resto do mundo assumiu o poder no Kremlin no dia 11 de março de 1985. O cargo de secretário geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas estava vago depois da morte da múmia Konstantin Tchernenko - um clássico representante da gerontocracia que durante décadas mandou e desmandou na União Soviética. Nome do desconhecido: Mikail Sergueivich Gorbatchev, um jovem de apenas 54 anos.

A história deu voltas surpreendentes nos anos seguintes à ascensão de Gorbatchev ao comando do gigante soviético. Todo mundo conhece o resto do enredo: depois de perder o controle sobre o processo de abertura política e econômica, Gorbatchev viu o império soviético sumir sob seus pés, mas entrou para a História como o homem que mudou o rumo do Século Vinte.

O fascinante processo de democratização da Rússia pós-soviética só ficaria completo no dia em que o país fosse às urnas para eleger um presidente pelo voto direto. O cenário estaria completo se o próprio Gorbatchev, o último dirigente da finada União Soviética, comparecesse às urnas, para votar como cidadão e ser votado como candidato a Presidente da Rússia, uma cena que jamais passou pela cabeça dos que o antecederam no comando do império soviético - Vladimir Ilyitch Lênin, Josef Stalin, Nikita Kruschev, Leonid Brejnev, Yuri Andropov e Konstantin Tchernenko.

As peças do quebra-cabeças pareciam se juntar com a perfeição possível: a Rússia convocara para 1996 as primeiras eleições diretas para presidente depois da extinção da União Soviética; Gorbatchev se lançara candidato. A História se movia de novo. Um ciclo extraordinário iria se fechar.

O repórter que quisesse testemunhar uma daquelas cenas que só se repetem de mil em mil anos deveria voar, urgente, para Moscou. Porque a primeira eleição direta para Presidente na história da Rússia pós-soviética marcaria, por todos os motivos, o início de uma nova era.

O dia que demorou tanto para chegar estava se aproximando. Liberdade, abre as asas sobre o Kremlin: dezesseis de junho de 1996 - um domingo - foi a data marcada para a eleição. A sede do desmoronado império soviético iria às urnas. Se acordasse agora, às vésperas da eleição, o que Lenin diria?

Ao ver as multidões se dirigindo às cabines de votação com o título de eleitor nas mãos, saudosistas da gerontocracia soviética teriam todas as razões para pichar na porta do mausoléu : “Acorda, Lenin ; eles enlouqueceram”. Porque o mundo parecia ter enlouquecido: já não havia lugar para partido único, já não havia lugar para imprensa controlada, já não havia lugar para “economia planificada”, já não havia lugar para “comitês centrais”. A pichação do estudante - que servira como um grito em defesa da abertura política na Tchecoslováquia de 1968 - poderia ser usada, na Rússia de 96, como slogan a favor da Velha Ordem.

Durante décadas, corações e mentes de militantes políticos de todo o mundo - tantos tão bem intencionados - se voltaram para Moscou. Que motivos explicariam o fascínio que as muralhas do Kremlin exerceram por tanto tempo sobre os intelectuais engajados e jovens que queriam mudar o mundo?

- “Um sentimento de culpa de classe média, uma insatisfação vaga com o estado das coisas, um ódio incomum contra o status-quo, um desejo de escandalizar o conservadorismo dos pais e o não tão ilusório sentimento de que seria possível se envolver diretamente em questões mundiais” - é o que diria, em 2002, no livro “Koba the Dread”, o escritor inglês Martin Amis, ao listar as possíveis razões que levaram tantos a aderir à bandeira vermelha.

A “sociedade sem classes”, em que não haveria exploração do homem pelo homem, se revelara uma ficção histórica. A classe operária não foi ao paraíso. O “socialismo real” exibiria uma folha corrida marcada por perseguição a dissidentes, imprensa manietada, partido único, “economia planificada”, o Estado reinando absoluto sobre o indivíduo.

A História entraria em cena novamente em Moscou. O locutor-que-vos-fala queria estar na primeira fila, na ala das testemunhas oculares.

*********

Chega o grande dia. Moscou assiste a uma cena jornalisticamente improvável. As pesquisas apontam como campeões de votos neste primeiro turno o comunista arrependido Boris Yeltsin e o comunista renitente Gennady Ziuganov. Mas para onde correm os repórteres? Que Yeltsin que nada. Que Ziuganov que nada. Todos querem testemunhar um pequeno gesto que carrega um imenso peso simbólico: o instante em que o último líder da já extinta União Soviética - Mikail Gorbatchev - se encaminhará para a cabine de votação. Quando Gorbatchev depositar o voto na urna, um longo, tumultuado e surpreendente processo estará concluído.

Meninos, eu vi. Mikhail Gorbatchev, o estadista que provavelmente será lembrado daqui a cem anos por ter iniciado a abertura da cortina de ferro comunista para a democracia, foi personagem de uma cena histórica no início da tarde de um domingo, um dia de céu azul em Moscou: era exatamente meio-dia e quarenta e nove minutos quando Gorbatchev, candidato a presidente, caminhou em direção a uma urna eletrônica instalada numa sala do primeiro andar do Instituto de Química e Física da Academia de Ciências da Rússia, num bairro chamado Colina dos Rouxinóis.

A cena que demorou setenta e nove anos para acontecer durou apenas quarenta e cinco segundos - tempo que Mikail Gorbatchev precisou para cumprir o ritual do voto na cabine. Quem estava naquela sala do Instituto de Química testemunhou uma cena inédita: jamais um líder máximo da União Soviética participou de uma eleição direta. Nenhum dos antecessores de Gorbatchev no comando do hoje extinto império soviético (Lenin, Stalin, Kruschev, Brejnev, Andropov e Tchernenko) encarou o teste das urnas.

Sobriamente vestido, com um paletó escuro e uma camisa azul-clara, acompanhado pela mulher, Raisa Gorbatchev, o homem que chamou a atenção do mundo para a glasnost exibia um sorriso protocolar de candidato quando chegou ao Instituto de Física e Química. Antes de depositar o voto na urna, posou para os fotógrafos, com ar confiante de quem espera um milagre - mas, no íntimo, certamente sabia que eleição não se ganha com milagre, mas com voto. A campanha se encerrara. Já não haveria tempo para operar o milagre da multiplicação dos votos.

O Gorbatchev que agora caminha rumo à cabine de votação é outro homem. Era como se, por um instante, o peso do iminente naufrágio eleitoral fosse maior do que a certeza de que um ciclo histórico se fechava ali. Quando Gorbatchev sai da sala, é abordado por repórteres que disputam no grito o privilégio de uma declaração.

Em meio ao tumulto formado pelo empurra-empurra de fotógrafos, repórteres, cinegrafistas e seguranças, consigo me aproximar do homem.

Os repórteres seriam brindados com frases épicas, apropriadas para a ocasião. O homem que mudou o curso da história do século XX enfrentava com estoicismo a iminência de um naufrágio eleitoral:

- A primeira vitória eu já obtive: é a realização das eleições. Uma batalha só é considerada perdida quando o próprio comandante renuncia a ela.

- Nada pode me humilhar - nem as pesquisas, nem o poder. Nenhuma força pode humilhar um homem se ele se sente confiante, mantém a dignidade e a defende. Vocês têm diante de si um homem assim.

Termina a entrevista improvisada. Os repórteres se dispersam. Cinegrafistas recolhem suas câmeras. Fotógrafos e repórteres voltam aos carros de reportagem. Insisto em seguir - a uma pequena distância - os passos de Gorbatchev. Quero testemunhar até o fim a aparição pública do homem que mudou a História do século XX.

Tenho, então, a chance de assistir a uma cena comovente. Livre do assédio dos repórteres, Gorbatchev começa a caminhar - cabisbaixo - por uma alameda em direção a um portão de ferro. Quando cruzar o portão de ferro, sumirá de vista. O homem que já comandou uma superpotência vive, ali, naquela pequena caminhada, um momento de intensa solidão.

Depois de percorrer uns trinta metros, ele apressa o passo, separa-se da comitiva. Permanece cabisbaixo. Um observador rigoroso flagraria ali, nas feições de Gorbatchev, aquela “dor atônita dirigida contra todo o ordenamento das coisas” que o dom Fabrizio de “O Leopardo” notou no olhar de um coelho abatido. Aproximo-me o máximo que posso, com minha máquina fotográfica. É tudo o que posso fazer. Registro o momento. As feições de Gorbatchev exibem um ar grave.

O dia é de festa, a Rússia vai se lembrar dessas eleições, mas, ali, naquela alameda, o homem que, em última instância, tornou possível a reviravolta carrega, no rosto, as marcas de uma impenetrável melancolia. Em que ele estaria pensando, enquanto caminhava, silente, com o olhar voltado para o chão? Àquela altura, que diferença faria saber? A História já tinha mudado de rumo, independentemente do que Gorbatchev poderia pensar.

Um mundo desabava ali - não com um estrondo nem com um suspiro, como poderia imaginar o poeta, mas com um silêncio enigmático.

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Posted by geneton at 10:59 PM

maio 16, 2004

UM PROFETA DO APOCALIPSE DENUNCIA : O COMPUTADOR PODE MATAR A HISTÓRIA



LONDRES - O sinal de alarme disparou.Pelo visto,não vai deixar de fazer zoada nem tão cedo. Historiadores e arquivistas ingleses resolveram botar a boca no trombone,para denunciar,desde já,um problema que pode ter consequências devastadoras para o estudo da História no futuro próximo : o uso amplo,geral e irrestrito de computadores pelos governos pode ter facilitado em mil por cento a comunicação, mas criou um problema que exige solução imediata,antes que seja tarde.


O motivo de tanta preocupacao dos historiadores e arquivistas : documentos que só existem na memória de um computador podem se perder para sempre quando esta maquina maravilhosa se transformar em velharia inútil . Ninguém precisa ser especialista em informática para saber que novos modelos nascem,reinam e morrem com com a velocidade de um cometa. Computadores que,há apenas cinco anos,eram o supra-sumo da modernidade hoje nao encontram usuários nem no ferro-velho.O que acontecerá com a informacao estocada nestas maquinas ?

QUE SEGREDOS GUARDA A MEMÓRIA
DOS COMPUTADORES DOS GOVERNANTES ?

Os historiadores tremem nas bases ao imaginar : o que estará estocado na memória do computador usado pelo primeiro-ministro britânico ou o presidente dos Estados Unidos - por exemplo ? Vai tudo se perder um dia ? Quando mensagens e documentos eram feitos de papel, os historiadores podiam respirar aliviados porque sabiam que, um dia, iriam deitar os olhos nesta papelada. Todo ano,no mês de janeiro,o governo inglês libera à consulta pública uma montanha de documentos oficiais que durante anos - em geral,três décadas - ficaram fora do alcance de pesquisadores,historiadores e jornalistas. Lá estão,por exemplo,relatórios confidenciais de todo tipo sobre política interna e externa. Tudo foi escrito em papel e guardado em estantes. E os relatórios confidenciais que hoje piscam na tela dos computadores dos governantes existirão daqui a trinta anos ? Como se sabe,um simples e-mail do presidente para um assessor é material de interesse historico futuro - assim como os bilhetinhos de Jânio Quadros,por exemplo.

SEM ESCRITA,NAO EXISTE HISTÓRIA

Um dos primeiros a levantar a voz para denunciar os preocupantes efeitos colaterais da revolução informática foi o historiador John Vincent, professor da Universidade de Bristol,Inglaterra. Vincent faturou manchete nos jornais ao dizer que o mundo caminha para uma nova pré-história - quando não havia a escrita. O alerta do professor é claro : o estudo da História - diz ele - se baseia há seculos em documentos escritos. Se a ''comunicação eletrônica'' de hoje dispensa a produção de documentos impressos, então o mundo pode estar vivendo o início de uma nova prehistoria.''Comunicação eletrônica significa não-História'',diz este profeta do apocalipse.
Agora,os gritos de alerta comecam a vir de todos os lados.O jornal conservador Daily Telegraph - um dos mais importantes da Inglaterra - lamentou : ''Historiadores do futuro talvez jamais tenham a chance de descobrir, exatamente, o que se passou entre o primeiro-ministro John Major e o presidente americano George Bush durante a Guerra do Golfo. E o que dizia o e-mail trocado entre o gabinete de Margareth Thatcher e o Salão Oval da Casa Branca durante a Guerra das Malvinas ?'', pergunta,preocupado,o jornal. ''Depois que a era eletrônica criou o escritório sem papel, espalha-se o temor de que arquivos vitais possam desaparecer.'' .
Quando documentos que hoje sao confidenciais forem liberados à consulta publica daqui a trinta anos,''o software usado originalmente pode ter sido substituído duas ou três vezes por novas tecnologias. Qual será o destino de todas as informações processadas e arquivadas no sistema original ?'' - insiste o Daily Telegraph.

TRINTA ANOS : TEMPO DEMAIS PARA
A IMPALPÁVEL MEMÓRIA ELETRÔNICA

Um executivo do Arquivo Público britânico - Ian MacFarlane - diz que,ao contrário do que ocorre hoje com os documentos impressos,não é possível esperar trinta anos pela liberação de documentos guardados na memória dos computadores de hoje, pela simples razao de que daqui a três décadas estas máquinas nem estarão funcionando.Já terão sido substituídas.Gigantes do setor de informática, como a Apple e a IBM, já anunciaram que vão preservar para sempre pelo menos um exemplar de cada geração de computador , para evitar que perdas irremediáveis aconteçam. Mas os arquivistas e historiadores acham pouco. A preservação de um exemplar de velhas máquinas como alternativa de salvação pode ser uma rima,mas não é a solução. O problema é novo.Pede uma solução nova - que,na prática,ainda não foi encontrada.
Por enquanto,assustados,os profetas do apocalipse tentam se acostumar à idéia de que os computadores,quem diria, podem dar um golpe mortal na História.

(1997)

Posted by geneton at 11:25 PM

abril 14, 2004

UM MANÍACO MATA O SENADOR QUE IA SER PRESIDENTE : "PODEM ME MANDAR PARA A CÂMARA DE GÁS. MAS JÁ SOU FAMOSO"

Pesquisador que passou dezesseis horas interrogando agora o homem que matou Robert Kennedy nas eleições primárias de 1968 desmente a versão histórica sobre o real motivo do crime


LONDRES - Um jovem político de 42 anos de idade,pai de dez filhos,é abatido a tiros,à queima roupa,no momento em que comemorava a vitória nas eleições primárias do Partido Democrata na Califórnia - um passo importante na escalada rumo á presidência dos Estados Unidos. A temporada de eleições primárias traz de volta à lembraça a tragédia ocorrida nos primeiros minutos da quarta-feira,cinco de junho de 1968 - o dia em que um imigrante palestino chamado Sirhan Bishara Sirhran apertou o gatilho de um revolver calibre 22 a um passo de distância do senador Robert Kennedy,no hotel Ambassador,em Los Angeles.

Obcecado pela tragédia,um pesquisador americano chamado Dan E. Moldea - 46 anos,autor de três livros sobre o crime organizado - resolveu reinvestigar o atentado contra Kennedy do início ao fim.''Hoje,posso dizer que não há ninguem que saiba tanto sobre o atentado quanto eu, porque fui a única
pessoa a ouvir todas as partes envolvidas'',diz esta encarnação americana do Sherlock Holmes.''A conclusão a que cheguei é baseada apenas em fatos''.


Paciente,Moldea revirou a documentacao liberada 'a consulta publica,tracou o paradeiro de testemunhas oculares,cruzou todas as versoes possiveis.A garimpagem produziu pelo menos uma descoberta surpreendente : num gesto que,se fosse cometido no Terceiro Mundo,provocaria exclamacoes de espanto,o Departamento de Policia de Los Angeles,o celebre LAPD,simplesmente incinerou 2.41O fotos tiradas durante as investigacoes sobre o assassinato do senador. O autor da investigacao tinha tudo para acrescentar um novo capitulo à já vastissima coleção de teses paridas pela ''paranoia conspiratoria'' que corre solta quando o assunto e' Kennedy. A conclusao a que Moldea chegou,no entanto,vai decepcionar os milhoes de fas de teorias conspiratorias. Não houve complô algum.

O pesquisador que,quase tres decadas depois,resolveu fazer a investigacao final sobre o assassinato bateu na porta da Corcoran State Prison,a penitenciaria de seguranca maxima onde Sirhan cumpre prisao perpetua. Um irmao de Sirhan facilitou os contatos.O que o assassino do senador Kennedy diria hoje sobre o crime ? Vinte e sete anos atras das grades teriam produzido que mudancas na mente do homem que interrompeu a tiros o voo do senador Kennedy rumo 'a Casa Branca ?


''Eu tinha bastante admiracao por Kennedy,como um ser humano gentil que ele era'',disse o assassino do senador.''Poderia ter feito campanha politica por ele.Mas nao suportava ve-lo se preocupar com os negros ou com os despossuidos,mas nao com os palestinos.Eu me lembro de te-lo visto falando sobre o envio de cinquenta jatos(militares) para Israel.Neste momento,comecei a sentir mudanca nos meus sentimentos em relacao a ele.Antes,eu o via como um modelo'',confessa Sirhan.

Moldea faz aqui o primeiro reparo historico.A versao corrente aponta uma motivacao politica para o atentado.A investigacao agora concluida desmente :''Ao fim da minha investigacao,ficou claro que,no momento em que cometeu o atentado,Sirhan Bishara Sirhan sequer sabia das posicoes de Kennedy sobre a ajuda militar a Israel'',diz.''Nao se deve acreditar nem por um segundo que Sirhan tenha cometido o atentado para se vingar contras as posicoes de Kennedy em relacao ao Oriente Medio'',corrige o pesquisador.''Sirhan.na verdade,sempre foi um cristao que demonstrou escasso interesse em se envolver com causas ou grupos.Preferia gastar o tempo livre em corridas de cavalo''.

O HOMEM QUE MATOU ROBERT KENNEDY
TENTARA' SAIR DA CADEIA

O assassino de Robert Kennedy vai apresentar nos proximos meses 'a justica americana um novo pedido de liberdade condicional,depois de ver todos os seus pedidos anteriores rejeitados.O ultimo ''nao'' veio em l994.A Justica considera que Sirhan ''ainda nao admite a enormidade do crime que
cometeu''.
Hoje,quase tres decadas depois de ter cometido um crime que chocou o mundo,Sirhan Bishara Sirhan insiste que nao
consegue se lembrar do que aconteceu naquele inicio de madrugada no Hotel Ambassador :

-Nao me lembro de ter visto Robert Kennedy.Nao me lembro de ter atirado.Tudo o que me lembro e' que alguem me prendeu pelo pescoco.Nao me lembro de nada.Isto nao ficou na minha mente.Nao me lembro de ter pegado o revolver nem de ter dito para mim :"Vou matar Robert Kennedy''.Nao me lembro de ter sentido a adrenalina(...)'',garante Sirhan.

Moldea contesta : ''Depois do interrogatorio,cheguei 'a conclusao de que Sirhan e' capaz de fazer ou dizer qualquer coisa agora para sair da prisao,como,por exemplo,repetir que nao se lembra de nada''.


UMA ORDEM MACABRA E' REPETIDA
DOZE VEZES NUM PEDACO DE PAPEL

Depois de ouvir amigos,conhecidos,parentes e ex-patroes de Sirhan,alem de interrogar exaustivamente o proprio assassino,Moldea assegura,convicto :

-O motivo unilateral do crime foi tao somente o desejo de Sirhan de provar a ele mesmo e a todos os que o conheciam que ele tinha valor...Sirhan queria que todos soubessem quem ele era.Todos seriam forcados a reconhece-lo''.

Numa anotacao apreendida pela policia,Sirhan escreve doze vezes uma ordem macabra,num pedaco de papel.Textualmente : ''Robert Kennedy must soon die die die die die die die die die die die die''(''Robert Kennedy deve logo morrer morrer morrer morrer morrer morrer morrer morrer morrer morrer
morrer'').

Depois do interrogatorio a que submeteu o assassino,o pesquisador Moldea da' um diagnostico simples : ''Sirhan admirou Kennedy durante anos.Mas,aos seus olhos,Robert Kennedy tinha se transformado num
simbolo de tudo o que ele,Sirhan,achava que jamais iria alcancar.Como um homem que,injustamente,ja' se considerava fadado ao fracasso na vida aos vinte e quatro anos de idade,Sirhan decidiu,entao,que deveria deixar uma marca - ainda que fosse atraves de um ato tao violento e tao terrivel''.

A investigacao serviu de base para um livro
de 342 paginas chamado ''The Killing of Robert Kennedy : An Investigation of Motive,Means ans Opportunity'',recem-lancado em Londres sob elogios da imprensa inglesa. Dan E.Moldea aposta que Sirhan engendrou uma explicacao politica para o atentado - assim como o lapso de memoria - porque quer produzir atenuantes para o gesto que cometeu.O autor do atentado aposta tudo no pedido de liberdade condicional que fara' em l996.

A ultima linha do relato de Moldea e' uma afirmacao direta e taxativa :
-Sirhan Bishara Sirhan assassinou,conscientemente,o senador Robert Kennedy.E agiu sozinho.

Quando caminhou para o Hotel Ambassador no final da noite de quatro de junho de l968 com um revolver escondido no bolso,para transformar em tragedia uma eleicao primaria igual 'as que se realizam agora nos Estados Unidos,Sirhan Bishara Sirhan queria chamar a atencao do mundo para si mesmo.
Dan E. Moldea,o pesquisador que fez o papel de detetive,prefere esquecer a obsessiva alegacao de Sirhan de que nao se lembra de nada ainda hoje.Para Moldea,a chave de tudo pode estar na frase terrivel que Sirhan Bishara Sirhan disse uma vez na prisao :

- Agora eles podem me mandar para a câmara de gás.Mas já sou famoso. Consegui em um dia o que Kennedy passou a vida inteira para conseguir.


(1996)

Posted by geneton at 12:18 AM

março 28, 2004

O NOME : VERNON WALTERS.MAS PODEM CHAMÁ-LO DE CAPETA,DIACHO,MEQUETREFE

Se nomes próprios pudessem ser traduzidos , qual seria o significado de Vernon Walters ? Quem se opôs ao golpe militar de 1964 responderia de bate-pronto : Vernon Walters quer dizer o cafute, o cambito,o capeta, o coisa-ruim, o diacho, o esconjurado, o mequetrefe,o mofento,o tinhoso. Em uma palavra : o demônio.

O coronel que,durante a conspiração que derrubou João Goulart,desempenhava o papel de adido militar da embaixada dos Estados Unidos entrou irremediavelmente para a história do movimento militar de 1964 como símbolo de conspiração.

Procuro o general Vernon Walters para uma entrevista que seria gravada num cenário apropriado : um salão da Biblioteca do Exército,no prédio que já foi sede do Ministério da Guerra,no centro do Rio de Janeiro.

O general tinha feito uma viagem-relâmpago ao Brasil,para divulgar um livro autobiográfico(“Poderosos & Humildes”). Imagino que a figura lendária do esconjurado,o mofento,o cafute de 1964 vá se materializar em minha frente com o peito ornamentado de condecorações de todo tipo. Afinal, é assim que ele aparece,impávido,na capa do livro.

Surpresa : o homem desembarca na porta de entrada do prédio numa cadeira de rodas, embalada por um sobrinho. Problemas na articulação dos joelhos tinham nocauteado os movimentos do militar que um dia fez carreira nos campos de batalha : Walters lutou na Europa durante a Segunda Grande Guerra e esteve no Vietnam,na década de sessenta.

Os trajes civis do mequetrefe são discretos : a farda deu lugar a um paletó marrom,uma camisa amarela,uma gravata estampada. Poliglota que falava francês,espanhol,italiano,alemão,holandês e russo, Walters fazia questão de conduzir a conversa em português.

O forasteiro que tentasse arrancar de Walters segredos sobre os bastidores do movimento que tirou o presidente João Goulart do poder era brindado com uma frase de efeito. O cafute trazia no bolso do colete uma frase de efeito : dizia que um “coronel americano inexperiente em golpes de estado” (como ele se auto-intitulava) não teria grandes lições a dar a generais brasileiros razoavelmente habituados a derrubar presidentes.

Insisto. Walters abre um flanco . Mas é parcimonioso na hora de ceder a pressões de bisbilhoteiros profissionais. Tira uma cena do fundo do baú da memória : reconhece que meteu o bedelho em “assuntos internos” brasileiros durante um almoço com um militar , nos dias que se seguiram à quartelada de 1964. O militar – que, na lembrança de Walters, era Emílio Garrastazu Médici - deu-lhe uma notícia quentíssima : o ex-presidente Juscelino Kubitscheck iria ser cassado. Walters contra-argumentou : a repercussão da cassação seria desastrosa no exterior,porque,fora do Brasil,”Juscelino é a imagem de Brasília”. Mas a cassação,disse-lhe o militar de alta patente,estava “assinada”. Era irreversível. Lá estava o adido militar da embaixada americana exercendo plenamente a função extra-oficial de palpiteiro. Deve ter cumprido o papel em outras situações – que preferiu manter em segredo. Não se deve esquecer que Walters passou a vida manuseando segredos : chegou a ocupar,por anos a fio,o posto de vice-diretor-geral da CIA,depois de deixar o Brasil. Depois de ouvir o vozeirão do general descrever a história da cassação de JK, São Gutemberg,o Santo Protetor dos Repórteres,sopra no meu ouvido : “A história é boa,mas este general deve estar escondendo o jogo. Seja insistente. A insistência é a alma do negócio. Segredo só é a alma do negócio para empresários e generais. Para um repórter,a alma do negócio é outra . Avante, soldado desarmado !”.

Vou colhendo pequenas vitórias no campo de batalha verbal. O cafute faria outra concessão à minha insistência : diria que manteve segredo durante décadas sobre uma impressão que guardou do presidente João Goulart depois de uma audiência,no Rio de Janeiro,em companhia do então embaixador americano,Lincoln Gordon. Os dois – adido e embaixador – relataram ao presidente a gravidade da crise dos mísseis cubanos : fotos aéreas comprovavam que a União Soviética poderia usar Cuba
como base de lançamentos de mísseis contra os Estados Unidos. Goulart fez com a mão um gesto que Walters interpretou como uma indicação de apoio a uma rápida ação americana contra a ameaça soviética. Que ação seria esta ?
Walters diz que,no carro,na viagem de volta à embaixada,imaginou que o gesto de Goulart poderia ser traduzido como “bomba atômica”.

Fica o registro : informações importantes – sobre até onde iria o apoio de um presidente brasileiro a uma eventual reação americana contra a instalação de mísseis soviéticos em solo cubano – nem sempre são cristalinas,indiscutíveis,pétreas. Podem depender da interpretação de um simples gesto com a mão. Política pode ser mímica. Assim caminha a humanidade.

O general de pijama – ou de terno – reconhece que os Estados Unidos iriam, sim, fazer “alguma coisa” se a crise de 1964 descambasse para uma situação de guerra civil no Brasil. Bastaria que os soviéticos tentassem, por exemplo,”abastecer um dos lados em luta”.

Como não estava aqui em 1964 para ir passear no Maracanã, Walters tratou de reunir informações sobre a crise política brasileira. Diz-me que tinha “quase certeza” de que o movimento militar seria deflagrado no dia 31 de março de 1964. A suspeita era tanta que ele aconselhou o embaixador americano a cancelar de última hora uma viagem ao Recife para inauguração de casas populares construídas com dinheiro americano . Assim foi feito : o embaixador desistiu da viagem ao Recife. Goulart terminaria partindo para o exílio em Montevidéu, derrubado pelos militares.

Walters faria reminiscências pessoais sobre o amigo Castelo Branco. Os dois se conheceram nos campos de batalha na Itália,na Segunda Guerra. O primeiro militar a ocupar o poder depois do golpe de 64 chamou Walters para um almoço – a dois - no dia em que assumiu a Presidência da República. A deferência dá uma idéia da proximidade entre os dois. Quando Castelo deixou o governo, chamou Walters para um jantar. O adido faz uma pequena confissão : diz que ouviu Castelo Branco dizer que um dos problemas do Brasil eram os Presidentes que,depois de aboletados no Poder,relutam em entregar o cargo. O primeiro presidente da linhagem militar cumpriu o que disse : passou adiante o Poder – obviamente, a outro militar,o general Costa e Silva. O povo, como se sabe, não era chamado a opinar.

Quando estava na Guerra do Vietnam, Walters soube da morte de Castelo Branco,num acidente de avião. Não teve dúvida : ordenou ao capelão que rezasse uma missa pelo brasileiro,numa base militar, em meio ao conflito no sudeste asiático.

Termina a entrevista. O general desliza a bordo de uma cadeira de rodas pelos corredores da antiga sede do Ministério da Guerra. Cumpriu o ritual a que se habituara há décadas : concedeu a um repórter migalhas das toneladas de informações que armazenou numa memória freqüentemente citada como “prodigiosa”.

O sobrinho de Walters precisa da ajuda de dois soldados para tirar o homenzarrão da cadeira de rodas para o banco traseiro de um carro. O militar que povoa a galeria de personagens de 1964 como a face oculta do “imperialismo americano” despede-se com um aceno. Já escureceu no Rio.
A batalha verbal deixa pequenas escoriações no repórter – que, como sempre, sai de cena certo de que não conseguiu tudo o que queria. Recolho as armas : o gravador,a máquina fotográfica, o bloco de anotações. Bato em retirada. A fortaleza do general permanece tecnicamente intacta.

Dez dias depois, na segunda semana de fevereiro de 2002, o cafute, o cambito,o capeta,o coisa-ruim,o diacho,o esconjurado,o mequetrefe,o mofento,o tinhoso do imaginário de 1964 estava morto, num quarto do Good Samaritan Medical Center, em West Palm Beach, Flórida.

Tinha 85 anos de idade, quase dois metros de altura.

E uma montanha de segredos.

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(2004)

Posted by geneton at 12:16 PM

março 11, 2004

OS BASTIDORES DA FÁBRICA DE "ESTRELAS"

LONDRES - Começa assim : num belo dia de primavera,o telefone toca 'as onze da manha.Do outro lado da linha,uma voz aveludada anuncia,em tom ligeiramente solene : ''Bom dia ! Voce foi indicado para....''. A palavra ''indicado''(''nominated'',em ingles) lembra,na hora,aquelas festas de entrega do Oscar: ''The nominated are....''.Por uma milesimo de segundo,voce pensa,com seus botoes : '' E' a gloria,ainda que tardia ! A Europa se curva diante do Brasil !''.O delirio se desfaz rapidamente,porque voce jamais passou diante de uma camera de cinema.A festa do Oscar ja' acabou ha' seculos.A voz aveludada esclarece que voce foi ''indicado'' para entrevistar Scott Wolf ao meio-dia e meia da quinta-feira na suite 1132 do Saint James Court Hotel,no numero 45 da Buckingham Gate - endereco nobre,a um passo do Palacio de Buckingham.Otimo.Mas uma duvida devastadora paira no ar : quem e' Scott Wolf,pelo amor de Deus ? Por cortesia,voce livra a moca de voz aveludada do constrangimento de ouvir a pergunta. Corre,entao,para o Dicionario de Cinema.Nada.Nem uma linha sobre nosso heroi. Voce se lembra daquele escritor ingles - G.H.Chesterton - que disse,no inicio do seculo :''O jornalisno consiste basicamente em dizer ''Lorde Jones morreu'' a pessoas que nunca souberam que Lorde Jones estava vivo''.Quem sabe nao tera' chegado a hora de adaptar a maxima 'as premencias deste final de milenio : fazer jornalismo e' entrevistar o famoso Scott Wolf sem jamais ter imaginado que Scott Wolf existisse.

Horas depois do telefonema,chega um novo convite : voce e' esperado para a avant-premiere de ''White Squall'',o novo filme de Ridley Scott(o ingles que dirigiu sucessos como ''Alien'',''Blade Runner,o Cacador de Andoides'' e ''Thelma e Louise'').O filme vai ser exibido para jornalistas na sala de projecao de uma produtora na Dean Street,uma transversal da Oxford Street,no centro de Londres.Um fax chega com os detalhes.O misterio comeca a se desfazer : Scott Wolf -um ator de vinte e sete anos - e' um dos astros do filme. Um dia depois da avant-premiere, o famoso Scott Wolf estara' 'a espera dos jornalistas ''indicados'' na suite do hotel nas vizinhancas do palacio da Rainha Elizabeth Segunda.

Martin Amis,o mais incensado escritor ingles da geracao que hoje transita pelos quarenta anos de idade rumo ao meio seculo de vida,viajou uma vez para Nova Iorque para entrevistar Madonna,mas a estrela nao quis recebe-lo.Amis nao desistiu.Primeiro,morreu de rir da pompa ridicula que cercou o lancamento daquele livro de Madonna em poses provocativas.Depois,produziu um longo artigo para dizer que o grande assunto hoje nao e' o artista,o cineasta ou o escritor - mas a maquina publicitaria que os cerca.Acertou na mosca.O publico nem sempre sabe,mas os bastidores,em geral,sao mais interessantes que as declaracoes da estrela da vez .O nome da estrela da vez e' Scott Wolf.
Se algum forasteiro ouvisse os cumprimentos trocados por jornalistas na sala de exibicao antes do inicio da avant-premiere certamente imaginaria que ali estavam legitimos representantes do jet set internacional : ''E ai ? Como e' que foi a Sharon Stone ?''.''Nao fui.Mas deu pra fazer Susan Sarandon - uma simpatia''.''E Robin Williams ? Vem ou nao vem a Londres ?''. Os jornalistas revivem ali a cena surrealista que encenam incontaveis vezes durante o exercicio da profissao : falam de celebridades como se fossem velhos intimos de cada uma. Nao sao,obviamente. Frequentam,na condicao de entrevistadores,suites presidenciais de hoteis de cinco estrelas em que jamais,sob hipotese alguma,poriam os pes em missao particular,por absoluta insuficiencia de fundos bancarios. A reciproca e' verdadeira : celebridades tratam os jornalistas como se fossem amigos de infancia. Astros diplomados no jogo sabem como conquistar simpatias imediatas : Paul McCartney faz questao de tratar os entrevistadores pelo primeiro nome,um sinal de intimidade que,em situacoes normais,os ingleses so' dispensam a velhos conhecidos.Ali McGraw -aquela atriz de ''Love Story'' - deu o endereco,pessoal,a um reporter brasileiro,na contracapa de um livro,depois de uma entrevista.Se o reporter,acometido de uma crise de otimismo,resolvesse pegar um aviao rumo ao endereco de Miss McGraw em busca de emocoes extra-jornalisticas seria,com toda certeza,enxotado por segurancas do porte de Adilson Maguila ainda na porta da mansao. E' tudo uma grande festa,feita de interesses mutuos.O jogo e' aberto : a distribuidora oferece ao jornalista ''indicado'' a chance de entrevistar um astro,porque quer ocupar espacos nos jornais ou tempo nas teves.O jornalista aproveita a chance porque,quem sabe,pode obter uma boa entrevista.Quem dispensaria a chance de um encontro exclusivo,sem a presenca de intrusos,com o genio Woody Allen,por quarenta cronometrados minutos,na suite de um hotel com vista para o Hide Park ? Ninguem.O problema e' que nem sempre os entrevistados sao do primeirissimo time no ranking dos campeoes de preferencia.Para cada Wood Allen que cai do ceu,ha' dez roteiristas ou produtores ou astros coadjuvantes que nem os proprios jornalistas conhecem.Mas o sentimento comum e' de que vale a pena arriscar.Quem sabe nao estara' ali um futuro Stanley Kubrick ou o Dustin Hoffmann do ano dois mil ?

O NOVO TOM CRUISE ENFRENTA
UM NAUFRAGIO EM ALTO MAR

Comeca -afinal- o novo filme de Ridley Scott.Minutos depois de iniciada a projecao,um dos jornalistas convidados dorme um sono solto.Morfeu ronda a sala. Mas as cenas de catastrofe na tela despertam os sonolentos.Ainda sem titulo em portugues,com lancamento previsto para o Brasil em junho,o filme conta a historia de dezesseis adolescentes que partem em viagem de instrucao em um barco comandado por um velho lobo do mar,vivido por Jeff Bridges.A historia e' baseada em fatos reais.Toda a experiencia do capitao nao impede que o barco va' parar em meio a uma tempestade cortada por raios e trovoes.''White Squall'' -o titulo do filme - e' o nome da tempestade.Filmadas em um grande tanque,em meio a ondas gigantescas provocadas por um motor,as cenas do naufragio sao de tirar a respiracao.Seis tripulantes - quatro alunos,um oficial e a mulher do capitao - morrem na tempestade.A tragedia vai para as manchetes.O capitao termina no banco de reus.O julgamento vira dramalhao tipico de Hollywood.E' a versao maritima de ''Sociedade dos Poetas Mortos'' ou de ''Brubaker'',aquele filme em que Robert Redford faz o papel do diretor que tenta humanizar uma penitenciaria. Agora,o heroi que enfrenta a incompreensao do sistema e' o capitao vivido por Jeff Bridges(uma curiosidade biografica : Jeff Bridges e' filho de Lloyd Bridges,o ator da serie de TV ''Viagem do Fundo do Mar''.Chegou a fazer pontas na serie.Nao e' estranho,portanto,ao mundo dos golfinhos,tubaroes e tempestades).Scott Wolf faz o papel de um dos adolescentes que vivem a aventura no mar.


O estudio poderia ter trazido Jeff Bridges - ator consagrado- ou o diretor Ridley Scott para a bateria de entrevistas na suite do hotel em Londres.Mas nao.A hora e' de apontar os refletores sobre o futuro astro Scott Wolf.Os jornalistas ''indicados'' deparam-se com um poster do filme na antesala da suite.Um garcom aparece para tirar as duvidas : em que posso servi-los ? Duas mesas repletas de croissants,sanduiches,cafe',cha' e leite estao a' disposicao dos convidados.Os mais famintos podem avancar sobre um bolo de chocolate,se quiserem.A moca de voz aveludada vai levando os jornalistas,em grupos de quatro,para o encontro com o futuro superstar.Ha' restricoes : ninguem deve levar maquina fotografica. Os jornalistas devem chegar pelo menos quinze minutos antes do horario previsto.Parece que um dos segredos usados pela maquina publicitaria para conceder um ar de importancia a qualquer acontecimento e' cerca-lo com um certo ar de solenidade.''Nada de fotos''.''Por favor,chegue na hora''.''Mister Wolf tera' trinta minutos para cada grupo''.Ha' poucas semanas,jornalistas passaram pelo ritual de ter as maos carimbadas com uma tinta especial para ter o direito de ouvir a entrevista coletiva dos renascidos Sex Pistols,em que a maior atracao foram os retumbantes arrotos do lider da banda.A engrenagem sabe como funciona.

Scott Wolf usa a tatica Paul McCartney para criar um clima de intimidade : repete o nome de cada um dos jornalistas,enquanto os recebe com um aperto de mao firme e um ''que bom ver voce''.Pela enesima vez,ele repetira' - sem demonstrar qualquer sinal de impaciencia - como foi dificil enfrentar aquelas ondas na filmagem da cena do naufragio.Dira',candidamente,que se surpreende ao ser reconhecido na rua ''tao longe de casa'' - gracas 'a exibicao na TV inglesa de seriados americanos em que atua,como ''Party of Five'' ou ''Saved by the Bell''. Fara' revelacoes biograficas curiosas : chegou a se formar em ''financas'' na universidade de George Washington,mas terminou,tardiamente,optando pela carreira de ator,gracas aos conselhos de um amigo.Nao,nao se considera ''simbolo sexual'' - quem se considera,no planeta Hollywood ? Os elogios vao,todos,para o diretor que o escolheu como estrela - Ridley Scott. Com que outro gostaria de trabalhar ? ''Meu Deus'',diz o futuro astro ao GLOBO,''sao tantos...''.Termina citando nomes : Barry Levinson,Martin Scorcese,Quentin Tarantino,Robert Redford,Francis Ford Coppola. Comete uma boa frase : ''Quero trabalhar com diretores que me ajudem a descobrir dentro de mim coisas que nem eu sei que existem''.

Enquanto fala,o novo Tom Cruise nao para de comer uvas,traca uma banana e consome copos d'agua.''E' o meu cafe' da manha...'',explica.Barba por fazer,olhos azuis,camisa de manga comprida preta,calca de veludo verde escuro,o novo ''simbolo sexual das adolescentes'' anuncia que nao quer criar limites para si proprio : depois de se recuperar da maratona de lancamento de ''White Squall'',aceitara' participar de qualquer projeto que lhe pareca um desafio.''O problema e' que a maioria dos scripts que a gente recebe e' lixo''. Numa mesa ao lado,uma agenda preve o que acontecera' nas proximas horas ate' o dia seguinte,quando, ''ás 6:55'' ,um carro estara' no aeroporto,em Los Angeles,para levar Scott Wolf para casa. E' tudo cronometrado.Trinta minutos depois de iniciada a entrevista,uma das funcionarias encarregadas de organizar a maratona abre discretamente a porta da sala e caminha sem produzir qualquer ruido para as proximidades da cadeira onde o novo Tom Cruise consome uvas e bananas entre uma e outra frase.E' o sinal de que o tempo acabou.Wolf ainda brinca.Depois de fazer pontas em filmes inexpressivos,ele confessa : ''e' a primeira vez que faco um filme capaz de reunir pessoas em torno de uma mesa''.

Os jornalistas recebem um pacote de informacoes sobre o novo filme : um texto de trinta e sete paginas com biografias de atores,diretor e produtores e a historia das filmagens,alem de slides coloridos e copias de reportagens publicadas em revistas sobre o futuro astro. Ha' material de sobre para encher paginas e paginas.A engrenagem publicitaria se move para lancar um novo nome nas fachadas de cinemas de todo o planeta. Quando o grupo de jornalistas deixa a sala,Scott Wolf repete o ritual com o grupo seguinte,formado por suecos,portugueses e espanhois : de pe' diante da porta,repete o nome de cada um,exibe um sorriso de gala.Vai comecar tudo de novo.O futuro astro ja' aprendeu a licao : nao exibe o menor sinal de enfado.E' provavel que,no intimo,esteja contando os segundos para se ver livre daqueles desconhecidos que fazem perguntas como se o conhecessem desde o berco.O futuro superastro cumpre o ritual com atuacao exemplar.Porque sabe que,em breve,aparecera' em publicacoes e em teves de todas as partes - em idiomas tao dispares quanto o arabe ou o sueco.Assim nasce uma estrela.
La' fora,uma camareira olha com curiosidade para o gravador do reporter,pergunta quem e',afinal, a figura importante que ocupa aquela suite. Voce tenta exibir um ar de intimidade : ''Scott Wolf !''.
Ok,lord Jones morreu.Mas a maxima de Chesterton talvez mereca uma nova -e ultima- correcao.De vez em quando,como agora,nesta manha clara de primavera nas vizinhancas do Palacio de Buckingham,fazer jornalismo e' dizer que Scott Wolf existe a camareiras que -exatamente como nos,pobres mortais - jamais suspeitaram que Scott Wolf um dia tivesse existido.

(1996)

Posted by geneton at 01:39 AM

março 09, 2004

MISSÃO VIETNAM EM BRASÍLIA

EX-EMBAIXADOR REVELA BASTIDORES DO DIA EM QUE OS ESTADOS UNIDOS CHAMARAM O
BRASIL PARA ENTRAR NA GUERRA DO VIETNAM

Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil durante o golpe militar de 1964,guardou segredo ,até esta semana,sobre os bastidores do dia em que o governo americano tentou fazer com que o Brasil participasse da Guerra do Vietnam.


”Não contei esta história no meu livro”, diz Gordon, autor do recém-lançado “A Segunda Chance do Brasil a Caminho do Primeiro Mundo”. Ao final de um depoimento gravado durante três horas ininterruptas no quarto 904 do Hotel Glória, no Rio, o ex-embaixador revelou detalhes inéditos sobre o dia em que entrou no Palácio do Planalto,em nome do presidente Lyndon Johnson, para pedir ao marechal Castelo Branco que o Brasil se engajasse numa guerra no sudeste asiático. Lincoln Gordon volta esta noite aos Estados Unidos,depois de cumprir um périplo por São Paulo,Rio de Janeiro,Brasília e Recife.

“Eu tive de manter segredo sobre o assunto na época” – explica Gordon.”Se o que aconteceu fosse divulgado,poderia criar um problema – mais sério para o Brasil do que para os Estados Unidos. O caso seria politicamente ruim para os dois países”.

Aos 89 anos de idade, este ex-professor de Economia da Universidade de Harvard e ex-subsecretário de Estado para Assuntos Latino-Americanos parece disposto a comprar uma briga com historiadores que,segundo ele,estão traçando um retrato distorcido sobre a postura que Castelo Branco – o primeiro presidente do regime militar - assumia diante dos Estados Unidos. O ex-embaixador diz que o fracasso da tentativa americana de atrair o Brasil para a guerra do Vietnam é uma prova de que os militares que assumiram o poder no Brasil não recebiam ordens dos Estados Unidos :

- Textos históricos esquerdistas ou anti-americanos descrevem Castelo Branco como se ele vivesse dizendo “sim,senhor”,”sim,senhor” e “sim,senhor” aos Estados Unidos.Um exemplo sempre citado é a concordância do Brasil em enviar militares brasileiros para participar da intervenção na República Dominicana,em 1965.Mas o que aconteceu em relação à Guerra do Vietnam é um exemplo de que Castelo Branco não era uma mera marionete dos Estados Unidos !.Agora,estou pronto a divulgar detalhes a respeito do caso,como uma demonstração de como Castelo Branco governava – avalia Gordon,no depoimento gravado.

Autor de “Presença dos Estados Unidos no Brasil” e “O Governo João Goulart : As Lutas Sociais no Brasil”,o historiador Moniz Bandeira contesta os argumentos de Gordon :

- O marechal Castelo Branco sempre foi considerado,sim,um títere dos Estados Unidos,não apenas por historiadores brasileiros,mas também por historiadores estrangeiros,como Ruth Leacock,autor de “Requiem for Revolution” ou Jan Black – que chegou a dizer que Castelo Branco proclamou a dependência do Brasil.O que Lincoln Gordon quer fazer agora é embelezar o golpe,é fazer maquiagem de 1964.

O ex-embaixador diz que o apelo para que o Brasil participasse da intervenção militar na República Dominicana foi feito a Castelo Branco pelo emissário do presidente Lyndon Johnson – o ex-ministro Averell Harriman,numa audiência testemunhada também pelo então ministro das relações exteriores brasileiro,Vasco Leitão da Cunha :

- O ministro nos disse que o envio de tropas brasileiras deveria ser feita dentro de uma ação latino-americana endossada por dois terços dos votos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Castelo Branco nos disse,então, que este detalhe faria uma vasta diferença para o Brasil.


Gordon reconstitui,assim,as palavras que ouviu de Castelo Branco :

- Castelo Branco me disse : ”Há quem pense em países vizinhos que assumi o governo ilegalmente – num típico golpe de estado latino-americano.Eu estou tentando restaurar a lei na democracia brasileira.Quero agir da mesma maneira no plano internacional.Então,diga ao Presidente Johnson que entendo o desejo americano,estou pronto a enviar tropas brasileiras para a República Dominicana,mas a decisão deve ser tomada por dois terços dos votos da OEA”.

O sucesso do esforço para envolver o Brasil na intervenção na República Dominicana – onde os Estados Unidos temiam o surgimento de um Estado marxista – abriu caminho para que,meses depois,os americanos jogassem outra cartada : e se o Brasil concordasse em participar da Guerra do Vietnam ?.

- Recebi um telegrama de Washington dizendo que a Guerra do Vietnam estava se tornando uma preocupação cada vez maior – diz Gordon. A Guerra tinha relação com a nossa moral – inclusive no plano internacional. Víamos o quadro como parte da guerra fria. O Brasil tinha mandado médicos para a Guerra da Coréia.Teve uma participação positiva.Agora,pedia-se algo parecido.

O segredo que o ex-embaixador guardou os termos do diálogo com o presidente brasileiro é compreensível : o episódio é a crônica de um fracasso. Gordon saiu do Palácio de mãos vazias. O ex-embaixador americano diz, hoje, que intimamente tinha dúvidas sobre a conveniência do pedido para que o Brasil se envolvesse no conflito no Vietnam :

- Eu tinha minhas reservas sobre se aquela atitude era a certa.A situação estava instável. Não me agradava a idéia de jogar gasolina na fogueira dos que diziam que o Brasil repetia “sim,senhor” aos pedidos dos Estados Unidos. Antes de ir para a audiência com Castelo Branco,cheguei a enviar um telegrama para Washington em que disse que,no caso brasileiro,não era uma decisão sábia fazer o pedido.Meu conselho não funcionou.O meu governo me mandou tentar.Eu fui. Apresentei o pedido a Castelo Branco o mais gentilmente possível....

Quando desembarcou no Palácio do Planalto,às vésperas do Natal de 1965,o embaixador tinha uma boa notícia a dar e um pedido incômodo a fazer ao presidente brasileiro.A boa notícia : o presidente Johnson autorizara a concessão de um empréstimo de 150 milhões de dólares ao Brasil.O pedido incômodo : diante da decisão de ampliar para 400 mil o número de soldados americanos mobilizados na “defesa do Vietnam do Sul” contra os comunistas do Vietnam do Norte,o governo Johnson queria saber se poderia contar com a ajuda do Brasil no esforço de guerra no sudeste asiático.

Depois de ouvir as explicações do embaixador americano,o presidente brasileiro avaliou a repercussão que o engajamento brasileiro no Vietnam teria no país :

- Castelo Branco me disse que, no caso do Vietnam, haveria uma resistência muito maior no Brasil. A participação não seria aceita rapidamente.Adiante, ele me disse :”Não sei como os meus companheiros de farda se sentirão,mas sei que haverá restrições no meio militar” .O que Castelo Branco fez foi me dizer “não” de uma forma gentil. Eu disse que a participação brasileira poderia até ser simbólica,porque o uso de tropas exigiria treinamento.Os combates eram travados em condições peculiares no Vietnam – com bombardeios aéreos e operações navais.


O ex-embaixador garante que “o que nós,os Estados Unidos,estávamos tentando era que o chamado mundo livre demonstrasse,o mais amplamente possível,que a operação era legítima”.

Gordon diz que os termos do diálogo com o presidente brasileiro foram preservados como “segredo de Estado”.Os Estados Unidos – obviamente- não tinham o menor interesse em divulgar um pedido que foi recusado pelo Brasil :

- Não queríamos divulgar o pedido,principalmente porque ele foi rejeitado – relata Gordon. Eu bem que tinha dito antes que seria melhor não fazer este pedido ao governo brasileiro. Mas fiz – de qualquer maneira. Previ que seria difícil. O pedido foi recusado. Quando mandei um novo relatório a Washington,não escrevi nada na linha do “eu não disse ? “. Mas Washington viu que a previsão que eu tinha feito estava certa.Os Estados Unidos desistiram.

A divulgação das circunstâncias em que se deu a recusa poderia provocar reações pouco simpáticas ao Brasil entre representantes da chamada “linha-dura” americana. Não se deve esquecer que,nas eleições de 1962,conforme cifras citadas pelo embaixador,a CIA tinha derramado no Brasil “cinco milhões de dólares” para ajudar a eleger deputados,senadores e governadores hostis a João Goulart.O próprio Lincoln Gordon se declara autor da idéia de mobilizar uma frota que se dirigiria ao Brasil para abastecer,com armas e petróleo,facções anti-Goulart,em caso de uma guerra civil. Por sugestão dos adidos militares da embaixada, um submarino seria despachado para o litoral de São Paulo, com armas que seriam entregues de mão beijada aos conspiradores que queriam ver Goulart no olho da rua. Não houve necessidade de deflagrar a operação.O submarino nem chegou a ser mobilizado.Quando os militares se instalaram no Poder, o socorro financeiro ao País não tardou a chegar. Os Estados Unidos tinham boas razões para se sentir credores de gestos de simpatia do novo regime.

Gordon se esforçou na época para evitar que o gesto de Castelo Branco recebesse uma indesejada publicidade,porque poderia criar embaraços políticos :

- Se o que aconteceu fosse divulgado, a “linha-dura” americana poderia dizer : “Meu Deus,estamos dando toda a ajuda ao Brasil.E eles não podem enviar nem ao menos médicos para o Vietnam ?!”.

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Lincoln Gordon

“DINHEIRO DA CIA NA ELEIÇÃO BRASILEIRA FOI UM ERRO”

O ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil não se recusa a tocar em temas que,a cada vez que são discutidos,provocam controvérsias de todo tipo – como,por exemplo,o dinheiro que o governo americano derramou no Brasil para tentar influenciar o resultado das eleições brasileiras de 1962.

A CIA – afinal – deu ou não deu dinheiro a candidatos simpáticos aos Estados Unidos nas eleições de 1962 no Brasil ?

Gordon : “Demos.Definitivamente.Com o passar do tempo,considerei que este foi um erro de nossa parte.Nós estávamos,na época,influenciados pelo que tinha acontecido na Itália logo depois da guerra : historiadores acham que o apoio aos anti-comunistas italianos – inclusive com dinheiro e propaganda – foi o que tornou impossível a vitória eleitoral dos comunistas”.

Quanto a CIA gastou no Brasil ?

Gordon : “A minha estimativa é de que foram cinco milhões de dólares ( N: a preços de 2002,30 milhões de dólares – ou cerca de 100 milhões de reais). Mas não se produziram resultados importantes,porque o Congresso que foi eleito em 1962 não foi diferente do Congresso anterior. Miguel Arraes- por exemplo- se elegeu governador em Pernambuco,o que foi um fato mais importante do que qualquer mudança no Congresso”.

Quem recebeu a ajuda ?

Gordon : “Houve um grupo de candidatos – geralmente,à direita do centro,simpatizantes dos Estados Unidos”.

O senhor pode citar nomes ?

Gordon : “Não me lembro.Nunca vi a lista. Eu não estava envolvido no processo. Era uma ação da CIA. Um dos objetivos seria suprir literatura sobre a economia liberal,para contestar a enorme quantidade de literatura de esquerda.O governo cubano – e,possivelmente,o governo russo - estavam fornecendo dinheiro para publicação de material no Brasil”.

Qual foi a participação dos Estados Unidos na queda do presidente João Goulart ?

Gordon : “A participação ativa foi zero.Mas,especialmente depois do comício do presidente Goulart na Central do Brasil,houve vários contatos,inclusive entre o adido militar da embaixada,Vernon Walters e o marechal Castelo Branco,em que se demonstrou o interesse numa oposição”.

É verdade que o senhor disse ao presidente John Kennedy,ainda em 1962,que talvez fosse preciso “destituir” o presidente Goulart ?

Gordon : “Eu disse que existia,a longo prazo,a possibilidade de que os acontecimentos evoluíssem até o ponto em que esta alternativa deveria ser considerada. Numa reunião na Casa Branca,a 30 de julho de 1962,um assessor de Kennedy,Richard Goodwin,disse : “Talvez devêssemos pensar em golpe num futuro próximo”. Eu disse : “Não.É fora de questão”. Nem eu nem o presidente John Kennedy tomamos a sugestão de Goodwin a sério,naquele momento.
A melhor solução seria manter a Constituição : que Goulart fosse mantido na Presidência até as eleições presidenciais previstas para 1965.Minha preferência era esta – até Goulart fez o Comício da Central do Brasil,quando vi que Goulart não chegaria até 1965. O melhor seria que Goulart,pacificamente,sem ações militares,sem golpes janguistas ou golpes anti-janguistas,fosse até o fim do mandato”.

Como surgiu a idéia de mobilizar uma frota americana que seria deslocada para o Brasil em 64 ?

Gordon : “A minha idéia foi que,na eventualidade de uma tentativa de derrubar João Goulart,um grupo militar brasileiro poderia ser contestado por outro grupo militar. Eu imaginei que poderia haver uma divisão do país – com militares em lados opostos. Numa tal eventualidade,os Estados Unidos evidentemente teriam uma preferência pelo lado anti-esquerdista,pelo lado anti-João Goulart.Naquele momento,considerei,então,a possibilidade de que uma frota armada,com a bandeira americana visível no litoral brasileiro,teria um resultado desencorajador para o lado pró-Goulart e encorajador para o lado anti-Goulart”.




Posted by geneton at 12:26 PM