outubro 10, 2015

O ESCRITOR MARCELO RUBENS PAIVA LANÇA UM DESAFIO AOS ENVOLVIDOS NA MORTE DO PAI - O EX-DEPUTADO RUBENS PAIVA: "VENHAM A PÚBLICO!" ( E FAZ UMA REFLEXÃO - NADA "REVANCHISTA" - SOBRE O PAPEL HISTÓRICO DAS FORÇAS ARMADAS ).

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Marcelo Rubens Paiva acaba de lançar o ( belo ) livro "Ainda Estou Aqui", em que trata não apenas do drama que a família enfrentou depois do desaparecimento do ex-deputado mas também da doença da mãe, a advogada Eunice Paiva, acometida do Mal de Alzheimer.
Um trecho da entrevista:
"A morte do meu pai não tem fim. Pode agora à tarde ser revelado um documento que mostre alguma novidade. Pode aparecer amanhã um sujeito que diga: "Enterrei Rubens Paiva na Barra da Tijuca" ou "levei o corpo esquartejado de Rubens Paiva para um cemitério no Xingu". A cada ano, aparece uma nova testemunha, aparece um novo documento. É um grande mistério que nunca é solucionado".


GMN: Se tivesse a chance de se dirigir a alguém envolvido no desaparecimento de Rubens Paiva, o que é que você diria a ele?
Marcelo Rubens Paiva: "Venha a público! Venha contar o que aconteceu. Seja brasileiro. Venha recontar a história do Brasil. Ajude-nos a recontá-la! Onde estão estes torturadores? Terão coragem de andar na rua ou de pedir desculpas? É o que falta ao Brasil: as pessoas virem a público!"
"Não adianta ficar defendendo a ditadura. Aquilo foi um crime, um absurdo. Venha a público. Venha dizer: "Desculpe! Quero pedir desculpas à sociedade brasileira". Faz bem pedir desculpas. Estamos precisando desse pedido de desculpas - que não veio ainda! A Lei da Anistia perdoou os dois lados, mas o pedido de desculpas não veio".
"Cadê um militar para limpar esse passado e honrar essa instituição maravilhosa que fez tanto bem ao Brasil e é tão importante para o país? Devemos nos orgulhar da instituição militar. Onde estão eles para dizer: "Desculpem, nós erramos".
O Exército é heroico ao nos defender da violência dos grandes eventos. Venham a público para dizer: "Erramos nesse período!".
Gosto de ler as aventuras do Exército brasileiro. Gosto de saber saber da participação do Exército brasileiro na luta contra o nazifascismo na Europa e suas heroicas batalhas. Sei que muitos militares defenderam o governo de João Goulart. Eu sempre soube separar aquela gangue de militares golpistas e fascistas da beleza que foi a instituição".
( foto: Aldrin Luciano Gazio )

Posted by geneton at 11:43 AM

junho 07, 2015

PAULO MALUF

MALUF DIZ QUE DEU DINHEIRO PARA CAMPANHAS DE TANCREDO

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A Globonews exibe hoje, às 15h30, reprise da entrevista exclusiva com Paulo Maluf

O ex-governador de São Paulo e duas vezes candidato a Presidente da República Paulo Maluf revela: deu dinheiro para campanhas eleitorais de Tancredo Neves ao Senado e ao governo de Minas - um gesto que surpreende, já que os dois, durante toda a vida, militaram em campos opostos. Maluf e Tancredo se enfrentariam na última eleição indireta para a escolha de um Presidente da República - em 1985.

A declaração de Maluf - a primeira que ele dá, publicamente, sobre esta cena dos bastidores da política brasileira - foi feita em entrevista que o ex-governador nos deu, para o DOSSIÊ GLOBONEWS, no palacete em que mora, em São Paulo. Maluf atribui a ajuda a uma questão de amizade pessoal.

A ajuda de Maluf, nos bastidores, à campanha eleitoral de Tancredo Neves ao governo de Minas foi tratada pelo repórter político Jorge Bastos Moreno, num dos capítulos do livro "A História de Mora - a Saga de Ulysses Guimarães. Ali, Moreno dá uma explicação política ao surpreendente gesto de Maluf: diz que não foi apenas uma questão de amizade pessoal. Maluf já se articulava para tentar suceder o general Figueiredo na Presidência da República. Se o adversário de Tancredo Neves na eleição para o governo de Minas - Eliseu Resende - vencesse a disputa, quem sairia fortalecido seria Mário Andreazza, aliado de Resende, ministro de Figueiredo e também de olho na Presidência. Maluf não tinha, portanto, o menor interesse na eleição de Resende. É uma explicação possível.

Maluf ataca, na entrevista, o general Newton Cruz, ex-chefe da agência central do Serviço Nacional de Informações, o SNI. Os dois estão brigando, na justiça, porque o general acusa Maluf de tê-lo procurado para insinuar que alguma coisa deveria ser feita para tirar Tancredo Neves do páreo. Maluf teve uma reação agressiva quando o assunto foi tratado na entrevista. Chegou a perguntar ao repórter: "Quer dizer que meu rabo vale para todo mundo e o seu não vale?".

Quando perguntei se ele seria capaz de comprar um carro usado de um fugitivo da Interpol - no caso, o próprio Paulo Maluf - ele respondeu que compraria, sim. Disse que aceita de submeter um interrogatório - mas só se for aqui no Brasil. Recusa-se a ir aos Estados Unidos. Um promotor americano quer ouvir Maluf sobre depósitos suspeitos identificados no sistema bancário americano. Maluf se recusa a ir até lá. Por este motivo, entrou na lista de procurados.

Um trecho da entrevista de Maluf:

GMN: É verdade que o senhor ajudou financeiramente Tancredo Neves quando ele foi candidato ao governo e ao senado em Minas Gerais?

Maluf: "Arrumei recursos para ele ser eleito senador e recursos para ele ser eleito governador".

GMN: Tancredo Neves pediu dinheiro ao senhor?

Maluf: "Não. Nunca pediu. Era um homem ético e de um elegância rara. Era aquele PSD mineiro verdadeiro. quando a gente se encontrava, ele dizia "Paulo, você trem aí um funcionário seu que pode me ajudar...alguma coisa que você possa fazer por mim? " Tancredo intuía e eu entendia".

GMN: O senhor revelou surpreendentemente que deu uma ajuda financeira a campanhas eleitorais de Tancredo Neves em minas ao governo e ao senado. Que interesse o senhor tinha na eleição de Tancredo Neves em Minas Gerais?

Maluf: "Nenhum! Eu era amigo pessoal de Tancredo. Era um homem de bem e honrado. Político conversa com político. Tancredo precisava de alguns recursos. Indiquei pessoas que foram falar com ele. Quero dizer o seguinte: a sorte de Minas Gerais é que Tancredo foi eleito, naquela ocasião, governador. Quero dizer que o azar do Brasil foi Tancredo ter morrido antecipadamente. Teria sido um grande Presidente".

GMN: Quem eram essas pessoas que o senhor indicou para efetivar a ajuda financeira a Tancredo Neves ?

Maluf: "Com todo respeito à pergunta, sobre certos fatos de trinta anos atrás, você não vai colocar as pessoas na berlinda para depois outro ir lá perguntar. Mas foi dada, sim, ajuda financeira: assumo a responsabilidade. Era dinheiro lícito e doação legal".

GMN: O ex-chefe da agência central do Serviço Nacional de Informações, general Newton Cruz, disse que foi procurado pelo senhor para uma conversa a sós. Nessa conversa, na casa do general, em Brasília, o senhor teria insinuado que o então candidato Tancredo Neves deveria ser removido do cenário. O senhor já negou que tenha feito tal insinuação, mas a pergunta que fica é a seguinte: o que é que um candidato, como o senhor era, tinha a tratar de tão sigilioso com o general-chefe da agência central do SNI?

Maluf: "Digo olho no olho que o general Newton Cruz - que estava completamente afastado da mídia- pregou uma grande mentira para poder aparecer: agrediu Paulo Maluf. Com todo respeito, general newton cruz: o senhor é um mentiroso!".

GMN: Mas o senhor teve esse encontro com ele?

Maluf: "Não é só com ele: é com ele, com governadores, com generais, com embaixadores, com senadores, com deputados federais, todos os dias - ou no Congresso ou em reuniões em embaixadas. Eu conhecia, sim, o general. Mas é uma sordidez a afirmação que ele faz".

(Newton Cruz no Dossiê Globonews, em 2010: "De repente, ele apareceu na minha casa, na residência do Comando Militar do Planalto. Eu sabia, o Brasil inteiro sabia que Tancredo ia ganhar. Ele sabia. Por isso, foi à minha casa. Conversou comigo, numa conversa de joão-sem-braço: que era preciso fazer alguma coisa, para evitar que Tancredo tomasse posse...")

GMN: O senhor processou o general?

Maluf: "O processo ainda não terminou. Mas quero ver este general condenado".

GMN :O senhor quer que ele retire o que disse?

Maluf: "Não precisa retirar. É mentiroso. Mas me diga o seguinte: você nunca deu crédito ao general Newton Cruz! Por que é que agora você dá crédito ao general? Só porque ele falou mal de Paulo Maluf?"

GMN: Eu entrevistei Newton Cruz...

Maluf: "Quer dizer que meu rabo vale para todo mundo e o seu não vale? Em alto e bom som para ficar gravado e pra você botar no ar: você é dos brasileiros que acreditam nele?"

GMN: Não tenho motivo pata duvidar, como não tenho motivo para duvdar do senhor aqui....

Maluf: "Quero que vá para o ar : Geneton disse que acredita em Newton Cruz! Dê licença! Eu acho que essa pecha vai ficar no jornalismo contra você o resto da vida...Se você o leva a sério, você foi ludibriado..."

GMN: O senhor - que já enfrentou tantas campanhas eleitorais - com certeza recebeu nos bastidores informações impublicáveis sobre os adversários. O sehor confirma que recebeu uma cópia da ficha médica do então candidato a presidente e adversário do senhor, Tancredo Neves? Quem lhe passou essa informação? O senhor teve a tentação de usar essa informação contra Tancedo Neves?

Maluf: "A ficha médica tal como foi eventualmente arquivada no serviço médico da Câmara eu não vi. Mas tive uma informação fidedigna de pessoa insuspeitas. Primeiro: o deputado federal Renato Cordeiro - que era médico - viu quando Tancredo Neves entrou no ambulatório da Câmara dos Deputados amparado pelo deputado federal Israel Pinheiro Filho - que, com seus dois metros de altura e cento e cinquenta quilos, escondeu Tancredo. Doutor Renault Mattos avaliou a eventual doença que Tancredo tinha. Também tive por parte de Flávio Marcílio - que era presidente da Câmara dos Deputados - a informação de que Tancredo Neves tinha uma infecção. Ninguém sabe exatamente o que ele tinha dentro de si, porque Tancredo não quis se examinar. Políticos escondem a doença porque acham que a doença é um impeditivo para uma eleição. Isso foi o caso de Tancredo: tinha um abcesso grande na barriga. Tinha de ter aberto , tirado o abcesso , o eventual tumor que ele tinha - e, com certeza, Tancredo seria presidente da República por cinco, seis anos".

GMN: O senhor teve, em algum momento, a tentação de usar essa informação privilegiada contra a candidatura de Tancredo Neves?

Maluf: "Fui aconselhado a usar. Mas me neguei. Quem me aconselhou foi Prisco Viana - que era braço direito de José Sarney na antiga Arena, no PDS. Sarney foi o presidente do partido. Eu disse: não. Quero ganhar ganhando, não quero ganhar com os outros perdendo".

GMN: O senhor já repetiu centenas de vezes que não tem conta no exterior, mas , em meio à investigação sobre o desvio de dinheiro quando o senhor ocupava o cargo de prefeito, o City Bank de Genebra informou que a conta número 334-018 pertencia a Paulo Maluf. O senhor - que sempre foi notoriamente religioso - seria capaz de jurar com a mão sobre a Bíblia que o Paulo Maluf dono dessa conta não é o senhor?

Maluf: "Quero dizer a você muito claramente: desde já, em cartório, lavro uma procuração para que este dinheiro fique de sua propriedade. Vão buscar um a conta que digo que não é minha....Já estou dando para você a procuração para você ficar com o dinheiro - e você não sorri de felicidade?".

(O Dossiê Globonews procurou o dinheiro. Primeiro contato: o Ministério Público de São Paulo. O promotor José Carlos Blat informou que as contas investigadas não têm Paulo Maluf como titular, mas como um dos beneficiários. Depois de acordos com bancos estrangeiros, o Ministério Público já conseguiu que 52 milhões de dólares fossem devolvidos à Prefeitura de São Paulo, o dinheiro já foi depositado na conta da Prefeitura ).

GMN: O senhor disse que, comparado com Lula, hoje se considera um comunista. Isso é uma ironia ou é verdade?

Maluf: "Não mudei. Mas Lula, graças a Deus, mudou para melhor. O Lula de 89 contra Collor era um Fidel Castro - que vinha para invadir e expropriar fazendas, fazer o diabo. A sorte do Brasil é que Lula foi derrotado três vezes: cada derrota foi pedagógica. Depois, Lula foi eleito. O quanto ele ajudou a indústria automobilística - que é multinacional ! O quanto ele ajudou os banqueiros - com juros altos e lucros astronômicos ! Perto de Lula, hoje, eu me sinto um comunista..."

GMN: O senhor - que era deputado federal - não votou a favor das eleições diretas. O senhor se arrepende de ter ido contra a vontade popular - ou: não ter votado pelas diretas?

Maluf:"Se eu conhecesse a história a história futura, diria que me arrependo. Mas quem me pediu para votar contra as diretas - e você pode conferir com ele - foi o presidente do PDS, José Sarney.
Vou contar uma coisa que ninguém sabe: o presidente do Senado, Moacyr Dalla, recebeu uma ligação telefônica de Tancredo Neves - que pediu que não fossem votadas as eleições diretas no Senado, já que ele, Tancredo, já tinha ganhado as indiretas....Ou seja: quem não queria as diretas foi Tancredo Neves, foi José Sarney. Aquilo tudo foi uma armação, uma falsidade para eleger Tancredo e Sarney".

Uma anotação sobre os bastidores da entrevista:

Por uma questão de justiça, diga-se que as performances de Maluf diante de uma câmera são, sempre, garantia de um bom espetáculo televisivo.

É capaz de ouvir todo e qualquer tipo de pergunta sem dar sinais de abalo - mas eventualmente se irrita.

O ex-governador de São Paulo sempre apostou alto, altíssimo. Tentou duas vezes ser Presidente da República. A primeira, em 1985: enfrentou o candidato do MDB, Tancredo Neves, no Colégio Eleitoral, na última eleição indireta para presidente realizada no Brasil. Teve 180 votos, contra 480 de Tancredo Neves.
Tentou de novo o Palácio do Planalto - na eleição direta de 1989, a primeira realizada no país depois do fim do regime militar. Chegou em quinto lugar - atrás de Fernando Collor, Luiz Inácio Lula da Silva, Leonel Brizola e Mário Covas. Teve 5.986.575 votos.

(a propósito: em certo momento da entrevista, Maluf diz que, diante do que aconteceu depois, se arrepende de não ter dado apoio à emenda que restabelecia eleições diretas para a Presidência da República, em 1984. Mas "tira o corpo": "Quem me pediu para votar contra as diretas - e você pode conferir com ele - foi o presidente do PDS, José Sarney".

Fica claro que Maluf até hoje não engole o fato de Sarney, por um grande acaso, ter recebido a Presidência da República "de presente").

Paulo Maluf respondeu, também, a perguntas sobre as repetidas denúncias de superfaturamento em obras públicas quando era prefeito de São Paulo. Num momento de irritação, disse que o locutor-que-vos-fala poderia ficar com todo o dinheiro que por acaso fosse encontrado em nome de Maluf no exterior. Mas há dinheiro, sim, no exterior, não necessariamente em nome da pessoa física Paulo Maluf - é o que informa o Ministério Público de São Paulo.

Em meio ao inacreditável vai-e-vem da política brasileira, Maluf hoje apoia Lula e Dilma. Terminada a entrevista, numa conversa rápida antes das despedidas, enquanto o dublê de cinegrafista e editor de imagens Aldrin Luciano Gazio desmontava o equipamento, Maluf arriscou um palpite para a eleição presidencial de 2018: diz que Lula pode, sim, voltar a concorrer. Aposta que o candidato do PSDB será o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, porque Aécio Neves, segundo Maluf, não terá condições políticas de se lançar candidato de novo. Fica registrada a previsão.

Posted by geneton at 04:22 PM

junho 04, 2015

GENERAL LEÔNIDAS PIRES GONÇALVES

ANOTAÇÕES DE UM ENCONTRO COM O GENERAL LEÔNIDAS PIRES GONÇALVES - QUE SAIU DE CENA HOJE

O general Leônidas Pires Gonçalves morreu hoje, aos 94 anos de idade. Gravei com ele para o Dossiê Globonews uma entrevista que deu o que falar, porque o general, ministro do Exército do primeiro governo civil depois da ditadura, manifestou posições duras, para dizer o mínimo. Disse, por exemplo, que o Brasil não teve exilados - mas "fugitivos". E assim por diante.

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(Tentei cumprir, ali, o papel de repórter: o de tentar levar ao público "diferentes visões do mundo" - sem exercer "patrulhagem ideológica" sobre o entrevistado. Nem sempre é fácil. Diante do general, fiz o que fiz diante de ex-guerrilheiros - per exemplo: perguntas. Ponto. Que outra coisa um repórter pode fazer?).
Um detalhe curioso: o general só aceitou dar entrevista depois da terceira tentativa. A princípio, relutou, disse que já tinha falado antes, mas insisti, apelei para a vaidade do possível entrevistado: disse que seria importante que ele contasse, com detalhes, o que aconteceu na noite em que o presidente eleito Tancredo Neves foi internado às pressas num hospital de Brasília, na véspera da posse. O general, como se sabe, se aproximou de uma roda de políticos que discutiam, no hospital, quem deveria tomar posse: se o vice-presidente José Sarney ou se o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães.

Ainda no telefone, Leônidas contou que o debate entre os políticos se encerrou quando ele disse que não havia o que discutir: pela Constituição, Sarney deveria assumir. (tal interpretação não era unânime entre os políticos ali presentes. O senador Pedro Simon, por exemplo, achava que quem deveria assumir era Ulysses, na condição de presidente da Câmara. Se Tancredo não iria tomar posse, o vice também não poderia). Dali, o general ligaria para José Sarney, já de madrugada. Quando notou que Sarney relutava em assumir o posto, Leônidas cortou a conversa algo bruscamente. Disse ao relutante Sarney que já havia problemas demais a serem resolvidos. Pronunciou, então, a frase que Sarney, tempos depois, disse que iria usar como título de um livro de memórias até hoje não publicado: "Boa noite, Presidente".

Em suma: Leônidas terminou cedendo ao meu argumento de que valeria a pena gravar ali, em 2010, uma entrevista sobre os vinte anos do fim do regime militar. Um dia antes da gravação, liguei para o general, para confirmar. Leônidas reagiu: "Você se esqueceu de que combinou com um milico! Se eu disse que é amanhã às cinco da tarde, vai ser amanhã às cinco da tarde!".

Depois, tivemos algumas conversas por telefone - e alguns encontros casuais, pelas ruas do Leblon.
Nem faz tanto tempo, encontrei com o general no corredor do shopping Vitrine do Leblon, na avenida Ataulfo de Paiva. O general morava perto dali. Era um final de manhã. Estava sozinho. Caminhava com uma firmeza surpreendente para um nonagenário. Conversou comigo, animado.

Fiz umas anotações assim que cheguei em casa. Dou uma checada agora: o encontro foi no dia cinco de junho de 2014 - há exatamente um ano, portanto.

Palavras textuais do general - numa conversa que, obviamente, não era uma entrevista:

"Tive o mesmo professor de Luís Carlos Prestes. E ele me disse: "Aquele foi o aluno mais brilhante que já tive". Eu digo que Prestes é o herói sem vitória. Tudo em que ele entrou deu errado".

"Veja Lula: lá no Rio Grande do Sul, se usa a palavra ladino - é mais do que sabido. É ladino!".

"E essa história do mensalão? Sempre houve compra de voto. Você acha que não houve compra de voto para a eleição de Fernando Henrique? Mas sempre foi pontual. A diferença é que, com o mensalão, foi sistemático".

"Falam da espionagem dos EUA. Todo mundo faz - inclusive a gente!".

"Sua virulência intelectual é igual à minha! Igual ! Igual !. E eu até brinquei na entrevista: disse que você tinha um laivozinho de esquerda..."

"Devo ter recebido uns 400 telefonemas por causa da entrevista. E sabe quantas vezes reprisaram? Umas cem. Você tem a estatística oficial ?" (aqui, o general exagera no número de reprises da entrevista).

"Noventa e três anos - e com a memória de vinte anos atrás! E mais: três vezes por semana, vou para a Academia".

Aproveitei para perguntar se o Alto Comando indicava informalmente ao Presidente da República um nome de militar que deva ser promovido: "Não. Porque, ali, todo mundo quer. É tudo candidato! Fernando Collor me procurou em casa, depois de eleito. Queria saber se eu indicava um nome. Eu disse que não. Mas poderia citar três".

"Disse a um amigo que tinha encontrado com você num restaurante. Perguntaram se a gente tinha conversado. E eu: "Não, porque as meninas tomaram a cena!". Lembranças a elas!". (aqui, o general se refere a duas crianças que "participaram" de outro encontro casual com ele).

Por fim: faz três meses, voltei a ligar para o general. Propus a gravação de uma reportagem em que ele dialogaria com um ex-guerrilheiro. Poderia ser um diálogo importante: tanto tempo depois, personagens com visões radicalmente opostas poderiam debater, civilizadamente, os chamados "anos de chumbo". O general disse que preferia não participar do programa, mas, ainda assim, perguntou quem seria o ex-guerrilheiro convidado para a reportagem. Pareceu-me levemente tentado a aceitar o convite. Eu disse a ele que poderia ser, quem sabe?, Cid Benjamin - um dos participantes do sequestro do embaixador americano. Citei na hora o nome de Cid Benjamin - com quem tinha feito, igualmente, uma entrevista para o Dossiê Globonews. O general comentou: "Vou dizer uma coisa que você não sabe: ele foi prisioneiro meu" .Disse-me que tinha lembrança de ter visto a mãe de Cid e César Benjamin - bem jovens à época da guerrilha - preocupada com os filhos. "Eram meninos!". O general aproveitou para fazer uma tese de inesperado teor psicanalítico: achava que os dois tinham entrado para a luta armada provavelmente porque eram filhos de pais separados. Tempos depois, comentei com o próprio Cid o que tinha ouvido do general Leônidas. Cid riu, divertido, com a investida psicanalítica do general.

Leônidas Pires disse que iria sondar amigos, para ver se algum toparia participar de um possível diálogo com um ex-guerrilheiro.

Não voltamos a nos falar.

Posted by geneton at 04:25 PM

abril 18, 2015

PAULO CÉZAR CAJU

CAMPEÃO DA COPA DE 70 CONFESSA QUE VENDEU MEDALHA PARA COMPRAR COCAÍNA
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Um jogador da Seleção Brasileira campeã do mundo de 1970 faz uma confissão: Paulo Cézar Lima, o Paulo Cézar Caju, revela que vendeu a medalha da Fifa de campeão do mundo e uma miniatura em ouro da Taça Jules Rimet para comprar cocaína. "Jamais eu teria de negociar e vender uma medalha tão preciosa! É uma perda enorme!. Nunca comentei com ninguém, mas agora vou me abrir" - diz, em tom de desabafo.

A revelação foi feita em entrevista no DOSSIÊ GLOBONEWS.

A medalha e a miniatura em ouro não foram os únicos prejuízos de Paulo Cézar com a droga: o ex-craque diz que perdeu três imóveis na zona sul do Rio. Paulo Cézar lamenta a perda dos troféus e dos imóveis, mas diz que tem um motivo para comemoração em 2015: faz quinze anos que vive totalmente afastado das drogas e do álcool. "É um negócio excepcional!". Ao final da entrevista, Paulo César dá um conselho, em tom de apelo: "Digo a quem nunca experimentou drogas: não experimente! Só isso: não experimente!. São mortais".

O envolvimento de Paulo César com a cocaína começou na França, depois que ele encerrou uma carreira vitoriosa nos campos. O vicio durou nada menos de dezessete anos. O sinal vermelho se acendeu quando uma médica francesa lhe deu um diagnóstico dramático: disse que, se continuasse como estava, Paulo César iria morrer em pouco tempo.

Hoje, Paulo César diz que só escapou vivo "do fundo do poço" porque nunca fumou. Se, na época do descontrole e da extravagância, tivesse somado o cigarro ao álcool e às drogas, ele não tem dúvidas de que estaria morto.

O trecho da entrevista em que ele faz a revelação sobre a medalha e o troféu de ouro:

GMN: Além dos apartamentos, algum outro objeto valioso você trocou por droga - alguma medalha que você tenha ganhado como jogador?

Paulo César Lima: "A medalha da Fifa de tricampeão do mundo! Você não tem ideia nem do valor nem do que ela representou e representa: o importante para mim era a cocaína.A medalha era o de menos...".

GMN: A quem você deu a medalha?

Paulo César Lima: "Não me lembro. Eu tinha também uma coleção de Moto-rádios - que eram dados ao melhor em campo. Eram um troféu - mas eu precisava da droga. Você perde a noção total do que está fazendo. Você não tem equilíbrio".

GMN:Você gostaria de ter de volta essa medalha?

Paulo César Lima: "É até difícil responder o que é que eu gostaria de ter de volta. Nem sei o que te responder - honestamente. Eu não tinha controle emocional. Jamais eu teria de negociar e vender uma medalha tão preciosa! É uma perda enorme!". Nunca comentei com ninguém, mas agora vou me abrir: passei à frente também a Jules Rimet, por causa da droga. A Jules Rimet - que ganhamos! ( uma miniatura em ouro da Taça Jules Rimet foi dada a cada jogador da seleção brasileira campeã do mundo de 1970 pelo governo de São Paulo). Passei para um brasileiro - que era marchand e ourives. Levei para ele - que me deu um bom dinheiro. Comprei uma quantidade suficiente para usar por um bom período. A Jules Rimet foi embora também...Por que fui experimentar as drogas? Não sei como. Eu - que nunca fui drogado nem fui alcóolatra - fui experimentar essa maldita cocaína e esse maldito álcool. Não sei por quê!. A quem tem filhos, a quem nunca experimentou, eu digo: não experimente! É duro, é duro, é duro".

Posted by geneton at 08:34 PM

março 27, 2015

CARLOS HEITOR CONY

'IMORTAL' DA ABL ABRE MÃO DE MAUSOLÉU E CONFESSA MENTIRA
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O Dossiê GloboNews exibiu uma entrevista em que escritor e acadêmico Carlos Heitor Cony confessa que cometeu um pecado contra o jornalismo: "Eu inventava muito."

O jornalista desembarca diante de uma velha mansão em Aldenham, a trinta quilômetros de Londres, para cumprir um ritual que se repetia uma vez por ano.

Como se fosse uma criança que contasse os dias que faltavam para a chegada do Natal, o jornalista – um certo Richard MacPherson – passava o ano contando os meses que faltavam para a chegada de dezembro. Porque, em algum fim de tarde de dezembro, às seis em ponto, o telefone de MacPherson tocaria. Do outro lado da linha, como fazia todos os anos, uma voz gutural convocaria MacPherson para uma entrevista exclusiva, no dia seguinte. Era sempre assim. As florestas interiores de MacPherson entravam em ebulição. Quem o chamava – afinal – era um personagem extraordinário: o "único vidente cego do mundo", um indiano capaz de antever o cardápio de catástrofes, alegrias, lágrimas e glórias que o futuro ofertaria ao planeta nos próximos doze meses. O vidente se chamava Allan Richard Way, um indiano que adotara este nome depois de trocar os incensos de Nova Déli pelo cinza renitente de Londres.

Allan Richard Way não tinha os jornalistas em grande conta. Uma vez, ao notar no tom de voz do repórter uma certa excitação diante da antevisão de uma catástrofe, o vidente cego desabafara:

"Vocês – da imprensa – são uns abutres, mas nós, os astrólogos, não somos feitos de massa melhor…"

O caderno de anotações do único repórter a quem o vidente dava entrevistas guardou as impressões de um daqueles encontros inesquecíveis. Richard MacPherson tinha um texto inspirado:

"Pensava encontrá-lo de bem com a vida – mas não se pode confiar em profetas: eles estão sempre acabrunhados, se não com o próprio drama, com o drama dos outros ( ...) Allan Richard Way afunda um pouco na poltrona de espaldar alto onde sempre se senta quando fala comigo para dar suas previsões. É uma rotina que já completa treze anos, mas, para mim, sempre parece uma novidade, um acontecimento misterioso e excitante, com promessas de surpresas e coisas terríveis. Fomos para o escritório, cuja atmosfera só pode ser definida como mágica. O aposento termina numa espécie de jardim de inverno, com claraboia. Nesse ponto, junto às vidraças, voltado para o céu, está o misterioso siderômetro, o aparelho com que Alan Richard Way perscruta os astros e o infinito. Tapeçarias orientais distribuídas com cuidadosa negligência dão um toque fin de siècle ao refúgio do bruxo de Aldenham. Cada vez que entro naquele aposento, meu olhar se dirige de imediato ao siderômetro. Fico a admirá-lo por algum tempo, como se fosse um totem trazido de alguma civilização distante".

"A catarata que ele operara em 1980 na URSS, com a parapsicóloga Djuna Davitashvili, retornou com força total. Hoje, pode-se dizer que Allan Richard Way é o único grande vidente cego do mundo. Corria, em Londres, o boato de que ele estava morrendo. Mas logo tudo se esclareceu. Fora uma perfídia da parapsicóloga soviética Djuna Davitashvili – que há coisa de três anos operara (infrutiferamente) a catarata do mestre (cirurgia psíquica, é claro). Tremendamente despeitada por Allan Richard Way ter previsto no ano passado a morte de Chernenko e a ascensão de Gorbachev ao poder, Djuna espalhou o boato cruel. A tudo isso, como de resto a todas as outras coisas, o recluso de Aldenham retrucou com um de seus sorrisos irônicos – e também com um comentário cortante: 'Ela é cega e surda como as portas do Kremlin'".

"Como se tivesse previsto (e acho mesmo que previu) a chegada do chá, desviou o olhar inútil para a porta que se abriu lentamente – deixando passar a silenciosa governanta carregando uma bandeja onde percebi, com alegria, a presença de cheirosos muffins. 'Deixe-me descansar um pouco'. Logo tomei meu carro, percorri os vinte quilômetros que separam Aldenham de Edgware pensando em tudo o que ouvira e meditando, mais uma vez, sobre a selva que habitamos. Parece que Allan Richard Way encontra estranho prazer em descobrir, na sintaxe dos astros, a crueza de nossas desgraças, a perenidade de nossa dor".

É ou não uma bela descrição de um encontro com um grande personagem? Acontece que tanto o repórter Richard MacPherson quanto o vidente Allan Richard Way jamais existiram. Ambos foram inventados, na redação da revista "Manchete", pelo hoje acadêmico Carlos Heitor Cony. Durante anos, sempre no mês de janeiro, a revista publicava páginas e páginas com as previsões do suposto vidente cego. As reportagens eram sempre assinadas por MacPherson. Tudo invenção.

Cony confessa este pecado na entrevista gravada para o Dossiê GloboNews.

Vai adiante: diz que, uma vez, estava no Aeroporto de Heatrow, em Londres. Um indiano – com turbante e vasta barba branca – transitava pelos corredores. Cony se aproximou do homem, disse que, ao vê-lo, lembrou-se do pai. Perguntou: "Posso tirar uma foto?". "Claro", respondeu o transeunte barbado. Resultado: a foto do indiano anônimo foi estampada na revista, como se fosse do vidente cego. E assim Allan Richard Way ganhou rosto.

O dono da cadeira número três da Academia Brasileira de Letras (ABL) diz que os jornalistas deveriam "meditar" sobre o fato de o vidente jamais ter sido desmascarado.

Que assim seja.

Tenho a tentação de perguntar a Cony, como se de repente encarnasse o espírito do repórter Richard MacPherson: "Dizei, Allan Richard Way, o que teus olhos cegos enxergam para o Brasil? ". Cony responde: "Sou pessimista". Mas esclarece que cultiva um pessimismo não apenas sobre os destinos brasileiros, mas sobre o futuro da espécie humana. "Não, o homem não merece salvação" – constata, com uma ponta de desolação temperada por oito décadas de irrevogável ceticismo diante de tudo e de todos.

Em outro trecho da entrevista, Cony anuncia que tomou uma decisão provavelmente inédita entre acadêmicos. Resolveu, desde já, que não quer ser sepultado no mausoléu da Academia, no cemitério São João Batista. Disposto a não deixar no ar qualquer dúvida, diz que já incluiu a decisão no testamento.

Aos 89 anos de idade, recém-completados, Carlos Heitor Cony terá toda a obra relançada pela Editora Nova Fronteira. Os primeiros títulos já estão nas livrarias.

Abaixo, um trecho da entrevista:

Com algum bom humor, você escreveu que não considera o cemitério de São João Batista "merecedor da confiança que se deve ter nos cemitérios". O problema é que o mausoléu da Academia Brasileira de Letras – para onde um dia o acadêmico Carlos Heitor Cony será levado, num futuro que a gente espera remoto – fica justamente no cemitério São João Batista – que você detesta. Como é que você vai resolver este impasse? Vai abrir mão desse privilégio acadêmico?

Cony: "Vou resolver da seguinte maneira: podendo morrer, não morro! A morte é uma coisa nojenta. Se morrer, serei cremado. Minhas cinzas serão jogadas num morro em Itaipava, que pertencia ao seminário. Era o Morro do Cruzeiro, porque tinha uma cruz em cima. É um sonho que me persegue muito. Quando queria me isolar, ainda nos tempos do seminário – embora já vivesse isolado da família e do mundo – eu sempre ia a este morro, para ver aquelas montanhas e o açude. Minhas cinzas merecem estar lá. Já deixei em testamento: não quero ir para o mausoléu da Academia Brasileira de Letras!".

Se fosse criança, que pergunta você teria curiosidade de fazer ao adulto Carlos Heitor Cony sobre a vida?

Cony: "Por que é que não morri antes? Se eu tivesse essa possibilidade, é o que perguntaria. E às vezes me pergunto: o que é que estou fazendo aqui? Minha vida – e a dos outros – não tem sentido algum".


Foto: Reprodução

Posted by geneton at 10:25 PM

dezembro 19, 2014

MIGUEL ARRAES FALA PELA PRIMEIRA VEZ À TV - DIAS ANTES DE VOLTAR AO BRASIL, NAS ASAS DA ANISTIA (É NESTE DOMINGO, ÀS 23:30, NO CANAL BRASIL ).

O Brasil já foi o país em que um ex-governador, nome de projeção nacional, dava uma entrevista para a TV, mas não tinha ideia se suas palavras poderiam ou ou não ao ar. Já tinha acontecido antes: o ex-governador, deposto e exilado pelo golpe militar de 1964, fizera gravações para a TV que nunca foram ao ar no Brasil. ( A tesoura da censura ou o poder da autocensura tratavam de deixar mudas vozes tidas como incômodas. A autocensura da imprensa "falada, escrita e televisionada" nos "anos de chumbo": eis aí o tema para uma bela investigação jornalística ou acadêmica !).
O ex-governador se chamava Miguel Arraes. Em entrevista que será representada neste domingo, às onze e meia da noite, no Canal Brasil ( e também na segunda, uma e meia da tarde ), dentro da série de reprises do histórico programa ABERTURA, Arraes manifesta dúvidas sobre o destino que teriam suas palavras: iriam ou não chegar a ouvidos brasileiros?
http://goo.gl/uxmdwq
A entrevista foi concedida a Roberto D`Ávila, em Paris, dias antes de Arraes voltar ao Brasil. Trata-se de uma "relíquia": é provável que tenha sido a última entrevista que Arraes tenha dado para uma TV antes de voltar do exílio ( e a primeira que seria exibida por uma TV brasileira). Não custa lembrar que exilados célebres, como o próprio Arraes, Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes ou Francisco Julião eram figuras banidas dos vídeos brasileiros. Não por acaso, o programa Abertura marcou época. Vale revê-lo, então.
PS: E ainda há uns gatos pingados que vão para a rua pedir a volta de militares ao poder.....
Vão ficar falando sozinhos. Justiça se faça: depois da redemocratização, as Forças Armadas jamais deram qualquer sinal de que estariam minimamente dispostas a quebrar a legalidade.
Ainda bem.
Não custa lembrar que, no dia 15 março de 2015, completam-se trinta anos desde o dia em que o último general deixou o Palácio do Planalto. Trinta anos não são trinta dias! Dessa vez, Dona Democracia parece que veio para ficar.

Posted by geneton at 11:58 AM

MIGUEL ARRAES FALA PELA PRIMEIRA VEZ À TV - DIAS ANTES DE VOLTAR AO BRASIL, NAS ASAS DA ANISTIA (É NESTE DOMINGO, ÀS 23:30, NO CANAL BRASIL ).

O Brasil já foi o país em que um ex-governador, nome de projeção nacional, dava uma entrevista para a TV, mas não tinha ideia se suas palavras poderiam ou ou não ao ar. Já tinha acontecido antes: o ex-governador, deposto e exilado pelo golpe militar de 1964, fizera gravações para a TV que nunca foram ao ar no Brasil. ( A tesoura da censura ou o poder da autocensura tratavam de deixar mudas vozes tidas como incômodas. A autocensura da imprensa "falada, escrita e televisionada" nos "anos de chumbo": eis aí o tema para uma bela investigação jornalística ou acadêmica !).
O ex-governador se chamava Miguel Arraes. Em entrevista que será representada neste domingo, às onze e meia da noite, no Canal Brasil ( e também na segunda, uma e meia da tarde ), dentro da série de reprises do histórico programa ABERTURA, Arraes manifesta dúvidas sobre o destino que teriam suas palavras: iriam ou não chegar a ouvidos brasileiros?
http://goo.gl/uxmdwq
A entrevista foi concedida a Roberto D`Ávila, em Paris, dias antes de Arraes voltar ao Brasil. Trata-se de uma "relíquia": é provável que tenha sido a última entrevista que Arraes tenha dado para uma TV antes de voltar do exílio ( e a primeira que seria exibida por uma TV brasileira). Não custa lembrar que exilados célebres, como o próprio Arraes, Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes ou Francisco Julião eram figuras banidas dos vídeos brasileiros. Não por acaso, o programa Abertura marcou época. Vale revê-lo, então.
PS: E ainda há uns gatos pingados que vão para a rua pedir a volta de militares ao poder.....
Vão ficar falando sozinhos. Justiça se faça: depois da redemocratização, as Forças Armadas jamais deram qualquer sinal de que estariam minimamente dispostas a quebrar a legalidade.
Ainda bem.
Não custa lembrar que, no dia 15 março de 2015, completam-se trinta anos desde o dia em que o último general deixou o Palácio do Planalto. Trinta anos não são trinta dias! Dessa vez, Dona Democracia parece que veio para ficar.

Posted by geneton at 11:58 AM

MIGUEL ARRAES FALA PELA PRIMEIRA VEZ À TV - DIAS ANTES DE VOLTAR AO BRASIL, NAS ASAS DA ANISTIA (É NESTE DOMINGO, ÀS 23:30, NO CANAL BRASIL ).

O Brasil já foi o país em que um ex-governador, nome de projeção nacional, dava uma entrevista para a TV, mas não tinha ideia se suas palavras poderiam ou ou não ao ar. Já tinha acontecido antes: o ex-governador, deposto e exilado pelo golpe militar de 1964, fizera gravações para a TV que nunca foram ao ar no Brasil. ( A tesoura da censura ou o poder da autocensura tratavam de deixar mudas vozes tidas como incômodas. A autocensura da imprensa "falada, escrita e televisionada" nos "anos de chumbo": eis aí o tema para uma bela investigação jornalística ou acadêmica !).
O ex-governador se chamava Miguel Arraes. Em entrevista que será representada neste domingo, às onze e meia da noite, no Canal Brasil ( e também na segunda, uma e meia da tarde ), dentro da série de reprises do histórico programa ABERTURA, Arraes manifesta dúvidas sobre o destino que teriam suas palavras: iriam ou não chegar a ouvidos brasileiros?
http://goo.gl/uxmdwq
A entrevista foi concedida a Roberto D`Ávila, em Paris, dias antes de Arraes voltar ao Brasil. Trata-se de uma "relíquia": é provável que tenha sido a última entrevista que Arraes tenha dado para uma TV antes de voltar do exílio ( e a primeira que seria exibida por uma TV brasileira). Não custa lembrar que exilados célebres, como o próprio Arraes, Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes ou Francisco Julião eram figuras banidas dos vídeos brasileiros. Não por acaso, o programa Abertura marcou época. Vale revê-lo, então.
PS: E ainda há uns gatos pingados que vão para a rua pedir a volta de militares ao poder.....
Vão ficar falando sozinhos. Justiça se faça: depois da redemocratização, as Forças Armadas jamais deram qualquer sinal de que estariam minimamente dispostas a quebrar a legalidade.
Ainda bem.
Não custa lembrar que, no dia 15 março de 2015, completam-se trinta anos desde o dia em que o último general deixou o Palácio do Planalto. Trinta anos não são trinta dias! Dessa vez, Dona Democracia parece que veio para ficar.

Posted by geneton at 11:58 AM

novembro 06, 2014

UMA CENA DOS BASTIDORES JORNALÍSTICOS: O DIA EM QUE O IRMÃO ALEMÃO DE CHICO BUARQUE TERMINOU "JOGANDO" O LOCUTOR-QUE-VOS-FALA NUMA "LISTA NEGRA"

Como se diz hoje: deu ruim. Não é exagero: deu ruim, sim. E o irmão alemão de Chico Buarque de Holanda foi o pivô do desastre.
Logo ele - o irmão alemão ? Sim, logo ele - que, pelo jeito, acaba de virar título de livro.
( como se sabe, os jornais acabam de noticiar que o novo romance de Chico Buarque se chama O Irmão Alemão. Não se sabe se trará traços autobiográficos. É possível que sim, é possível que não ).
O locutor-que-vos-fala se apressa, então, a contar os bastidores de um pequeno desastre jornalístico, indiretamente provocado por ele, esta entidade misteriosa: o irmão alemão do sr. Francisco Buarque de Holanda.
O que aconteceu: Chico Buarque aceitara dar uma ( raríssima ) entrevista ao Fantástico, no ano da graça de 1998. A entrevista seria feita num estúdio em São Cristóvão, usado como cenário para a gravação de um clip do recém-lançado cd "As Cidades". Eu trabalhava no programa, na época. Zarpei para o estúdio, em companhia do cinegrafista Édison Santos, com uma lista de perguntas debaixo do braço.
Chico respondeu de bom grado a um questionário que tratava de temas tão díspares quanto futebol ( era ano de Copa do Mundo ), os mistérios da inspiração, as andanças com Garrincha em Roma ou a existência de um desconhecido meio-irmão alemão - fruto de um namoro de Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico, com uma alemã, ainda nos tempos de solteiro. O filho de Sérgio Buarque ficou na Alemanha. Ao que se sabe, jamais pisou em solos tropicais.

A matéria foi ao ar no Fantástico do domingo seguinte. Depois, a integra da entrevista seria exibida no programa Milênio - na Globonews. Jornalisticamente, a expedição a São Cristóvão aparentemente rendera cem por cento.
Que cem por cento que nada. Deu ruim.
A "chamada" para a entrevista no Fantástico trombeteava, justamente, a história do irmão alemão que Chico jamais tinha visto - um detalhe biográfico obviamente interessante. Aliás: interessantíssimo.
Não tenho certeza (é preciso consultar os arquivos da Rede Globo), mas é possível que a chamada para a entrevista tenha sido trombetada pela voz de trovão de Cid Moreira - suficiente para despertar a atenção de qualquer cristão desatento ( by the way: que falta fazem as grandes vozes nos telejornais, hoje tão raras! Há manchetes que clamam desesperadamente por uma voz de trovão! ).
O locutor-que-vos-fala só soube depois - mas o desastre começou a se desenhar no horizonte justamente quando a chamada para a entrevista foi ao ar, no início do programa.
Numa declaração que deu, dias depois, a repórteres de jornais, Chico Buarque reclamou: disse que, quando fica nervoso, os músculos do ombro imediatamente se contraem. E foi o que aconteceu quando ele viu, alardeada no Fantástico, a história do irmão alemão com quem ele nunca tinha se encontrado. Estimulados pela manchete televisiva, os músculos do ombro de Chico Buarque começaram a encenar um silencioso movimento de protesto.
O tempo fechou. Deu ruim, sim. Ah, se deu...
Chico queixou-se de que a história do irmão alemão - originalmente tratada pela Revista Realidade, anos antes - tinha recebido tintas sensacionalistas na TV. Disse algo assim: que a última coisa que ele faria na vida seria falar da vida familiar no Fantástico.
Aqui, vou "trair" o jornalismo: digo que, neste ponto, Chico Buarque deve ter toda razão. A troco de quê um artista como ele - que sempre se incomodou com a exposição pública - iria falar de vida em família justamente num programa de TV? Nunca, never, never.
O "problema" é que a história do irmão não significava qualquer invasão indevida de privacidade. Chico Buarque falou do irmão alemão com bom humor ( ver íntegra da entrevista abaixo ), mas, pelo visto, não gostou nada, nada do destaque dado ao assunto.
O que entrou em cena, neste caso, foi a velha, notória, tradicionalíssima e compreensível diferença de visão entre um jornalista e um artista. Um artista deve esperar que a "manchete" anuncie, por exemplo, o novo clip. Já um jornalista jamais deixaria de destacar uma história pouco conhecida envolvendo um nome importantíssimo da música brasileira.
Resultado: por culpa da história do irmão alemão, o locutor-que-vos-fala e o Fantástico entraram na "lista negra" de Chico Buarque de Holanda. Desde então, ele se recusa a dar declarações ao programa.
Meses depois, quando a repórter Renata Ceribelli foi fazer, num estúdio, uma reportagem para o Fantástico sobre a gravação de um disco que contava com a participação de Chico Buarque, ele tratou de avisar, educadamente, que não falava para o programa. Jogou a culpa do incidente no "barbudinho" que tinha feito a entrevista com ele. O "barbudinho" - oh, my God - era eu.
O locutor-que-vos-fala confessa a "culpa": sim, com certeza, a decisão de "trombetear" a história do irmão alemão de Chico Buarque foi minha. O instinto jornalístico dizia que é claro, é óbvio, é indiscutível que aquela história mereceria uma chamada.
Chico Buarque, pelo que representa, é personagem permanente da lista de entrevistáveis de ( quase) todo repórter. Não sou exceção. Mas...o "barbudinho" continua na geladeira.
Prometo não fazer novas perguntas sobre o irmão alemão.
( aliás: com quantos anos exatamente ele estaria hoje? Viveu onde? Alguma vez tentou contato com a família Buarque de Holanda? Se ele se casou, teve filhos? O que estão fazendo hoje estes sobrinhos de Chico Buarque? Algum teve vocação para o futebol? E para a música? Sérgio Buarque se referia ao filho alemão em que termos? Se fosse escrever uma carta para o irmão alemão desconhecido, qual seria a primeira frase que Chico Buarque usaria para se apresentar? Se tivesse de sugerir ao irmão sumido um passeio pelo Brasil, qual seria o primeiro lugar que ele indicaria? Já pensou em compor uma música para ele? ).
Não, é melhor esquecer o irmão alemão.
Deu ruim, deu ruim, deu ruim.
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Aqui, a íntegra da entrevista. É razoavelmente longa - um sacrilégio entre tantos facebooks e tantos twitters telegráficos.
Mas.....gravando !
GMN : Que música de outro compositor você daria tudo para ter feito ?
Chico Buarque : “Eu não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor.Mas existem músicas que amo.Gosto mais do que as minhas.Eu não gostaria de ter feito uma música alheia.É uma coisa que não me ocorre.Porque o maior prazer da música está exatamente no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa.Quando você ou repete nos shows, não vive a mesma sensação. Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro,então,sentir o prazer que sinto a cada composição minha,por menor que seja”.
GMN : Você poderia,então, citar uma música de outro autor que você inveja ?
Chico Buarque : “Um milhão de músicas.Não tenho uma preferida,mas agora que você falou,me bateu uma na lembrança : “Águas de Março” – de Tom Jobim. É uma música que eu não diria que gostaria de ter feito,porque é impossível que eu fizesse uma música dessa.É outra cabeça.Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação,assim como músicas de Noel Rosa, Cartola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Recorro a um recurso : tenho parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio Tom. Ao me fazer parceiro,eu crio a música com eles.Ao fazer a letra para uma música alheia,eu estou me apropriando um pouco dessa música – que não é minha”.
GMN : Depois de fazer “Paratodos”,você passou anos sem lançar um disco com músicas inéditas.Disco de Chico Buarque agora é feito Copa do Mundo – só de quatro em quatro anos ?
Chico Buarque : “Pior ! Agora é de cinco em cinco. Os lançamentos vão se espaçando.O trabalho vai ficando mais difícil mas também mais prazeroso.Quando termina,você se sente cansado,mas satisfeito.As músicas saem,talvez,com menos espontaneidade,com mais intensidade” .
GMN : A que você atribui o espaçamento cada vez maior entre um disco e outro ?
Chico Buarque : “Talvez a música popular seja uma arte de juventude.Imagino que seja,porque o consumidor de música popular é,sobretudo,o adolescente,o jovem de vinte a trinta anos.Depois,começa a diminuir. Já o autor de música popular tende a ser mais seletivo com o tempo. Faz uma coisa ou outra,mas não com a exuberância que tinha aos vinte anos de idade. Quando você tem vinte anos,você tem um baú de música inéditas. Depois,as músicas vão escasseando.Você fica mais exigente.Chega,então,um tempo em que a gente começa a fazer música popular com o resto de juventude que se tem.Depois,o melhor a fazer talvez seja imitar Dorival Caymmi – que se recolheu aos seus pincéis e suas tintas.Talvez seja melhor procurar outro afazer,outra ocupação”.
GMN : Não é o que você vem fazendo nos últimos anos,com a dedicação cada vez maior à literatura ?
Chico Buarque : “A literatura é uma alternativa. Talvez eu tenha me inspirado em Caymmi ao pensar nisso : ter um recurso para continuar criando sem depender da juventude – que é o motor da música popular”.
GMN : Você diz que o futebol tem momentos de improviso e genialidade que nenhum artista consegue repetir.Mas em alguma de duas músicas você teve o sentimento de improviso que você só encontra no futebol ?
Chico Buarque : “É possível encontrar algo semelhante ao futebol no jazz, na música instrumental.Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador.De qualquer forma,há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente,vem uma idéia. Você se pergunta : de onde veio ? É o que acontece com o futebol : é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável”.
GMN : Que música ou que verso despertou em você,na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible ?
Chico Buarque : “Você vai trabalhando,trabalhando,trabalhando em cada música,até que há um “clique” : aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz” .É como se fosse algo que viesse de fora”.
GMN : Quando estava exilado na Itália, você teve contato com Garrincha.É uma página pouco conhecida da biografia de Chico Buarque. Vocês conversaram sobre futebol ou sobre música ?
Chico Buarque : “É óbvio que eu falava sobre futebol – e ele falava de música….Acontece também com Pelé – que adora música. Mas Garrincha era muito musical. Tive um contato maior com ele em Roma.A gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol. Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes. Gostava de João Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória,mais ingênua,talvez. Mas não ! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto”.
GMN :Que tipo de comentário ele fazia sobre João Gilberto ?
Chico Buarque : “Garrincha comentava gravações, se referia a detalhes, lembrava de como João Gilberto cantava uma determinada música. Para me mostrar,Garrincha cantarolava – não muito bem – mas mostrava que tinha a lembrança das músicas de João Gilberto.Referia-se à maneira como João Gilberto cantava as músicas. João é um inventor. Não é um compositor. Talvez seja mais do que compositor, porque inventa a partir de uma música alheia. E Garrincha falava exatamente disso : a maneira como João Gilberto cantava -talvez uma cantiga mais conhecida que ele tivesse reinterpretado, como “Os Pés da Cruz”. Garrincha salientava a maneira como João Gilberto reinventava um samba”.
GMN : É verdade que você dirigia automóvel para Garrincha na Itália ?
Chico Buarque : “Eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma.Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat.Era impressionante.As pessoas paravam na rua.Garrincha era muito popular.Isso aconteceu entre 1969 e 1970.Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo.Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962.Mas ele ainda era muito conhecido na Itália”.
GMN : “Se você pudesse escolher entre ser um grande nome da Música Popular Brasileira e um grande craque da seleção, qual das duas profissões você escolheria ?
Chico Buarque : “Nunca escolhi ser músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos quatorze, quinze anos de idade, quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão.Mas eu tinha essa ilusão,na época,com bastante segurança.Tornei-me músico um pouco por acaso. Devo dizer que o sonho de ser um craque permaneceu na minha cabeça. Ainda hoje acredito que seja”.
GMN : Você chegou a tentar ser um jogador de futebol profissional ?
Chico Buarque : “Eu,que jogava tanto, um dia fui ao Juventus, na rua Javari,em São Paulo, para fazer um teste. Mas eram milhões de candidatos fazendo o teste….Comecei a perceber que ia não dar para mim. Depois de esperar,esperar e esperar,fui embora.Não cheguei nem a ser chamado para fazer o teste, porque acharam que eu não tinha físico para ser jogador”.
GMN : Mas por que você escolheu logo o Juventus para fazer um teste – e não um time grande, como o Palmeiras, o Corinthians ou o São Paulo ?
Chico Buarque : “Porque eu achava que,num time mais fraco,eu teria uma vaga na certa….(ri)”.
GMN : “Você,como especialista em futebol,jogador amador,técnico de um time de futebol de botão chamado Politheama,poderia escalar a seleção brasileira de tods os tempos de Chico Buarque de Holanda ? Qual é o grande time ?
Chico Buarque : “É impossível.A brincadeira de escalar times de diversas épocas é apenas uma brincadeira.Porque você não pode comparar o futebol que se joga hoje com o futebol que se jogava há dez anos.Imagine vinte anos ! A comparação é falsa. Não se imagina o que seria Garrincha hoje nem se imagina o que seria Romário há vinte anos.É uma comparação absurda”.
GMN : Você tem no futebol ídolos que não são tão populares quanto Pelé e Garrincha,como Canhoteiro, por exemplo….
Chico Buarque : “Canhoteiro,Pagão.Fiz uma música chamada “O Futebol” dedicada a uma linha utópica – Mane Garrincha,Didi,Pagão,Pelé e Canhoteiro. Temos nossos ídolos particulares, aqueles que a gente pensa que são só nossos, porque ninguém conhece. Pelé e Garrincha todo mundo da minha idade viu jogar. Quando eu morava em São Paulo, via jogadores como Canhoteiro e Pagão. Não havia televisão em rede nacional. O pessoal do Rio,então,não conhecia esses jogadores. Quando falo de Canhoteiro e Pagão,nem sempre conhecem,aqui no Rio. Outros ídolos aqui do Rio nem sempre eram conhecidos em São Paulo. Quando eu voltava para casa em São Paulo,depois de passar férias no Rio, por volta de 1955, antes da Copa,portanto,eu falava de Garrincha – e ninguém sabia quem era”.
GMN : Quando criança –ou adolescente- você era daquele tipo de torcedor que vai ver o jogador descendo do ônibus na porta da concentração ?
Chico Buarque : “Eu fazia isso tudo,porque morava perto do estádio do Pacaembu.Eu me lembro de ter visto a seleção de 1958 concentrada.Fui lá peruar,ficar com cara de bobo olhando para as “figurinhas”.Porque eu conhecia os jogadores dos álbuns de figurinhas- muito pouco de televisão.Não tinha televisão em casa.A gente não via futebol pela TV : ia ver no estádio. Eu via os jogadores de longe,durante os jogos.Ver de perto um jogador era um acontecimento”.
GMN : De qual dos jogadores que você viu de perto você guardou a lembrança mais forte ?
Chico Buarque : “De Almir,o Pernambuquinho – que ficou olhando para mim depois que entrou no ônibus. Eu estava ali de boca aberta,com cara de babaca, olhando os jogadores. Almir,então,começou a caçoar de mim. Depois de ter sido chamado na primeira convocação, num grupo de quarenta e quatro jogadores,Almir terminou nem indo para a Copa da Suécia”.
GMN : Você,ainda criança, viu a famosa seleção brasileira de 1950 jogar em São Paulo contra a Suécia,nas vésperas da grande derrota contra o Uruguai,no Maracanã. A derrota de 1950 deixou algum trauma em você ?
Chico Buarque : “Trauma não posso dizer que tenha deixado,porque eu tinha seis anos de idade.Mas me deixou assustado,porque ouvi o jogo pelo rádio.O Maracanã,”o maior estádio do mundo”,era um sonho na minha cabeça.Eu me lembro exatamente de que o locutor,chamado Pedro Luís,disse assim quando o Brasil fez um a zero contra o Uruguai : “Gol de Friaça ! Quase que vem abaixo o Maracanã !”. Eu pensei que o estádio viesse abaixo mesmo ! Pensei que o estádio estivesse caindo,com duzentas mil pessoas.Não prestei atenção ao jogo.Fiquei pensando no Maracanã tremendo com aquelas pessoas todas ali dentro”.
GMN : Quem levou ao estádio ,em São Paulo,para ver o jogo do Brasil contra a Suiça pela Copa de 50 ?
Chico Buarque : “Quem levou foi minha mãe, porque meu pai não gostava muito de futebol”.
GMN : O futebol tem uma presença enorme na vida do brasileiro,mas aparece pouco como tema de músicas. É desproporcional a relação entre a importância do futebol e a quantidade de músicas que tratam do tema. Por que ?
Chico Buarque : ”Não sei.O futebol é próximo da fita do brasileiro,assim como os jogadores sempre foram muito próximos dos músicos.Jogador de futebol tem mania de batucar,canta na concentração.Isso não é de hoje,existia já nos anos cinqüenta.Hoje,o pessoal de pagode se encontra com o pessoal da seleção para gravar”.
GMN : Se a gente for contar as músicas suas que tratam de futebol,vai ver que são poucas. Qual é a dificuldade em tratar de futebol ?
Chico Buarque : “Não é só música.Há pouca literatura tratando de futebol,há pouco cinema. Dá para entender por que há pouco futebol no cinema : é difícil reproduzir com imagens o que já é tão forte na vida real. Teoricamente,traduzir o futebol em palavras ou em música seria fácil do que em cinema.Prometo fazer mais umas duas ou três”.
GMN : Quando joga futebol,que posição você ocupa ?
Chico Buarque : “Jogo em todas.Mas sou mais de preparar o gol. Sou um centro-avante recuado”.
GMN : Por que é que você se apresentava como jogador da seleção brasileira numa viagem que você fez ao Marrocos ? Alguém desconfiou da mentira ?
Chico Buarque : “Quando você diz que é brasileiro no exterior,o pessoal começa a falar de futebol. É uma maneira de ganhar ponto com eles. Numa conversa com motorista de táxi, por exemplo, o assunto futebol logo aparece se você diz que é brasileiro. Então,eu assumia a identidade de jogador de futebol até que um estrangeiro disse : “Ex-jogador,não é ? “….Eu disse que tinha sido convocado para a seleção de 82 : tinha sido reserva de Sócrates”.
GMN : O pessoal acreditava ?
Chico Buarque : “Não !” (rindo)
GMN : Você quebrou o perônio e rompeu os ligamentos jogando futebol. Disse, então, que não estava conseguindo compor porque não sabe fazer música parado. Você só compõe andando ?
Chico Buarque : “Não apenas compor – eu também só sei pensar andando. Se você ficar parado,não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo.Se você tem qualquer problema,dê uma caminhada -porque ajuda,inclusive a ter idéias. Se a música ficou emperrada ou se a idéia para um livro não vem, a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama. Eu não conseguia ter idéias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdido pela imobilidade”.
GMN : Você então associa o ato de andar ao ato de compor ?
Chico Buarque : “Associo o ato de andar ao ato de pensar,criar e compor”.
GMN : Você já teve o “estalo” para alguma música jogando futebol ?
Chico Buarque : “Fazer música jogando futebol não dá, porque durante a partida você fica empenhado em suas jogadas geniais.Mas caminhando tive a idéia de várias coisas.A verdade é a seguinte : você compõe com o violão,mas quando o momento em que o processo fica encrencado,você tem de sair andando. Não pode ficar parado,com o violão,a vida inteira. Então,para resolver impasses,o melhor é caminhar”.
GMN : Diz a lenda que você escreveu aquele refrão “você não gosta de mim/mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel – que tinha uma filha.Somente você pode tirar essa dúvida : é verdade ?
Chico Buarque :”Eu nunca disse isso.As pessoas inventam. O engraçado é que a invenção passa a fazer parte do anedotário. Nunca imaginei que pudesse fazer uma música pensando num general ! A gente não faz isso. Você pode fazer uma música com raiva de alguma coisa : acontecia na época da ditadura militar,porque,com a censura,a política interferia na criação,o que nos incomodava.Mas você não ia dedicar uma canção a um pessoa. Quando se falava “você”,não se estava referindo a um general.Era uma generalidade”.
GMN : Por falar em generais : o general Garrastazu Médici freqüentava estádios no tempo em que você sofria os horrores da censura. Alguma vez você cruzou com ele num estádio de futebol ?
Chico Buarque : “Vi uma vez,porque eu estava chegando ao portão que dá nas cadeiras do Maracanã. De repente, chegou uma turma de batedores, com sirenes, com a truculência que é um pouco própria de autoridades, mas na época, era muito mais acentuada. ”Afasta todo mundo ! “. Médici desceu do carro. Fiquei vendo de longe aquele figura”.
GMN : Você já era famoso.Algum dos batedores do general reconheceu você por acaso ?
Chico Buarque : “Batedor não reconhece ninguém : não olha para a cara de ninguém na hora de sair abrindo espaço”.
GMN : Em 1978,você participou da campanha do então candidato ao senado Fernando Henrique Cardoso,em São Paulo. Numa declaração publicada em 1998 em livro,Fernando Henrique diz que você é um crítico repetitivo.Como é que você recebeu essa crítica ?
Chico Buarque : “Achei engraçado no começo. Mas não dei a importância que às vezes dão. Parece que fiquei ofendido.Não. É normal,é natural que um político tenha opiniões políticas até a respeito de artistas. Diz o que interessa naquele momento.É da natureza de um político. Fernando Henrique sabe o que diz e tem o direito de gostar de quem quiser. Nunca imaginei que ele gostasse de mim. Achei divertida e engraçada a ênfase com que ele gosta de uma pessoa e pode deixar de gostar. Mas é a opinião de um político. Fernando Henrique diz que não gosta mais de mim. Antes,gostava”.
GMN : É verdade que você tem um irmão alemão ?
Chico Buarque : “Eu tenho um meio- irmão alemão. Não sei se ainda tenho. Mas tive. O meu pai teve um filho alemão antes de se casar. Depois, perdeu de vista,porque voltou para o Brasil, onde se casou. Não se relacionou mais com a mulher nem com o filho que teve na Alemanha. A última notícia que ele teve foi durante a guerra. A mulher pediu que o meu pai enviasse documentos provando que não tinha sangue judeu até a segunda ou terceira geração. O meu pai providenciou. Depois da guerra, não teve notícias”.
GMN : Você chegou a procurar esse irmão ?
Chico Buarque : “Uma vez,quando fui a Berlim,tive a impressão de estar vendo um irmão sempre em alguma parte – alguém que pudesse parecer comigo ou com meu pai. Tive a impressão de que ele poderia estar ali. Não sei explicar o que aconteceu. Não se a mãe não contou a ele quem era o pai. A mulher pode ter mudado de nome depois de se casar de novo. Um pai alemão pode te-lo adotado. O engraçado é que sempre perguntavam ao meu pai – que era muito branco de pele : “Por acaso o senhor é filho de alemão ? “. E ele dizia : “Não. Sou pai de alemão...”.
GMN : O seu pai disse, num artigo, que você, quando era estudante, gostava de desenhar cidades. Havia sempre uma fonte no meio da praça,nas cidades que você desenhava. Você,que já foi estudante de arquitetura,ainda hoje desenha ou imagina alguma cidade nas horas vagas ?
Chico Buarque : “Desenho cidades enormes,gigantescas,com fontes,com praças,com nomes,com ruas.Quando não desenho,penso.Sonho muito com cidades. Os meus sonhos misturam cidades que conheço.Também sonho com cidades que não conheço e com cidades que imagino.São as melhores de todas”.
GMN : Você batizou o seu time de futebol de campo de Politheama – que era o nome do seu time de futebol de botão. Que nomes você dá às suas cidades imaginárias ?
Chico Buarque : “Não vou contar.
As cidades têm nomes. Mas não posso nem pronunciar aqui. Vou passar vergonha” .
GMN : Por quê ?
Chico Buarque : “Porque são nomes que têm consoantes que nem existem.São idéias bobas”.
GMN : Você tem a fama – falsa- de tímido e a fama – verdadeira – de arredio.Você não é de estar todo dia nos jornais ou na televisão. Qual é o maior incômodo que a fama traz ? É o assédio dos fãs,a invasão de privacidade ou a curiosidade da imprensa ?
Chico Buarque : “Assédio de fãs,no meu caso,não existe,porque não ando cercado nem de óculos escuros. Ando naturalmente na rua. As pessoas não perturbam muito.Se você andar como uma pessoa qualquer,você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem,dizem “olá,Chico,tudo bem ? “.Não passa disso. Não vou dizer que é mau. É bom, é simpático, é gostoso. Não tenho nada contra”.
GMN : Mas a imprensa incomoda você de vez em quando…
Chico Buarque : “Quando quer,a imprensa incomoda” .
GMN : É por isso que você dá tão poucas entrevistas e fala tão pouco com os repórteres ?
Chico Buarque : “Eu falo bastante. Falo mais do que devia. Já estou falando aqui há meia-hora com você ! Mas é que não tenho tanto assunto.Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras coisas”.
GMN : “Se você fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda numa enciclopédia de música popular,qual seria a primeira frase ?
Chico Buarque (rindo) :”Êpa !. Não sei. Podia ser: êpa”….
GMN : Com interrogação ou com exclamação ?
Chico Buarque : “Com interrogação. A primeira palavra seria : êpa ? “.
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(Entrevista gravada em 1998)

Posted by geneton at 12:02 PM

julho 24, 2014

ARIANO SUASSUNA

A 'LISTA DE OURO' DE SUASSUNA: CRIADORES QUE MERECEM O TRONO DA CULTURA BRASILEIRA
É hora de repassar as palavras de Ariano Suassuna. Durante quarenta anos (!), o locutor-que-vos-fala incomodou Ariano Suassuna com questionários sem fim. E ele nunca deixou de atender a um pedido de entrevista. Ainda bem.

(Pequena divagação: que outra coisa pode fazer um repórter, além de tentar passar adiante - da maneira mais fiel e mais atraente possível - o que ouviu e viu? É pouco, pouquíssimo – mas pode ser útil como contribuição, mínima que seja, para "produção de memória". Guardei o que Ariano Suassuna disse nessas entrevistas todas - é claro. Um dia, quem sabe, consigo reunir todo o material num "livro de papel" ou num território virtual como este. Daria um painel interessante. Faço uma pequena expedição aos meus arquivos não tão implacáveis: as primeiras entrevistas com Ariano Suassuna foram feitas em torno de 1974. Tinha meus dezessete para dezoito anos. Suassuna não tinha, ainda, um fio de cabelo branco. Dou um suspiro de espanto e incredulidade: quanto tempo!)

Ariano tinha sempre muitíssimo a dizer sobre a literatura e o Brasil. Não se trancafiava numa redoma literária. Fazia questão absoluta de intervir no debate cultural brasileiro. Ao longo do tempo, arrebanhou devotos e desafetos. Vai continuar dividindo opiniões.

Uma vez, em meados dos anos 1990, pedi a ele que fizesse uma lista dos nomes da cultura brasileira que, para ele, representavam melhor o Brasil.

Ariano me deu uma lista com exatamente 20 nomes. Tratou de corrigir um equívoco que, segundo ele, cercava suas investidas em defesa da arte popular: o que ele estava defendendo não era a valorização de algo rústico ou primário. Pelo contrário, dizia que há, em manifestações da arte popular brasileira, exemplos espantosos de qualidade literária.

Eis a íntegra da entrevista:

Autor de um dos mais belos livros publicados nas últimas décadas no Brasil, o imerecidamente pouco conhecido ''Romance d´A Pedra do Reino'', o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna vem se dedicando a uma grande tarefa. Em nome da defesa da cultura brasileira contra a infiltração do ''lixo cultural'' despejado goela abaixo em países satélites, como o Brasil, Ariano vem se dedicando a uma cruzada solitária em defesa de manifestações da criatividade popular.

O cruzado Ariano se esquece até de que tem horror a viajar. Há pouco tempo, foi parar no Rio Grande do Sul para dar uma ''aula-espetáculo'' – uma façanha digna de registro, na biografia de um homem que se contenta em ver aviões em fotografias. Segunda tarefa: conhecido como autor do ''Auto da Compadecida'', texto teatral que virou até filme dos Trapalhões, este sertanejo da Paraíba radicado há décadas no Recife pretende lançar em breve um livro em que simplesmente recria e reescreve tudo o que já produziu na vida. A tarefa se arrasta há anos. Não é para menos. Nesta entrevista, além de acusar de ''equivocados'' os que defendem a abertura dos portos ao ''lixo cultural'' estrangeiro, ele faz uma lista dos artistas e escritores que, segundo ele, realmente representam o Brasil.

O chamado ''gosto médio'', a que o senhor se refere com desprezo, é "pior do que o mau gosto''. Quais são, na produção cultural brasileira de hoje, os piores exemplos da vitória do ''gosto médio'' sobre a qualidade artística?

ARIANO SUASSUNA: '' O gosto médio a que me refiro é ligado àquele mesmo lixo produzido pela indústria cultural de massas. É fácil identificar na produção cultural brasileira de hoje quem segue tais padrões ou com eles se acumplicia''.

Há quem diga que quem defende a preservação da chamada ''arte popular'' defende, na verdade, a manutenção da pobreza. Porque, se conseguissem vencer a pobreza e se tivessem acesso à educação, os artistas populares certamente deixariam de produzir obras formalmente rústicas e primitivas. O que o senhor diz a estes críticos?

ARIANO SUASSUNA: "Digo, em primeiro lugar, que se realmente a opção fosse esta, eu não teria dúvida: seria melhor que a injustiça desaparecesse, mesmo que a Arte Popular desaparecesse com ela. Mas acontece que este é somente um sofisma, criado por pessoas que, na verdade, detestam as manifestações populares da nossa Cultura. Em segundo lugar, eu gostaria de refutar o lugar-comum segundo o qual as obras criadas no âmbito na Arte Popular são necessariamente rústicas e primitivas quanto à forma. Veja-se, por exemplo, a seguinte Décima que poderia ter sido escrita por Calderon de la Barca - e é do cantador Dimas Batista:

'Na vida material
cumpriu sagrado destino :
o Filho de Deus, divino,
nos deu glória espiritual.
Deu o bem, tirou o mal,
livrando-nos da má sorte.
Padeceu suplício forte,
como o maior dos heróis.
Morreu pra dar vida a nós:
a vida venceu a morte.'

Ou então esta, que Mallarmé assinaria :

'No tempo em que os ventos suis
faziam estragos gerais,
fiz barrocas nos quintais,
semeei cravos azuis.
Nasceram estes tafuis,
amarelos como cidro.
Prometi a Santo Izidro,
com muito jeito e amor,
leva-los, quando lá for,
em uma taça de vidro.'

Assim, caso os Poetas, hoje populares, recebessem educação universitária, o que poderia acontecer é que passassem todos a compor seus versos com o rigor das duas Décimas citadas. Não acredito que o Povo pobre do Brasil perdesse a força criadora caso melhorasse de vida. Melhorou, na China – e nem por isso o Teatro nacional e popular chinês desapareceu ou piorou. Pelo contrário. Ou, para falar em termos brasileiros: J. Borges é um grande gravador popular. Se tivesse tido formação ''erudita'', continuaria a ser o grande artista brasileiro que é, somente tratando seus universos pessoais e peculiares com o rigor formal de um Gilvan Samico''.

Quem é, afinal, para o senhor, o artista que, em qualquer área de produção cultural brasileira, melhor representa o Brasil?

ARIANO SUASSUNA: ''Artes plásticas: Aleijadinho, Francisco Brennand e Gilvan Samico. Artes cênicas: Antonio José da Silva, o Judeu; Martins Pena, Qorpo Santo e Artur Azevedo. Literatura: Euclydes da Cunha, Augusto dos Anjos. Música: José Mauricio Nunes Garcia, Villa-Lobos, Guerra Peixe, Ernesto Nazaré, Capiba e Antônio José Madureira. Vídeo e cinema: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Vladimir Carvalho, Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho''.

O senhor reclama de que ''o patrocínio de multinacionais nos eventos é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais''. Quais são os patrocínios ou promoções que o senhor considera exemplos de ''tentativas de suborno''?

ARIANO SUASSUNA: ''Recusei indicações para o Prêmio Shell e para o Sharp. Recusei-me a participar da Bienal Nestlé de Literatura. Não fui eu que passei a notícia das recusas para os jornais, porque não fiz isto para me exibir nem para incorrer em falta de fraternidade com escritores e artistas que não têm as mesmas ideias nem as mesmas condições que eu tenho. Tais condições me deixam à vontade para recusar. Por isso, peço licença para, de uma vez por todas, encerrar aqui este desagradável assunto''.

Se a cultura é inevitavelmente afetada pela economia, não é ingenuidade querer que manifestações culturais brasileiras sejam preservadas numa espécie de redoma à prova de influências externas, numa época em que as relações econômicas sofrem um processo radical de internacionalização?

ARIANO SUASSUNA: ''Colocar a Cultura Brasileira numa redoma, além de ser uma coisa impossível, é algo de absolutamente indesejável. Faz muito tempo que venho fazendo afirmações em tal sentido. Por exemplo: no dia primeiro de dezembro de 1963, publiquei no jornal ''Última Hora'' um artigo no qual dizia que ''a Arte que se tornasse uniforme não se tornaria mais pura, tornar-se-ia, isto sim, mais pobre''. Depois, em 1974, ao reunir as ideias centrais do Movimento Armorial, eu afirmava que, ao valorizar o tronco negro, indígena e ibérico da nossa Cultura, não estávamos esquecidos de outras etnias e manifestações culturais que também são importantíssimas para o Brasil. Tomávamos tal posição por estarmos convencidos de que somente fortalecendo aquele tronco cultural é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga e nos massifica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece.

O que não posso aceitar é que brasileiros equivocados queiram que, em nome de nossa bela e fecunda diversidade, aqui seja acolhido também o lixo cultural que é subproduto da indústria cultural americana espalhado pelo resto do mundo como se fosse coisa tão importante – e até mais importante – do que os romances de Faulkner. Ou seja: não tenho nada contra Melville. Mas não é possível que queiram exigir que eu ache que Michael Jackson e Madonna têm a mesma importância que Melville ou Euclides da Cunha. Quero deixar claro que tenho pelo ''lixo cultural'' brasileiro horror igual ao que tenho por qualquer outro''.

Se tivesse de escolher entre passar um fim de semana passeando com Woody Allen pelas ruas de Manhattan ou cavalgando com um vaqueiro pelos morros do sertão da Paraíba, com qual dos dois o senhor ficaria?

ARIANO SUASSUNA: ''Passear por Manhattan, com Woody Allen ou com qualquer pessoa de tal tipo, é coisa que, para mim, não representa qualquer atrativo. Nunca saí do Brasil, mas, já que estamos no terreno das hipóteses, por que você, que é meu amigo, não pensa em alguém melhor e num lugar melhor? Quanto à outra alternativa, não tenho mais a resistência para sair por aí afora cavalgando pelos morros do sertão da Paraíba''.

O senhor não acredita que manifestações culturais e artísticas de um povo possam absorver criativamente influências externas? Um violeiro que vê televisão não pode se enriquecer com as novas informações que recebe?

ARIANO SUASSUNA: “Qualquer um de nós pode se enriquecer com as novas (e boas) informações que recebe. Eu leio jornais e vejo televisão. Os cantadores e violeiros nordestinos também. Nenhum de nós perde, com isso, a garra brasileira e o senso crítico e satírico. Pelo contrário. Ouvi recentemente o cantador nordestino Edmílson Ferreira comentar assim, num Martelo-de-Seis-Linhas, as desventuras conjugais da família real inglesa:

'Na Inglaterra, as coisas andam feias,
todo mundo por lá endoidecendo.
Toda dia é uma princesa sem marido,
ou um príncipe que, só, fica vivendo.
Ou a carne de vaca fez efeito,
ou o chifre do boi está fazendo.”

Qual é a pior doença e qual é a melhor cura para o Brasil de hoje, às vésperas do ano 2000?

ARIANO SUASSUNA: ''Machado de Assis fez uma distinção definitiva entre o Brasil oficial e o Brasil real que, a meu ver, é o do Povo, o do ''Quarto Estado''. As maiores doenças nossas têm origem no Brasil oficial e a cura só lhe pode vir do Brasil real. As pessoas que sustentam ideias diferentes das nossas parecem pensar: ''O Brasil oficial é o problema; na Europa e nos Estados Unidos está a solução''. Eu acho que o Brasil oficial é o problema, no Brasil real é que está a solução. Ou, um pouco à moda de Unamuno: ''Brasil é o problema, Brasil é a solução''.

O senhor ainda reclama das guitarras elétricas. Isto não é uma discussão superada desde os anos 1960?

ARIANO SUASSUNA: ''Vou mais longe, até: esta é uma discussão que não tem o menor interesse – e desde muito antes. Nem nos anos 1960 ela fez parte das minhas preocupações. Em música, gosto de Monteverdi, Vivaldi, Scarlatti, Stravinsky, Erik Sati, José Mauricio Nunes Garcia, Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, Villa Lobos, Guerra Peixe ou Antonio José Madureira. Quando vão me entrevistar, fazem-me pergunta sobre guitarra elétrica, Michael Jackson e Orlando Silva. É por isso que apareço falando sobre assuntos ou pessoas sobre as quais não tenho o menor interesse. Nunca me viriam à lembrança se não me fizessem tais perguntas''.

O senhor diz que não tem interesse pela obra de compositores da MPB, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque eles são influenciados pela ''massificação cultural americana''. O senhor não reconhece na obra de compositores como estes nenhuma contribuição para a modernização da música popular brasileira?

ARIANO SUASSUNA: ''Por iniciativa minha, jamais fiz qualquer referência a Caetano Veloso e Gilberto Gil. As pessoas que me entrevistam é que fazem perguntas a respeito deles e de outros. Depois, na maioria dos casos, quando publicam as matérias, ficam me acusando de radical e intolerante por causa das respostas que dou, porque não costumo esconder nem disfarçar o que penso. Quanto a mim, não gosto de estar falando mal de nenhum companheiro de trabalho, principalmente quando se trata de pessoas que antes estavam do nosso lado e depois passaram a emprestar seu talento ao outro''.

O senhor, secretário do governador Miguel Arraes, que se declara intransigentemente nacionalista, gostaria de ser ministro de um presidente neo-liberal?

ARIANO SUASSUNA: ''Sou amigo do governador Arraes, mas só concordei em ser secretário porque acho que ele representa, no campo da política brasileira, o mesmo que eu procuro ser no campo da cultura. O convite foi honroso. O cargo tem me trazido muitas e ardentes alegrias. Mas está me obrigando também a fazer coisas que detesto – como, por exemplo, viajar. Imagino o que aconteceria como Ministro, motivo pelo qual não gostaria de exercer tal cargo com nenhum Presidente, neo-liberal ou não. Eu teria até de me mudar para Brasília, o que, para mim, seria uma verdadeira catástrofe. Felizmente, pertenço à oposição. Não existe qualquer perspectiva a tal respeito; de modo que não vou me preocupar com a possibilidade colocada na pergunta''.

Como se chama e do que tratará o livro que o senhor vem escrevendo há anos? Que impacto o senhor gostaria que este livro tivesse no meio literário brasileiro?

ARIANO SUASSUNA: '' O livro, ainda sem título, é um romance que, se for concluído como pretendo, será uma espécie de revisão e recriação de tudo o que escrevi. Terminará a história que comecei a narrar com ''A Pedra do Reino''. Quanto ao ''impacto'', não tenho nenhuma originalidade: gostaria que o livro tivesse boa aceitação de público e de crítica. Mas, infelizmente, tenho consciência de que sou um escritor de poucos livros e de poucos leitores. Já me darei por muito feliz se meu corajoso editor não tiver prejuízo''.

Se um violeiro procurasse o senhor com uma guitarra, o que é que o senhor faria?

ARIANO SUASSUNA: ''Um violeiro com uma guitarra na mão seria aquilo que, em Lógica, se chama uma contradição em seus próprios termos : ele não seria mais um violeiro e sim um guitarrista. E provaria, com a nova opção, que nem como violeiro ele prestava. Mas só estou respondendo porque, como se diz nos depoimentos judiciais, com grande alívio meu e dos leitores, chegou a hora do "nada mais disse nem foi perguntado''.
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( 1996 )

Posted by geneton at 12:16 AM

julho 23, 2014

ARIANO SUASSUNA 2

SUASSUNA: 'A LITERATURA É UMA FORMA DE PROTESTAR CONTRA A MORTE'
Ariano Suassuna.jpeg

Ó meu Deus judaico-tapuio e mouro-sertanejo! Considerai que qualquer coisa é bastante para me tirar a vida! Uma gota de salmoura que desça ao coração entupindo uma artéria, uma veia importante que rompa em meu peito, uma sufocação de tosse, uma forte pressão interna, um fluxo impetuoso do meu sangue, uma cobra coral que me morda, uma febre, uma picada,um corisco de pedra-lispe incendiada, um raio, uma pedrinha de areia nos rins, um inimigo audacioso, uma pedra que se despenque de um serrote - tudo isso e qualquer coisa pode me cortar o Nó do sangue, roubando-me a vida em dois tempos!".
A "veia importante" se rompeu. O que Ariano Suassuna escreveu neste trecho de "Romance d'a pedra do reino" terminou acontecendo nesta quarta-feira.

Suassuna tinha palavra - em todos os sentidos. Quem não o conhece como escritor deve devorar o "Romance d'a pedra do reino". É um grande livro. Ali, ele realiza o sonho de todo escritor: erguer uma bela catedral com palavras. A catedral de Ariano era um Brasil que ele inventou: sertanejo, belo, ensolarado, épico e,ao mesmo tempo, despojado. Os que o conhecem apenas pelo eventual histrionismo das aulas-espetáculo (de fato divertidas e instrutivas ) podem estar perdendo a chance de descobrir, nas páginas da "Pedra do reino", um grande escritor. É só o que interessa: um grande escritor.

Ao longo de quarenta anos (!), fiz "n" entrevistas com Ariano.

(Assista no Dossiê GloboNews a uma das entrevistas feitas pelo colunista)
Durante um certo tempo, horrorizado com os pecados que os repórteres cometiam ao transcrever o que dizia, ele se dava ao trabalho de responder as entrevistas por escrito - ali, "ao vivo", diante do autor das perguntas. Queixava-se de que, ao publicar suas declarações, repórteres descuidados com o texto botavam no papel cacos da linguagem falada - como "né?". Aquilo doía nos olhos de Ariano - um escritor que tratava a língua com reverência jamais escreveria um "né?".

Guardo, em meus arquivos, não tão implacáveis, uma pequena coleção de manuscritos de Ariano - aquela letra pequena e bem desenhada. Depois, ele abandonou o hábito de responder por escrito aos questionários. Não teria tempo para tanto.

Vivi uma cena que mostra o que era a palavra de um sertanejo (Ariano nasceu, na verdade, em João Pessoa, mas se criou no sertão ). Uma vez, ele me disse que Glauber Rocha, antes de ficar famoso como cineasta, o entrevistara longamente. A entrevista tinha sido publicada, no início dos anos sessenta, no Diário de Notícias, no Rio. Quando recebeu o jornal, Ariano viu que Glauber tinha atribuído a ele declarações que ele não tinha feito. Não teve dúvidas: antes de guardar o exemplar em seus bem cuidados arquivos, Ariano fez anotações à margem do recorte, para "corrigir" o texto. Fiquei curioso para ler. Pedi a ele para ver o jornal. Ariano disse: "Vou procurar, depois lhe dou".

Pois bem: passaram-se pelo menos seis anos. Ariano vem ao Rio para tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Em meio ao tumulto de abraços e cumprimentos pela posse, ele me diz: "Espere aí. Vou pegar um negócio que trouxe para você".

Procura numa pasta um recorte. Era a tal entrevista que dera a Glauber. Fiquei surpreso e comovido com a lembrança - qualquer um ficaria.

Aquilo, sim, era cumprir uma promessa! Ariano não se esqueceu de que tinha prometido ao repórter - que o "perseguia" há anos - um velho recorte de jornal. Ali, no mais improvável dos lugares, em meio a uma festa de posse na Academia, ele "cumpriu a palavra". O homem era assim.

Um pequeno trecho corrigido por Ariano:

Ariano: "Fui criado no protestantismo, mas, depois, ao reler os evangelhos, vi que o verdadeiro cristianismo é o catolicismo".

Glauber: É católico enquadrado?

Ariano: "Não. Católico enquadrado é santo. Vou à missa, de vez em quando me confesso, mas bom católico é católico safado" (aqui, Ariano emendou o recorte com uma frase escrita à mão: "Eu nunca disse isso!").

Aqui, numa das entrevistas que fiz com ele para a TV (outras tantas foram para jornal), ele falava de seus sonhos brasileiros:

GMN: Todo escritor, em última instância, escreve para ser lembrado. Isso é que motiva o senhor a escrever?

Ariano Suassuna: "A literatura é uma forma de protestar contra a morte. Em minha visão, a literatura - e a arte, de modo geral - é uma forma precária, mas, ainda assim, poderosa de afirmar a imortalidade. O homem não nasceu para a morte: o homem nasceu para a vida e para a imortalidade.

GMN: Como é o Brasil dos sonhos de Ariano Suassuna?

Ariano Suassuna: "Eu sei que é um sonho- mas sem sonho a gente não vive. É necessário, ao ser humano, um sonho - lá na frente para que a gente não se acomode e procure aquele ideal. O Brasil com que sonho, então, seria um regime no qual a gente realizasse, pela primeira vez na história humana, a fusão de justiça e liberdade".

GMN: O senhor já disse que considera a Disneylândia o maior monumento já erguido a imbecilidade humana. Qual é o grande monumento erguido à imbecilidade no Brasil?

Ariano Suassuna: "A réplica da Estátua da Liberdade que construíram na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ainda não estive lá, mas já estou com raiva da estátua - porque não gosto nem do original - quanto mais de uma réplica de segunda classe feita no Brasil!".

GMN: A quem o senhor daria - de bom grado - o título de representante número um do lixo cultural?

Ariano Suassuna: "Em primeiro lugar, já que estamos falando no tempo de hoje, eu daria a Michael Jackson. Mas já estou com pena de Michael Jackson - porque os americanos inventam um mito falso como ele e depois destroem". .

GMN: Em que situação o senhor compraria um disco de uma artista como Madonna ou Michel Jackson?

Ariano Suassuna: "Numa situação de extrema penúria intelectual, econômica, moral e mental. Se você me vir comprando qualquer coisa desse tipo, pode me internar, porque não estaria no meu juízo perfeito".

GMN: Ao reagir contra manifestações da cultura de massa, o senhor não teme ser considerado um grande dinossauro?

Ariano Suassuna: "Eu "temo", não: já fui chamado! E já fui chamado de "Dom Quixote arcaico", por viver, segundo diziam, esgrimindo contra os moinhos de vento da globalização. Não me incomodo".

GMN: Qual é a maior obra de arte já produzida no Brasil?

Ariano Suassuna: "Em artes plásticas: o Santuário de Congonhas, onde estão os 12 profetas esculpidos em pedra sabão pelo Aleijadinho. Em música, a obra de Villa-Lobos. Em literatura, Os Sertões - de Euclides da Cunha".

Posted by geneton at 11:56 PM

julho 18, 2014

JOÃO UBALDO RIBEIRO

'ESTOU TRABALHANDO NOS LIVROS DESDE QUE NASCI. EU SÓ SEI ESCREVER'

GMN: Você compraria um livro usado de um político?
João Ubaldo Ribeiro:
Querer transformar os políticos numa casta de pessoas especialmente boas ou especialmente ruins é uma bobagem. Os políticos são parte de nossa sociedade. Não é político nem motorista de táxi nem médico nem nada: somos nós. Como sociedade, somos nós que produzimos esses políticos, esses motoristas de táxi, esses médicos, esses advogados - e esses escritores.

GMN: O Brasil é um país que vive uma crise crônica de identidade. Escrever livros como Viva o Povo Brasileiro é uma maneira exorcizar esses crise?
João Ubaldo:
Você já coloca uma premissa sobre crise de identidade. Acontece que não acho que o Brasil viva uma crise de identidade permanente. Não sei se vive. Mas não penso nessas questões. Quando uma pessoa escreve algo que repercute, há sempre o impulso natural de enquadrar a obra em categorias pré-fabricadas ou pré-moldadas. Mas a realidade é que as coisas não acontecem assim. Não escrevi pensando em identidade nacional nem em coisa nenhuma. Escrevi - simplesmente. Não sei o que é. Viva o Povo Brasileiro não é uma tentativa de entender o Brasil. O que fiz foi escrever um livro. Eu poderia mentir a você abundantemente sobre o que resultou - a partir do que os outros escreveram e pensaram. Mas Viva o Povo Brasileiro é só um romance.

GMN: Você pode viver exclusivamente de literatura. Acabou a fase romântica dos escritores que escreviam "por amor"?
João Ubaldo:
Escrever por amor provavelmente todo mundo sempre escreverá. Não é um problema de amor - a não ser no sentido cósmico da palavra. Dá para viver de literatura. Depende do tipo de expectativa de vida que você tem. Se você é uma pessoa que não tem grandes exigências e não é "transeira", então dá. Vivo decentemente com minha família. Agora, estou escrevendo um livro chamado "O Sorriso do Lagarto". É um romance. Só vou saber como vai ser depois de acabar. Há dois meses trabalho neste livro - mas não sou um burocrata. Os livros se trabalham o tempo todo. Em termos mercadológicos, eu diria que estou trabalhando há dois meses - Mas a verdade é que estou trabalhando nos livros desde que nasci.

GMN: Você tem a imagem de um escritor que vive feliz num ambiente paradisíaco. É a encarnação do baiano bem-humorado e contente. Mas, nos seus livros, você termina transmitindo uma imagem dilacerada e dolorida do povo brasileiro. Você admite que há um choque entre estes dois João Ubaldo?
João Ubaldo:
É invenção! Sou escritor. Você pode extrapolar a partir daí milhões de coisas. Pode achar que sou um privilegiado, um iluminado, um maldito ou qualquer outra expressão que se possa arrolar para designar quem faz um livro. Mas não penso em nada assim - Nem sou mais feliz do que ninguém, a não ser pelo fato de que, por ser uma pessoa sadia, sou mais feliz do que os que não são sadios....Tenho o que comer. Sou mais feliz do que os que não têm o que comer. Mas o fato de morar em Itaparica e andar sem camisa não quer dizer coisa nenhuma. Qualquer um poderia viver assim - se não houvesse tanto tipo de problema.

GMN: O que é que mais envergonha o escritor João Ubaldo Ribeiro no Brasil?
João Ubaldo:
A vergonha é tão circunstancial...Pode-se ficar envergonhado com o time do Vasco da Gama ou com os tipos de políticos que existem. Não se trata de uma questão de vergonha, mas de aspiração a uma condição condigna para todo mundo. Ficar falando "o que mais me envergonha no Brasil" é me colocar numa posição superior a tudo o que acontece quando, na verdade, sou um brasileiro como todos nós outros. Não posso ficar numa posição olímpica e arrogante.

GMN: De qualquer maneira, o ambiente cultural e literário do Rio e de São Paulo não lhe faz falta...
João Ubaldo:
Não. Mas não é que eu esteja dizendo: "Eu estou fugindo!". De vez em quando, eu até sinto falta de conversar com as pessoas. Não tenho uma posição monástica. Não estou vivendo em Itaparica para me isolar. Não tenho raiva desse "ambiente corrupto" ou qualquer outra coisa que pudesse dizer. Não é uma revolta. Não é nada: é apenas uma maneira de viver.

GMN: O que significa exatamente para, para você, a figura de Jorge Amado? A figura onipresente de Jorge Amado na Bahia já foi, em algum momento, algo opressivo para você, como escritor?
João Ubaldo:
Jorge Amado é um grande escritor brasileiro, uma figura importantíssima na nossa história. Por acaso, é baiano, meu amigo, meu compadre. Temos envolvimento emocional. Somos amigos. Nossas famílias são amigas. Nunca foi figura opressiva coisa nenhuma! Quanto a comparações, as pessoas ficam vendo as coisas como se tudo fosse um campeonato de futebol: quem é o melhor jogador, quem é o melhor não sei o quê. É tudo maluquice. Não tem nada a ver com nada!.

GMN: Um personagem de "Terra em Transe" diz que a poesia e a política são demais para um homem só. A política e a literatura são demais para um homem só?
João Ubaldo:
Há os que são capazes de cumprir carreiras simultâneas. Podem ser políticos e literatos. Mas não sei fazer as duas coisas simultaneamente. Só sei fazer o que estou fazendo, o que não impede outras pessoas de administrarem seus talentos de várias formas.

GMN: Qual foi o maior desafio que você enfrentou ao fazer a tradução de Viva o Povo Brasileiro para o inglês? A intimidade com o texto criou algum tipo de embaraço?
João Ubaldo:
Pelo contrário: a intimidade até facilita. O texto já existia em português. E você não pode tentar reescrever ao traduzir. É um fenômeno especial. Penso que este tipo de problema - o próprio autor fazer a tradução - deveria ser discutido em um seminário e não num mero depoimento. É uma questão complicada, porque envolve vários tipos de problemas. O fato de o próprio autor traduzir o livro e a convivência do autor-tradutor com as duas línguas com que ele lida são uma coisa complicada. Não é simples.

GMN: O que é que levou você, então, a enfrentar o tarefa da tradução? A falta de confiança nos tradutores americanos?
João Ubaldo:
Eu já tinha feito a tradução de Sargento Getúlio. Era o meu primeiro livro fora. Fiquei preocupado com a tradução, porque seria difícil fazê-la com americanos que não conhecessem aquela linguagem semi-dialetal. Fiz a tradução, portanto, porque Sargento Getúlio era o meu primeiro livro lançado fora do Brasil. Eu estava tão ansioso que saísse uma coisa boa que me ofereci para fazer a tradução depois que ficou constatado que os tradutores que foram arranjados nos Estados Unidos não tinham condições. Demorei um ano meio traduzindo Viva o Povo Brasileiro. Para escrever o livro, demorei um ano e dois meses. Escrever demorou menos tempo!.

GMN: O João Ubaldo Ribeiro mestre em Ciência Polìtica e Administração Pública pela Southern University of California já se decepcionou com a Nova República ou mantém a esperança?
João Ubaldo:
Temos de manter a esperança. Se não mantivermos, temos de morrer no dia seguinte. Tenho um desalento grave com o Brasil de hoje e com tudo o que acontece. Mas tenho de manter a esperança. Caso contrário, tenho de desistir. A esperança de que alguma coisa aconteça é, talvez, um dado irracional da conduta humana - mas indispensável para que a vida se mantenha.

GMN: O "desalento grave" que você acaba de confessar se manifesta no que você produz?
João Ubaldo:
Uma das coisas mais chatas, quando se trabalha num ramo como este em que trabalho, é você, além de escrever, ter de explicar. Não sei explicar o que escrevi. Você escreve. Quem lê acha o que quer. Se o livro é bom, eu posso ser ruim. Meu livro é meu livro - e não tem nada a ver comigo. Podiam nem me conhecer; eu poderia nunca dar entrevistas. Mas livro existe. É uma entidade em si.

GMN: Que reivindicação você faz à Constituinte em relação a problemas ligados à atividade do escritor no Brasil?
João Ubaldo:
A Constituinte deve ser o arcabouço básico de princípios. Não acredito, então, que a Constituinte deva resolver - como se pensa no Brasil - questões como o tamanho do bigode, quantas relações sexuais se devem ter por semana e como deve se tratar uma pessoa negra, coreana ou japonesa.

GMN: O intelectual deve querer falar em nome do povo?
João Ubaldo:
A pergunta é mal colocada, porque ninguém fala em nome de ninguém. Todas essas coisas envolvem uma opção filosófica e ideológica. Você pode ser um escritor de um grande vezo populista e achar que dá voz ao povo - e, no entanto, este pode ser um gesto de uma profunda megalomania. Ou não. Você pode achar também que o escritor e o artista é aquele que transmite as aspirações. Mas estas são questões secundárias. Quem se preocupa em produzir uma obra artística não fica pensando nestas questões - que só surgem depois, a posteriori, portanto.

GMN: Você faz questão de dizer que não parte de nenhum projeto preconcebido antes de fazer um livro...
João Ubaldo:
Não parto!.

GMN: E se recusa a teorizar sobre a obra depois de produzida...
João Ubaldo:
Sim, porque não é o meu caso. Eu só sei escrever.

(Entrevista gravada em novembro de 1987)

Posted by geneton at 12:12 AM

março 10, 2014

CID BENJAMIN

GUERRILHEIRO QUE PARTICIPOU DE SEQUESTRO DO EMBAIXADOR DIZ QUE, “PESSOALMENTE”, PERDOA TORTURADORES, MAS QUER QUE ELES SEJAM JULGADOS

A Globonews reapresenta, neste domingo, às cinco e cinco da tarde, no DOSSIÊ GLOBONEWS, uma entrevista completa com o ex-guerrilheiro Cid Benjamin, um dos “cabeças” do mais surpreendente golpe desferido contra a ditadura militar: o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil.

O plano dos sequestradores deu certo: a junta militar que, na época, governava o país libertou quinze presos políticos, em troca da vida do embaixador. Os guerrilheiros também exigiram que fosse lido, nas rádios e na TV, um manifesto denunciando a ditadura. Assim foi feito. A “linha dura” engoliu um sapo gigantesco.

Há uma história que ainda não foi totalmente contada: como foi exercida a pressão do governo americano sobre os militares brasileiros para que a vida do embaixador fosse salva. Parece óbvio que o governo americano disse, em resumo, o seguinte: aconteça o que acontecer, queremos o embaixador vivo. É o que aconteceu.

Charles Elbrick saiu da aventura com uma ferida na testa – resultado da coronhada que recebeu na hora em que era capturado. Mas a operação poderia ter acabado em tragédia. Os guerrilheiros que sequestraram o embaixador estavam dispostos a reagir se os chamados “órgãos de segurança” descobrissem e invadissem o cativeiro – uma casa na rua Alice, em Santa Teresa, no Rio. Numa possível invasão, haveria baixas dos dois lados. É possível imaginar o tamanho da crise que se abriria nas relações entre Brasil e EUA se o embaixador voltasse para casa, em Washington, para ser sepultado.

Cid Benjamin terminou preso, meses depois do sequestro. Passou por sessões de tortura – a que não faltaram cenas de “humor negro”. Ao acionar o mecanismo que provocava choque no prisioneiro, torturadores repetiam o bordão que Chacrinha tornara famoso na TV: “Roda, roda, roda e avisa….”.

Além dos choques elétricos, Benjamin foi pendurado no pau-de-arara. Torturadores aplicaram-lhe “telefone” – o que o fez perder, parcialmente, a audição de um dos ouvidos. Também levou injeção: uma aplicação do chamado “soro da verdade”.

Hoje, ele faz, sobre os torturadores, uma declaração que pode provocar alguma surpresa. Diz que, ao contrário do que pode sugerir a imagem caricata, os torturadores não pareciam ser necessariamente “monstros”. Pelo contrário: entre eles, havia gente que parecia ser perfeitamente normal, pacatos pais de família capazes de cometer atrocidades indescritíveis. Pareciam encarnar a “banalidade do mal”.

Demorou, mas Cid Benjamin terminou reunindo em livro suas memórias, em 2013. Título: “Gracias a la Vida”.

Um pequeno trecho da entrevista que irá ao ar no DOSSIÊ GLOBONEWS:

Hoje, tanto tempo depois, qual é a visão que você tem sobre os torturadores?

Cid Benjamin: “O que me chamou atenção é que não necessariamente eles eram monstros. Eu não tinha lido Hanna Arendt – que, no livro que fez sobre Adolf Eichmann, chegou à conclusão de que ele era “horrivelmente normal”, depois de ter cometido aquelas atrocidades todas sob o nazismo. Evidentemente, o cidadão que tem como parte do trabalho a tarefa de torturar pessoas tem a personalidade deformada por esta prática. Com o tempo, ele deixa de ser uma pessoa normal – mas me chamava atenção, desde aquela época, o fato de que nem todos os torturadores se enquadrariam diretamente naquela coisa de monstros.

Eu imaginava que alguns dos torturadores podiam ser bons pais de família, bons vizinhos, torcer por time de futebol, fazer um churrasco com os amigos e, no entanto, torturar pessoas. Nem todos eram assim: havia psicopatas, havia sádicos, havia profissionais – como policiais mais antigos que torturavam presos comuns e passaram a torturar presos políticos. Aquilo, para eles, não afetava o dia-a-dia. Era como se fossem tomar o café da manhã e, depois, almoçar.

Havia militares imbuídos da coisa da Guerra Fria. Achavam que estavam numa guerra. Também havia militares que torturavam e diziam ao preso: “Eu respeito você: é um inimigo respeitável”. E torturavam o sujeito! É uma multiplicidade muito grande de personalidades. Nem todos podem ser enquadrados assim: “É um monstro – que tem a vida social de monstro”. Isso não é passar a mão na cabeça dos torturadores. É muito mais grave que seja assim: que pessoas aparentemente normais sejam capazes de torturar. Isso é mais grave.

Não estou passando a mão na cabeça de ninguém ao fazer esta constatação! Mas é uma constatação real. É um fato. O ser humano é capaz dos gestos mais nobres e dos mais ignóbeis. Isso é parte da natureza humana. É bom que a gente tenha consciência desse fato. Não se iluda. Porque seria mais cômodo dizer: “Quem tortura é monstro”. Não é assim. A sociedade em que vivemos é uma sociedade que não aboliu inteiramente a tortura. Não criou a consciência de que a tortura é algo abominável. É uma sociedade que permite que pessoas com uma vida relativamente normal sejam torturadoras. Isso é dramático!.

Em relação a rancor e ódio: não tenho – inclusive aos que não se arrependeram. É preciso abrir os arquivos das Forças Armadas sobre a repressão política, desvendar tudo o que aconteceu, trazer tudo à tona – muito mais para criar anticorpos na sociedade para que coisas assim não se repitam. Eu poderia perdoar todos os meus torturadores. Mas acho que eles devem ser punidos – não por mim nem pelo meu caso, mas porque o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. Talvez se os torturadores da ditadura tivessem sido punidos, Amarildo estivesse vivo.

Tortura é um crime de lesa-humanidade. Não pode prescrever. Torturadores têm de ser levados a julgamento – não só os que executaram as torturas diretamente, mas a cadeia de comando toda. Não é com a preocupação de quem olha para trás, mas com a preocupação de quem olha para frente. A democracia precisa disso – para que seja solidificada e para que se criem condições para que a tortura não se repita”.

Para ser bem direto: você perdoa os torturadores?

Cid Benjamin: “Pessoalmente, sim. Politicamente, quero que eles sejam julgados. Os que forem condenados que cumpram a pena”.

Posted by geneton at 12:32 AM

novembro 21, 2013

VINCENT BUGLIOSI

ADEUS, TEORIAS CONSPIRATÓRIAS. PROMOTOR OBCECADO COM CASO KENNEDY REÚNE CINQUENTA E TRÊS PROVAS QUE APONTAM PARA UM ÚNICO CULPADO (MAS UMA PERGUNTA FICARÁ SEM RESPOSTA)
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(Vincent Bugliosi: veredito definitivo sobre o Caso Kennedy aponta Oswald como único atirador. O resto é invenção)

A GLOBONEWS reapresenta, nesta sexta, às 7: 05 da manhã e às 17:05, o DOSSIÊ especial que reúne sete entrevistas gravadas, ao longo de vinte anos, com personagens que estiveram de uma maneira ou de outra ligados ao “crime do século”: o assassinato do presidente John Kennedy. Um dos entrevistados é o promotor americano Vincent Bugliosi, autor de “Reclaming History” – um livraço de 1.612 páginas aclamado como a “palavra final” sobre o atentado. Durante duas décadas, o promotor cruzou, obsessivamente, todas as informações disponíveis sobre aquele fim de semana em Dallas. Terminou reunindo o que ele chama de provas indesmentíveis do envolvimento de Lee Oswald. Eis a palavra do promotor – que ficou célebre no julgamento da Família Manson, o bando de fanáticos que, em 1969, cometeu crimes em série na Califórnia, entre eles, o assassinato de Sharon Tate, a mulher do cineasta Roman Polanski:

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(Lee Oswald: desprezo por "representantes" tanto do comunismo quanto do capitalismo)

Atenção, senhores seguidores de teorias conspiratórias sobre Caso Kennedy: um dos mais conhecidos promotores americanos lamenta informar que Lee Harvey Oswald é o único responsável pelo assassinato do presidente.

Cinquenta anos depois da morte do presidente, finalmente é hora de despachar as teses conspiratórias para o cemitério das suposições que não conseguem ser provadas. As teses continuarão a render livros, livros e livros – alguns, francamente interessantes. Mas falta a elas algo que não pode faltar quando se fala de Justiça: provas, evidências materiais, credibilidade.

O promotor vai direto ao ponto: ao longo de exatos cinquenta anos, jamais apareceu uma prova confiável de que tenha havido outro atirador, além de Lee Harvey Oswald, um ex-fuzileiro naval de vinte e quatro anos. Jamais apareceu uma prova confiável que ligasse Oswald a qualquer grupo – seja ele a Máfia, a CIA, a KGB, os cubanos.

Um historiador já constatou: é difícil acreditar que “alguém tão inconsequente” quanto Lee Oswald tenha retirado brutalmente de cena alguém “tão consequente” quanto o presidente John Kennedy. Mas foi o que aconteceu. Guardadas as proporções e as particularidades de cada tragédia, o raciocínio do historiador pode ser aplicado a outros atiradores solitários, como Mark Chapman, o fã inconsequente que tirou a vida do ex-beatle John Lennon. Ou Shiran Bushara Sirhan, o imigrante inconsequente que interrompeu a caminhada do senador Robert Kennedy rumo à presidência.

Gravando!

Qual é a pergunta que não foi respondida no caso do assassinato do presidente ?

Bugliosi: “Não há perguntas relevantes sobre quem é o culpado ou se houve conspiração que não tenha sido respondida em “Reclaiming History”.

O rifle de Oswald foi apontado por experts como a arma do crime. Ou seja: a arma que matou o presidente era de propriedade exclusiva de Lee Oswald. Depois dos tiros na Dealey Plaza, Oswald foi o único empregado do Depósito de Livros Escolares que deixou o prédio. Todos os outros permaneceram lá. Cinquenta e três minutos depois, ele matou o policial J.D.Tippit. Quando foi interrogado, por doze horas ao longo de três dias, mentiu repetidamente.

Reuni 53 diferentes provas que apontam irresistivelmente para a culpa de Oswald. Não seria humanamente possível, para ele, ser inocente…Você pode ter uma, duas ou três indícios de que você é culpado, ainda que você seja inocente. Mas não pode ter 53!

Informo à Globonews que reuni 32 provas , em Reclaiming History, de que não existiu conspiração.

Não há evidência confiável – a palavra-chava é esta: confiável! – de que a CIA, a Máfia ou qualquer outro grupo estejam envolvidos no assassinato. O que há são alegações sem provas ou pura especulação.

Teorias conspiratórias acusaram 42 grupos e 82 assassinos e 240 pessoas de envolvimento no assassinato ! Ora, três pessoas podem guardar um segredo – mas só se duas já estiverem mortas…Cinquenta anos depois, jamais uma palavra confiável vazou de uma conspiração. Por quê ? Porque as teorias não fazem sentido!

Se um desses grupos, como a CIA ou a Máfia, tivesse decidido matar o presidente – algo que considero prodigiosamente improvável – , Oswald seria uma das últimas pessoas na face da terra a quem eles procurariam. Não era um atirador “expert”. Era um bom atirador – que tinha comprado pelo correio um rifle de vinte dólares. Era notoriamente inconfiável e instável. Tentou deserdar para a União Soviética em 1959 – na era pré-Gorbachev. Queria desesperadamente se tornar cidadão soviético. Quando não conseguiu, cortou os pulsos. Vou ser sarcástico agora: era o tipo de pessoa em quem a Máfia ou a CIA iria confiar para cometer o maior crime da história americana.

De qualquer maneira, na suposição de que algum desses grupos decidira matar o presidente e, por alguma razão, mobilizara Oswald para a tarefa: depois de Oswald atirar em Kennedy na Dealey Plaza e sair do prédio, se ele tivesse cometido o atentado para a CIA ou a Máfia, um carro estaria esperando por ele para conduzi-lo à morte…É o que aconteceria. Mas sabemos que Oswald, depois de sair do prédio, foi para a rua, com treze dólares no bolso, para tentar pegar um táxi ou um ônibus….

O roteiro da comitiva presidencial – que previa a passagem em frente ao Depósito de Livros Esccolares – só foi determinado no dia 18 de novembro de 1963 – quatro dias antes do assassinato. Alguém acreditaria que uma conspiração para assassinar o presidente dos Estados Unidos fosse estabelecida a apenas quatro dias do assassinato? É ridículo”.

O caso do assassinato de John Kennedy foi cem por cento resolvido?

Bugliosi: “Sempre se acreditou que jamais haveria uma solução completa deste caso: até os que, como eu, acreditavam que Lee Oswald agiu sozinho ao matar Kennedy, diziam que haveria sempre alguma dúvida. Com “Reclaiming History”, eliminei todas as questões pendentes. Todas as resenhas, por sinal, dizem que o livro é a “palavra final” no assassinato. Respondo, ali, a centenas de perguntas que a maioria nem sequer sonhava em fazer.

A única pergunta que jamais será respondida com cem por cento de certeza é: por que Oswald matou Kennedy? Nós podemos imaginar por quê, mas não podemos ter cem por cento de certeza. Mas não é preciso saber. O “motivo” não é algo a ser provado num caso criminal. Já mandei gente para o Corredor da Morte sem saber precisamente por que cometeram seus crimes. Tudo o que eu sabia é que eles tinham matado a vítima. Não tinham nenhuma “justificativa legal” para fazê-lo, como legítima defesa, por exemplo. Insisto: por que Oswald cometeu o atentado é a única pergunta que jamais será respondida com cem por cento de certeza. Sabemos de várias das razões, mas não saberemos de todas”.

Que motivo Oswald consideraria “razoável” ?

Bugliosi: “Se Oswald estivesse vivo, eles mesmo talvez não fosse capaz de explicar a você toda a “dinâmica” de uma mente turbulenta – que o levou a este ato monstruoso. Mas há certas coisas que sabemos. Oswald tinha ilusões de grandeza. Chamava seus diários de “históricos”. Lia biografias de grandes líderes, com quem se comparava. Seu companheiro nos fuzileiros navais disse que Oswald queria produzir algo que fosse falado daqui a dez mil anos. Queria mudar o rumo da história.

Oswald amava e reverenciava Fidel Castro. Kennedy tinha apoiado a invasão de Cuba, na Baía dos Porcos. Oswald não gostou, claro. Cinco dias antes do assassinato, Kennedy fez um discurso sobre política externa em Miami Beach, em que pedia ao povo cubano que se insurgisse contra Fidel Castro. Prometeu ajuda americana. O amor de Oswald por Fidel Castro e pela revolução cubana foi um dos motivos que levaram Oswald a fazer o que ele fez. Oswald imaginava que, se ele matasse um inimigo de Castro, como Kennedy era, poderia ajudar a revolução cubana.

Estive trabalhando no Caso Manson. Posso dizer que Charles Manson não conhecia as identidades das pessoas mortas por seus seguidores. Apenas sabia que eles eram membros de um establishment que ele odiava. O que quero dizer é que as mortes cometidas pelos seguidores de Manson eram “assassinatos representativos”. Ou seja: ele não sabia a identidade das vítimas. Ao ler os diários de Oswald, vi uma anotação em que ele diz: ”Vivido sob o comunismo e sob o capitalismo. Desprezo os representantes de ambos”.

Não há prova de que Oswald odiava Kennedy. Gostava das leis de direitos civis – mas era contra Kennedy pelo que Kennedy tinha feito em relação a Fidel Castro. O que se sabe é que Oswald odiava os Estados Unidos da América. Talvez a mente turbulenta de Oswald visse Kennedy como o representante máximo de uma sociedade que ele desprezava. Quando atirou em Kennedy, ele estava atirando nos Estados Unidos da América.

Ninguém saberá com cem por cento de certeza por que ele matou – mas não é necessário saber”.

Os que acreditam em teorias conspiratórias apontam o movimento da cabeça do presidente para trás na hora do tiro fatal como uma indicação de que alguém atirou de lado. Qual é a credibilidade desta explicação?

Bugliosi: “Um grande número de pessoas começou a acreditar em teorias conspiratórias depois que foi exibida a imagem que sugere que o tiro veio da frente – e não de trás, onde Oswald estava. A resposta é a seguinte: se você olhar o filme, não notará. Mas, se você olhar o fotograma 313, verá quer o presidente é atingido na cabeça. É possível ver a cabeça “explodindo”. A cabeça vai para a frente por 5,8 centímetros, o que indica que a bala veio de trás – não da frente. Quando ocorre o impacto, a cabeça do presidente vai para a frente. Depois, no fotograma 314 a0 321, o presidente tem o que se chama de reação neuro-muscular. Danos provocados nos nervos pela entrada da bala no cérebro do presidente fizeram com que os músculos se contraíssem. Isso forçou a cabeça para trás. Ou seja: neste exato momento do impacto, a cabeça do presidente não vai para trás, mas para frente. Uma foto em contraste mostra a terrível imagem de pedaços do cérebro do presidente indo para a frente, o que, de novo, indica que o tiro vem de trás. Era lá que Lee Oswald estava”.

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outubro 04, 2013

RAFAEL BELAUSTEGUI

PAI DE TRÊS DESAPARECIDOS POLÍTICOS COMOVE PLATEIA, DIZ QUE JAMAIS PERDOARÁ MILITARES MAS LANÇA O DEBATE: SE “FORÇAS INSURGENTES” TIVESSEM TRIUNFADO, “ESTARÍAMOS DOMINADOS POR MILÍCIAS”, “EMPOBRECIDOS” E “ESTAGNADOS”

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Rafael Belaustegui, pai de três desaparecidos políticos: passagem rápida e comovente pelo Brasil ( Foto: Geneton Moraes Neto)

Onde estão as legiões de ouvintes que deveriam estar aqui e agora para escutar a palavra do homem que é um grande símbolo das vítimas da ditadura militar argentina? Onde estão os militantes para gritar “nunca mais, nunca mais, nunca mais”? Onde estão os neo-rebeldes para bradar “presente!”, enquanto alguém pronunciaria os nomes de Martin, José e Valéria? Onde estão os repórteres com seus blocos de anotações implacáveis, suas perguntas impertinentes e aquela sede por boas histórias? Onde estão todos? “Estão todos dormindo”, diria o poeta. Ou, quem sabe, estão todos mergulhados na estupenda banalidade de um começo de noite de quinta-feira na cidade do Rio de Janeiro, ocupados com a tarefa prioritária de tocar suas vidas. Ah, tocar a vida, tocar o barco, tocar pra frente.

A vida segue assim – mas pequenos grandes acontecimentos podem quebrar a cadeia da banalidade.

Por exemplo: um homem de barba branca por fazer caminha anônimo pelos corredores do Shopping Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, em meio à indiferença de casais que passam apressados para não perder a sessão do cinema, crianças que arrastam as mães para as lanchonetes, jovens que contemplam vitrines recheadas de tênis, fregueses que lotam lojas que vendem celulares. Uma bengala o ajuda na caminhada. Dentro da Livraria da Travessa, ele busca apoio no corrimão enquanto vence os degraus rumo ao acanhado auditório do primeiro andar. Carrega consigo uma pasta plástica esverdeada, em que guarda um texto recheado de emendas e palavras grifadas.

Se soubessem quem este homem é, alguns dos passantes certamente teriam a curiosidade de abordá-lo, porque ele é um personagem extraordinário. Quem sabe, um dos casais que correm para o cinema ou uma das mães que se aboletam no balcão da lanchonete ou um dos jovens que contemplam vitrines ou um dos fregueses que testam celulares teria o ímpeto de ouvi-lo. Mas não, ninguém lhe dirige a palavra. Rafael Belaustegui passa despercebido.

Já o punhado de frequentadores que se instalou no auditório para ouvi-lo, numa sessão da Quinzena de Literatura Latino-americana, sabe quem é aquele homem: o argentino Rafael Belaustegui viveu um drama indizível. É pai de três desaparecidos políticos: Martin, José, Valéria. O primeiro a sumir foi Martin, no dia 26 de julho de 1976, quando completava vinte anos de idade. Valéria – de 24 anos – desapareceu no dia 13 de maio de 1977. Duas semanas depois, no dia 30, foi a vez de José. Os três militavam na clandestinidade contra a ditadura militar instalada em 1976 na Argentina. Valéria estava grávida. Rafael jamais soube o que aconteceu com o neto: pode ter nascido na prisão, pode ter morrido junto com a mãe. A namorada de Martin – nora de Rafael, portanto – também estava grávida quando sumiu. Não se sabe que destino teve o bebê. Além dos três filhos, Rafael perdeu dois netos também, além das noras e do genro. O horror, o horror, o horror, diria aquele personagem de O Coração das Trevas. Uma cena novelesca aconteceu em meio ao massacre: quando foi presa, grávida, Valéria, filha de Rafael, tinha um bebê de um ano e dois meses. O bebê foi levado também. Dias depois, foi deixado numa rua. Trazia um aviso, manuscrito: “Sou filha de Valéria Belaustegui”. Criada pelos avós paternos, Tânia, a neta que escapou da morte, teve, recentemente, filhos gêmeos. Vive nos Estados Unidos.

Rafael viajou de Buenos Aires ao Rio porque acha que falar do desaparecimento dos filhos é uma “missão”. Tive a chance de entrevistá-lo em Buenos Aires, para a Globonews, em 2010. Vivi, na entrevista, uma cena que me comoveu profundamente. Terminada a gravação, Rafael me chamou para uma dependência do apartamento, para que eu visse “os filhos”. Falava como se os três estivessem ali, vivos. Dentro do quarto, ele apontou para a parede: lá estava uma foto ampliada de Valéria, José, Martin e a mãe dos três, Matilde – que morreria, doente, tempos depois. Os filhos eram um retrato na parede. Quando o programa foi ao ar, ele me enviou uma mensagem igualmente comovente: disse que o testemunho que ele me deu na gravação ficaria como “herança” para seus filhos. Sim, Rafael voltaria a ser pai depois da tripla tragédia.

Teve três outros filhos, num segundo casamento. Por uma coincidência inacreditável, os nascimentos seguiram a mesma sequência dos nascimentos dos filhos desaparecidos: uma menina e, em seguida, dois meninos. Detalhe: o intervalo entre os nascimentos dos três filhos do segundo casamento foi igual ao intervalo entre os nascimentos dos três primeiros. Rafael se apressa a dizer que não é místico, mas deixa reticências quando fala da extraordinária coincidência: era como se, por algum capricho inexplicável, a vida lhe desse a chance de começar tudo de novo, depois do mergulho nas profundezas do abismo mais escuro.

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Os três filhos de Rafael e a mulher, Matilde: foto tirada dias antes do primeiro desaparecimento.

Quando Benjamin Magalhães, organizador da Quinzena, me perguntou se eu teria um nome a sugerir, pensei imediatamente na figura deste argentino que, já octogenário, quer falar de Martin, José e Valéria não para espalhar comoção, mas para tocar a consciência de quem o ouve.

Quem perdeu a passagem de Rafael Belaustegui pelo pequeno auditório da Livraria da Travessa deixou de viver um momento memorável. Não há outra maneira de descrever o encontro: a emoção estava “à flor da pele”. ( Repórter deve deixar transparecer a emoção? Em situações normais, talvez não. Mas confesso que hoje, pela primeira vez, não consegui completar uma frase ao falar da saga deste argentino. O nó na garganta foi maior. Aconteceu.)

Como se não bastasse, Rafael acrescentou, à emoção, uma declaração que pode provocar polêmica: disse que é hora de reconhecer que, se as forças insurgentes tivessem tomado o poder nos anos setenta, certamente não implantariam regimes democráticos. Mas, antes que algum ouvinte apressado imagine que ele esteja querendo relativizar a culpa dos militares, Rafael se apressa a dizer que o “terrorismo de Estado” é um “inadmissível” crime de “lesa-humanidade”.

Quem se deu ao trabalho de ir ouvir o pai dos três desaparecidos não se arrependeu ( uma equipe da Globonews foi a única que esteve no auditório, pouco antes do debate, com a repórter Maria Paula Carvalho, a serviço do Jornal das Dez. O outro repórter presente estava a serviço da própria curiosidade: Lúcio de Castro. Pelo que deu para ver, that´s all . Uma dúvida – quiçá razoável – agitava minhas florestas anteriores: e se ali, em vez do pai de três desaparecidos – que se aboletou de Buenos Aires para o Rio unica e exclusivamente para este encontro com brasileiros – estivesse uma daquelas peruas siliconadas que se expõem em realities shows? Com toda certeza, haveria fotógrafos amontoados, algazarra, explosão de flashs. Assim caminha a humanidade).

Perguntado, Rafael Belaustegui jamais se nega a dar detalhes.

O horror começa assim: com um telefonema às duas da manhã

Dirá, por exemplo, que estava no Brasil quando recebeu um telefonema da primeira mulher, Matilde, às duas horas da manhã, com a notícia do primeiro desaparecimento: “Aconteceu uma coisa terrível – disse ela. Levaram Martin!”. Jamais imaginaria que dos outros desaparecimentos se seguiriam.

Contará o incrível encontro que teve com um dos integrantes da junta militar argentina, o almirante Emilio Massera, já depois do fim da ditadura, cena digna de um roteiro cinematográfico. Por um acaso absoluto, os dois estavam no mesmo avião. Rafael sentou ao lado do almirante. Disse que era pai de três desaparecidos. O almirante mentiu: garantiu ao pai que os filhos estavam bem guardados em algum lugar. Rafael iria receber notícias. Não recebeu jamais. Quando sumiram, os filhos de Rafael estavam ligados ao Exército Revolucionário do Povo ( ERP ).

(em outro momento, Rafael provocará reações de espanto na plateia ao narrar a desfaçatez do militar que, irônico, disse a ele que havia filhos de militares que também tinham desaparecido: um sumiu esquiando, outro num acidente etc.etc.)

O pai de três desaparecidos vai a um restaurante em Buenos Aires na esperança de encontrar o neto que nunca viu

Descreverá a cena que viveu recentemente: recebeu a informação de que o maitre de um restaurante em Buenos Aires era o neto nascido na prisão. Correu ao restaurante. Olhou para o rosto do maitre. Viu as feições da filha – Valéria. Chegou a falar com a mãe do maitre, mas ela não quis levar adiante a conversa. Rafael desistiu. Imaginou que, se insistisse, poderia criar um drama em outra família. Vai passar o resto dos seus dias alimentando a dúvida: aquele rapaz é ou não o neto que ele queria tanto conhecer?

Pronunciará uma definição marcante sobre a tragédia dos desaparecidos: “Desaparecer é matar a morte. E matar a morte é voltar a ter vida. Os meninos, assim, estarão sempre vivos – na memória e na eternidade“. Rafael conseguiu a proeza de extrair do horror absoluto um clarão de luz: quem desaparece mata a morte! Eis aí a única saída possível para conviver com o que aconteceu.

Responderá que jamais poderá perdoar os autores do sequestro e desaparecimento dos filhos, porque estes são crimes de lesa-humanidade, “imprescritíveis” e “atemporais”. O tempo, neste caso, não revogará o horror.

Por fim, puxará da pasta o texto que digitou um texto. Tocará num ponto polêmico: dirá que hoje, tanto tempo depois, “defende a pluralidade dos relatos, porque creio que também nas forças que se insurgiram houve maldades”.

Eis quatro pontos que o pai dos três desaparecidos usou para estimular o debate sobre os erros cometidos também pelos que combateram o horror:

“As Forças Armadas usurpadoras decidiram eliminar todo o pensamento de esquerda – matando a todos os esquerdistas”

1.
“O terrorismo de Estado é inadmissível. Seus crimes são de lesa-humanidade e, portanto, transnacionais e imprescritíveis. Cometeu-se um genocídio na Argentina. O que as Forças Armadas usurpadoras do poder fizeram foi mais do que combater os violentos: decidiram eliminar todo o pensamento de esquerda matando a todos os esquerdistas. Queriam, pela morte, fazer desaparecer estas ideias. Mas um presidente argentino do século XIX, Domingo Faustino Sarmiento, tornou célebre esta máxima: as idéias não se matam”.

2.
“É hora de deixar a memória do passado a cargo da investigação histórica e começar a pensar no que fazer. É hora de uma pensamento crítico que traga idéias e projetos para a superação das ideologias que deixaram de ter vigência. O que é hoje a esquerda? O que é hoje a direita? Lênin uma vez perguntou: o que fazer? Já havia questionado o que chamou de infantilismo da esquerda, os extremismos que não levavam a uma melhoria das condições das classes marginalizadas da sociedade(…) “.

3.
“Poderíamos perguntar o que teria acontecido se as forças que se insurgiram tivessem triunfado nos países de nossa região. Teríamos o cerco das potências ocidentais? Estaríamos dominados por milícias civis uniformizadas, empobrecidos e estagnados economicamente? Creio que sim. Não era no que acreditava em minha juventude. Isto, para meus filhos, soaria como uma heresia, como também para jovens utópicos de hoje”.

4.
“A geração dos anos setenta, marcada pelo golpe de 24 de março de 1976, acreditou ser possível instaurar uma ordem definitivamente justa. Em nome desta crença, matou e morreu. Morreu muito mais do que matou. Estou citando a socióloga Cláudia Hilb, renomada pesquisadora argentina: diz que hoje se pode fazer uma reflexão sobre a responsabilidade da esquerda dos anos setenta no advento do horror. Pode-se equiparar a responsabilidade dos militares com a dos militantes? Não. A violência política dos militantes ocorreu sob a forma de assassinatos seletivos ou de atentados ( menos seletivos ), muito poucos. Não se pode equiparar às formas de violência que ocorreram nos campos de concentração, as loucuras, as mortes, o rapto de bebês e o ato de embarcar prisoneiros em aviões e jogá-los vivos no rio da Prata. Os trinta mil desaparecidos deixaram um vazio. Eram o melhor desta geração perdida”.

Termina a sessão da Quinzena Latino-americana. O ator Carlos Vereza levanta-se do lugar que ocupava na primeira fila para beijar a mão de Rafael.
O pai de Valéria, José e Martin posa para fotos. A pequena plateia se retira. Acompanhado de duas cicerones da Livraria da Travessa, Rafael caminha novamente pelos corredores. Cruza com funcionários de lojas que estão apressados porque querem ir embora. O expediente acabou – para Rafael e para eles. Amanhã, os funcionários começam tudo de novo. Rafael também – porque jamais dará por encerrada a missão de manter viva a memória de Valéria, José e Martin. Que importa o tamanho das plateias? Pode chegar o dia em que os auditórios de Rafael estarão desertos. Pode chegar, sim. Os terráqueos, certamente, estarão ocupados com outras tarefas, sem tempo de ouvir relatos sobre desaparecidos. Não é absurdo imaginar. Quando esse dia chegar, quem sabe, Rafael estará fazendo o que me disse que espera fazer: “Vou estar em algum lugar do Uruguai, certamente em Punta del Este, em companhia de um amigo – um cachorro. Bastará um perro. Não vivem dizendo que ele é o melhor amigo do homem?”.

Posted by geneton at 02:40 AM

julho 08, 2013

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

O DIA EM QUE O MINISTRO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO DESCOBRIU O QUE É “ESPIONAGEM”: SECRETÁRIO DE ESTADO AMERICANO SABIA MAIS SOBRE SEGREDO MILITAR BRASILEIRO DO QUE ELE

Quando era ministro das Relações Exteriores do presidente Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso teve, na prática, uma lição de como a “espionagem” funciona. Durante uma escala nos Estados Unidos, a caminho de uma missão diplomática no Japão, FHC ouviu do secretário de estado americano, numa conversa privada, uma pergunta sobre um segredo militar brasileiro. FHC desconhecia o assunto. Já na presidência, Fernando Henrique soube que o projeto a que o secretário americano se referia de fato existia. Em suma: o secretário de Estado americano sabia mais sobre o Brasil do que o então ministro das Relações Exteriores brasileiro.

Numa entrevista que fiz com ele ( publicada, na íntegra, no livro DOSSIÊ BRASÍLIA : OS SEGREDOS DOS PRESIDENTES” – que traz, também, depoimentos de José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco), FHC descreve a cena:

Qual o grande segredo o senhor teve de guardar quando estava no poder mas pode revelar hoje?

FHC: “Não é um grande segredo. Aconteceu antes de eu estar na presidência: quando estava indo para o Japão, como chanceler do presidente Itamar, passei pelos Estados Unidos, onde o secretário de Estado, Warren Christopher, depois de uma conversa agradável que teve comigo e com várias pessoas, me disse que precisava me falar em particular: “Ministro, temos informações de que o Brasil vem obtendo material secreto da Rússia para fazer mísseis” . Fiquei surpreso ! Brinquei na resposta que dei ao secretário de Estado: “Se o Brasil e a Rússia estão fazendo, só se for com financiamento americano porque estamos em uma crise grande…”

Tempos depois, já como presidente da República, fui informado de que o Brasil tinha, efetivamente, conseguido controlar o sistema de lançamento de satélites – que, na verdade, é o mesmo ( usado para mísseis). Era esse o fato.

Tomei, então, a seguinte decisão: “Vou anunciar ao mundo que o Brasil dispoe da tecnologia”. Combinei com os ministros militares e com o Itamaraty que iríamos propor que o Brasil entrasse para o sistema internacional de controle – que se chama MTCR ( Missile Technology Control Regime – ou Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis).

Vim para São Paulo, fui até São José dos Campos, para o lançamento de um avião da Embraer que faz tanto sucesso hoje: o 135. Fiz o discurso. Tive, então, uma surpresa: ninguém no Brasil deu importância ao que eu disse ! Só quando saiu publicado nos Estados Unidos é que deram importância. De fato, tínhamos nos apoderado da tecnologia para o lançamento de satélites”.

O governo americano estava mais bem informado do que o senhor?

FHC: “O governo americano sabia ! Quando voltei daquela viagem, falei com o presidente Itamar – que também não estava informado sobre o assunto. Aquilo foi feito com discrição. Era uma coisa boa: um desenvolvimento tecnológico nosso”.

Depois de eleito presidente, Fernando Henrique Cardoso teve conversas privadas com o presidente americano Bill Clinton. Num desses encontros, Clinton insinuou que o Brasil poderia ter uma presença militar na Colômbia, país que enfrentava dois problemas gigantescos: os cartéis da droga e a força da guerrilha:

O que é que o presidente Bill Clinton dizia ao senhor em conversas privadas ? O senhor foi convidado a passar um fim de semana em Camp David, a residência de verão do presidente…

FHC: “Fui a Camp David. O presidente Clinton queria que o Brasil tivesse um papel mais ativo na Colômbia – e até no Oriente Médio. Os americanos gostam que o Brasil tenha tenha um papel mais ativo em casos assim. Mas eu eu era muito restritivo, sobretudo diante da sugestão de que o Brasil fosse mais ativo na Colômbia, onde há guerrilha. Isso significava, no fundo, presença militar brasileira. O que havia, ali, não era uma insistência de Bill Clinton: era uma conversa em que achava que o Brasil poderia ter esse papel.

Conversamos bastante sobre História. Clinton sabe muito de História: é um homem de cultura. Impressionou-me muito quando falou sobre a China e sobre a Rússia. Disse o seguinte: “A deve sempre perguntar a um país como esse: do que é que ele tem medo ? Qual o medo histórico desse país ? Qual é a ambiçao ? Por exemplo: a Rússia deve ter medo de ser invadida, porque já sofreu invasões várias vezes. Já a China deve ter medo de ser despadaçada pelos chefes da guerra. Deve-se perguntar: qual é a ambição de países assim ? São expansionistas ? Não são expansionistas ?”.

O senhor achou, então, que o presidente Bill Clinton esperava que o Brasil tivesse uma presença militar na Colômbia?

FHC: “Clinton não me disse com essas palavras, mas a verdade era essa. Isso foi antes de os Estados Unidos terem essa presença tão ativa. O que ele disse foi: “O Brasil poderia ter um pouco mais de preocupação….”. Mas, nessa matéria, tínhamos uma posição muito mais retraída e muito menos intervencionista”.

Que resposta, então, o senhor deu ao presidente Bill Clinton quando ele fez essa insinuação sobre a presença militar do Brasil em território colombiano ?

FHC: “Clinton não falou nesses termos, em “militar”. É que havia, na Colômbia, a guerrilha e a droga – a questão mais séria. A resposta que dei foi a seguinte: “Temos no Brasil nossa política antidrogas, temos também a floresta amazônica – que, de alguma maneira, mas não tanto, nos protege”. A polêmica era a seguinte: os Estados Unidos queriam que houvesse um comando único da repressão à droga. O Brasil não quis. Queríamos ter nossa política. O fundo da questão é esse”.

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julho 06, 2013

PEDRO SIMON

AS CONFISSÕES DE PEDRO SIMON: A DECISÃO DE DAR ADEUS AO SENADO, O DIÁLOGO DECISIVO COM UM ARCEBISPO NUM MOMENTO DE DOR E A LEMBRANÇA DA MADRUGADA EM QUE O PRESIDENTE DA REPÚBLICA FOI DERRUBADO

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Pedro Simon: a hora de bater em retirada

O senador Pedro Simon deu um susto em seus assessores. Nunca tinha feito uma declaração pública sobre se iria ou não sair de cena, depois de quatro mandatos no Senado Federal. Resolveu fazer, sem aviso prévio, na entrevista que gravei com ele para o DOSSIÊ GLOBONEWS ( vai ao ar neste sábado, às 21:05, com reprise no domingo, às 17:05 ).

Decidido: Simon não disputará a eleição de 2014. Acabou o suspense. Fez as contas: completará 85 anos de idade justamente no mês em que termina o atual mandato – janeiro de 2015. Resolveu que chegou a hora de dar por encerrada a trajetória no Senado. Quer passar adiante o bastão. A não ser que haja alguma improvável reviravolta, o nome de Pedro Simon não voltará a aparecer nas cédulas eleitorais gaúchas.

O trecho da entrevista em que o senador surpreendeu os assessores Luiz Fonseca e Luiz Cláudio Cunha :

O senhor já decidiu se vai ou não disputar um novo mandato em 2014?

Simon: “Termino meu mandato – são sessenta anos de vida pública – no dia 15 de janeiro de 2015. Neste dia, faço 85 anos. É uma determinação do destino. Não vejo muita lógica em ser candidato com quase 85 anos. Há gente nova, brilhante e capaz. Mas não vou largar a política. Vou ajudar o meu partido, como soldado raso ou seja como for. Mas não pretendo”.

Já se pode dizer, então, que o senador Pedro Simon vai sair de cena, pelo menos no Congresso Nacional. O senhor sai de cena frustrado ou feliz com o que fez?

Simon: “Eu saio feliz. Tive grandes missões, grandes responsabilidades. Sempre fiz o que podia fazer. Não fui herói, não fui santo. Mas, dentro da capacidade relativa que eu tinha, o que podia fazer eu fiz. Sinceramente. Duvido que tenha no Brasil um político que tenha trazido mais políticos para a classe política do que eu. É o que passei a vida fazendo, porque achava que era importante”.

Ouvir Pedro Simon é testemunhar um orador em ação. Homem despojado, sabidamente alheio aos apelos das vaidades vãs, o senador pode, no entanto, bater no peito para se vangloriar de uma façanha: é perfeitamente capaz de falar em silêncio. “Mas como é possível ? ” – perguntará algum observador ingênuo. É possível, sim : quando sobre à tribuna – ou quando se confessa diante de um repórter, como faz agora, no gabinete que ocupa na ala Alaxandre Costa do Senado Federal -, o senador transforma em arte a habilidade de pontuar as frases com silêncios dramáticos. E os silêncios completam o que ele diz. Deve ter sido sempre assim, desde os tempos em que exercia seus dotes oratórios como advogado.

Os silêncios dramáticos do senador, aliás, nunca vêm sozinhos, mas acompanhados de gestos típicos: quando se cala entre uma frase e outra, Simon faz um ar contrito, como se estivesse sofrendo em busca de alguma palavra que lhe tenha escapado. Balança as mãos, como se estivesse espanando o vazio. Franze a testa, como se estivesse preocupado. Fixa os olhos claros em algum ponto do chão, como se estivesse distante de tudo. Pronto. Emoldurada por este gestual, a figura do Pedro Simon clássico estará completa. É inconfundível. Ah, fiel ao gauchês, volta e meia subtrai o “s” dos plurais.

O político que venera São Francisco de Assis fez uma espécie de voto de pobreza: passou os bens para os filhos. Teve fôlego para enfrentar os sacrifícios de uma peregrinação a pé pelo sertão nordestino, rumo ao santuário erguido em homenagem a São Francisco em Canindé, no Ceará, porque queria experimentar a penitência, o cansaço, o jejum.

A entrevista do senador terminou se transformando numa mistura de memória política com memória pessoal. Simon não se incomoda de falar da dor que cintila, renitente, em algum ponto de suas lembranças desde aquele fim de semana maldito de 1984, em que perdeu o filho Matheus num desastre de carro. É capaz de comover o interlocutor quando descreve a conversa decisiva que teve com o então arcebispo de Porto Alegre, o cardeal Dom Vicente Sherer, dias depois da morte do filho. Da conversa – que durou horas – saiu um Simon reconvertido, pronto para a caminhada que o levaria, um dia, a peregrinar pelos sertões nordestinos em busca do santuário onde, longe dos holofotes, pôde venerar o ideal franciscano de despojamento.

Um trecho da entrevista, em que o senador fala da conversa com o cardeal Vicente Scherer depois da morte do filho e dos últimos momentos de João Goulart na Presidência da República :

O SENADOR E O CARDEAL: A CONVERSA QUE MUDOU A VIDA DE SIMON

O então arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, passou um dia inteiro trancado com o senhor, porque, depois de perder um filho num acidente, o senhor disse que Deus não estava olhando para o senhor. Naquela conversa, o senhor foi reconvertido?

Pedro Simon: “Perdi minha mulher e um filho num acidente de automóvel. Naquela época do registro da candidatura de Tancredo Neves na mesa do senado, estávamos na expectativa de que a Arena ia querer boicotar, porque Sarney tinha candidato da gente. Fizemos, então, um esforço concentrado aqui em Brasília. Fui dos primeiros a ficar aqui. Eu tinha marcado com minha mulher e meus três filhos – eeu devia há muito tempo- que nós iríamos descansar. Aquilo coincidia com o feriado de finados. Telefonei dizendo que não podia ir mas que iria dois dias depois. Minha mulher ficou chateada. Terminou indo. Primeiro, morreu meu filho. Depois, minha mulher teve uma depressão de tal natureza que não se recuperou.

Quando houve a missa do meu filho, Dom Vicente veio e me deu um abraço: “Firme, Dr. Pedro ! Tenho rezado muito a Deua pedindo para ele olhar pra ti”. Eu disse: “Dom Vicente, agradeço ao senhor por suas orações. Só não peça para Deus olhar para mim, porque, cada vez que ele olha, ele me dá uma paulada”.

Um dia depois, às seis e meia da manhã, apertam a campainha. Era Dom Vicente. Ficou comigo o dia inteiro. Dom Vicente era brilhante. Não tinha na retórica uma grande qualidade. Mas ali, não sei se era eu , não sei se era ele, eu recuperei minha fé com ele. Se ele não estivesse ali, não sei o que aconteceria. Porque eu estava de mal com o mundo. Uma das coisas que Dom Vicente me mostrou: “Dr.Pedro, o senhor perdeu o filho. Disso, o senhor não teve culpa. É o destino. Pelas informações que tenho, os seus outros dois filhos estão enlouquecidos, porque o senhor não liga, não fala, não toma conhecimento de nada. Se alguma coisa acontecer a eles, o senhor é o culpado”. A primeira coisa que fiz, então, foi procurar meus dois filhos. Minha vida tomou um rumo”.

O senhor teve diálogos importantes com líderes históricos do Brasil. O senhor diria que esta conversa pessoal com o arcebispo foi a mais importante que o senhor teve na vida?

Pedro Simon: “Sob o ponto de vista da minha vida, foi. Eu estava caindo dia após dia. Estava caindo em depressão. Eu não aceitava o que tinha acontecido comigo. Não estava certo. E o arcebispo conseguiu fazer um retorno muito bonito”.

A MAIS LONGA DAS NOITES: JANGO SE VÊ À BEIRA DO ABISMO

Um mês antes do golpe de março de 1964, o senhor ouviu um desabafo do ainda presidente João Goulart sobre as cobranças que ele vinha sofrendo para apressar as chamadas reformas de base. Em que termos foi feito este desabafo?

Pedro Simon: “Já foi no final. Jango marcou com a gente às dez da noite no Palácio do Alvorada. Chegamos lá às dez. Quando ele chegou, era meia-noite. Ficamos até as seis da manhã. E ele desabafou. Começou a “chorar”, magoado. Disse: “Pelo amor de Deus, será que eu mudei, será que não quero fazer as coisas ? Mas estou cercado de tudo que é lado ! É a Igreja, é o poder militar, são os empresários, é a mídia, é até a classe média – uma campanha de rebelião ! E alguns querem que eu faça tudo como projetamos ! Que eu faça cem por cento assim. Não dá! Se eu fizer, caio na hora ! O que estou propondo, o que estou discutindo é o que vamos fazer. Por exemplo: reforma agrária. Nós vamos fazer trinta por cento do que prometemos. Quando chegar a hora de imp´lantar, eu boto mais vinte. Quem vier depois não voltará atrás. Vai ter de caminhar adiante”. É o que ele dizia”.

Qual era a queixa mais séria que o então presidente João Goulart fazia em relação à falta de apoio político que ele tinha?

Pedro Simon: “Todas as forças – desde as reacionárias, as extremistas – até forças – digamos assim – conservadoras que nunca tiveram participação em radicalismo e em golpe dessa vez estavam todas fechadas. A Igreja, com aquela campanha de “Deus, pátria e família” tinha se movimentado de tal maneira que era quase uma unanimidade. A imprensa toda ! A classe empresarial, os industriais – toda. Faltou alguém ? E o Exército, as Forças Armadas.

Jango estava reduzido a uma base de esquerda, rachada em dez tipos de decisões :”Vamos fazer isso, vamos fazer aquilo” . E o outro lado estava unido e coeso de uma maneira total”.

O senhor testemunhou um momento dramático : o instante em que o então presidente João Goulart decidiu que não iria lutar para permanecer na presidência. O que é que ele disse, exatamente?

Pedro Simon: “Ficamos no aeroporto, em Porto Alegre, de meia-noite às duas e meia da madrugada, quando o avião de Jango chegou. Fomos todos para a casa do comandante do III Exército – que disse: “Presidente, estou à sua disposição. Nós – do III Exército – estamos aqui. A decisão é sua !”.

Brizola já estava insistindo em fazer um movimento. Brizola queria que Jango o nomeasse ministro da Fazenda e nomesse o general Ladário Teles, comandante do III Exército, como ministro da Guerra, para começar, naquela madrugada, a caminhar. Deu para sentir que Jango não tinha nenhuma simpatia pela nomeação de Brizola como ministro da Fazenda. Em Ladário ele confiava, mas dava para ver que Ladário não era um daqueles generais de convivência com o presidente da República. Não tinha uma credibilidade, não era um nome de força que pudesse representá-lo em muita coisa. Representava porque estava no comando do III Exército”.

O senhor diz que, neste encontro com o Presidente João Goulart, Leonel Brizola pediu para ser nomeado ministro da Fazenda e o general Ladário, ministro da Guerra. Por que exatamente Brizola queria ser ministro da Fazenda, naquelas circunstâncias?

Pedro Simon: “Você faz uma pergunta que cada um responderia de um jeito. Vou responder com a interpretação que tenho, mas com certeza absoluta : ali, naquele momento, para ser uma coisa para valer, se Brizola assumisse o ministério da Fazenda não por convite de Jango mas por imposição própria e se o general Ladário assumisse o ministério da Guerra, haveria um movimento em que Brizola é que assumiria o comando. Caso contrário, se ele fosse, por exemplo, ministro da Justiça, não iria ter um tostão, não iria ter poder nenhum. Mas ele como ministro da Fazenda, com o ministro da Guerra ao lado, poderia tentar fazer alguma coisa. Isso deve ter assustado um pouco Jango : até que ponto Brizola iria nessa caminhada”.

Que reação o presidente João Goulart teve quando soube que a presidência da República tinha sido declarada vaga?

Pedro Simon: “A reação de Jango foi de profundo abatimento. Digo uma coisa interessante: Jango não estava com fisionomia de derrotado ou de medo ou de temor. Estava com uma fisionomia firme”.

Alguém tentou convencer o presidente João Goulart, além de Leonel Brizola, a resistir?

Pedro Simon: “O ímpeto de resistir existia. O que deixava a gente preocupado era quando Jango dizia: “Eu sei que a Sétima Frota está ali do lado, pronta para intervir, querendo intervir ! Pelas informações que a gente tem, ela quer fazer tudo para intervir, porque acha que este é o momento de fazer a limpeza que quer fazer no Brasil. E não sei se temos condições de resistir”. Isso deixava a gente também assustado. Uma coisa muito interessante é que, no início, a reunião foi democrática. Ficamos todos na sala de estar do comandante do III Exército. Havia um hall de entrada grande. Estava todo mundo ali. Depois, alguns foram para a sala de jantar. Em seguida, foram para o quarto do comandante. E,no fim, estavam Jango, Brizola e já não lembro quem no banheiro. E aí nunca mais vi Jango – que saiu pelos fundos e foi embora”.

O senhor confirma, então, que o ainda presidente João Goulart tinha informações sobre a iminência de uma intervenção americana no Brasil, em 1964? O senhor ouviu referências de Joáo Goulart a este perigo?

Pedro Simon: “Nesta madrugada, na casa do comandante do III Exército, Jango foi enfático: “Estão ali – preparando”. E, no Palácio do Alvorada, quando estivemos com ele, Jango disse a mesma coisa.Sõ não disse tão enfaticamente : “Estão aqui, esperando para entrar”.

É historicamente correta a afirmação de que o então presidente João Goulart não resistiu exclusivamente porque queria evitar derramamento de sangue?

Pedro Simon: “Absolutamente certo. Jango sentiu que as coisas estavam se precipitando. Ia ser algo muito grave – que fugiria do controle”.

O senhor chegou a ouvir alguma referência do então presidente João Goulart sobre o medo que ele tinha de que houvesse derramamento de sangue no Brasil?

Pedro Simon: “Jango disse que não estávamos preparados para um golpe de estado. Ficou convencido de que a frota americana estava “ali do lado” e a guerra civil seria uma realidade. Eu diria com toda sinceridade que Jango teve coragem. Não foi um ato de medo : teve o peito de dizer : pago um preço mas não quero ver o que pode acontecer com o Brasil”.

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junho 15, 2013

ARIANO SUASSUNA 3

ARIANO SUASSUNA LUTA PARA NÃO TRAIR “DEUS, O DESERTO E A POBREZA”, SONHA COM O DESPOJAMENTO E CAMINHA PARA PERDOAR OS ASSASSINOS DO PAI
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Ariano, em casa, depois da gravação da entrevista: um esforço para perdoar os assassinos do pai (foto: Geneton Moraes Neto)

A Globonews leva ao ar neste sábado, às 21:05, com reprise amanhã, às 17:05, entrevista com Ariano Suassuna – que completa 86 anos de idade neste domingo.

Ariano Suassuna uma vez escreveu:

“A grande fonte de sofrimento de minha vida é o fato de constatar que ela contradiz aquilo em que mais profundamente acredito, o remorso de saber que, por covardia e também por medo de ferir aqueles a quem amo, toda a minha vida é uma traição a Deus – ao Deserto e à pobreza que constitui meu sonho secreto”.

Disse tudo: uma vida despojada, ascética, livre de vaidades vãs, dedicada aos tormentos e alegrias da Criação, protegida das tentações do conforto medíocre e desapegada da obsessão estúpida pela riqueza material. Eis aí um belo projeto.

Ah, o Deserto !

A contradição entre o sonho de uma vida despojada e a realidade mesquinha do dia-a-dia é a “grande fonte do sofrimento” do escritor Ariano Suassuna.

Perguntei a ele sobre esta contradição, na entrevista gravada para o DOSSIÊ GLOBONEWS.

Suassuna citou o grande exemplo de Leon Tosltoi, um de suas admirações, igualmente devotado ao sonho do despojamento. Já no fim da vida, Tolstoi fugiu de casa para se tornar um caminhante solitário – uma última e desesperada tentativa rumo ao sonho do despojamento absoluto. Viveu intensamente a contradição entre o deserto e a fartura. Abatido por uma pneumonia, terminou morrendo, numa estação ferroviária, durante a “fuga”. Belo destino: a morte numa estação, em busca de uma quimera.

Guardadas as proporções, o escritor Ariano vive contradição parecida : como deixar que a quimera do despojamento não se estilhace, não se dilacere, não seja engolida pelas urgências do cotidiano ? É missão para uma vida inteira. Ainda bem.

O escritor Ariano Suassuna não é tão lido quanto deveria. Aos não iniciados, recomenda-se um mergulho nas páginas do “Romance D´a Pedra do Reino”. Depois de anos sem reedições, o livro ganhou, não faz tempo, uma nova edição da José Olympio. É obra literária de gênio.

A defesa intransigente que faz de um Brasil que não se conforme em ser uns “Estados Unidos de terceira categoria” transformou Ariano em personagem de incompreensões e julgamentos rasteiros.

Eu me arrisco a dizer : para a,ém de bate-bocas imediatos, o que vai ficar é a qualidade literária de um livro como o “Romance d´a Pedra do Reino”.

A entrevista ao DOSSIÊ GLOBONEWS é pontuada pela leitura de trechos da Pedra do Reino, feita por um grande ator chamado Cláudio Jaborandy.

Trechos do grande livro:

“Meu Deus sertanejo ! Minha onça malhada, meu divino jaguar de sangue, fogo e pedras preciosas ! Eu não creio em nada ! Vinde inflamar meu sangue com aquele dom de fogo chamado fé, mesmo que vossa fé venha a me queimar, como a ventania deste meu reino sagrado e sangrado, o espinhara, o sertão incendiário e abrasador”.

“Ah, esses negociantes e usurários do mundo ! Querem nos moldar à imagem deles, a nós, povos morenos dos países quentes, nós, os ardentes, os que ainda temos a capacidade de ser felizes, de fruir a vida, num mundo em que isso vai ficando cada vez mais raro!

Eu gostaria que eles nos deixassem fruir da nossa vida, que eles consideram suja, e enfrentar nossa morte, que consideram irracional !

Ficassem por lá, com sua riqueza amontoada por séculos de trabalho estúpido e tenaz, com seu poderio acumulado em máquinas e dinheiro, com seus ideais puritanos de higiene e virtude! Mas não ! Eles precisam vender seus produtos, para acumular mais dinheiro!

Então, procuram nos corromper para nos dominar, sob o pretexto de que somos uns adolescentes bárbaros, que é preciso conter e dominar com rédea curta, senão atrapalham e sujam a ordem do mundo!

“Esses povos de comerciantes, os mais tristes do mundo, nascidos e criados entre o frio, o escuro e a severa infelicidade dos ideais puritanos, querem impingir suas receitas a nós, povos morenos, criados ao sol ! Como é que poderão, nunca, nos entender ?”.

A dor de ver a quimera do despojamento irrealizada não é a única fonte de sofrimento do escritor.

Quando tinha apenas três anos de idade, em 1930, Ariano Suassuna perdeu o pai – assassinado a tiros, pelas costas, por um pistoleiro de aluguel, no centro do Rio de Janeiro. Motivo: disputas políticas.

João Suassuna, o pai de Ariano, tinha sido “presidente da Paraíba”, cargo que corresponde, hoje, ao de governador. Deixou nove filhos, todos crianças.

Oitenta e três anos depois, Ariano Suassuna diz, na entrevista, que caminha para perdoar os assassinos do pai. Ainda não chegou ao perdão, mas já consegue rezar por eles.

Em belo depoimento, Suassuna dá uma explicação teológica para a difícil caminhada rumo ao perdão. Não é fácil. Nunca foi.

Um trecho da entrevista:

A morte do seu pai – que foi assassinado nos anos trinta em disputas políticas, quando o senhor ainda era criança, foi um acontecimento decisivo na vida do senhor. O senhor conseguiu tratar e superar literariamente o trauma da ausência do pai ?

Ariano Suassuna: “Isso é uma tentativa constante, na minha vida. Finalmente, estou conseguindo, depois dos oitenta anos. Procurei sempre. Tenho muito cuidado, com medo de ser hipócrita, porque perdoar é uma coisa muito difícil. Digo perdoar mesmo – sinceramente. Passei muito tempo sem conseguir perdoar. Ultimamente, me veio uma ideia que me consolou um pouco: a de que estou chegando perto. Se não perdoei os assassinos do meu pai, estou chegando perto.

Sou um sujeito religioso, como você sabe. Tenho algumas ideias que nem sei se são autorizadas ou ortodoxas. Por exemplo: acredito na existência do demônio. Mas não acredito na condenação eterna do demônio. Se o demônio fosse condenado, esta seria uma pena absoluta. E, para mim, absoluto só Deus. Se o demônio não fosse perdoado, ele estaria, assim, sendo mais importante do que o Cristo. Tenho impressão de que, no fim dos tempos, o demônio será perdoado a pedido da Misericordiosa, a Compadecida, a Deus. Acho que o demônio vai ser perdoado.

Acredito no inferno. Há coisas que precisam ser pagas no inferno,mas não acredito que o inferno seja eterno. Cheguei a essa conclusão: para mim, o inferno é a parte mais pesada do purgatório. Depois de muito tempo, me perguntei o seguinte: se os assassinos do meu pai estiverem no inferno – e se depender de mim para eles saírem -, eu autorizo. Queria que eles saíssem. Estou chegando perto do perdão. Atualmente, ainda estou mais perto, porque, depois que descobri que eu os soltaria, passei a rezar por eles”.

O senhor diz que, depois dos oitenta anos, chegou perto de perdoar os assassinos do seu pai. O que é que falta, então ?

Ariano Suassuna : “Falta que eu sinta, em relação a eles, aquilo que sinto em relação à minha mulher, meus filhos, meus netos e meus amigos. Ainda não senti. Eu queria não ter raiva – e ser capaz de sentir, até, uma imensa piedade e um amor verdadeiro por eles. É o que o Cristo pediu que a gente tivesse: amar seus inimigos”.

O senhor em algum momento teve o impulso de procurar o assassino do seu pai para perguntar a ele, pessoalmente, por que ele cometeu este crime ?

Ariano Suassuna: “Minha mãe tinha medo de que a gente tivesse algum sentimento de vingança. O ambiente no sertão levava muito a isso. Perguntavam-me : “Como é ? Quando crescer, vai vingar o pai ? “. Ouvi isso várias vezes. Mamãe, com medo, não só ritirou a gente do sertão da Paraíba, como nos convenceu de que o assassino do meu pai tinha morrido. Só quando adulto, já casado e pai de filho, é que vim a saber que o executor da morte estava vivo – morando no Rio de Janeiro.

Perguntei a ela: “Minha mãe, por que você não me disse ? “. E ela: “Não disse para vocês não ficarem com essa ideia de vingança”. Uma das lembranças que tenho da infância é um morador da fazenda, grande amigo de papai, ajoelhado aos pés da minha mãe pedindo para ela deixar que ele matasse o assassino. Mamãe não deixou.

Os Pessoas fizeram a meu pai a acusação de ser o mandante do assassinato de João Pessoa. João Dantas foi o executor, mas o mandante teria sido meu pai. Isso é uma coisa que hoje, na Paraíba, até os partidários de João Pessoa sabem que não é verdade. Você pode ver, facilmente: meu pai era um sertanejo. Se ele quisesse mandar matar João Pessoa, ele tinha, só na fazenda do pai dele, trinta pessoas que se disporiam a matar ! Meu pai ia mandar um primo legítimo da mulher, formado em Direito, advogado do Banco do Brasil ?

Quem conhece o mínimo da biografia de João Dantas sabe que ele não é homem de ser mandado por ninguém. Não ocorre hoje, na Paraíba, a ninguém que meu pai tivesse mandado matar. Meu pai sabia que ia ser assassinado: escreveu uma carta, para minha mãe e para nós, no dia oito de outubro de 1930 – e foi asssasinado no outro dia, de manhã. Dizia que esperava ser assassinado. Pedia que ninguém vingasse. Disse: não se tornem assassinos por minha causa !

Se você já viu uma última confissão, você reconhece o tom. E ele dizia: podem assegurar a nossos filhos que sou inteiramente inocente no caso de morte de João Pessoa” ( a carta dizia: “Se me tirarem a vida os parentes do presidente João Pessoa, saibam todos os nossos que foi clamorosa injustiça. Não sou responsável pela sua morte nem de pessoa alguma neste mundo. Não alimentem, apesar disso, ideia ou sentimento de vingança contra ninguém. Recorram para Deus. Para Deus, somente.Não se façam criminosos por minha causa“).

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O Ariano Suassuna criança – de apenas três anos – guardou que lembrança do pai ?

Ariano Suassuna : “A última vez que vi meu pai foi no cais do Recife. A gente veio trazer meu pai , para ele ir ao Rio – onde foi assassinado. Só me lembro desse momento: ele já no navio, mamãe me apontando. Eu não via. De repente, enxergei: meu pai estava emoldurado pela janela do navio – dando com a mão. Aquela foi a última vez que o vi”.

Posted by geneton at 11:15 PM

ARIANO SUASSUNA 3

ARIANO SUASSUNA LUTA PARA NÃO TRAIR “DEUS, O DESERTO E A POBREZA”, SONHA COM O DESPOJAMENTO E CAMINHA PARA PERDOAR OS ASSASSINOS DO PAI
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Ariano, em casa, depois da gravação da entrevista: um esforço para perdoar os assassinos do pai (foto: Geneton Moraes Neto)

A Globonews leva ao ar neste sábado, às 21:05, com reprise amanhã, às 17:05, entrevista com Ariano Suassuna – que completa 86 anos de idade neste domingo.

Ariano Suassuna uma vez escreveu:

“A grande fonte de sofrimento de minha vida é o fato de constatar que ela contradiz aquilo em que mais profundamente acredito, o remorso de saber que, por covardia e também por medo de ferir aqueles a quem amo, toda a minha vida é uma traição a Deus – ao Deserto e à pobreza que constitui meu sonho secreto”.

Disse tudo: uma vida despojada, ascética, livre de vaidades vãs, dedicada aos tormentos e alegrias da Criação, protegida das tentações do conforto medíocre e desapegada da obsessão estúpida pela riqueza material. Eis aí um belo projeto.

Ah, o Deserto !

A contradição entre o sonho de uma vida despojada e a realidade mesquinha do dia-a-dia é a “grande fonte do sofrimento” do escritor Ariano Suassuna.

Perguntei a ele sobre esta contradição, na entrevista gravada para o DOSSIÊ GLOBONEWS.

Suassuna citou o grande exemplo de Leon Tosltoi, um de suas admirações, igualmente devotado ao sonho do despojamento. Já no fim da vida, Tolstoi fugiu de casa para se tornar um caminhante solitário – uma última e desesperada tentativa rumo ao sonho do despojamento absoluto. Viveu intensamente a contradição entre o deserto e a fartura. Abatido por uma pneumonia, terminou morrendo, numa estação ferroviária, durante a “fuga”. Belo destino: a morte numa estação, em busca de uma quimera.

Guardadas as proporções, o escritor Ariano vive contradição parecida : como deixar que a quimera do despojamento não se estilhace, não se dilacere, não seja engolida pelas urgências do cotidiano ? É missão para uma vida inteira. Ainda bem.

O escritor Ariano Suassuna não é tão lido quanto deveria. Aos não iniciados, recomenda-se um mergulho nas páginas do “Romance D´a Pedra do Reino”. Depois de anos sem reedições, o livro ganhou, não faz tempo, uma nova edição da José Olympio. É obra literária de gênio.

A defesa intransigente que faz de um Brasil que não se conforme em ser uns “Estados Unidos de terceira categoria” transformou Ariano em personagem de incompreensões e julgamentos rasteiros.

Eu me arrisco a dizer : para a,ém de bate-bocas imediatos, o que vai ficar é a qualidade literária de um livro como o “Romance d´a Pedra do Reino”.

A entrevista ao DOSSIÊ GLOBONEWS é pontuada pela leitura de trechos da Pedra do Reino, feita por um grande ator chamado Cláudio Jaborandy.

Trechos do grande livro:

“Meu Deus sertanejo ! Minha onça malhada, meu divino jaguar de sangue, fogo e pedras preciosas ! Eu não creio em nada ! Vinde inflamar meu sangue com aquele dom de fogo chamado fé, mesmo que vossa fé venha a me queimar, como a ventania deste meu reino sagrado e sangrado, o espinhara, o sertão incendiário e abrasador”.

“Ah, esses negociantes e usurários do mundo ! Querem nos moldar à imagem deles, a nós, povos morenos dos países quentes, nós, os ardentes, os que ainda temos a capacidade de ser felizes, de fruir a vida, num mundo em que isso vai ficando cada vez mais raro!

Eu gostaria que eles nos deixassem fruir da nossa vida, que eles consideram suja, e enfrentar nossa morte, que consideram irracional !

Ficassem por lá, com sua riqueza amontoada por séculos de trabalho estúpido e tenaz, com seu poderio acumulado em máquinas e dinheiro, com seus ideais puritanos de higiene e virtude! Mas não ! Eles precisam vender seus produtos, para acumular mais dinheiro!

Então, procuram nos corromper para nos dominar, sob o pretexto de que somos uns adolescentes bárbaros, que é preciso conter e dominar com rédea curta, senão atrapalham e sujam a ordem do mundo!

“Esses povos de comerciantes, os mais tristes do mundo, nascidos e criados entre o frio, o escuro e a severa infelicidade dos ideais puritanos, querem impingir suas receitas a nós, povos morenos, criados ao sol ! Como é que poderão, nunca, nos entender ?”.

A dor de ver a quimera do despojamento irrealizada não é a única fonte de sofrimento do escritor.

Quando tinha apenas três anos de idade, em 1930, Ariano Suassuna perdeu o pai – assassinado a tiros, pelas costas, por um pistoleiro de aluguel, no centro do Rio de Janeiro. Motivo: disputas políticas.

João Suassuna, o pai de Ariano, tinha sido “presidente da Paraíba”, cargo que corresponde, hoje, ao de governador. Deixou nove filhos, todos crianças.

Oitenta e três anos depois, Ariano Suassuna diz, na entrevista, que caminha para perdoar os assassinos do pai. Ainda não chegou ao perdão, mas já consegue rezar por eles.

Em belo depoimento, Suassuna dá uma explicação teológica para a difícil caminhada rumo ao perdão. Não é fácil. Nunca foi.

Um trecho da entrevista:

A morte do seu pai – que foi assassinado nos anos trinta em disputas políticas, quando o senhor ainda era criança, foi um acontecimento decisivo na vida do senhor. O senhor conseguiu tratar e superar literariamente o trauma da ausência do pai ?

Ariano Suassuna: “Isso é uma tentativa constante, na minha vida. Finalmente, estou conseguindo, depois dos oitenta anos. Procurei sempre. Tenho muito cuidado, com medo de ser hipócrita, porque perdoar é uma coisa muito difícil. Digo perdoar mesmo – sinceramente. Passei muito tempo sem conseguir perdoar. Ultimamente, me veio uma ideia que me consolou um pouco: a de que estou chegando perto. Se não perdoei os assassinos do meu pai, estou chegando perto.

Sou um sujeito religioso, como você sabe. Tenho algumas ideias que nem sei se são autorizadas ou ortodoxas. Por exemplo: acredito na existência do demônio. Mas não acredito na condenação eterna do demônio. Se o demônio fosse condenado, esta seria uma pena absoluta. E, para mim, absoluto só Deus. Se o demônio não fosse perdoado, ele estaria, assim, sendo mais importante do que o Cristo. Tenho impressão de que, no fim dos tempos, o demônio será perdoado a pedido da Misericordiosa, a Compadecida, a Deus. Acho que o demônio vai ser perdoado.

Acredito no inferno. Há coisas que precisam ser pagas no inferno,mas não acredito que o inferno seja eterno. Cheguei a essa conclusão: para mim, o inferno é a parte mais pesada do purgatório. Depois de muito tempo, me perguntei o seguinte: se os assassinos do meu pai estiverem no inferno – e se depender de mim para eles saírem -, eu autorizo. Queria que eles saíssem. Estou chegando perto do perdão. Atualmente, ainda estou mais perto, porque, depois que descobri que eu os soltaria, passei a rezar por eles”.

O senhor diz que, depois dos oitenta anos, chegou perto de perdoar os assassinos do seu pai. O que é que falta, então ?

Ariano Suassuna : “Falta que eu sinta, em relação a eles, aquilo que sinto em relação à minha mulher, meus filhos, meus netos e meus amigos. Ainda não senti. Eu queria não ter raiva – e ser capaz de sentir, até, uma imensa piedade e um amor verdadeiro por eles. É o que o Cristo pediu que a gente tivesse: amar seus inimigos”.

O senhor em algum momento teve o impulso de procurar o assassino do seu pai para perguntar a ele, pessoalmente, por que ele cometeu este crime ?

Ariano Suassuna: “Minha mãe tinha medo de que a gente tivesse algum sentimento de vingança. O ambiente no sertão levava muito a isso. Perguntavam-me : “Como é ? Quando crescer, vai vingar o pai ? “. Ouvi isso várias vezes. Mamãe, com medo, não só ritirou a gente do sertão da Paraíba, como nos convenceu de que o assassino do meu pai tinha morrido. Só quando adulto, já casado e pai de filho, é que vim a saber que o executor da morte estava vivo – morando no Rio de Janeiro.

Perguntei a ela: “Minha mãe, por que você não me disse ? “. E ela: “Não disse para vocês não ficarem com essa ideia de vingança”. Uma das lembranças que tenho da infância é um morador da fazenda, grande amigo de papai, ajoelhado aos pés da minha mãe pedindo para ela deixar que ele matasse o assassino. Mamãe não deixou.

Os Pessoas fizeram a meu pai a acusação de ser o mandante do assassinato de João Pessoa. João Dantas foi o executor, mas o mandante teria sido meu pai. Isso é uma coisa que hoje, na Paraíba, até os partidários de João Pessoa sabem que não é verdade. Você pode ver, facilmente: meu pai era um sertanejo. Se ele quisesse mandar matar João Pessoa, ele tinha, só na fazenda do pai dele, trinta pessoas que se disporiam a matar ! Meu pai ia mandar um primo legítimo da mulher, formado em Direito, advogado do Banco do Brasil ?

Quem conhece o mínimo da biografia de João Dantas sabe que ele não é homem de ser mandado por ninguém. Não ocorre hoje, na Paraíba, a ninguém que meu pai tivesse mandado matar. Meu pai sabia que ia ser assassinado: escreveu uma carta, para minha mãe e para nós, no dia oito de outubro de 1930 – e foi asssasinado no outro dia, de manhã. Dizia que esperava ser assassinado. Pedia que ninguém vingasse. Disse: não se tornem assassinos por minha causa !

Se você já viu uma última confissão, você reconhece o tom. E ele dizia: podem assegurar a nossos filhos que sou inteiramente inocente no caso de morte de João Pessoa” ( a carta dizia: “Se me tirarem a vida os parentes do presidente João Pessoa, saibam todos os nossos que foi clamorosa injustiça. Não sou responsável pela sua morte nem de pessoa alguma neste mundo. Não alimentem, apesar disso, ideia ou sentimento de vingança contra ninguém. Recorram para Deus. Para Deus, somente.Não se façam criminosos por minha causa“).

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O Ariano Suassuna criança – de apenas três anos – guardou que lembrança do pai ?

Ariano Suassuna : “A última vez que vi meu pai foi no cais do Recife. A gente veio trazer meu pai , para ele ir ao Rio – onde foi assassinado. Só me lembro desse momento: ele já no navio, mamãe me apontando. Eu não via. De repente, enxergei: meu pai estava emoldurado pela janela do navio – dando com a mão. Aquela foi a última vez que o vi”.

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abril 16, 2013

REIS VELLOSO

MINISTRO QUE COMANDOU PLANEJAMENTO NOS “ANOS DE CHUMBO” DIZ QUE TEM DÚVIDAS SOBRE SE GENERAL MÉDICI SABIA OU NÃO DE TORTURA NOS QUARTEIS

O DOSSIÊ GLOBONEWS exibe neste sábado, às nove e cinco da noite (com reprise no domingo, às cinco e cinco da tarde), uma entrevista com um ex-ministro que durante nada menos de dez anos ocupou um gabinete no Palácio do Planalto, durante o regime militar. O economista Reis Velloso comandou a pasta do Planejamento nos governos Garrastazu Médici e Ernesto Geisel.

O mínimo que se pode dizer é que foi testemunha privilegiadíssima dos bastidores do poder nos chamados “anos de chumbo”.

Homem de confiança dos generais Médici e Geisel, o ex-ministro confessa que, até hoje, alimenta dúvidas sobre se Médici sabia ou não da existência de tortura. Diante dos ministros, o general disse que não sabia.

Intimamente, o homem que durante anos comandou o Planejamento não conseguiu chegar a uma conclusão.

Aos 81 anos, o ex-ministro diz que, desde o início, sabia que a construção da rodovia Transamazônica não daria certo. O projeto, grandioso, pretendia atrair para áreas despovoadas da Amazônia agricultores vindos de todas as partes do país.

Técnicos sabiam que a terra na Amazônia era imprópria para a agricultura. O problema é que, ao apresentar o projeto numa reunião ministerial, o general Garrastazu Médici já deu a construção da Transamazônica como fato consumado. Quem era contra o projeto tratou de engolir o sapo.

Os técnicos tinham razão : a Transamazônica deu no que deu.

Um trecho da entrevista que a GLOBONEWS levará ao ar:

O senhor era ministro do Planejamento do governo Médici quando foi lançada a ideia da construção da rodovia Transamazônica, um projeto de grande repercussão. Alguém disse que aquilo poderia dar errado ?

Reis Velloso: “Não havia dúvidas: os solos da Amazônia não são apropriados para a agricultura. Mas havia m sonho – e cho que realmente era um sonho – de que aquilo iria produzir um grande efeito. Por isso, se construiu a Transamazônica. Numa reunião, o presidente Médici apresentou como um fato consumado que a Transamazônica iria ser construída. Já tinha sido convencido pelo Mário Andreazza ( ministro dos Transportes ) e por toda a área militar”

O governo Geisel praticamente abandonou o projeto da Transamazônica. O que é que o senhor, como ministro, dizia ao general Geisel sobre a rodovia ?

Reis Velloso: “Que não deveria ter sido feita ! Eu quase morri, aliás, na Transamazônica. Ainda no dia da inaguração, logo que terminou o almoço, eu e Andreazza fomos tomar um helicóptero para ir para Altamira. Como levantou muita poeira. Quando o helicóptero quis subir, o piloto, em lugar de continuar subindo, jogou o helicóptero contra um barranco. Eu disse para Andreazza: “Sai de cima de mim e te manda! Porque vamos morrer aqui dentro, carbonizados!”. Nós saímos correndo. Quando olhamos para trás, o helicóptero explodiu. Eu já nçao gostava da ideia da Transamazônica. Depois dessa, fiquei gostando menos ainda. Eu disse : “Presidente,nós podemos perfeitamente esquecer da existência da Transamazônica. Vamos cuidar de outras coisas para a Amazônia. Eu, sinceramente, acho que o programa para a Amazônia até hoje não foi feito: estratégia para a região da Amazônia, como um todo, é aproveitar a biodiversidade – que é a maior do mundo”.

A Trasamazônica terminou se transformando num grande motivo de propaganda para o governo militar. Qual foi a reação do presidente Geisel quando o senhor disse a ele que aquele projeto era inviável ?

“O presidente estava convencido de que realmente não fazia sentido, porque já tínhamos estudos de especialistas que mostravam não serem os solos da Amazônia próprios para a agricultura”.

O senhor diz, no depoimento ao Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas, que,m durante um almoço, perguntou ao general Humberto de Souza Melo, comandante do II Exército, um homem da linha-dura, sobre tortura. Que resposta ele deu ao senhor ?

Reis Velloso: “Eu me sentei em frente a ele. Perguntei: “General, está havendo tortura ?”. Ele disse : “Não!”. O general era linha-dura, comandante do II Exército. Numa reunião de ministério do governo Médici, o ministro das Relações Exteriores, Mário Gibson Barbosa, perguntou: “Presidente, está havendo tortura ? “. O presidente, na frente de todos os ministros, respondeu: “Não, não está havendo tortura”.

Isso significa que ou ele estava alheio e não foi verificar bem se estava havendo ou não tortura ou….. não sei. O certo é que ele, muito claramente, disse isso”.

Que interpretação o senhor dá ? O presidente Médici não sabia realmente da existência da tortura e o comandante do II Exército também não ? Os dois estavam mal informados ?

Reis Velloso: “É difícil acreditar que o comandante do II Exército não sabia. A explicação que ele me deu fazia sentido: disse que o “pessoal”, quando sabe que existe uma célula subversiva, comunista, não sei qual foi a expressão, já vai dizendo: “Larguem as armas ou serão mortos!”. Isso ele me falou.

Mas não creio que fosse verdade….Eu acho que ele, realmente, ou não procurou verificar ou sabia e deixou que os porões funcionassem. Isso quanto ao general Humberto.

Quanto ao presidente Médici: tenho que pensar, porque há o seguinte : ele delegava demais. Eu sei bem na área econômica: tínhamos despachos com ele. Eu tinha uma vez por semana. Outros ministros de quinze em quinze dias. Mas a gente tratava dos assuntos era com o chefe do gabinete civil, Leitão de Abreu - que gostava de poder.

Eu me pergunto até hoje qual era realmente a causa de o presidente Médici ter dado aquela resposta ao ministro Gibson numa reunião ministerial” ( Reis Velloso se refere ao dia em que, ao responder a uma pergunta específica do ministro das Relações Exteriores sobre o assunto, o presidente Médici disse aos ministros que não havia tortura ).

O senhor tem dúvidas então sobre se o presidente Médici sabia ou não da existência de tortura ?

Reis Velloso : “Tenho dúvidas, tenho dúvidas….”

O senhor – que sempre teve um perfil técnico – sentiu em algum momento desconforto por estar atuando num regime ditatorial ?

Reis Velloso : “Só quem não é inteligente é que não tem dúvidas sobre o que fez”.

Posted by geneton at 11:33 PM

abril 08, 2013

MARGARETH THATCHER

RELATO DE UM ENCONTRO (FUGAZ) COM A DAMA DE FERRO, A MULHER QUE LEVANTAVA A VOZ EM DEFESA DO “ESTADO MÍNIMO”

Os arquivos não tão implacáveis do locutor-que-vos-fala guardam este relato de um breve encontro, em Londres, com a ex-primeira ministra britânica Margareth Thatcher. O ano: 1995. Thatcher – que, na idade avançada, seria emudecida pela senilidade – ainda encontrava vigor para defender a bandeira do “Estado mínimo”, uma ideia que sempre teve adversários igualmente fervorosos. Dizia que o Estado deveria intervir o mínimo possível na vida do cidadão. O problema é que, “na vida real”, o Estado que lava as mãos diante do jogo de forças da Economia pode contribuir, também, para injustiças, desigualdades e iniquidades. O tema vai gerar discussões por décadas. A “Dama de Ferro” era um caso clássico da figura que despertava odios e admirações. Aqui, o texto escrito depois do encontro (fugaz) com ela. Eu era, na época, correspondente do jornal O Globo em Londres:

Lá vem ela, lá vem a baronesa. Vista a dois palmos de distância, Margareth Hilda Thatcher é um atestado ambulante de que o poder, quando falta, envelhece os poderosos. As rugas da pele, pálida como uma folha de papel, vão redesenhando os traços do rosto. Setenta anos, afinal, não são setenta dias. A pele pende do pescoço. A magreza, adquirida depois que deixou de ser a Dama de Ferro para se transformar na Baronesa, surpreende.

Assessores cochicham que o abatimento se deve a um tratamento dentário. Se um mero tratamento dentário é capaz de tal devastação, então Papai Noel existe, a lua é vermelha e Edmundo Animal é um modelo de bom comportamento. O vestido, longo até os calcanhares, é de um azul sóbrio. Um broche – será diamante ? – reluz no peito esquerdo da Dama.

Quando começa a falar diante de um púlpito, a baronesa desfaz a má impressão causada pela aparência abatida. O grande tema deste final de século mobiliza todas as forças da Dama de Ferro: qual deve ser, afinal, o papel do Estado na vida das sociedades ? A resposta de Thatcher é mais do que clara : o Estado deve se intrometer o menos possível na vida do cidadão comum. “Só um governo mínimo pode tornar máximo o potencial de cada um”, repete, como se estivesse recitando um mandamento que não admite contestação.

A oradora Thatcher ganha de novo o viço que parecer ter se evaporado. A plateia – duas mil pessoas aglomeradas no Westminster Central Hall em reverente silêncio para ouvir a vestal dos conservadores – explode em aplausos quando a baronesa solta frases fortes com aquele tom de voz de professora exigente diante de alunos relapsos.

Cada frase é pontuada por gestos incisivos coreografados com o punho fechado. “Eu detesto ser oposição . Detesto ! Porque oposição só fala, fala, fala. Não faz nada. E eu sou de fazer”. Delírio no anfiteatro. Depois de reinar por onze anos e meio como soberana da política inglesa – entre 1979 e 1990 -, Thatcher passou o bastão para o também conservador John Major. Mas, se medalhões da política se recusam a vestir o pijama da aposentadoria quando se retiram da cena, por que a Dama de Ferro iria vestir a camisola ? “Meu elixir secreto é o trabalho” – ela avisa aos navegantes. “Não penso em me aposentar”.

Se quem foi primeira-ministra nunca perde a majestade, Thatcher recebe por onde passa reverências dispensadas a super-estrelas. Além de exalar carisma, a baronesa exercita uma qualidade reconhecida até por adversários : a paixão com que defende suas ideias – com um fervor que frequentamente traz pitadas de autoritarismo. Que o digam os ministros defenestrados do gabinete por discordarem da Dama de Ferro durante os anos em que ela reinava. Ainda assim, a legião de admiradores é imensa.

Fãs disputam com guarda-costas um palmo de espaço para um foto ao lado da baronesa, antes, durante e depois da conferência no Westminster Central Hall. Um admirador arranca murmúrios da plateia ao pagar um mico sem o menor constrangimento: depois de faturar um autógrafo, oferece a ela uma medalha, beija-lhe a mão e quase se ajoelha diante da musa, em sinal de reverência.

Um japonês solitário quer porque quer tirar uma foto ao lado de Thatcher: implora ao vizinho na plateia que não perca a chance de registrar para a posteridade, com uma dessas máquinas fotográficas amadoras, a pose que ele fará ao lado de Thatcher na hora de colher um autógrafo.

Um funcionário da editora termina virando fotógrafo improvisado: fica encarregado de pegar máquinas fotográficas dos fãs para flagrá-los ao lado da estrela. Assessores e guarda-costas delicadamente vão guiando os intrusos para a porta de saída, depois que cada um desfruta dos quinze segundos regulamentares diante de Thatcher – tempo suficiente para a obtenção de um livro autografado.

Pergunto à Dama de Ferro se ela poderia se definir em uma só palavra. “Você quer que eu me defina em uma só palavra ? ” – desta vez, ela é que me pergunta, com ar de espanto.”Não, não posso me definir em apenas uma palavra. Vou assinar o meu nome e escrever a data de hoje. Thank you very much !” – diz a baronesa, com aquela polidez estudada de quem ouve todo tipo de pedidos. A essa altura, um segurança que não faria feio como adversário de Rambo numa luta de boxe encerra a tentativa de entrevista.

Volta e meia, a Dama de Ferro pousa de novo nas manchetes. Virou uma espécie de oráculo dos conservadores. A última investida de Thatcher é o recém-lançado segundo volume de memórias – um tijolaço de 656 páginas batizado de The Path to Power. O lançamento do livro se transforma num excelente pretexto para que ela repita a pregação contra os demônios do Estado onipresente:

- O século vinte assistiu a uma experiência política e econômica sem precedentes. O modelo de sociedade baseado no controle centralizado foi tentado de várias formas – seja através do totalitarismo comunista ou nazista, seja através dos vários modelos de social-democracia e de socialismo democrático, seja através de um corporativismo tecnocrático não-ideológico. O modelo descentralizado liberal também foi tentado – principalmente, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos dos anos oitenta. O balanço do século mostra uma mensagem irresistível: qualquer que seja o critério de julgamento, seja ele político, social ou econômico, o coletivismo fracassou. Já a aplicação dos princípios clássicos liberais tem transformado países e continentes para melhor.

A Dama de Ferro garante que esta foi “a mais importante vitória política do século”. Para ilustrar o que diz, recorre a exemplos do dia-a-dia do cidadão comum: “O que as pessoas querem é poder aproveitar os frutos do próprio trabalho, é gastar o próprio dinheiro do jeito que quiserem, terem suas próprias casas, em benefício dos seus próprios filhos”.

O que é, então, que um “governo mínimo” deve fazer ? Thatcher dá um exemplo que arranca aplausos da plateia: em vez de gastar dinheiro público construindo conjuntos habitacionais, o governo deve diminuir os impostos para que cada cidadão, com mais dinheiro no bolso, possa fazer o que quiser com o salário – inclusive, comprar uma casa.

A adesão de países latino-americanos aos mandamentos do credo liberal arranca exclamações da baronesa. Sem citar nominalmente o Plano Real, Thatcher classifica como “sério” o esforço do governo brasileiro para eliminar o fantasma da inflação:

- O Brasil, um dos maiores e mais populosos países, com enormes recursos minerais, indiscutivelmente tem o maior potencial na América Latina. As taxas de crescimento comprovam este potencial – apesar de políticas econômicas equivocadas adotadas no passado. Agora, medidas sérias foram tomadas para domar a inflação e o endividamento do governo e para promover a privatização. Mas ainda há muito o que fazer, para limitar os piores excessos da presença exagerada do governo e a consequente corrução” – diz a baronesa, em The Path to Power.

A Dama pode ser de ferro, mas nem tanto : depois de levantar a voz no púlpito para celebrar “a mais importante vitória política do século”, asssinar centenas de exemplares de suas memórias e exercitar os músculos do rosto incontáveis vezes em sorrisos para as máquinas fotográficas dos admiradores, a baronesa emite sinais de cansaço.

A plateia oferece-lhe um último gesto de simpatia: Thatcher é aplaudida de é, numa ovação que dura cerca de cinco minutos. O odio dos adversários só é correspondido, em igual medida, pelo entusiasmo de fãs conservadores.

Não existem meias palavras para Thatcher. Talvez ela tenha razão: com esse currículo de paixões e ódios, não deve ser nada fácil se definir em uma só palavra.

Posted by geneton at 11:39 PM

março 20, 2013

GEORGE MARTIN

O DIA EM QUE O QUINTO BEATLE ME CONTOU UM “SEGREDO”

O primeiro lp lançado pelos Beatles acaba de completar cinquenta anos. É uma eternidade.

Reviro meus Arquivos Não Tão Implacáveis em busca de um texto sobre os “rapazes de Liverpool” . Voilà:

Como se dizia antigamente, “direto ao assunto”: tive a chance de ouvir do “Quinto Beatle”, o super-produtor George Martin, qual é o segredo que explica a imbatível performance da dupla de compositores Lennon-McCartney.
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Aos fatos:

1) assim que começou a trabalhar com os Beatles, Martin descobriu que a melhor tática para garantir a qualidade das músicas seria incentivar ao máximo a competição – que já existia – entre Lennon e McCartney. O esquema “maquiavélico” deu certo. Certíssimo. Como George Martin aplicou esta tática? (Já,já, daqui a dois parágrafos, ele dirá).

2) meses antes de morrer, ao receber a visita de Martin em casa, no edifício Dakota, em Nova York, John Lennon fez a Martin uma confissão que resume a obsessão do ex-beatle com a qualidade musical – uma bela virtude num compositor pop.

A gravação completa do depoimento de Martin – colhido na igreja que ele transformou em estúdio, em Hampstead, no norte de Londres, em 1998, para o programa “Milênio”(Globonews) – repousa numa prateleira do Centro de Documentação da Rede Globo, o Cedoc. O repórter sai de cena. Passa a palavra para o Quinto Beatle:

“Os Beatles, no começo, não eram grandes artistas. Eram jovens muito inteligentes que, no entanto, não demonstravam sinal algum de que poderiam compor boa música. Não vi evidência alguma de que seriam bons compositores”.

“A primeira vez que soube dos Beatles foi quando Brian Epstein, empresário do grupo, trouxe uma gravação para o meu escritório. Era horrível. Pude entender por que todos tinham dito “não” a eles. O melhor que poderiam me dar era “P.S.I Love You”. Não era uma música muito boa. Copiaram o que ouviam dos Estados Unidos, mas também aprenderam o ofício bem depressa”.

“A combinação entre John e Paul era bastante interessante, pelo seguinte: tínhamos, ali, dois jovens muito talentosos. Cada um de um jeito, os dois eram músicos e compositores muito bons – que trabalhavam juntos, numa espécie de competição: cada um tentava superar o outro. Um subia nas costas do outro o tempo todo”.

“Quando comecei a trabalhar com os Beatles, logo no primeiro ano,depois que eles gravaram “Please, Please Me”, eu disse: “Senhores, este é o primeiro sucesso..”. Propus um desafio: “Agora, tragam-me algo melhor!”. Os dois voltaram com “From Me To You” – que era boa. Depois, me trouxeram “She Loves You”, melhor ainda. Em seguida, “I Wanna Hold Your Hand”,fantástica! A cada vez, compunham algo diferente da anterior. Não era como “Guerra nas Estrelas I”, “Guerra nas Estrelas II”, “Guerra nas Estrelas III”. Davam um tratamento original”.

“Digo que esta curiosidade e este esforço para transpor o horizonte é que caracterizaram o pensamento de John e Paul. Isso é que os fez tão bons! Sempre tentavam melhorar, sempre tentavam ser mais originais. Perguntavam-me: “Que som podemos ter? O que é que você pode nos dar? O que é que não sabemos ainda? Ensine!”.

Isso é que os tornou excelentes”.

“O meu último encontro com John Lennon foi no Edifício Dakota, em Nova York, onde ele morava. Jantamos, meses antes de ele morrer. Yoko não interferiu. Ficou quieta a noite toda. John e eu ficamos, então, conversando sobre o nosso passado. Não tínhamos planos de trabalhar juntos. Eu tinha meus projetos, John tinha os seus. Eu não tinha intenção de voltar a trabalhar com ele. Mas falamos de nossas gravações. John se virou e me disse: “Quer saber? Se eu pudesse, gravaria de novo tudo o que fizemos!”. Eu respondi: “Você não pode estar falando sério! Eu detestaria gravar tudo de novo, porque seria maçante”. Mas John me disse que poderíamos fazer tudo ainda melhor. Isso foi extraordinário!”

Posted by geneton at 11:43 PM

janeiro 31, 2013

JOEL SILVEIRA

UM DOCUMENTÁRIO SOBRE A VÍBORA JOEL SILVEIRA NOS FAZ PERGUNTAR: JORNALISMO, “ONDE ESCONDESTE O VERDE CLARÃO DOS DIAS?”

Aviso aos navegantes: Globonews exibe neste sábado, às 20:30, sem intervalos, “GARRAFAS AO MAR : A VÍBORA MANDA LEMBRANÇAS”, um documentário de uma hora e vinte minutos sobre o maior repórter brasileiro, Joel Silveira.

Sou um azarado vocacional. Sempre fiz parte do time dos perdedores de sorteios. Mas posso dizer que, entre um e outro azar, tirei a sorte grande na loteria do Jornalismo: tive a chance de conviver intensamente, durante vinte anos, com aquele que é considerado “o maior repórter brasileiro”.

Uma vez, bati na porta do apartamento do ex-correspondente de guerra Joel Silveira, no sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana, em busca de uma entrevista. Nascia ali uma convivência que se estenderia por exatas duas décadas.

Joel Silveira.jpg

Joel Silveira e o aprendiz : horas e horas de gravações

Ficamos amigos. Mas, diante do grande repórter, preferi me comportar não apenas como amigo, mas também como repórter : gravei horas e horas de entrevistas com ele, em áudio e vídeo, ao longo desses anos todos. O gravador do aprendiz recolhia as palavras do mestre – um repórter que tinha ido a uma guerra, convivido com presidentes e retratado grandes figuras da vida brasileira.

Desse material, nasceu o documentário “GARRAFAS AO MAR : A VÍBORA MANDA LEMBRANÇAS”, o primeiro produzido pela Globonews. Digo que fazer jornalismo é produzir memória. É o que – modestamente, sem pretensões descabidas – tento fazer com este documentário: passar adiante a memória de uma convivência que, para mim, foi fértil.

O que vi e ouvi ali, naquele apartamento que chamo de Escola de Jornalismo da rua Francisco Sá, haverá de ser útil, também, a quem assistir ao documentário. “Vida aos outros legada”, como diria Carlos Drummond. Sou um mau narrador. Se dependesse de minhas habilidades como locutor para sobreviver, estaria morto de fome. Quem narra o texto que escrevi sobre a convivência com Joel é Raimundo Fagner. Eu queria uma voz que soasse nordestina. Sem vacilar, Fagner aceitou “correr o risco” de virar narrador por um dia. Sou suspeito para falar, mas a leitura ficou como deveria: sóbria, sem afetação.

Os textos de Joel Silveira, recitados pelos grandes atores Othon Bastos e Carlos Vereza em GARRAFAS AO MAR, são uma “prova material” de que já se fez “jornalismo literário” de alto nível no Brasil. Relatos que Joel Silveira – e Rubem Braga – enviaram da Itália para o Brasil, na Segunda Guerra Mundial, não ficam devendo nada, nada, nada ao melhor do chamado New Journalism. Eram exemplos ( raros ) de casamento feliz, felicíssimo entre Jornalismo e Literatura. Nem sempre é fácil dosar uma coisa e outra. Ferino, ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. Mas, para além do “veneno”, produzia textos belos. Isso: belos. Aqueles textos eram, no fim das contas, berros impressos contra o Exército da Mesmice.

Uma constatação incômoda incendeia nossas florestas interiores: alguma coisa de errado aconteceu na evolução da imprensa brasileira, porque textos “autorais”, como aqueles de Joel, dificilmente encontrariam lugar na nossa imprensa de hoje. O navio se chocou contra as pedras.

A “Ditadura da Objetividade”, instalada nos jornais para combater pragas como a subliteratura, o beletrismo, o academicismo, terminou parindo um monstro: textos áridos, chatos, anêmicos, soporíferos, iguais. Lástima, lástima, lástima.

Meu demônio-da-guarda me sopra uma pergunta: agora que a imprensa passa por um ( bem-vindo ) vendaval provocado pela Internet, não teria chegado a hora de ressuscitar um jornalismo autoral ? Não seria saudável pichar em nossos muros imaginários algo como “abaixo a ditadura da objetividade” ?

O diplomata Marcos Azambuja citou, numa entrevista, o gesto anônimo de um pichador mexicano que, cansado de viver num planeta sem utopias, pediu: “Chega de realizações ! Queremos promessas !”.

Se fosse se ocupar do jornalismo, o pichador bem que poderia dizer: “Chega de objetividade! As notícias já vi na internet e na TV! Quero vivacidade, imaginação, arrebatamento, ousadia!”.

Bem que o exemplo de Joel Silveira pode ser usado como porta-estandarte pela volta de um tipo de jornalismo que foi mandado para a Sibéria. Não é delírio: a luta por um Jornalismo mais vívido, mais atraente, mais iluminado faz parte da luta por um Brasil menos medíocre. Por que não ?

Eis dois exemplos do brilho do texto de Joel Silveira.

Aqui, ele descreve o menino morto que viu no Bogotazo, a revolta popular que se seguiu à morte de um líder popular colombiano, em 1948:

“Estive no Cemitério Central de Bogotá, em afazer de repórter,para ter uma ideia aproximada do saldo de mortos deixado pela explosão popular. Nunca, em toda minha vida, nem mesmo nos meses de guerra, estive diante de mortos tão mortos. Somente aquele menino – não mais de oito anos – morrera cândido, de olhos abertos, um começo de sorriso nos lábios.Os olhos vazios fixavam o céu de chumbo. As mãos de unhas sujas e compridas pendiam sobre a laje dura – como os remos inertes de um pequeno barco. Um funcionário qualquer aproximou-se, olhou por alguns segundos o menino morto, procurou sem achar alguma coisa que ele deveria trazer nos bolsos.Tentou em seguida fechar com os dedos os olhos abertos, mas não conseguiu. Abertos e limpos,os olhos do menino morto pareciam maravilhados com o que somente eles viam, com o que queriam ver para sempre”.

Joel tentou mas não conseguiu uma entrevista com o então presidente Getúlio Vargas. Mas foi recebido por Vargas, no Palácio do Catete. Eis o que escreveu sobre a frustrada entrevista:

“Era a primeira vez que eu via Vargas assim tão de perto. “Como é pequeno” – pensei, enquanto estirava a mão ao encontro da que ele me estendia – uma mão delicada, quase feminina, de unhas bem tratadas(…) Eu não queria emprego.Queria uma entrevista. Tirei o papel do bolso. “Gostaria que Vossa Excelência respondesse a algumas perguntas”. O homenzinho levantou-se, esmagou no cinzeiro de cristal o que restava do charuto e desapareceu por uma porta ao lado, que bateu com força. Nem ao menos me estirou a mão.

Voltei ao boteco, a vários deles, durante horas amargando o fel da derrota.Lá para a meia-noite entrei no Danúbio Azul, um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas, desde que existem mundo e manhãs de abril”.

Os jornais de hoje publicariam textos assim ?

O grande poeta Ferreira Gullar fez uma vez, num verso, uma pergunta que a gente bem que poderia repetir, contra o cinzento da mesmice: “Onde escondeste o verde clarão dos dias?”.

Ah, Jornalismo: onde escondeste o clarão ?

Posted by geneton at 11:48 PM

dezembro 23, 2012

LÊDO IVO

…E O GRANDE POETA JOÃO CABRAL DEU DE PRESENTE AO AMIGO LÊDO IVO UM EPITÁFIO “PRÉVIO”: “…O SILÊNCIO DE QUANDO AS HÉLICES PARAM NO AR”

A morte foi encontrar o poeta Lêdo Ivo na Espanha. Aqui, uma longa entrevista que fiz com o poeta, faz dez anos. Bem humorado, dizia que recebera do grande poeta João Cabral de Melo Neto um “presente” : um epitáfio prévio, em forma de versos. João Cabral previa o dia em que Ledo Ivo encontraria “o silêncio de quando as hélices param no ar “. É destino de todos ( anos depois, eu faria, para a Globonews, na sede da Academia Brasileira de Letras, uma entrevista em que Lêdo Ivo recordava outro momento marcante da convivência com João Cabral: a exemplo do que dissera um crítico, o autor de “Morte e Vida Severina” achava que, se Lêdo Ivo tivesse morrido cedo, poderia ter se transformado numa espécie de Rimbaud brasileiro, um daqueles poetas que viram lenda ao sairem de cena ainda jovens. Mas Lêdo Ivo dava a graças a Deus por ter vivido tanto tempo: preferia a vida à arte. A entrevista vai ser reprisada neste domingo, às 17:05, pela Globonews). A íntegra da primeira entrevista que fiz com o poeta:

Caçadores de belos versos,tremei de arrependimento : quem nunca leu um poema de Ledo Ivo, por preguiça, desinformação ou enfado, deve se penitenciar deste crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível.

Um exemplo ? É difícil encontrar uma declaração de princípios tão bela quanto “A Queimada” :

“Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita”.

O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da poesia brasileira neste início de século, diga-se que o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Ao contrário do que os versos podem fazer supor,o homem não é uma fera de garras afiadas.

Ledo Ivo.jpg Ledo Ivo : convivência com Graciliano Ramos (Foto: Geneton Moraes Neto)

Ei-lo : sentado numa poltrona da sala, o lobo Ledo vai fazer, a pedido do repórter,uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O cenário que circunda o Covil do Lobo é um convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas do mundo, o lobo Ledo precisa caminhar apenas cinco passos. É a distância entre a sala e a extremidade da varanda deste apartamento. Lá fora,a beleza escandalosa de um céu sem nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo.

A localização do apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um poeta.Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Não é para qualquer um.

As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações de poeta vão se sucedendo,aos borbotões : com os gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível, o pequenino Ledo Ivo reconstitui, com frases precisas, momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de Andrade,Graciliano Ramos,Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.

Justiça se faça : Ledo Ivo já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de “o Brasil oficial” : a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe, por unanimidade, a cadeira número 10, no não tão distante ano de 1986. Mas o “Brasil real”, aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos, não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser.

O Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário, um ermitão que prefere ver a humanidade à distância. A ode à solidão – que ele já escrevera nos versos definitivos do poema “A Queimada” – repete-se no não menos belo “A Passagem” :

“Que me deixem passar – eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar,exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho”.

Ledo Ivo vai alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo cuidado que devota à linguagem escrita. O Português agradece,comovido. O poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como “de maneiras que….”. Se alguém cometer o sacrilégio de misturar “tu” com “você” diante do lobo,certamente escapará de uma admoestação, porque o homem é afável, mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.

Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski,o lobo Ledo carrega,pelas décadas afora,as marcas da infância em Maceió :

“Na tarde de domingo,volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam as maresias e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências
monótonas.
(…) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,
voltai a este dia inacabado
que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.
Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no mar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno

Apenas nomes em lápides.Apenas nomes.E o barulho do mar”.

Graciliano Ramos,João Cabral de Melo Neto,Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes vivos da imaginária enciclopédia do Lobo Ledo.
Gravando !

PRIMEIRA ESTAÇÃO : O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE DESPEDIR DA VIDA
GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável,corresponde à verdade ?

Ledo Ivo : “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo estado. Quando menino, como primeiro da turma no grupo escolar, fui apresentado a Graciliano,na época secretário de Educação. Pôs a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando ele publicou “Vidas Secas”, eu,”menino prodígio” em Maceió,escrevi,em 1938,um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse “vá visitar Heloísa” – a mulher do Graciliano Ramos, àquela altura, aos cinquenta anos de idade,uma figura importante na literatura brasileira. Durante nossa conversa, ele abriu uma gaveta e disse : “Quando publiquei “Vidas Secas” em Alagoas,só uma pessoa falou do meu livro : um menino de 14 anos…..”.

A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio, porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada, jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e Graciliano Ramos puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas,como,por exemplo,a correção lingüística que,dizem,existe em minha prosa.

Graciliano Ramos era,sim,uma pessoa rústica. Em toda a literatura brasileira,ele só tinha três, quatro admirações, além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês : José Lins do Rego,Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia, admirava Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos).

Notei, na casa de Graciliano Ramos, um livro de poesia autografado, fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa de Graciliano,dizia a ele : “Você deveria abrir esse livro ! “. E ele : “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos) .

Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro.Se não me engano,era um volume das poesias completas de Augusto Frederico Schmidt”.

GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical ?

Ledo Ivo: “A herança – pungente – é ver que a glória de Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com Graciliano Ramos foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um grande escritor,mas ainda não plenamente reconhecido – essa é que é a verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não reeditava. Em conversas íntimas, Graciliano chamava José Olympio de “esse filho da puta – que vive editando Lourival Fontes e Getúlio Vargas…..” (N: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas) . O que eu via ali, em Graciliano, era a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal – Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos em Alagoas : “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de Alagoas, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances ? Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa que o Rio,a metrópole,deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor.

Qual foi,então,a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ? A fidelidade ao ofício, algo que se viu também em Machado de Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia,não pensava em prêmios literários,não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles”.

GMN : O desleixo com a glória imediata foi,então,uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos ?

Ledo Ivo : “Uma característica de Graciliano Ramos -que me orgulha- é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil diferente. Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro – oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que tinham carro ! Um negócio impressionante,porque todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo diferente,o da vida literária, marcada pela existência de suplementos literários.

Mas havia ,em Graciliano Ramos,um detalhe que me impressionava : o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de certa maneira – muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele gostava -,no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust, por exemplo. Quando eu perguntava por que,ele dizia : “Não leio veados ! “.

Quando o visitei pela última vez,no hospital, ele chorou, porque sabia que ia morrer. Enquanto chorava,falava -e muito – sobre a mãe. O hospital ficava aqui ao lado,onde hoje é este edifício (Ledo aponta para fora do apartamento). Aquele foi nosso último encontro, porque eu estava de partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido.De vez em quando,falava coisas desconexas. Contava que a mãe,quando casou,levou as bonecas para casa – um negócio curioso.

O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante, porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que,por mais que ele dissesse que odiava a vida, ele, na verdade, amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma. Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão,mas nunca fumou.
Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”.

GMN : O senhor escreveu em suas memórias : “Vivo escrevendo, mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que freqüência,então, o senhor tem a sensação de estar substituindo a vida pela escrita ?

Ledo Ivo: “É um drama comum a todo e qualquer escritor este sentimento de que estamos vivendo,sim, mas essa vida se destina somente a acumular experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se limita a viver, porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia : por que logo eu, numa família de onze, revelou a vocação e o destino para a escrita, numa família que não tinha pendores literários ? Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um escritor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra literária. O escritor é,então,uma pessoa condenada não a viver, mas a escrever.

Fausto Cunha – grande crítico,que notou,em minha procedência literária, a influência de poetas malditos como Rimbaud,Verlaine e Baudelaire – me disse : “O grande erro de sua vida é que você não morreu aos vinte anos. Se tivesse morrido moço, teria deixado “Ode e Elegia”, “As Imaginações”, e “Acontecimento do Soneto”. Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casemiro de Abreu !.Vida longa atrapalha a biografia !”.

João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi : “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas – o poeta que vive até os oitenta anos !”. Prefiro o mistério dos poetas que,como Drummond e Manuel Bandeira,tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa”.

GMN : Ariano Suassuna – que foi homenageado no carnaval aqui no Rio – disse que já tinha recebido a homenagem do “Brasil oficial”, ao entrar para a Academia Brasileira de Letras e estava recebendo ali,no sambódromo,a homenagem do que ele chama de “Brasil Real”. O senhor – que já foi homenageado pelo “Brasil Oficial” ao ser recebido por unanimidade na Academia Brasileira de Letras – sente falta do reconhecimento do “Brasil Real”,já que não é tão conhecido como poeta como deveria ?

Ledo Ivo: “O poeta inglês John Mansfield diz que já viu o azarão no jóquei ganhar o prêmio, já viu flor brotar da pedra, já viu coisas amáveis feitas por homens de rosto feio. “Eu também espero” – diz ele. Confesso que o problema do reconhecimento vasto não me preocupa. A vida literária se faz pela diversidade e pela multiplicidade. Não se sabe se o escritor de pouco público de hoje será o escritor de grande público de amanhã.

Um escritor pode ser obscuro e desconhecido hoje e famoso e glorioso amanhã. Você pode também estar dentro da literatura e um dia ser expulso ! São coisas que não me preocupam. O que me preocupa é a criação literária. Já que sou uma criatura dotada de linguagem, quero me exprimir. Mas sei que uma obra só se completa com a existência do outro. Há sessenta anos estou esperando por esse leitor. Um dia ele haverá de aparecer”.

GMN : O poema “A Queimada” – aquele que fala do lobo no covil – é uma declaração de princípios de que o escritor deve ser,no fim das contas,um solitário ?

Ledo Ivo: “O escritor deve ser um solitário solidário. A verdade, como digo no poema,não pode ser dita”.

GMN : O senhor reclama daqueles escritores que só brilham em congressos….

Ledo Ivo: “Oswald de Andrade – de quem fui muito amigo até brigarmos – me procurou, magoado, porque tinha sido expulso do Partido Comunista. Os comunistas, então, não o deixaram participar do Congresso dos Escritores de São Paulo. Eu disse a ele: “É besteira ! . Nietzsche nunca participou de um congresso de escritores” (risos)…

GMN: Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício” ?

Ledo Ivo: “Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas já vêm prontas, organizadas subconscientemente. Pensam que “capino” o meu texto. Mas o meu texto vem espontaneamente. Não tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que acrescentam !.

João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa inveja, mas não causa não!”.

GMN : Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de Andrade, escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar ?

Ledo Ivo: “Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele que “enterra uma palavra por dia”. Para mim, o bom escritor é o que desenterra uma palavra por dia ! . Porque o escritor lida com um patrimônio lingüístico. De vez em quando o brasileiro ressuscita palavras esquecidas”.

GMN : Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus livros o tão citado poema sobre o Recife ?

Ledo Ivo: Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam. Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema :

“Amar mulheres,várias
amar cidade,só uma – Recife.
E assim mesmo com as suas pontes
E os seus rios que cantam
E seus jardins leves como sonâmbulos
E suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau”

O poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque Recife tem um lado cosmopolita – que me impressionou muito. O meu pai era pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era considerado meio pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico Willy Lewin,nos anos quarenta. Recife foi a cidade de minha primeira formação literária. Fazíamos poemas nas mesas do Lafayette,numa época de boemia. O poema sobre o Recife ficou desaparecido até 1947, quando chegou às mãos de Mauro Mota – que o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no Jornal do Commercio). O destino de um poema é curioso. A gente escreve um poema; ele ganha vida própria,começa a circular.

Guardo a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu : ele dizia que eu deveria ser um poeta alagoano,assim como ele era um poeta pernambucano. O sentimento do berço tinha grande importância para ele”.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE,O GRANDE POETA SECRETO,ENTRA EM CENA
GMN : Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência com Carlos Drummond de Andrade ?

Ledo Ivo: “O que me impressionou em Drummond, já no primeiro encontro, foi um certo “fechamento” interior. Não se entregava. Era como se vivesse insulado em si mesmo. Há em Drummond algo que é “intransmissível”. Tive essa sensação de intransmissibilidade.

Eu levei meus primeiros poemas para Drummond, no gabinete em que ele trabalhava, no prédio do Ministério da Educação, no centro do Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção de outros escritores para mim. Em seguida, vieram as rusgas, porque havia divisões políticas naquele tempo.

A coisa mais impressionante que Drummond me disse foi num de nossos últimos encontros. Um certo poeta brasileiro – de quem não quero dizer o nome – proclamou-se herdeiro de Drummond. Quando me encontrei com ele, disse: “Como é que vai o herdeiro?” . E ele : “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do modelo. O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim : é esta a lição da poesia”.

O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de Andrade. Os herdeiros são os diferentes. São até os adversos : não são os assemelhados. É a grande lição de Drummond que ficou em mim : ele não espera ter um clone como herdeiro. (risos) O que Drummond esperava era o “anti-clone”.

GMN : Nesse primeiro encontro, o senhor – que viria a se considerar um lobo no poema “A Queimada” – teve a sensação de que o Drummond era o “urso polar”,como ele disse que era num dos poemas ?

Ledo Ivo: “Tive essa sensação. Drummond tinha uma vida amorosa muito escondida – que depois, infelizmente, foi violada pela imprensa. Eu via, em Drummond, um grande poeta secreto. Naquela época, 1940, Drummond não tinha a notoriedade que ganhou depois. O próprio Manuel Bandeira pensava que o grande poeta brasileiro daquela época fosse Augusto Frederico Schmidt. Porque o Schmidt enrolava todo mundo (risos). Schmidt até pensou em fazer um poema sobre a descoberta do Brasil, mas depois Drummond veio com A Rosa do Povo e acabou com a festa”.

“Sou apenas um homem.

Um homem pequenino à beira de um rio.

Vejo as águas que passam e não as compreendo.

Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.

Vi que amanheceu porque os galos cantaram.

Como poderia compreender-te, América ?

É muito difícil.

Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.

O rosto denuncia certa experiência.

A mão escreveu tanto – e não sabe contar !

A boca também não sabe.

Os olhos sabem – e calam-se”

(Trecho de “América”, poema do livro “A Rosa do Povo”/Carlos Drummond de Andrade)


GMN : O que ficou da amizade com Manuel Bandeira ?

Ledo Ivo: “Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece na poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”.

Depois percebi que, para mim, a operação poética é como se fosse um encantamento da linguagem – uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da linguagem. Bandeira fez esta descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes : por exemplo, a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta,não basta apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não é,portanto,um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta exprimir-se.

A fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor. Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma civilização de massas, uma civilização eletrônica, uma civilização consumista. Tudo alterou a posição do escritor e do poeta no Brasil.

Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o último grande exemplo. O poeta vive hoje em uma época de anonimato. Os ícones são diferentes, os gurus são outros. A linguagem literária hoje compete com a linguagem eletrônica, o CD-Rom, o cinema,o disco . Mas,há alguma coisa que só a poesia tem condições de dizer. A poesia, então, existirá sempre,como linguagem específica,porque só ela pode dizer,sobre a condição humana,algo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira. O cinema e a televisão lidam de uma maneira diferente”.

GMN : O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica?

Ledo Ivo: “A função do poeta na sociedade é escrever poemas.A notoriedade é secundária”.

GMN : O senhor tem esta sensação de deslocamento ?

Ledo Ivo: “Pelo contrário ! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta ,surgi no momento certo.Tenho um grande sentimento da minha contemporaneidade.O mundo atual habita os meus poemas.A função do poeta é,também,celebrar o mundo em que vive. Não tenho nostalgia pelo passado. Não gostaria de ter nascido no passado,assim como não gostaria de ter nascido no futuro”.

GMN : Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, qual foi a grande lição ?

Ledo Ivo: “João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas.Cada poeta é diferente. As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa ! . O que mais me impressiona em João Cabral é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim, João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”,o poeta da obsessão, o poeta das coisas ocultas,o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa,mas se abre para o grande acesso popular, o que é curioso.

Uma vez, João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra literária. Procuramos fazer uma obra literária o maior possível.De repente, lá em Nova Iguaçu ,a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”.

GMN : Para o senhor – que se considera “um homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta” – qual é a grande pergunta, a grande perplexidade que até hoje o atormenta ?

Ledo Ivo: “A perplexidade é estar no mundo – com todas essas perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não-existência de Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há resposta. Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo, no sentido de ter uma existência nítida, com fronteiras definidas.Talvez o meu mundo seja o mundo da ambigüidade.

Drummond chamou a minha poesia de “múltipla”. É uma frase que ilumina mais uma existência poética do que muitos rodapés. Quando publiquei “Confissões de um Poeta”, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta,Hélio Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura.

Vivo nessa perpétua indecisão. O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda”.

GMN : Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude. Qual foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte?

Ledo Ivo: “Venho de uma família numerosa. Tenho um irmão que morreu, o chamado “anjinho”, aquele que morre novo. Outro irmão meu, chamado Éber, morreu aos oito anos. Numa família nordestina,numerosa, a morte vive sempre rodeando as pessoas. Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios. Mas censuro a morte ! .Como sou uma criatura do aqui e do agora,fico impressionado com a morte,porque ela faz com que a gente já não esteja aqui”.

Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória e instantânea.É um relâmpago. Além de tudo,há o mistério da existência : por que será que uns morrem cedo,outros morrem tarde e outros não morrem nunca ? “.

GMN : O senhor faz,em um de seus textos,uma referência a uma caminhada solitária pelas alamedas do Cemitério São João Batista. O que é que o senhor estava fazendo no cemitério ?

Ledo Ivo: “Devo ter ido me despedir de um amigo. Não fui para visitar o cemitério. O engraçado é que João Cabral escreveu o meu epitáfio em versos que ele nunca incluiu em livro. O que João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos. Terminou não fazendo.

João foi um grande amigo meu,mas tínhamos temperamentos diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro. Nunca nos encontramos – nem esteticamente. Dizia que eu falava muito; achava que só a morte é que me reduziria ao silêncio.
O epitáfio que João Cabral criou para mim é este :

“Aqui repousa
Livre de todas as palavras
Ledo Ivo,
Poeta,
Na paz reencontrada
de antes de falar
E em silêncio,o silêncio
de quando as hélices
param no ar “.

Posted by geneton at 12:34 PM

dezembro 05, 2012

OSCAR NIEMEYER

DOCUMENTO/ OSCAR NIEMEYER CONFESSA QUE COMEÇOU A SE PREOCUPAR COM A MORTE AOS 14 ANOS DE IDADE. PASSOU DE UM SÉCULO DE VIDA. CONCLUSÃO: NÃO VALE A PENA PERDER TEMPO COM A “CEIFADORA”

As crenças políticas de Niemeyer estavam defasadas. Não importa. O que importa é que ele criou beleza a vida inteira. A beleza intensa de algumas das criações de Niemeyer parecia o improvável sopro de Deus nas mãos de um agnóstico confesso.

Numa entrevista, longa, que gravei com Oscar Niemeyer, ele disse que, aos 14 anos, já pensava na morte.Viveu 104! É parte da história do país.

Disse que “ficava meio desesperado quando pensava que o sujeito vai desaparecer. O que a gente deve é procurar ser útil e dar as mãos”.

Eu me lembro especialmente de como Niemeyer descreveu, com um ardor sincero, duas cenas marcantes: numa madrugada em Brasília, JK o levou para fora do Palácio e exclamou:”Que beleza!”.

Iluminado, o Palácio parecia uma nave espacial branca pousada na solidão do Planalto Central do Brasil.

Em outro momento, num gesto que sempre parecia – e era – sincero, ele, em vez de descrever a grandiosidade de suas obras, espalhadas pelo mundo, preferiu falar do menino pobre que vendia biscoito numa calçada de Copacabana. Quando chegou ao escritório, abalado com a visão de uma criança miserável, mandou chamar o menino. Quis tirá-lo da rua. O menino terminou fugindo.

Quando Niemeyer fez 100 anos,”importunei-o” de novo. Perguntei se ele poderia definir a vida em apenas uma palavra. E ele:”Solidariedade”.

Era intensamente solidário com os desassistidos, os despossuídos, os miseráveis. Não é pouco.

Em resumo: feitas as contas, lutou do lado certo.Bravo.

Eis a entrevista em que ele fala do menino descalço e da visão noturna do Palácio iluminado na noite de Brasília. Dois homens contemplavam a cena: o presidente Juscelino e o próprio Niemeyer :

1.
Se acreditasse em todos os elogios que colecionou ao longo da vida, o arquiteto Oscar Niemeyer poderia pendurar uma placa na porta do escritório: “Silêncio! Gênio trabalhando”. Mas, não. “Doutor Oscar” devota uma olímpica indiferença às glórias terrenas. Já perdeu a conta de quantos monumentos, palácios e edifícios projetou no Brasil e no exterior. São pelo menos 150 em quinze países, sem contar o Brasil. Vem estudando astronomia com amigos, numa prova de que a curiosidade intelectual não depende de idade. A bibliografia de e sobre Oscar Niemeyer não para de ganhar acréscimos. Nesta entrevista, o homem que passou a vida se declarando ateu faz uma confissão: gostaria de acreditar em Deus. Em matéria de política, não se incomoda em ficar na contramão da história. O comunismo pode ter virado pó para quase todo mundo – menos, é claro, para Oscar Niemeyer.

Se o senhor fosse chamado a escrever um verbete sobre Oscar Niemeyer numa enciclopédia, qual seria a primeira frase?

Niemeyer : “Diria que é um ser humano como outro qualquer – que nasceu,viveu e morreu. Sou um homem comum – que trabalhou como todos os outros.Passou a vida debruçado sobre uma prancheta.Interessou-se pelos mais pobres. Amou os amigos e a família. Nada de especial. Não tenho nada de extraordinário. É ridículo esse negócio de se dar importância.

Consegui manter, a respeito dos homens, uma posição que me tranquiliza muito: vejo os homens como uma casa,em que você pode consertar as janelas,acertar o aprumo das paredes,pintar.Mas, se o projeto inicial foi ruim,fica prejudicado. Aceito as pessoas como elas são. Todo mundo tem um lado bom e um lado ruim. O homem nasce numa loteria:é bom,é ruim,é inteligente ou não. Se a gente aceita este fato como uma condição inevitável,a gente tem de ser mais paciente com as pessoas,aceitá-las como elas são”.

Gilberto Freyre disse numa entrevista que o senhor era um arquiteto genial, mas era muito ignorante, porque passou a vida repetindo chavões marxistas. Críticos assim incomodam o senhor?

Niemeyer: “Não. Eu li Casa Grande & Senzala e gostei. É um livro muito bem escrito. Gilberto Freyre era um grande escritor…”

…Mas como é que o senhor recebia essas críticas?

Niemeyer: “Cada um pensa o quer. Nunca conversei com ele. Eu me lembro de ter me encontrado uma vez – corrida – em Pernambuco”.

O senhor transmite uma visão pessimista da vida – um certo enfado diante das coisas.Como é que se justifica tanto pessimismo num homem tão bem sucedido ?

Niemeyer : “Sou pessimista diante da idéia de que o homem ,quando nasce,já começa a morrer,como notou Jean Paul Sartre.Mas,na vida,caminhamos rindo e chorando o tempo todo : é preciso,então,aproveitar o lado bom da vida,usufruir o melhor possível e aceitar os outros como eles são.Sempre digo : o importante é o homem sentir como é insignificante,é o homem olhar para o céu e ver como somos pequeninos. Ultimamente, no entanto ,tenho me espantado como a inteligência do homem é fantástica ! Tenho conversado sobre astronomia.Como é imprevisível o que ele pode criar ! .

Numa dessas conversas que tenho tido com um amigo sobre o cosmo, ele me explicou que o homem é filho das estrelas. A matéria é a mesma! Então, é mais emocionante ser filho das estrelas do que ser filho da terra. Eu sempre dizia que a vida não teria sentido, o homem é filho da terra, como os outros bichos,os outros animais. Mas acho que o futuro será melhor.

Os mais inteligentes se queixam do mundo. O mundo tem prazeres e alegrias, mas a razão de a gente estar aqui é precária. Em todo caso,ninguém quer abandonar o espetáculo.

Entre os homens, a maioria é formada pelos que lutam, os que estão sofrendo, os que são humilhados. O drama do ser humano é ver o homem nascer e morrer. Ninguém quer nem pensar sobre este assunto. Os mais ricos estão se divertindo. Não querem pensar em nada : só querem usufruir as boas coisas da vida. Os outros nem têm nem tempo para conseguir viver um pouco”.

O senhor, que é um homem sem crença religiosa,em algum momento teve a tentação de acreditar em Deus ?

Niemeyer : “Venho de uma família católica – que veio de Maricá, eram fazendeiros. O meu avô foi do Supremo Tribunal. Tínhamos missa em casa,com a presença de vizinhos. Mas,quando saí para a vida,superei tudo isso.Vi que o mundo era injusto. Não acredito em nada. Acredito na natureza : tudo começou não se sabe quando nem como. Eu bem que gostaria de acreditar em Deus.Mas não. Sou pessimista diante da vida e do homem”.

O que o levou a não acreditar em Deus foi essa constatação de que o mundo era injusto?

Niemeyer : “O mundo é injusto,sem perspectiva. A indagação que a gente faz os pintores antigos já escreviam nos quadros : “De onde viemos ? O que somos ? Para onde vamos ?”. Quando eu era pequeno – tinha uns quatorze anos – já pensava na morte. Ficava meio desesperado quando pensava que o sujeito vai desaparecer, já não vai pensar em nada. Mas a vida é assim : o que a gente deve é procurar ser útil e dar as mãos”.

O poeta Joaquim Cardoso vivia dizendo ao senhor que era importante visitar os observatórios para estudar o céu. É este o motivo que o levou a se interessar por astronomia?

Niemeyer : “ Tenho conversado,no meu escritório,com um cientista que vem falar sobre o cosmo. É um assunto que interessa a gente- principalmente quando a conversa se encaminha para a esperança e a invenção . A gente vê como tudo é possível ! O homem,que parece insignificante e tão pequenino quando visto do céu, na verdade é o único elemento de inteligência no universo. Tudo é possível, então ! A gente lembra de que há cinquenta anos não existia televisão. Agora , a gente já admite a transposição da matéria ou que o homem possa viajar entre as estrelas. Pode até habitar outros planetas. Um mundo novo vem surgindo. E é fantástico!”.

O senhor sempre disse que via o homem como um bicho “terreno, biológico,sem mistérios”. Depois dos noventa anos de idade, esta visão de mundo mudou de alguma maneira?

Oscar Niemeyer : “A visão do mundo,não . O pessimismo é coisa antiga – antiqüíssima – que, no entanto, não leva ao niilismo. Jean Paul Sartre era pessimista: dizia que toda existência é um fracasso. Mas ele gostava da vida. Apoiou todos os movimentos populares e progressistas de libertação. Dizia aos amigos que gostava de ter dinheiro no bolso para dar de esmola. Uma coisa – o pessimismo- não tem a ver com a outra – o niilismo. O que acho, sempre,é que o homem tem de viver dentro da verdade, saber que não é importante. A disseminação dessa crença levaria o homem a uma posição mais modesta. Porque o homem precisa saber que a vida é curta mesmo. Isso não quer dizer,no entanto, que a vida deva ser marcada pelo niilismo. Não ! O homem continua a sonhar, a pensar nas coisas boas – de braços dados uns com os outros”.

Em que momento da vida o senhor adquiriu a certeza de que a arquitetura precisa ser bonita – e não apenas funcional ?

Niemeyer: “Tive pouca influência de Corbusier. Mas fui influenciado por ele no dia em que ele me disse : “Arquitetura é invenção”. Eu saí procurando esse caráter inventivo da arquitetura. Quando eu me lembro da Pampulha ou de Brasília,vejo que eu fazia as formas mais diferentes.Perguntaram a mim o que é que aquilo significava. Eu tinha de ficar dando explicações. É como digo : os mais pobres não usufruem. Mas,quando a arquitetura é bonita, os pobres podem parar e ter aquele momento de prazer ao ver algo diferente.

Quando a arquitetura é bem feita é fácil de compreender. A arquitetura é verdadeira quando é fácil. A minha arquitetura é assim: feita com a preocupação da beleza . Quer ser bonita, ser lógica e, principalmente,ser inventiva. Quem vai a Brasília pode gostar ou não do Palácio. Mas não pode dizer é que viu antes coisa parecida. Quem é que fez um Congresso com aquelas cúpulas? Quem é que fez as colunas do Palácio do Planalto? Aquilo é invenção, é arquitetura”.

O senhor se lembra quando foi a primeira vez em que Juscelino Kubitscheck falou ao senhor sobre o sonho de construir Brasília ?

Niemeyer : “Eu me dei com Juscelino desde o primeiro dia .O primeiro trabalho que fiz como arquiteto foi a Pampulha- a primeira obra que ele construiu. Pampulha, então, foi o início de Brasília : a mesma pressa, a mesma correria,os mesmos problemas econômicos para fazer a obra. Quando veio a idéia de Brasília, JK foi à minha casa, nas Canoas,no Rio. Descemos juntos para a cidade. Juscelino vinha dizendo : ” Oscar,vou fazer Brasília !.Vai ser a capital mais bonita do mundo!” .

Que comentário o então presidente Juscelino Kubitscheck fez ao senhor, ao ver Brasília tomando forma ?

Niemeyer: “Uma noite,quando estava sozinho no Palácio, Juscelino me chamou para conversar. Ficava divagando sobre as metas que iria cumprir. Já eram duas horas da manhã quando saímos. Juscelino nos acompanhou até o lado de fora do Palácio da Alvorada. Como era noite,o Palácio,branco,se destacava na escuridão. Juscelino,então,me pegou pelo braço e me disse : “Que beleza!”.

O trabalho era duro, dia e noite, mas ele nos entusiasmava com o liberdade que nos dava para que fizéssemos o que bem entendíamos.Era um momento de otimismo.Um dia, ele me telefonou : “Você tem problema de dinheiro.Eu queria que você fizesse,pela tabela do Instituto de Arquitetos,os projetos do Banco do Brasil e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico”. Eu disse : “Não faço; sou funcionário”. Indiquei amigos que fizeram. Mas o convite de Juscelino mostra que ele se preocupava com a gente : estava querendo ser solidário. Tive a chance de lidar com pessoas que me compreendiam e me aceitavam.

Qual foi o último encontro entre os dois ?

Niemeyer: “Quando Juscelino estava em Paris,estive com ele. Eu ia ao apartamento em que ele vivia. Juscelino foi uma figura muito importante para a vida brasileira. A construção de Brasília foi um momento de otimismo e de esperança. Brasília foi aquele luta: a terra vazia, tudo por começar,sem estrada,sem conforto.Mas havia entusiasmo. Havia pressão de Juscelino e de Israel Pinheiro. A meta era : terminar de qualquer maneira. O prazo foi cumprido.

Brasília foi um momento estranho: vivíamos junto aos operários, freqüentávamos as mesmas coisas,as mesmas boates,com a mesma roupa. Aquilo dava uma idéia de que o mundo estava evoluindo,o tempo estava melhorando, iria desaparecer aquele barreira de classes.Mas era um sonho.Depois,vieram os políticos,vieram os homens do dinheiro.Tudo recomeçou : essa injustiça imensa,tão difícil de reparar”.

O medo que o sente de viajar de avião é famoso. A que grande encontro o senhor faltou por ter medo de viajar de avião?

Niemeyer : “Tinha combinado com Assis Chateaubriand de me encontrar com ele em Pernambuco . Chateaubriand foi na frente,eu iria depois.Mas ele foi -e eu não. Quando ele se encontrou comigo,dias depois,disse : ” Você agiu como um verdadeiro comunista!” . Mas ele gostava de mim; nos dávamos bem.

O medo de viajar de avião me atrapalhou muito. Um dia,eu estava em Brasília quando Juscelino me telefonou para que eu viesse com ele de avião para o Rio de Janeiro.Não vim. Viajei de automóvel. Houve,então,um acidente com o carro em que eu viajava. Passei quinze dias no hospital. O medo de avião não vem de nenhum raciocínio. É coisa minha mesmo. Não viajo quando não quero. Mas, muitas vezes, invento essa história de medo de avião porque não quero viajar”.

O senhor disse que tinha um certo “sentimento de culpa” por ter tanto medo de avião .É verdade ?

Niemeyer : …”Mas eu não gosto desse negócio de altura ! Tantas vezes voltei do caminho….Deixei de viajar.Uma vez,eu estava na Argélia.Quando chegou a hora de o avião sair – eu já tinha posto aquele balinha na boca – , eu disse : “Não vou !” . Peguei o meu colega e saí. Isso criou uma dificuldade, porque a mala já estava no avião. Mas viajei muito. Já embarquei três vezes num Concorde! É um sistema pra prático – que a gente tem de aceitar”.

O senhor uma vez escreveu: “minha posição diante do mundo é de invariável revolta” .Onde é que nasceu esse sentimento ?

Niemeyer: “Veio da miséria que nos cerca. Ninguém resolve. É uma luta de milhares de anos : a gente vê os mais ricos usufruindo tudo. Quando faço um projeto de um prédio público – por exemplo- procuro fazer algo bonito. Primeiro,porque esse é o caminho da arquitetura. Eu sei que os mais pobres não vão usufruir nada desse edifício, mas sei que, se o edifício for bonito, os pobres vão parar e ter um momento de espanto e alegria ao ver uma coisa diferente”.

O senhor – que gosta de futebol – participou do concurso para escolha do projeto para a construção do estádio do Maracanã. Como seria o Maracanã de Oscar Niemeyer?

Niemeyer: “O meu estádio seria pior. Naquele tempo,a idéia que tínhamos de arquitetura em relação a estádio de futebol era fazer uma única arquibancada do lado em que o sol não batesse na cara do espectador. Depois,ao começar a frequentar estádios,vi como era importante existir arquibancada também do outro lado. O sujeito vê o campo , vê o jogo,mas precisa ver também a alegria do estádio ! Então,um estádio circular,como o Maracanã,é a solução melhor. Passaram-se alguns anos, eu estava na casa de Maria Martins, em Petrópolis, quando chegou Getúlio Vargas,a quem eu nunca tinha encontrado. Getúlio olhou para mim e disse : ” Se eu tivesse ficado no governo,teria feito o seu estádio” .Tive vontade de dizer: “Era ruim. O outro projeto era melhor!” .

O senhor, como noventa e nove por cento dos brasileiros, pensou em ser jogador de futebol. O senhor tentou a sério?

Niemeyer: “Jogava bem no colégio. Eu me lembro de que um grande goleiro do Flamengo,o Amado,foi do meu tempo de colégio. Uma vez, ele veio me procurar para treinar no Flamengo. Joguei numa preliminar: Flamengo x Fluminense. Fiquei espantado com o estádio cheio de gente – por causa do jogo seguinte. Eu só pensava em futebol nos meus tempos de colégio. Joguei pelo Fluminense – como atacante. Gostava de driblar”.

Diz a lenda que o senhor já teve nas mãos um pedaço da lua, trazido por um astronauta americano. É verdade?

Niemeyer: “Quando eu estava em Paris, andava sempre com um grupo do qual fazia parte Ubirajara Brito,um cientista,um físico muito inteligente que tinha sido incumbido de estudar a lua,no laboratório em que trabalhava. Ubirajara Brito nos mostrou pedrinhas brancas da lua. O engraçado é que era uma pedrinha como outra qualquer. Tive vontade de ficar com uma daquelas pedrinhas…”.

É verdade que o senhor projetou uma casa para o seu motorista numa favela no Rio ?

Niemeyer: O meu motorista mora na favela da Rocinha, em São Conrado. É um amigo: trabalha comigo há quarenta anos.Fiz uma casa para ele lá,porque me dá prazer ser útil. A gente se sente mais tranqüila quando colabora. O fato de comprar um apartamento para Luís Carlos Prestes também me agradou (N:Niemeyer deu de presente um apartamento ao líder comunista,na rua das Acácias,na Gávea,zona sul do Rio).

Depois da queda do Muro de Berlim, o senhor continua comunista. Mas o chamado “socialismo real”,feito à base se partido único e economia centralizada,ruiu. O senhor não teme ser considerado um dinossauro?

Niemeyer: “Não.Nunca passou por minha cabeça a idéia de que o que houve na União Soviética tenha sido uma coisa definitiva. Aquilo foi um acidente de percurso muito natural. Foram setenta anos de luta e glória. Os soviéticos viajaram para o espaço. Marx inventou uma história fantástica. Criou uma esperança nos homens. Por que pensar que tudo acabou? Quem leu os clássicos soviéticos sabe que eles são patriotas demais para aceitar essa humilhação”.

Quando deixou o Brasil durante um período do regime militar, o senhor disse: “Resolvi viajar para o exterior com as minhas mágoas e a minha arquitetura”. A arquitetura de Oscar Niemeyer todo mundo conhece. Quais eram as mágoas?

Niemeyer: “O clima no tempo do governo Médici ficou ruim. Tive de ir para fora. Os que queriam me paralisar me deram a oportunidade de mostrar no exterior a minha arquitetura. Era o que eu precisava. Mas o exílio – até quando é voluntário – é muito duro.Você tem de aproveitar os momentos de calma para se divertir; a vida exige. Mas há momentos de pessimismo e de saudade. Você fica comovido com uma palavra, com uma coisa qualquer que lembre o Brasil, lembre a família, lembre o que estava acontecendo aqui: aquela miséria imensa, aquela perseguição. A gente se sentia infeliz, queria voltar. Mas a vida é assim.

Quando cheguei ao Brasil, fui direto ao quartel. Perguntaram numa sala fechada: “Doutor Niemeyer,o que é que vocês querem ?” . Eu disse: “Queremos mudar a sociedade” .O policial que me perguntava disse ao crioulinho que batia a máquina :”Escreve aí : ”Mudar a sociedade!” Neste momento, ele olhou para trás e disse : “Vai ser difícil…..”. Eu até achei graça. O que a gente queria era mudar a profissão daquele homem – por exemplo – ,para que ele tivesse um ofício melhor. A ignorância é que contribui para a manutenção do clima de injustiça – que não se modifica”.

O senhor sempre combateu os conservadores. Qual foi o brasileiro mais reacionário que o senhor já conheceu?

Niemeyer: “São tantos….Mas nunca me indispus por questões de divergência política. Tive amigos integralistas. Achava que eles estavam equivocados. Com certeza, eles pensavam a mesma coisa de mim . Mas podíamos conviver perfeitamente. O importante é que haja liberdade para que cada um pense o que quiser. A gente luta pelas coisas em que acredita, mas o tempo muda as coisas. Nasci protestando. Vou protestar a vida inteira”.

O senhor uma vez chorou ao ouvir uma música de Ataulfo Alves. A música faz o senhor chorar ainda hoje?

Niemeyer: “A música me trazia lembranças de casa, lembranças de amigos. Além de tudo, é bom chorar: às vezes, é preciso”.

O que é, então, que faz o senhor chorar?

Niemeyer: “Qualquer sentimento de pesar ou de saudade; um amigo que desaparece. Uma vez,eu estava subindo para o escritório quando um garoto,pobrezinho,veio vender uns biscoitos. Dei um dinheiro para ele. Peguei o elevador. Quando cheguei aqui em cima , a miséria daquele garoto parecia que era a miséria do mundo. Fiquei tão perturbado que mandei chamar o garoto. Aqui, combinamos que ele sairia da rua para estudar. A cozinheira logo achou que ele poderia ficar com ela por uns dias. O menino ficou uma semana, mas, depois, fugiu outra vez.Coisas assim é que deveriam incomodar todo mundo.
Sempre digo: para ser feliz, o sujeito tem de ter saúde e dinheiro, mas tem de ser burríssimo, porque pode viver como um bicho. Mas, desde que olhe em volta e veja que existe tanta gente sofrendo, a vida fica mais amarga”.

É verdade que existe uma fita em que o senhor toca com Tom Jobim ?

Niemeyer: “Sempre gostei desse negócio de música. É um momento de descanso. Eu sabia tocar umas coisas de violão,mas já esqueci muito. Uma vez, na brincadeira, a gente viu se eu o acompanhava. Tom Jobim era fantástico,assim como Chico Buarque, Vinícius de Morais…”

Diante de suas obras, Darcy Ribeiro disse que o senhor é o único brasileiro que será lembrado daqui a quinhentos anos.O senhor concorda ?

Niemeyer: “Darcy Ribeiro era amigo. E os amigos dizem tudo. Darcy Ribeiro era um companheiro bom : vivo,inteligente,seguro. Quando veio o golpe militar, ficou firme no Palácio, na tentativa de resistir. A vida às vezes faz a gente ficar mais otimista: é quando gente boa se revela cheia de qualidades”.

O senhor conseguiria definir o Brasil numa só palavra?

Niemeyer: “Esperança. Porque é o que a gente tem de ter”.

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A entrevista com Oscar Niemeyer foi publicada no livro “As Grandes Entrevistas do Milênio”( Editora Globo )

Posted by geneton at 12:45 PM

outubro 01, 2012

ERIC HOBSBAWM

ERIC HOBSBAWM : PECADO CAPITAL DO CAPITALISMO É INJUSTIÇA SOCIAL. PECADO CAPITAL DO SOCIALISMO FOI A FALTA DE LIBERDADE. MAS AINDA HÁ “UM VASTO ESPAÇO PARA O SONHO”

Órfãos de Marx, saudosistas do socialismo, parem de chorar. Porque o que sumiu na poeira da História foi o chamado “socialismo real”, um equívoco cinzento feito à base de partido único, Estado onipotente, arte demagógica e imprensa oficialesca. Mas, desfeito o equívoco, abre-se agora “um vasto espaço para o sonho”, território livre para novas utopias. Quem garante é o historiador que conseguiu se transformar em guru dos historiadores, o marxista que fez a autópsia do socialismo : o britânico Eric Hosbawm.

Um acaso do calendário reúne a biografia pessoal de Hobsbawm a um dos principais acontecimentos do século XX : o historiador nasceu em 1917, ano em que Lenin escreveu a palavra bolchevique na história da Rússia. Quando ainda usava calças curtas, Hobsbawm virou comunista, se é que um menino de quatorze anos é capaz de enumerar três diferenças razoáveis entre “centralismo democrático” e pudim de chocolate. Passado o vendaval,ele faz uma avaliação sincera das ilusões que viveu.

Eis a entrevista, agora publicada pela primeira vez na íntegra :

GMN : Qual foi a maior ilusão política de Eric Hobsbawm ?

Hobsbawm : “Minha maior ilusão política foi acreditar que a União Soviética poderia ser uma alternativa de desenvolvimento para o Ocidente. Tal crença tomou corpo simplesmente porque, a certa altura do século XX, a economia capitalista mergulhou numa crise catastrófica, à qual a União Soviética parecia imune. Mas, principalmente depois dos anos cinquenta e sessenta, ficou claro que o socialismo soviético não iria cumprir suas promessas nem realizar suas potencialidades. A partir daí,muitos – como eu – deixaram de acreditar no que tinham acreditado quando jovens”.

GMN : O marxismo morreu ?

Hobsbawm(depois de longa pausa) : “Não. Em primeiro lugar,a crítica essencial que Marx fez ao capitalismo é necessária ainda hoje. Como historiador, digo que a abordagem marxista é extremamente útil para que se entenda como as sociedades mudam- não apenas as sociedades capitalistas mas também as sociedades socialistas, hoje inexistentes. Não há dúvida de que uma grande parte das crenças do marxismo já não pode ser considera válida. O fim do socialismo real deixou um enorme vazio”.

Hoje,um grande número dos que poderiam estar na esquerda – socialista ou revolucionária- já não sabe em quem acreditar”.

GMN : O senhor lamenta ter apoiado os governos soviéticos ?

Hobsbawm : “Não lamento, porque nunca vivi na União Soviética. Quem, como eu, apoiava os governos soviéticos não estava pensando na Rússia, mas em nossos próprios países e no resto do mundo. Porque,para o resto do mundo,a existência da União Soviética, ainda que fosse ruim para a Rússia, teve um desenvolvimento positivo. Sem a União Soviética,não teríamos vencido a Segunda Guerra.

Sem a União Soviética, o capitalismo não teria sido reformado, como foi, depois da Guerra. Os que, no Ocidente, foram marxistas ou apoiaram o movimento comunista não têm do que se lamentar, porque estavam apenas tentando alcançar, em seus próprios países, objetivos que eram bons. Quando tiveram a chance de mudar os seus países, mudaram para melhor. Mas,para tanto, pediram o apoio de um regime que impôs um enorme sofrimento ao povo russo – mais do que a qualquer povo”.

GMN : Qual foi o pecado capital do socialismo ?

Hobsbawm : “A falta de liberdade foi o pecado capital, particularmente para os intelectuais. Mas o pecado capital do socialismo foi acreditar que a economia poderia ser operada inteiramente através de um planejamento centralizado, sem a atuação dos elementos do mercado. Os consumidores, os cidadãos comuns, não tinham a liberdade de comprar o que queriam. O que existia,basicamente,era um exagero do papel do Estado Central como um arquiteto da nova sociedade.

Marx disse, em relação às suas teorias, que o importante não era interpretar o mundo,mas modificá-lo. Ficou provado que é mais difícil mudar o mundo através das linhas de análise marxista do que interpretá-lo. Além de tudo,o desenvolvimento dos partidos socialistas foi profundamente influenciado – e distorcido – pelo fato de que o marxismo tomou o poder na Rússia. O que aconteceu ? A União Soviética dominou por anos e anos o desenvolvimento do marxismo e do movimento comunista internacional, o que acabou provocando uma divisão – mais negativa do que perigosa – entre as duas facções do marxismo : os social-democratas e reformistas de um lado; os comunistas e revolucionários de outro”.

GMN : E qual é o pecado capital do capitalismo ?

Hobsbawn : “O pecado capital do capitalismo é a injustiça social. Isso quando nós falamos em termos morais. Em termos práticos, o pecado é que o capitalismo é um sistema que desenvolveu um mundo que precisa de administração e planejamento global – mas o próprio capitalismo não pode prover esta administração e este planejamento. O capitalismo, então, deixa o mundo com sérios e crescentes problemas, para os quais não encontra soluções”.

GMN : O senhor disse uma vez que “o problema básico da história marxista é descobrir como a humanidade passou da Idade da Pedra para a Idade do Átomo”. Se o marxismo não conseguiu, quem é que vai conseguir explicar ?

Hobsbawm : “Em primeiro lugar,não acredito que o marxismo tenha falhado na explicação do desenvolvimento da História. Eis um grande debate que se desenvolve entre historiadores e filósofos.A contribuição do marxismo permanece essencial. O que haverá é um marxismo modificado.A crença dos marxistas na determinação única do desenvolvimento econômico provou ser inadequada.Deve-se levar em conta a análise de fatores como a cultura e as idéias”.

GMN : Haverá lugar na história para uma nova tentativa de aplicar a idéia marxista de uma sociedade sem classes ?

Hobsbawm : “O socialismo real – tal como o tivemos até há poucos anos – não vai voltar. Mas há lugar, sim, para uma nova tentativa de construir uma sociedade de liberdade e de igualdade, em que os seres humanos terão a chance de desenvolver todas as suas capacidades. Eu espero que haja espaço para movimentos que favoreçam a justiça social”.

GMN : O fim do socialismo foi um choque para as esquerdas. Qual será o próximo sonho ? Um jovem arriscaria a vida para implantar uma sociedade liberal-democrata, como se arriscou antes por outros ideais ?

Hobsbawn : “Uma democracia liberal é algo pelo qual ninguém é capaz de morrer. Nem é bom que um jovem esteja preparado para morrer tão facilmente por uma causa. O fim do socialismo real deixou um enorme vazio. Hoje, um grande número dos que poderiam estar na esquerda – seja a esquerda socialista,seja a esquerda revolucionária – não sabem em quem acreditar”.

GMN : O vácuo pode criar espaço para novos sonhos ?

Hobsbawn : “Há um vasto espaço para o sonho. Mas também há o perigo de que esse espaço seja preenchido por um tipo errado de sonho : por sonhos nacionalistas, por sonhos racistas, por sonhos de ressureição de religiões fundamentalistas. De qualquer maneira, problemas como a pobreza e a desigualdade, cada vez mais presentes no desenvolvimento global da economia, assumem uma tal proporção que haverá certamente espaço para movimentos políticos que tentem resolvê-los”.

GMN : É possível prever que movimentos serão esses ?

Hobsbawn : “Alguns desses movimentos serão os antigos movimentos de esquerda. Há no Brasil, por exemplo, um partido de trabalhadores que é similar a partidos de massa que existiram no passado na Europa. Em muitas partes do Terceiro Mundo, há lugar para movimentos iguais aos que existiram antes. Não devemos, portanto, eliminar os movimentos do passado.

A verdade é que o vácuo ideológico será muito mais sério nos países desenvolvidos,os países ricos. Porque nestes países a crise da fé e das crenças – e também a mudança provocada pela extensão da industrialização a países do Terceiro Mundo – terão um efeito mais dramático”.

GMN :A desilusão das esquerdas dará, então, lugar a novos sonhos num futuro próximo ?

Hobsbawm :”É possível que sim,mas,felizmente,historiadores não são profetas.

Nós só tratamos do passado. Historiadores fizeram previsões que provaram ser inexatas. Hoje, com exceção dos instituto de pesquisas econômicas dos governos, todos são céticos na hora de fazer previsões…”.

GMN : Como é que a História vai julgar Fidel Castro ? Daqui a meio século,ele vai receber um julgamento positivo ou vai ser condenado como o último ditador comunista ?

Hobsbawm : “O julgamento será positivo, sem dúvida alguma. Fidel Castro será claramente a figura mais importante da história nacional de Cuba. Quanto à América Latina como um todo, Fidel Castro será um símbolo de libertação – ainda que as políticas de libertação que ele adotou não tenham sido bem sucedidas. Em todo caso, será visto não como um homem não muito bom ao governar o próprio país. Porque,sob o aspecto econômico,eles fez um péssimo trabalho. Por outro lado,as reformas sociais são absolutamente esplêndidas. Há fraquezas no regime cubano, mas Fidel Castro vai ter um papel bastante positivo nos julgamentos históricos do futuro”.

GMN : O senhor diz,na última página do livro “A Idade dos Extremos”,que, no final do Século XX, não sabemos para onde vamos. É bom ou é ruim não saber para onde caminha a humanidade ?

Hobsbawm :”Não saber para onde vamos é o destino da humanidade. Algumas vezes,o homem pensa que sabe para onde vai. Mas, em geral,a gente erra quando pensa que sabe”.

GMN : O senhor diz que o homem hoje tem a ilusão de que vive num “eterno presente”. Isso afeta a percepção da História ?

Hobsbawm : “O “eterno presente” é, em parte, resultado da quebra de relações entre as gerações e, por outro lado, conseqüência da sociedade de consumo. A desvantagem é que é impossível que as pessoas entendam a situação em que vivem sem que saibam como as coisas surgiram,antes. A maioria das pessoas na verdade gostaria de estabelecer tal continuidade entre elas e o passado. Não é fácil estabelecer tal continuidade hoje,porque as mudanças do mundo têm sido tão rápidas e tão profundas que a experiência de vida da maioria das pessoas é marcada pela descontinuidade”.

GMN : A televisão é culpada por criar a ilusão de que vivemos todos num eterno presente ?

Hobsbawm : “Sim. Mas este é apenas um aspecto de uma sociedade de consumo que atua satisfazendo os desejos e as vontades das pessoas a qualquer momento. A sociedade de consumo se interessa pelo que as pessoas fazem agora. A lógica do mercado é ganhar dinheiro com o que as pessoas vão gastar agora – não com o que vão gastar daqui a vinte anos”.

GMN : O senhor é freqüentemente citado na imprensa como “o maior historiador vivo”. Aceita o título ?

Hobsbawm : “É difícil julgar. Não me vejo como o mais importante historiador,mas é uma sensação agradável ver que as pessoas pensam que os livros que escrevi são importantes.Sinceramente,não me cabe julgar se essas pessoas estão certas.Em todo caso,penso que exageram….”.

GMN : Quem é Eric Hosbabwm,por Eric Hobsbawm ?

Hobsbawm : “Tudo o que posso dizer é que tento tentado ver como, num determinado período da História, as coisas se juntam para formar um todo. Porque existe, sim, uma conexão entre as diferentes partes da vida”.

( “O comunismo representou o ideal de transcender o egoísmo e servir a toda a humanidade,sem exceção “,escreveria Hobsbawm em 2002.”Emocionalmente, pertenço a uma geração ligada por um quase inquebrável cordão umbilical à esperança de uma revolução mundial, não importa o quão cética ou crítica diante da União Soviética”. Professor da Universidade de Oxford,Nial Ferguson perguntou,num artigo publicado sobre Eric Hobsbawm em setembro de 2002, no Daily Telegraph :

“Como pode um brilhante acadêmico cometer um erro político por tanto tempo – por cinquenta anos, para ser exato, período em que foi membro do Partido Comunista ? Como pode ele continuar a acreditar, como ele claramente faz, que alguma coisa pode ser salva da lamentável empresa de Lenin e seus asseclas ? A tragédia do comunismo – o que custou a vida de dezenas demilhões – é que um homem com a inteligência de Eric Hobsbawm não pôde ver – e ainda não pode – que o comunismo foi a negação tanto da liberdade quanto da justiça,em nome de um espúrio e falso igualitarismo”.

As simpatias pelo ideal comunista ainda hoje dividem historiadores. Quando uma edição de bolso do Manifesto Comunista apareceu – surpreendentemente – no terceiro lugar na lista de livros políticos mais vendidos publicada toda semana pelo Mail on Sunday,procurei Kenneth R. Minogue,titular da cadeira de Ciência Política da London School of Economics :

– É preocupante ver como um melodrama simplista como este Manifesto é tão popular – disse-me,na entrevista.Eu diria que é simplesmente notável a simplicidade de gente que acredita que um intelectual alemão – escrevendo em 1848 – possa entender a essência do mundo moderno. A um amigo que quisesse entender as tentações do totalitarismo,eu recomendaria que lesse o Manifesto Comunista e ouvisse aquela canção do musical “Cabaret” chamada “Tomorrow Belongs to Me” (“O Amanhã me Pertence”). Tanto o Manifesto como a canção exibem um belo otimismo e uma simplicidade de raciocínio que terminam levando à morte e à destruição.

Hobsbawm resumiria em três linhas,no parágrafo final do livro autobiográfico “Intersting Times” o que sente no início do século XXI :

- Não nos desarmemos, ainda que os tempos sejam insatisfatórios.A injustiça social ainda precisa ser denunciada e combatida.O mundo não ficará melhor por conta própria).

(*) Entrevista gravada em Londres, em 1995. A íntegra da entrevista com Eric Hobabawm – assim como com o filho do líder soviético Nikita Kruschev, com um general da KGB e com o agente encarregado de eliminar Leon Trotsky - foi publicada no nosso livro “DOSSIÊ MOSCOU”

Posted by geneton at 12:06 PM

agosto 16, 2012

JORGE AMADO

Um manifestante ergue um cartaz em Moscou: "Operários de todo o mundo, perdoai-nos". Diante da TV, o ex-comunista Jorge Amado vê um mundo desabar

Jorge Amado faria cem anos neste agosto de 2012. Reviro meus arquivos (não tão) implacáveis, em busca de uma entrevista que fiz com ele no momento em que o socialismo virava pó. O ex-comunista Jorge Amado via com espanto o desfile de imagens surpreendentes pela TV, como manifestantes dançando sobre as ruínas do Muro de Berlim ou o queda do ditadores como o romeno Nicolae Ceausesco, personagem de uma cena patética: reuniu a multidão para aplaudi-lo, mas foi silenciado por vaias. Amado se declarava atordoado com a "rapidez imensa" dos fatos exibidos pela TV, o que o levou a confessar a um amigo, o cineasta Costa Gavras: somente ali, ao testemunhar o desabamento dos regimes socialistas, ele se deu conta da importância da televisão. A entrevista:

Socialismo? "Nunca houve". O que existia era "uma mentira imensa", "uma falsificação completa". Quem faz afirmações tão contundentes, como se quisesse fechar um ciclo de desilusões, é o homem que, um dia, num livro que hoje renega, descreveu assim a figura do ditador Stalin: "Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidasde produziu" ( O Mundo de Paz).

Jorge Amado, o maior best-seller da literatura brasileira, recordista de traduções, ex-deputado do Partido Comunista, anuncia, nesta entrevista exclusiva, que ainda não se recuperou da perplexidade causada pela "experiência terrível" : viu cinco imagens de TV destroçarem um mundo de crenças no chamado "socialismo real". Primeira imagem: o Muro de Berlim caindo. Segunda: um estudante anônimo enfrentando os tanques na Praça da Paz Celestial. Terceira: uma estátua de Lênin desabando no leste europeu. Quarta: a multidão vaiando o ditador romeno Ceausescu. Quinte: um manifestante soviético empunhando o cartaz "Operário de Todo o Mundo, Perdoai-nos". Impressionado, passou uma noite discutindo o poder destas imagens com o amigo Costa Gavras, cienasta de Estado de Sítio e Desaparecido, durante um encontro em Paris. Ainda espantado com a "rapidez dos fatos", Jorge Amado repete um ensinamento que extraiu de um aprendizado "sofrido, longo e cruel: "O coletivo não é o oposto do indivíduo. Sem considerar o indivíduo como ser humano, não se pode pensar em socialismo".

Do refúgio parisiense, onde se esconde dos jornalistas porque quer dar forma definitiva ao romance chamado Bóris, o Vermelho, Jorge Amado manda dizer que "escreve muito mal", é uma "negação como contista" e,pior, não sabe "contar histórias". Como se não bastasse, confessa que é um eterno candidato a vagabundo - que só quer ser lembrado, no futuro, como "um baiano romântico e sensual".

GMN: As mudanças no Leste europeu e na União Soviética de Gorbatchev- que parecem ter desorientado as esquerdas no mundo inteiro - abalaram o senhor também ?

Jorge Amado: "Eu me desorientei - e muito - antes, quando descobri que Stalin não era o pai dos povos, ao contrário do que sempre pensei. Aquele foi um processo doloroso, difícil, cruel e demorado. A maioria das causas dos acontecimentos atuais talvez já fossem claras para mim. Mas os acontecimentos são de uma rapidez imensa. Jantei com Costa Gavras, meu amigo. Discutimos esta situação: não é só um mundo que acabou. É tudo o que foi a vida e o objetivo de luta de milhões de pessooas. É gente que lutou com generosidade e coragem e foi presa e torturada por lutar por uma coisa que - de repente - se acaba. A pergunta que você pode me fazer agora é a seguinte: é o socialismo que não presta ou é a falsificação do socialismo ? O que é que acontece nestes países ? Já não são regimes socialistas nem a Polônia nem a Hungria nem a Tchecoslováquia nem a Alemanha oriental. Jão estão deixando de ser socialistas a Bulgária, a Romênia e até a Albânia! Mas não acredito que o socialismo, como ideia, deixe de ser o que representa como avanço e como um passo adiante. Nunca houve socialismo, como não houve democracia. Como a implantação dos regimes socialistas foi baseada naquilo que é fundamentalmente errado - a ditadura de classe - , houve, então, uma falsificação total e completa !

O mundo era um antes da revolução de outubro, na Rússia. Passou, depois, a ser outro. Estados ditos socialistas - mas que não eram, na realidade - podem deixar de existir. Isso não quer dizer,no entanto, que os valores novos trazidos pela Revolução de outubro - como uma consciência coletiva maior e fraternal - não persistam. Persistem. O que acontece é que o mundo não será mesmo igual. Já não é. O capitalismo de hoje também já não é o mesmo de antes. Não sou sociólogo. Eu via sempre, na televisão, no Brasil, que todo dia apareciam dois, três cientistas políticos. É cientista político pra burro. É uma quantidade imensa. São formidáveis. Não sou cientista político - infelizmente - nem crítico literário. Mas vem à minha casa gente que lutou toda a vida. De repente, um mundo vem abaixo!

Durante o encontro com Costa Gavras, eu disse que - de repente - estou me dando conta da importância da televisão. Via na TV as imagens do muro de Berlim. Vi o homem parando os tanques na China. E as imagens do ditador da Romênia? Reuniu duzentas mil pessoas para aplaudi-lo, mas, de repente, a multidão começa a vaiá-lo. A imagem do ditador na tribuna é inesquecível. Outra imagem :uma imensa estátua de Lênin com uma corda no pescoço. E o pessoal puxando para derrubá-la. Devo dizer a você que aquilo me picou o coração. É todo um mundo que vem se acabando - e desabando em cima da cabeça da gente. É terrível para algumas pessoas - que devem se sentir suicidas, sem ter o que fazer da vida. Não sou sociólogo, mas sem democracia não se pode construir o socialismo. O coletivo não é o oposto do indivíduo, como foi nestes países. Sem considerar o indivíduo como ser humano, você não pode pensar em socialismo".

GMN: A denúncia do stalinismo provocou um choque aomda maior no senhor ?

Jorge Amado: "O choque veio já antes da denúncia, porque eu vinha sabendo das coisas. Mas é evidente que a denúncia de Kruschev trouxe coisas de q~ue eu não fazia a mínima ideia".

GMN: Mikail Gorbachev é o ídolo de Jorge Amado hoje ?

Jorge Amado: "Meu último ídolo chama-se Stálin. Já não tenho ídolos - há tempos. Como ídolo, Stalin é o bastante. É suficiente...Gorbachev é um grande estadista do nosso tempo. Todos nós devemos a ele um fato importante: o perigo de uma guerra atômica - que iria acabar com a vida sobre a Terra - diminuiu muito. O que é que Gorbachev faz ? O que ele faz é expor a verdade. Havia uma mentira imensa que dizia: "O socialismo é este". De repente, a gente viu que não era. Outra imagem de TV que me impressionou foi transmitida durante a comemoração do aniversário da Revolução de outubro. Durante uma manifestação de cento e ciquenta mil pessoas em Moscou, dois cartazes me marcaram muito. Um dizia: "Setenta anos para chegara a nada". E outro: "Proletários de todo o mundo, perdoai-nos". São dois negócios terríveis".

GMN: O senhor diz que o mundo de tantas pessoas que deram a vida toda a estes ideais desabou diante desses mudanças todas. Seu mundo desabou, politicamente ?

Jorge Amado: "Eu já vinha dizendo que, sem democracia, não se pode construir o socialismo. O coletivo não é o oposto do indivíduo, como foi nestes países. Sem considerar o indivíduo ser humano não se pode pensar em socialismo. O que vai existir é, sempre, uma falsificação. São coisas que, para mim, ficaram claras, dentro de um processo sofrido, longo e cruel".

GMN: O livro Os Dentes do Dragão traz o registro do atrito que houve entre o senhor e Oswald de Andrade, na época em que ambos militavam no Partido Comunista. Oswald de Andrade escreveu: "Numa reunião do comitê de escritores, diante de quize pessoas do PC, apelei para que o sr. Jorge Amado se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião barato do nazismo. Em 1940, Jorge convidou-se no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Recusei e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas desse gênero do mesmo alemão". Houve uma briga séria?

Jorge Amado: "Houve, realmente, um atrito. Oswald - de quem eu era amigo - desejava ser candidato a deputado na chapa do Partido Comunista. Não foi. Não sei porque - talvez porque outras pessoas tivesse feito intriga - Oswald achou que eu tinha concorrido para que ele não entrasse na chapa. O que aconteceu, na verdade, foi o contrário. Eu lutei - e muito - para que ele entrasse na chapa do partido. Não consegui. Oswaldo não entrou. Atribuiu a mim este fato, o que fez com se afastasse de mim. Depois, voltamos às boas - ele, infelizmente, já enfermo. Não sei se Oswald pediu a minha exclusão do partido. Não vale a pena falar sobre este assunto".

GMN: Mas ele pediu a exclusão do senhor do Partido Comunista ?

Jorge Amado: "Isso, se houve, não sei".

GMN :Oswald de Andrade cita também o encontro que teve com o senhor e com um alemão na embaixada. O senhor se lembra ?

Jorge Amado: "Não".

GMN :Ao se referir ao ato de escrever, o senhor já disse: "Quanto à escrita propriamente dita, aceito palpite". O senhor aceita palpite de quem ?

Jorge Amado: "Quem palpita é Zélia ( Gattai ), porque vive ao meu lado. Sou mau datilógrafo. Só escrevo com dois dedos. Emendo muito. Hoje, escrevo e reescrevo. Quando jovem, emendava pouco. A gente vai perdendo aquele elan da juventude e vai ganhando experiência. A escrita, então, passa a ser sempre difícil. Você escreve e reescreve. Depois, quando parece que o texto ficou do meu agrado, Zélia bate à máquina uma cópia que ainda vou ler e reler. É aí que ela dá palpite. A partir de certo momento do livro, dou a ler a meu irmão James Amado, uma opinião que levo em conta. E ele lê - e palpita".

GMN :Não é uma contradição o mais famoso escritor brasileiro dizer que escreve "mal" , como o senhor diz?

Jorge Amado: "Para começar, sou contra este tipo de qualificativo - "o mais", "o maior". É difícil dizer quem é "o mais", "o maior", "o melhor". Há os que são bons. Outros são ótimos. Não sou uma pessoa que se considere isso ou aquilo. Não sei que adjetivo usar, mas sou bastante modesto, humilde e crítico a meu respeito. Há uma pergunta que - adiante - você já não me fará. É esta: "E o Prêmio Nobel ? Você não acha que vai ganhar ?". Por que eu haveria de ter ? Nunca esperei. Desejar é outra coisa. Aspirar é outra coisa. Aliás, nunca aspirei a prêmio nenhum. Nunca lutei por nenhum prêmio. Nunca fui candidato. Quem deve ganhar os prêmios é o livro, não o autor. Uma das coisas mais tristes da vida literária é ver um sujeito cavando um prêmio. É um horror. Quando me dão, fico satisfeito. Eu me admiro por que é que haveria de ganhar o Prêmio Nobel. É um prêmio para grandes, grandes escritores. Não me considero como tal".

GMN: O senhor acha que escreve mal de verdade ?

Jorge Amado: "Eu escrevo muito mal".

GMN: Que reparos, então, o senhor faz a seus textos ?

Jorge Amado: "A crítica faz tantos reparos....Não sou um escritor que trabalha. Um crítico francês chamado Jean Rocha escreveu todo um livro sobre mim. Disse que escrevo bem. Não ouso fazer tal afirmação. Porque há os que dizem que não existe quem escreva pior do que eu. Sou um escritor que nunca teve a unanimidade da crítica. O País do Carnaval foi o meu único livro unanimemente elogiado. Eu era um menino.... (N: Quando terminou de escrever o livro, Jorge Amado tinha tinha 18 anos). Desde então, tenho levado pau. Nunca nenhum outro livro meu, a partir de então, recolheu unanimidade. A crítica sempre foi polêmica em torno do meu trabalho. Também sou uma negação como contista. O que aparece como conto meu por aí é sobra de romance, coisas que não foram adiante ou que não usei".

GMN : Escrever, para o senhor, é uma necessidade física ? Em algum momento, o senhor já admitiu a possibilidade de deixar de escrever ?

Jorge Amado: "Sempre penso, com grande desejo, em não fazer nada. Minha tendência é vagabundar, andar, ver pessoas e coisas, ler livros. Mas sempre o livro se impõe a mim. Já há algum tempo, estou resistindo a ir para a máquina de escrever, pela terceira vez, para tentar escrever um livro chamado Bóris, o Vermelho. Em 1984, minha filha morava no Maranhão. Viajei até lá para, um pouco escondido, tentar escrever Bóris. Acabei começando um livro chamado Tocaia Grande, concluído dois anos depois. O livro foi escrito em várias casas no Brasil. Fiquei fugindo de uma para outra- só que me descobriam. Vim em 1987 para Paris, para tentar escrever Bóris. Mas escrevi O Sumiço da Santa, porque descobri que nunca tinha feito um livro sobre sincretismo cultural e religioso, algo que é presente na maioria dos meus romances, mas nunca como tema central. Não pude escrever Bóris porque a estrutura da narrativa não estava suficientemente madura na minha cabeça.

Vou ter de explicar a você a mimha forma de trabalhar: quando tenho a ideia de um livro, trato de amadurecê-la na cabeça, antes de ir para a máquina - mas não no sentido do que seria a história do livro. Não sei contar uma história. Minha mulher senta com os netos e conta uma história que eu mesmo ouço com imenso prazer. Zélia inventa. Já eu sou incapaz. O enredo - ou a história dos meus livros - decorre dos personagens. Porque os personagens é que os fazem. Nunca sei, hoje, o que vai acontecer no dia dee amanhã com a história. Os personagens é que vão construindo a história aos poucos. Um personagem que coloco ali, por uma necessidade técnica, por um detalhe, de repente vive e cresce. A história decorre dos personagens. É uma coisa vivida, em vez de ser inventada. Nunca penso em termos de história. Penso, sim, em figuras, em ambientes e em como será a arquitetura da narrativa. Busco encontrar o começo. Porque o começo do livro é que é difícil - exatamente porque não sei contar uma história. Não tenho a invenção da história. É difícil. Preciso que os personagens comecem a ficar de pé - e a andar com seus pés, para que a história também ande. Duas vezes pensei que Bóris estivesse maduro. Quando fui para a máquina, vi que não era o que queria.

O que quero fazer, no livro, é o perfil de um jovem brasileiro entre 18 e 20 anos na década de 70. É apenas um jovem. Mas as circunstâncias da vida política brasileira na época - uma ditadura militar, com tudo o que ela representava - levam a que ele desempenhe um determinado papel que não sei exatamente qual é. Isso virá. Não me amedronto, porque, quando escrevo, a história sempre vem".

GMN: O senhor terminou de escrever o romance de estreia, O País do Carnaval, há exatamente 60 anos, em 1930. Tempos depois, chamou o livro de "um caderno de aprendiz". Qual é o principal reparo que o Jorge Amado de 78 anos faz, hoje, ao Jorge Amado de 18 anos, como romancista ?

Jorge Amado: "O País do Carnaval e Cacau e Suor são cadernos de um aprendiz de romancista. O principal reparo que faço - sobretudo a O País do Carnaval - é que é um romance com bastante influência europeia. Sobre o romance pesa - e muito - uma visão europeia do Brasil. Eu era um menino influenciado, de um lado, pela leitura de uma literatura europeia, e, de outro, pelo Modernismo - que, apesar cultivar uma brasilidade e um lado nacionalista na Antropofagia, também tinha europeia, sobretudo da França e da Itália. As primeiras obras de Oswald de Andrade, como Os Condenados, são bastante influenciadas por D`Annunzio. O meu é um livro europeizante - de certa maneira".

GMN: Curiosamente, o personagem principal do livro chega da Europa e volta para lá...

Jorge Amado: "O personagem passa pelo Brasil. A tradução francesa de O País do Carnaval só foi feita agora pela Editora Gallimard, sessenta anos depois da publicação. Nunca permiti a tradução de O País do Carnaval até há póucos anos. Quando completei setenta e cinco anos, um dos meus editores italianos fez uma tradução do livro - na verdade, uma edição especial, quase universitária, com estudos. Era uma homenagem aos setenta e cinco anos, fora das coleções normais. Não pude impedir a tradução. A partir daí é que a Gallimard comprou os direitos da tradução em francês. São as duas únicas línguas em que foi traduzido. Com a tradução francesa, recebi, há poucos dias, um telefonema de uma editora dos Estados Unidos que quer comprar O País do Carnaval. Não decidi ainda se aceitarei ou não".

GMN: Por que o senhor - que conheceu grandes figuras da literatura e da política do mundo inteiro - nunca se animou a escrever uma autobiografia ?

Jorge Amado: "Prefiro escrever romance. Enquanto eu puder trabalhar numa obra de criação, acho preferível. Quando sentir que já não posso, quem sabe eu me volte para uma autobiografia. Mas não é algo que me tente".

GMN: O senhor não dá importância a depoimentos históricos de escritores ?

Jorge Amado: "Gosto de ler biografias e memórias - com prazer. Não incluo nos meus projetos, por ora, escrever minha autobiografia. Mas quem sabe?".

GMN : Nélson Rodrigues disse que, se algum dia alguém fosse escrever um verbete sobre ele, bastaria redigir uma frase : "Nélson Rodrigues - também conhecido como flor da obsessão". Se o senhor fosse escrever um verbete sobre Jorge Amado, quais palavras usaria ? Como é que o senhor gostaria de ser lembrado daqui a 50 anos numa enciclopédia ?

Jorge Amado : "Um baiano romântico e sensual. Eu me pareço com meus personagens - às vezes, também com as mulheres".

(Entrevista gravada em 1990)

Posted by geneton at 02:37 AM

agosto 10, 2012

JORGE AMADO

AS CONFISSÕES DO EX-COMUNISTA JORGE AMADO: DIANTE DA TV, ELE ASSISTE, ESPANTADO, AO FIM DO SOCIALISMO (DE RESTO, DECLARA : “MEU ÚLTIMO ÍDOLO É STÁLIN”.”ESCREVO MUITO MAL”. “SOU UMA NEGAÇÃO COMO CONTISTA”)

Jorge Amado faria cem anos neste agosto de 2012. Reviro meus arquivos (não tão) implacáveis, em busca de uma entrevista que fiz com ele no momento em que o socialismo virava pó. O ex-comunista Jorge Amado via com espanto o desfile de imagens surpreendentes pela TV, como manifestantes dançando sobre as ruínas do Muro de Berlim ou o queda do ditadores como o romeno Nicolae Ceausesco, personagem de uma cena patética: reuniu a multidão para aplaudi-lo, mas foi silenciado por vaias. Amado se declarava atordoado com a “rapidez imensa” dos fatos exibidos pela TV, o que o levou a confessar a um amigo, o cineasta Costa Gavras: somente ali, ao testemunhar o desabamento dos regimes socialistas, ele se deu conta da importância da televisão. A entrevista:

Socialismo? “Nunca houve”. O que existia era “uma mentira imensa”, “uma falsificação completa”. Quem faz afirmações tão contundentes, como se quisesse fechar um ciclo de desilusões, é o homem que, um dia, num livro que hoje renega, descreveu assim a figura do ditador Stalin: “Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidasde produziu” ( O Mundo de Paz).

Jorge Amado, o maior best-seller da literatura brasileira, recordista de traduções, ex-deputado do Partido Comunista, anuncia, nesta entrevista exclusiva, que ainda não se recuperou da perplexidade causada pela “experiência terrível” : viu cinco imagens de TV destroçarem um mundo de crenças no chamado “socialismo real”. Primeira imagem: o Muro de Berlim caindo. Segunda: um estudante anônimo enfrentando os tanques na Praça da Paz Celestial. Terceira: uma estátua de Lênin desabando no leste europeu. Quarta: a multidão vaiando o ditador romeno Ceausescu. Quinte: um manifestante soviético empunhando o cartaz “Operário de Todo o Mundo, Perdoai-nos”. Impressionado, passou uma noite discutindo o poder destas imagens com o amigo Costa Gavras, cienasta de Estado de Sítio e Desaparecido, durante um encontro em Paris. Ainda espantado com a “rapidez dos fatos”, Jorge Amado repete um ensinamento que extraiu de um aprendizado “sofrido, longo e cruel: “O coletivo não é o oposto do indivíduo. Sem considerar o indivíduo como ser humano, não se pode pensar em socialismo”.

Do refúgio parisiense, onde se esconde dos jornalistas porque quer dar forma definitiva ao romance chamado Bóris, o Vermelho, Jorge Amado manda dizer que “escreve muito mal”, é uma “negação como contista” e,pior, não sabe “contar histórias”. Como se não bastasse, confessa que é um eterno candidato a vagabundo – que só quer ser lembrado, no futuro, como “um baiano romântico e sensual”.

GMN: As mudanças no Leste europeu e na União Soviética de Gorbatchev- que parecem ter desorientado as esquerdas no mundo inteiro - abalaram o senhor também ?

Jorge Amado: “Eu me desorientei – e muito – antes, quando descobri que Stalin não era o pai dos povos, ao contrário do que sempre pensei. Aquele foi um processo doloroso, difícil, cruel e demorado. A maioria das causas dos acontecimentos atuais talvez já fossem claras para mim. Mas os acontecimentos são de uma rapidez imensa. Jantei com Costa Gavras, meu amigo. Discutimos esta situação: não é só um mundo que acabou. É tudo o que foi a vida e o objetivo de luta de milhões de pessooas. É gente que lutou com generosidade e coragem e foi presa e torturada por lutar por uma coisa que – de repente – se acaba. A pergunta que você pode me fazer agora é a seguinte: é o socialismo que não presta ou é a falsificação do socialismo ? O que é que acontece nestes países ? Já não são regimes socialistas nem a Polônia nem a Hungria nem a Tchecoslováquia nem a Alemanha oriental. Jão estão deixando de ser socialistas a Bulgária, a Romênia e até a Albânia! Mas não acredito que o socialismo, como ideia, deixe de ser o que representa como avanço e como um passo adiante. Nunca houve socialismo, como não houve democracia. Como a implantação dos regimes socialistas foi baseada naquilo que é fundamentalmente errado - a ditadura de classe – , houve, então, uma falsificação total e completa !

O mundo era um antes da revolução de outubro, na Rússia. Passou, depois, a ser outro. Estados ditos socialistas – mas que não eram, na realidade – podem deixar de existir. Isso não quer dizer,no entanto, que os valores novos trazidos pela Revolução de outubro - como uma consciência coletiva maior e fraternal – não persistam. Persistem. O que acontece é que o mundo não será mesmo igual. Já não é. O capitalismo de hoje também já não é o mesmo de antes. Não sou sociólogo. Eu via sempre, na televisão, no Brasil, que todo dia apareciam dois, três cientistas políticos. É cientista político pra burro. É uma quantidade imensa. São formidáveis. Não sou cientista político – infelizmente – nem crítico literário. Mas vem à minha casa gente que lutou toda a vida. De repente, um mundo vem abaixo!

Durante o encontro com Costa Gavras, eu disse que – de repente - estou me dando conta da importância da televisão. Via na TV as imagens do muro de Berlim. Vi o homem parando os tanques na China. E as imagens do ditador da Romênia? Reuniu duzentas mil pessoas para aplaudi-lo, mas, de repente, a multidão começa a vaiá-lo. A imagem do ditador na tribuna é inesquecível. Outra imagem :uma imensa estátua de Lênin com uma corda no pescoço. E o pessoal puxando para derrubá-la. Devo dizer a você que aquilo me picou o coração. É todo um mundo que vem se acabando – e desabando em cima da cabeça da gente. É terrível para algumas pessoas – que devem se sentir suicidas, sem ter o que fazer da vida. Não sou sociólogo, mas sem democracia não se pode construir o socialismo. O coletivo não é o oposto do indivíduo, como foi nestes países. Sem considerar o indivíduo como ser humano, você não pode pensar em socialismo”.

GMN: A denúncia do stalinismo provocou um choque aomda maior no senhor ?

Jorge Amado: “O choque veio já antes da denúncia, porque eu vinha sabendo das coisas. Mas é evidente que a denúncia de Kruschev trouxe coisas de q~ue eu não fazia a mínima ideia”.

GMN: Mikail Gorbachev é o ídolo de Jorge Amado hoje ?

Jorge Amado: “Meu último ídolo chama-se Stálin. Já não tenho ídolos – há tempos. Como ídolo, Stalin é o bastante. É suficiente…Gorbachev é um grande estadista do nosso tempo. Todos nós devemos a ele um fato importante: o perigo de uma guerra atômica – que iria acabar com a vida sobre a Terra – diminuiu muito. O que é que Gorbachev faz ? O que ele faz é expor a verdade. Havia uma mentira imensa que dizia: “O socialismo é este”. De repente, a gente viu que não era. Outra imagem de TV que me impressionou foi transmitida durante a comemoração do aniversário da Revolução de outubro. Durante uma manifestação de cento e ciquenta mil pessoas em Moscou, dois cartazes me marcaram muito. Um dizia: “Setenta anos para chegara a nada”. E outro: “Proletários de todo o mundo, perdoai-nos”. São dois negócios terríveis”.

GMN: O senhor diz que o mundo de tantas pessoas que deram a vida toda a estes ideais desabou diante desses mudanças todas. Seu mundo desabou, politicamente ?

Jorge Amado: “Eu já vinha dizendo que, sem democracia, não se pode construir o socialismo. O coletivo não é o oposto do indivíduo, como foi nestes países. Sem considerar o indivíduo ser humano não se pode pensar em socialismo. O que vai existir é, sempre, uma falsificação. São coisas que, para mim, ficaram claras, dentro de um processo sofrido, longo e cruel”.

GMN: O livro Os Dentes do Dragão traz o registro do atrito que houve entre o senhor e Oswald de Andrade, na época em que ambos militavam no Partido Comunista. Oswald de Andrade escreveu: “Numa reunião do comitê de escritores, diante de quize pessoas do PC, apelei para que o sr. Jorge Amado se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião barato do nazismo. Em 1940, Jorge convidou-se no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Recusei e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas desse gênero do mesmo alemão”. Houve uma briga séria?

Jorge Amado: “Houve, realmente, um atrito. Oswald – de quem eu era amigo – desejava ser candidato a deputado na chapa do Partido Comunista. Não foi. Não sei porque – talvez porque outras pessoas tivesse feito intriga – Oswald achou que eu tinha concorrido para que ele não entrasse na chapa. O que aconteceu, na verdade, foi o contrário. Eu lutei – e muito – para que ele entrasse na chapa do partido. Não consegui. Oswaldo não entrou. Atribuiu a mim este fato, o que fez com se afastasse de mim. Depois, voltamos às boas – ele, infelizmente, já enfermo. Não sei se Oswald pediu a minha exclusão do partido. Não vale a pena falar sobre este assunto”.

GMN: Mas ele pediu a exclusão do senhor do Partido Comunista ?

Jorge Amado: “Isso, se houve, não sei”.

GMN :Oswald de Andrade cita também o encontro que teve com o senhor e com um alemão na embaixada. O senhor se lembra ?

Jorge Amado: “Não”.

GMN :Ao se referir ao ato de escrever, o senhor já disse: “Quanto à escrita propriamente dita, aceito palpite”. O senhor aceita palpite de quem ?

Jorge Amado: “Quem palpita é Zélia ( Gattai ), porque vive ao meu lado. Sou mau datilógrafo. Só escrevo com dois dedos. Emendo muito. Hoje, escrevo e reescrevo. Quando jovem, emendava pouco. A gente vai perdendo aquele elan da juventude e vai ganhando experiência. A escrita, então, passa a ser sempre difícil. Você escreve e reescreve. Depois, quando parece que o texto ficou do meu agrado, Zélia bate à máquina uma cópia que ainda vou ler e reler. É aí que ela dá palpite. A partir de certo momento do livro, dou a ler a meu irmão James Amado, uma opinião que levo em conta. E ele lê – e palpita”.

GMN :Não é uma contradição o mais famoso escritor brasileiro dizer que escreve “mal” , como o senhor diz?

Jorge Amado: “Para começar, sou contra este tipo de qualificativo – “o mais”, “o maior”. É difícil dizer quem é “o mais”, “o maior”, “o melhor”. Há os que são bons. Outros são ótimos. Não sou uma pessoa que se considere isso ou aquilo. Não sei que adjetivo usar, mas sou bastante modesto, humilde e crítico a meu respeito. Há uma pergunta que - adiante – você já não me fará. É esta: “E o Prêmio Nobel ? Você não acha que vai ganhar ?”. Por que eu haveria de ter ? Nunca esperei. Desejar é outra coisa. Aspirar é outra coisa. Aliás, nunca aspirei a prêmio nenhum. Nunca lutei por nenhum prêmio. Nunca fui candidato. Quem deve ganhar os prêmios é o livro, não o autor. Uma das coisas mais tristes da vida literária é ver um sujeito cavando um prêmio. É um horror. Quando me dão, fico satisfeito. Eu me admiro por que é que haveria de ganhar o Prêmio Nobel. É um prêmio para grandes, grandes escritores. Não me considero como tal”.

GMN: O senhor acha que escreve mal de verdade ?

Jorge Amado: “Eu escrevo muito mal”.

GMN: Que reparos, então, o senhor faz a seus textos ?

Jorge Amado: “A crítica faz tantos reparos….Não sou um escritor que trabalha. Um crítico francês chamado Jean Rocha escreveu todo um livro sobre mim. Disse que escrevo bem. Não ouso fazer tal afirmação. Porque há os que dizem que não existe quem escreva pior do que eu. Sou um escritor que nunca teve a unanimidade da crítica. O País do Carnaval foi o meu único livro unanimemente elogiado. Eu era um menino…. (N: Quando terminou de escrever o livro, Jorge Amado tinha tinha 18 anos). Desde então, tenho levado pau. Nunca nenhum outro livro meu, a partir de então, recolheu unanimidade. A crítica sempre foi polêmica em torno do meu trabalho. Também sou uma negação como contista. O que aparece como conto meu por aí é sobra de romance, coisas que não foram adiante ou que não usei”.

GMN : Escrever, para o senhor, é uma necessidade física ? Em algum momento, o senhor já admitiu a possibilidade de deixar de escrever ?

Jorge Amado: “Sempre penso, com grande desejo, em não fazer nada. Minha tendência é vagabundar, andar, ver pessoas e coisas, ler livros. Mas sempre o livro se impõe a mim. Já há algum tempo, estou resistindo a ir para a máquina de escrever, pela terceira vez, para tentar escrever um livro chamado Bóris, o Vermelho. Em 1984, minha filha morava no Maranhão. Viajei até lá para, um pouco escondido, tentar escrever Bóris. Acabei começando um livro chamado Tocaia Grande, concluído dois anos depois. O livro foi escrito em várias casas no Brasil. Fiquei fugindo de uma para outra- só que me descobriam. Vim em 1987 para Paris, para tentar escrever Bóris. Mas escrevi O Sumiço da Santa, porque descobri que nunca tinha feito um livro sobre sincretismo cultural e religioso, algo que é presente na maioria dos meus romances, mas nunca como tema central. Não pude escrever Bóris porque a estrutura da narrativa não estava suficientemente madura na minha cabeça.

Vou ter de explicar a você a minha forma de trabalhar: quando tenho a ideia de um livro, trato de amadurecê-la na cabeça, antes de ir para a máquina - mas não no sentido do que seria a história do livro. Não sei contar uma história. Minha mulher senta com os netos e conta uma história que eu mesmo ouço com imenso prazer. Zélia inventa. Já eu sou incapaz. O enredo – ou a história dos meus livros – decorre dos personagens. Porque os personagens é que os fazem. Nunca sei, hoje, o que vai acontecer no dia dee amanhã com a história. Os personagens é que vão construindo a história aos poucos. Um personagem que coloco ali, por uma necessidade técnica, por um detalhe, de repente vive e cresce. A história decorre dos personagens. É uma coisa vivida, em vez de ser inventada. Nunca penso em termos de história. Penso, sim, em figuras, em ambientes e em como será a arquitetura da narrativa. Busco encontrar o começo. Porque o começo do livro é que é difícil – exatamente porque não sei contar uma história. Não tenho a invenção da história. É difícil. Preciso que os personagens comecem a ficar de pé – e a andar com seus pés, para que a história também ande. Duas vezes pensei que Bóris estivesse maduro. Quando fui para a máquina, vi que não era o que queria.

O que quero fazer, no livro, é o perfil de um jovem brasileiro entre 18 e 20 anos na década de 70. É apenas um jovem. Mas as circunstâncias da vida política brasileira na época – uma ditadura militar, com tudo o que ela representava – levam a que ele desempenhe um determinado papel que não sei exatamente qual é. Isso virá. Não me amedronto, porque, quando escrevo, a história sempre vem”.

GMN: O senhor terminou de escrever o romance de estreia, O País do Carnaval, há exatamente 60 anos, em 1930. Tempos depois, chamou o livro de “um caderno de aprendiz”. Qual é o principal reparo que o Jorge Amado de 78 anos faz, hoje, ao Jorge Amado de 18 anos, como romancista ?

Jorge Amado: “O País do Carnaval e Cacau e Suor são cadernos de um aprendiz de romancista. O principal reparo que faço – sobretudo a O País do Carnaval – é que é um romance com bastante influência europeia. Sobre o romance pesa – e muito – uma visão europeia do Brasil. Eu era um menino influenciado, de um lado, pela leitura de uma literatura europeia, e, de outro, pelo Modernismo – que, apesar cultivar uma brasilidade e um lado nacionalista na Antropofagia, também tinha europeia, sobretudo da França e da Itália. As primeiras obras de Oswald de Andrade, como Os Condenados, são bastante influenciadas por D`Annunzio. O meu é um livro europeizante – de certa maneira”.

GMN: Curiosamente, o personagem principal do livro chega da Europa e volta para lá…

Jorge Amado: “O personagem passa pelo Brasil. A tradução francesa de O País do Carnaval só foi feita agora pela Editora Gallimard, sessenta anos depois da publicação. Nunca permiti a tradução de O País do Carnaval até há póucos anos. Quando completei setenta e cinco anos, um dos meus editores italianos fez uma tradução do livro – na verdade, uma edição especial, quase universitária, com estudos. Era uma homenagem aos setenta e cinco anos, fora das coleções normais. Não pude impedir a tradução. A partir daí é que a Gallimard comprou os direitos da tradução em francês. São as duas únicas línguas em que foi traduzido. Com a tradução francesa, recebi, há poucos dias, um telefonema de uma editora dos Estados Unidos que quer comprar O País do Carnaval. Não decidi ainda se aceitarei ou não”.

GMN: Por que o senhor – que conheceu grandes figuras da literatura e da política do mundo inteiro - nunca se animou a escrever uma autobiografia ?

Jorge Amado: “Prefiro escrever romance. Enquanto eu puder trabalhar numa obra de criação, acho preferível. Quando sentir que já não posso, quem sabe eu me volte para uma autobiografia. Mas não é algo que me tente”.

GMN: O senhor não dá importância a depoimentos históricos de escritores ?

Jorge Amado: “Gosto de ler biografias e memórias – com prazer. Não incluo nos meus projetos, por ora, escrever minha autobiografia. Mas quem sabe?”.

GMN : Nélson Rodrigues disse que, se algum dia alguém fosse escrever um verbete sobre ele, bastaria redigir uma frase : “Nélson Rodrigues – também conhecido como flor da obsessão”. Se o senhor fosse escrever um verbete sobre Jorge Amado, quais palavras usaria ? Como é que o senhor gostaria de ser lembrado daqui a 50 anos numa enciclopédia ?

Jorge Amado : “Um baiano romântico e sensual. Eu me pareço com meus personagens - às vezes, também com as mulheres”.

(Entrevista gravada em 1990)

Posted by geneton at 01:05 PM

julho 02, 2012

CARLOS EUGÊNIO PAZ, O CLEMENTE

A INCRÍVEL HISTÓRIA DO GUERRILHEIRO QUE RECRUTOU A MÃE PARA A LUTA ARMADA, PARTICIPOU DE “JUSTIÇAMENTO” E DEU AULA DE MÚSICA A CRIANÇAS: É HORA DE “JOGAR LUZ” NOS PORÕES

O último comandante militar do grupo guerrilheiro ALN faz confissão sobre execução de companheiro porque acha que é hora de todos os lados envolvidos na luta armada virem a público dizer o que aconteceu nos “porões”.

Um dos principais personagens da luta armada contra a ditadura militar confessou, diante das câmeras da Globonews, ter participado pessoalmente da execução de um companheiro - um integrante da chamada “coordenação nacional” da Ação Libertadora Nacional (ALN) que caíra em desgraça junto ao comando da organização.

Em declarações anteriores, o ex-guerrilheiro admitira que tinha participado da reunião do “Tribunal Revolucionário” que selara a execução. Mas nunca tinha admitido ter sido um dos executores da sentença.

O cenário da confissão foi o estúdio G da TV Globo, no Jardim Botânico, durante a gravação de um depoimento para o programa Dossiê Globonews (a entrevista completa vai ser reexibida neste domingo, às 17:05). O autor da declaração: Carlos Eugênio Paz, o Clemente, comandante militar da Ação Libertadora Nacional, organização criada por Carlos Marighella para combater, com armas, o regime militar.

Primeiro, Carlos Eugênio Paz falou genericamente sobre a decisão “colegiada”. Depois, ao ser perguntado pela terceira vez se tinha participado diretamente da execução, respondeu:

- É uma informação quer até hoje não dei. Você está perguntando. A verdade verdadeira é que não dei porque ninguém teve esta atitude de me perguntar diretamente. Participei – sim – da ação. Um comando de quatro companheiros participou. Não fui sozinho. Os outros três estão mortos. A execução foi feita a tiros, numa rua, nos Jardins, em São Paulo, no dia 23 de março de 1971. Tomamos aquela decisão coletivamente. Era uma decisão de organização. Não assumo sozinho. Não sou maluco, não sou louco de decidir uma coisa dessa sozinho. Isso é uma direção. A ALN considerou que ele passava a ser um perigo para a própria organização,porque era dirigente, pela quantidade de informações que ele tinha e pelo fato de que estava abandonando companheiros à própria sorte num combate. É essa a questão.

Ao quebrar um voto de silêncio que deveria durar até a morte, Carlos Eugenio Paz diz que quer dar o exemplo nestes tempos de Comissão da Verdade: se um ex-guerrilheiro confessa participação num ato “nada glorioso”, militares envolvidos em atos violentos deveriam, também, vir a público para relatar o que ocorreu nos “porões”:

- Enquanto as duas partes não falarem abertamente, vai se ficar jogando tudo para baixo do tapete. Faço uma exortação: eu estou aqui contando tudo. Conto o que dá glória e o que não dá glória. O nosso lado foi todo investigado. O que não foi investigado é: onde está Paulo de Tarso Celestino – da ALN ? Onde está Jonas? Cadê o corpo de Jonas ? ( Preso por agentes do Doi-Codi no Rio de Janeiro, em 12 de julho de 1971, o advogado Paulo de Tarso Celestino, que militava na ALN, desapareceu desde então. O ex-operário Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, um dos chefes da ALN, comandou em setembro de 1969 o operação de seqüestro do embaixador americano. Preso três semanas depois, entrou para a lista dos desaparecidos políticos). Evidentemente, mataram. Mas por que mataram ? Onde mataram ? Quem matou ? Onde está ? Isso nos importa. Porque os livros de História precisam ter estas lacunas preenchidas. Você não pode entrar na História, causar tudo o que causamos e, depois, não querer assumir as coisas. Eu assumo! Como não temos vergonha do que fizemos, contamos.

A confissão do ex-comandante militar da ALN significa, na prática, que uma cena ocorrida no dia 23 de março de 1971, na rua Caçapava, na Consolação, em São Paulo, finalmente ganhou um desfecho – quarenta e um anos depois. Naquele dia, um comando da ALN formou uma expedição punitiva para executar a tiros o militante Márcio Leite de Toledo. Ex-estudante de sociologia de vinte e seis anos de idade, Toledo tinha sido enviado a Cuba para treinar guerrilha. Voltou, clandestino, ao Brasil.

A volta coincidiu com a morte de dirigentes da ALN, capturados pelos órgãos de segurança. Márcio se tornou, então, uma espécie de dissidente dentro da organização. Tinha dúvidas sobre se a tática de luta da ALN era correta. Resultado: reunido, o comando da ALN decidiu que Toledo passara a ser um perigo para a organização. Se desertasse, levaria consigo todos os segredos sobre as táticas de luta, identidade dos militantes e planos da ALN.

A decisão extrema foi tomada: Mário seria executado. Um encontro foi marcado para a rua Caçapava. Quando chegou ao local, Márcio Toledo Leite foi surpreendido pelo comando da ALN – que abriu fogo contra ele. Panfletos deixados no local diziam que a ALN, “uma organização revolucionária em guerra declarada, não pode permitir uma defecção desse grau em suas fileiras”.

Clemente-11-300x139.jpg "Clemente": biografia agitada ( Foto: Jorge Mansur )

Os executores da sentença de morte selaram, desde então, um pacto de silêncio:

- “Um comando é designado. Os componentes fazem pacto de silêncio. O ato mais polêmico da história da ALN é cometido (…). É uma ação de sobrevivência, não nos trará glórias nem conseguiremos jamais saber se foi ou não acertada, simplesmente os tempos exigem” – escreveria Carlos Eugênio em suas “memórias romanceadas” – o livro Viagem à Luta Armada.

Numa declaração ao Fantástico,em 1996, ele finalmente reconheceria que a morte de Márcio Toledo foi “um erro”, mas não admitiu a participação direta na execução:

- O comando de quatro pessoas tomou a decisão de manter o segredo até a morte.


MISSÃO: SEQUESTRAR O COMANDANTE DO II EXÉRCITO

“Clemente” é o único sobrevivente do comando da ALN. Todos os outros estão mortos. Carlos Eugênio – que adotou como nome de guerra o sobrenome de um ex-jogador do Corinthians e do Bangu, Ari Clemente – diz, na entrevista, que um dos mais ousados ataques da ALN chegou a ser parcialmente executado, em São Paulo: nada menos que o sequestro do comandante do II Exército, general Humberto de Souza Melo, um militar de “linha dura”. O ataque não chegou a ser noticiado pelos jornais, então submetidos à censura. A guerrilha nunca tinha tentado seqüestrar um militar de alta patente.O comando da ALN decidiu, no início de 1971, que a hora tinha chegado.

A ALN descobriu que o comandante do II Exército frequentava uma igreja batista na rua Joaquim Távora, na Vila Mariana, em São Paulo. Um comando de dez guerrilheiros foi ao local. O que aconteceu foi uma cena digna de filme de Tarantino: guerrilheiros e agentes do DOI-CODI – uns apontando armas para os outros. Em meio a tudo, o comandante do II Exército, sob a mira do comandante Clemente:

-Eu estava com um fuzil. Nosso companheiro José Milton Barbosa estava com uma metralhadora alemã de nove milímetros. Chegamos a render o general na porta da igreja. Neste momento, chega uma patrulha do DOi-CODI. Ficou o general – com uma pequena comitiva – na porta da Igreja. Nós, em volta do general. E os agentes do DOI-CODI em volta da gente. Houve um “cerco dentro do cerco”. E ainda havia outro carro nosso – que estava apontando para o “cerco do cerco”. Eu disse ao general: “Aqui, vai morrer muita gente. Os agentes estão nos cercando. Mas nós estamos o cercando. Se algum tiro for disparado, a primeira rajada vai ser no peito do senhor! Vai ser um morticínio”. O general disse :”Não! Aqui, hoje, ninguém vai morrer!”.Começamos a recuar, mas sempre apontando as armas para ele. Fui o último a entrar no nosso carro – que partiu em disparada. Devo dizer que o general se portou como combatente.Há uma coisa que,nós, combatentes,prezamos: é o outro combatente se comportar como combatente. O general não demonstrou nervosismo.Neste dia, a gente salvou a vida de um bocado de gente – inclusive do general. Porque, se eles disparassem, nós iríamos disparar. O general ia morrer. Quem estava na comitiva morreria. E nós todos iríamos morrer também.

O CONSELHO DE MARIGHELLA: “UM COMANDANTE SÓ APRENDE A MANDAR QUANDO APRENDE A OBEDECER”

Carlos Eugênio cita três nomes que estavam na lista dos “sequestráveis” da ALN : o presidente do Bradesco, Amador Aguiar; o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo(Fiesp), Theobaldo De Nigris, além do presidente do grupo Ultra, Peri Igel:

-Tínhamos essa lista.Prefiro chamar de captura de agentes do inimigo, não de seqüestro.Jamais seqüestramos alguém para pedir dinheiro. Queríamos libertar nossos companheiros presos e torturados. Marighella definia muito bem: quem vai financiar nossa atuação é o capital financeiro. Não estamos tirando dinheiro do correntista. Estamos tirando dinheiro do dono do banco. Sempre foi assim. Assaltávamos bancos, expropriávamos dinheiro dos carros pagadores.

O envolvimento de Carlos Eugênio Paz, o “Clemente”, com a ALN começou cedíssimo. Aos dezessete anos de idade, ouviu a pregação de Carlos Marighella, pessoalmente. O fundador da ALN recomendou que ele servisse ao Exército no Forte de Copacabana. O conselho que recebeu de Marighella:

- Você não vai ao Exército para aprender a atirar. Porque aprender a atirar você pode aprender aqui mesmo. Quero que você vá lá para duas coisas. Primeiro: aprender a obedecer. A base de qualquer comando militar é assim: o comandante aprende a mandar quando aprende a obedecer. Um soldado disciplinado pode, então, se tornar um comandante de uma tropa de guerrilha. Você vai, primeiro, aprender a obedecer. Segundo: quero que você aprenda como raciocina um militar, para que você possa se transformar num quadro militar da guerrilha.

Assim foi feito. O alagoano radicado no Rio saiu de quartel sabendo o que é uma granada, um fuzil, uma metralhadora, uma pistola automática e o que significa hierarquia. Estava pronto para a guerrilha:

- “A direita jogou suas tropas na rua. A esquerda não jogou nada. Nossa geração queria reagir. Como é que os militares chegam, acabam com a liberdade, arrombam a porta do Palácio do Governo e do Congresso, saem cassando todo mundo ?”, diz ele. “Queríamos participar da resistência. Marighella foi o primeiro que lançou esta palavra de ordem: temos de resistir com as mesmas armas que eles usaram para tomar o poder. Ou seja: as armas de fogo. Temos de construir uma guerrilha urbana, uma guerrilha rural para derrubar a ditadura. Decidi que ia colocar minha juventude e minha vida sob o comando de Carlos Marighella(…) Qual foi o primeiro ato violento que foi feito dentro de nosso país, senão o dia 31 de março de 1964? Deram o primeiro tiro. Vi um general dizendo que nós é que demos. Não! Quem deu o primeiro tiro foram as Forças Armadas, no dia 31 de março de 1964”.

O “TRIBUNAL REVOLUCIONÁRIO” CONDENA O EMPRESÁRIO

Em outro ponto da entrevista, Carlos Eugenio dá detalhes de outra decisão extrema tomada pela ALN: a execução do empresário Henning Albert Boilesen, morto a tiros na manhã do dia 15 de abril de 1971, na rua Barão de Capanema, nos Jardins, em São Paulo. Boilesen foi condenado por um “tribunal revolucionário” da ALN por ter financiado a Operação Bandeirante,organização criada pelo II Exército em São Paulo para centralizar o combate à luta armada. Eugênio apertou o gatilho:

- Dirigi a ação. Fui autor do tiro de misericórdia. É o último tiro que é dado. Tínhamos testemunhas – vivas até hoje – que foram torturadas na frente de Boilesen. Não era um inocente. Não foi justiçado por ser empresário, mas por ser um quadro direto da repressão. Como tal, estava sujeito a sanções da guerra. Todos nós estávamos sujeitos a sanções. Boilensen também. E estas sanções,no caso de Boilesen, foram aplicadas. Eu estava sujeito também a sanções de guerra: quantas vezes não mandaram tiro em cima de mim ?

Nesta altura do depoimento, o ex-comandante militar da ALN faz a lista das “marcas da guerra”:

- Pegaram a minha mãe em 1974, em São Paulo : ela passou um mês torturada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Minha irmã foi torturada. Minha companheira que tive na vida, Ana Maria Nacinovic, foi fuzilada na luta armada, quando saía de um restaurante. Com todas essas pessoas que iam morrendo, eu morria junto também. E tinha as mortes que cometi. Veja o prejuízo que o golpe de Estado de 1964 causou: fez com que brasileiros e brasileiras tivessem de participar de um aluta fraticida. Alguém acha que estávamos ali porque gostávamos de ficar dando tiro nos outros ?

O ex-comandante militar da ALN é um caso único na história da luta armada: recrutou a própria mãe para a guerrilha. Maria da Conceição Coelho da Paz terminou entrando para a ALN. Tinha 49 anos de idade. Adotou o codinome de Joana. Passou dois em Cuba treinando enfermagem. Iria atuar como enfermeira dos guerrilheiros no Brasil. De volta ao Brasil, terminou presa e torturada, em São Paulo, para dizer onde o filho estava. Não disse. A essa altura, Carlos Eugênio já estava fora do país. Tempos depois,em Paris, disse que uma mãe não entrega um filho. Ficou com sequelas nas mãos, resultado da tortura. A cabeça de Carlos Eugênio valia ouro para os órgãos de segurança. O silêncio da mãe de Eugenio valia ouro para a guerrilha. A “Joana da ALN” morreu aos 79 anos, em 2000.

Carlos Eugênio Paz não chegou a ser preso. Conseguiu sair do Brasil pela fronteira com a Argentina. Usou, na identidade falsa providenciada pela ALN, o mais banal dos nomes: João José da Silva. Tremeu nas bases quando viu o próprio rosto estampado num cartão de “Procurados” colado na parede do posto da Polícia Federal na estação rodoviária. Mas o agente que o atendeu não notou que aquele João José Silva era Carlos Eugênio Paz. “João José” passou pela Argentina, pelo Chile,por Cuba, pela Rússia e pela Tchecoslováquia, até desembarcar em Paris.

Em Cuba, o comandante militar da ALN viu um general chamado Arnaldo Ochoa estender um mapa em cima da mesa e mostrar o plano de trazer para o Brasil um navio lotado de guerrilheiros cubanos. Eugênio recusou a oferta. Disse que a ALN, organização que carregava a palavra “nacional” no nome, não iria internacionalizar a luta armada.

Ao descobrir que a guerrilha estava sofrendo um golpe atrás do outro, o então comandante militar da ALN desistiu de voltar para o país. Passaria oito anos em Paris,refugiado. Terminou condenado, à revelia, a 124 anos de prisão, por crimes contra a segurança nacional. Eugênio calcula em cerca de oito o número de militares mortos nas ações de que participou.

De volta ao Brasil em 1981,o ex-guerrilheiro arranjou um ocupação improvável, ao percorrer os anúncios classificados de um jornal em busca de trabalho: virou professor de música de crianças na creche Acalanto, na rua Visconde de Caravelas,em Botafogo. Depois, deu aulas de música na Escola Parque, na Gávea. Abriu um curso em Ipanema. Toca violão, piano e baixo. Tinha estudado música quando criança. Considerado desertor do exército, requereu, junto à Comissão de Anistia, a reintegração nas forças armadas. Conseguiu. A portaria do Ministério da Justiça que reintegra Clemente ao Exército foi publicada no dia três de fevereiro de 2010. Hoje, é terceiro-sargento do Exército – inativo, obviamente. Precisou de dez anos de psicanálise para conviver com as “marcas da luta”. Não é tarefa para amadores. Tinha interrompido as sessões, mas retomou, há pouco. Aos 61 anos de idade, vive com a mulher no interior do Rio. Pretende, em breve, publicar um novo livro. É personagem de um documentário que, se tudo der certo, deve chegar às telas no ano que vem. Teve um enfarte, mas foi salvo por uma angioplastia, em outubro de 1988. Ainda assim, voltou a fumar, desbragadamente. Ao final da entrevista, fumou três cigarros- um atrás do outro, sem intervalo. Em troca de e-mails com o repórter, assina o nome que usava nos tempos da guerrilha: Clemente. É como se quisesse dizer: Carlos Eugênio ainda é Clemente. E Clemente nunca deixou de ser Carlos Eugênio.

(*) Trechos desta matéria foram publicados na edição desta segunda-feira de O GLOBO

Posted by geneton at 12:14 PM

junho 09, 2012

IVAN LESSA

A TAXA DE MEDIOCRIDADE ACABA DE DAR UM SALTO :IVAN LESSA SAIU DE CENA. E, COM ELE, UM BRASIL QUE ELE CRIOU, EM LONDRES, PARA CONSUMO PRÓPRIO

O Brasil deu um novo passo em direção à mediocrização ampla,geral e irrestrita : o coração de Ivan Lessa parou de bater, em Londres. Ivan Lessa saiu do Brasil no fim dos anos sessenta. Passou as décadas seguintes sem por os pés na ex-Terra de Santa Cruz. Ainda assim, mantinha uma relação absoluta com o país. Ivan Lessa convivia com um país que, provavelmente, só existia na imaginação de Ivan Lessa : um Brasil que que tinha com fronteiras a Ipanema dos anos sessenta e a Copacabana dos anos cinquenta. Eis aí a beleza da atitude de Ivan Lessa : uma bela saída para o absurdo da vida talvez seja criar países imaginários e cultivá-los com todo cuidado por décadas a fio. De resto, Ivan Lessa era o avesso de tudo o que pode haver de risível em intelectuais e jornalistas: a taxa de pretensão, pompa e empáfia circulando na corrente sanguínea de Mr. Lessa era zero. Aos que nasceram ontem: Ivan Lessa foi um talento reluzente na geração que criou um jornaleco que influenciaria as gerações seguintes: o Pasquim. Os textos de Ivan Lessa eram “inlargáveis”: quem começava ia até o fim. Era um espírito independente. Não seguia a boiada. Não implorava por aplausos. Escrevia estupidamente bem. O lamentável é escrever sobre ele no passado. C´est la vie.

Aqui, uma entrevista ( extensa ) que fiz com o homem:

O DECÁLOGO DE IVAN LESSA:

1.‘’EU ESTOU POR FORA DE ORIXÁ, ARAÇÁ AZUL, ODARA E MANDACARU VERMELHO !’’.

2.‘’O BRASIL DEVERIA ESQUECER O CINEMA. SOMOS RUINS’’.

3.‘’PATETA, MICKEY E O PATO DONALD SÃO VIZINHOS MELHORES DO QUE O PESSOAL QUE INFESTA A BARRA DA TIJUCA’’

4.‘’NÃO HÁ MOTIVO ALGUM PARA NOS SENTIRMOS À VONTADE DO MUNDO !. OS ALIENÍGENAS SOMOS NÓS’’

5.‘’ O CALOR DÁ SONO. O FRIO ME CIVILIZA’’

6.’ ’NÃO QUERO ENTRAR COM MEU PLANGENTE VIOLÃO DO SAUDOSISMO, MAS O NOSSO JORNALISMO PIOROU. MUITO MESMO’’.

7. ‘’SEMPRE FUI MUITO MAIS VELHO E MUITO MAIS CÉTICO QUE PAULO FRANCIS’’.

8.‘’AINDA ESTOU MOÇO. SÓ TENHO 64 ANOS.PODE SER QUE A DEPRESSAO AINDA VENHA’’.

9.’’O QUE ACHO TRISTE É’ O FATO DE O MEU LIVRO SAIR !’’.

10.’’UMA DAS VANTAGENS DE ESTAR FORA É QUE SÓ RECEBO O DISCO DE CAETANO VELOSO : NÃO SOU OBRIGADO A OUVIR AQUELAS TOLICES ENORMES E AQUELAS BOBAJADAS DAS ENTREVISTAS’’

Atenção, arrivistas, subliteratos, emergentes, poetastros, politiqueiros, novos ricos, velhos baianos e poderosos em geral : já podeis respirar aliviados. Porque uma das mais ferinas penas já surgidas sob o sol da ex-Terra de Vera Cruz acaba de confessar, sem pompa nem solenidade : não voltará jamais ao Brasil. Acabou. Já era. Bye,bye Brasil – dessa vez é para sempre .O nome da fera ? Ivan Lessa, claro. A confissão foi feita em Londres.(Que confissão ? Que pompa ? Que Londres ? Que Brasil ? – perguntará, em silêncio, nosso inquieto personagem, enquanto caminha,circunspecto,por suas florestas interiores).
Que ninguém pense que Mister Lessa – uma das mais reluzentes estrelas de uma geração marcada por monumentos jornalísticos do porte de Paulo Francis e Millôr Fernandes – foi acometido por algum surto extemporâneo de antibrasileirice aguda. Pelo contrário. Longe do país há ininterruptos vinte e um anos, desde que trocou o sol escandaloso do Rio de Janeiro pelo cinza made in Britain, Ivan Lessa cultua ,a distância, suas paixões brasileiras. Todo dia dá uma navegada na Internet à procura de notícias da pátria-amada-idolatrada-salve-salve.É especialista em MPB. Provocado,é capaz de recitar horas sobre os tempos (áureos ? prateados ?) em que as ondas da Rádio Nacional embalavam o Gigante-pela-própria-natureza, ali pelos anos quarenta, cinquenta. (Que sol escandaloso ? Que cinza ? Que navegada ? Que gigante ? Leave me alone ! Deixem-me em paz ! – repetirá, levemente irritado, enquanto desliza pelos corredores da estação de Holborn).

Todo dia sai de casa, em Londres, para cumprir expediente no Servico Brasileiro da BBC. Depois de 7.665 dias sem rever o Brasil, deu-se conta de que não, não planeja voltar – nem em sonho. Deve estar, intimamente, se perguntando, como o poeta Drummond no verso famoso : ‘’Nenhum Brasil existe. E acaso existirão oa brasileiros ? ‘’. Mas o Brasil de Ivan Lessa existe,sim : é pessoal e intransferível. Dispensa o contato físico. (Que 7.665 dias ? Que sonho ? Que Brasil ? Que contato ? Leave me alone,please ! – bradará, por seus alto-falantes internos, enquanto passa a vista pela primeira página do Financial Times).

Uma vez por ano,Mister Lessa vai passar férias com a mãe, a cronista Elsie Lessa,em Portugal. A ponte aérea Londres-Lisboa, com eventuais escalas em Paris,lhe basta.

A visão de Ivan Lessa dedicado a fazer transmissões radiofônicas de Londres para o Brasil desperta uma dúvida inevitável : não será um caso escandaloso de desperdício de talento ? Quem conhece um ouvinte regular das transmissões da BBC, em português, para o Brasil ? Cartas à redação. Em todo caso,o sentimento de desperdício pode ser parcialmente atenuado : graças ao zelo da mãe – que guardou os originais das crônicas - e à dedicacao de uma colega de trabalho – que organizou o volume – os leitores saudosos do Ivan Lessa dos tempos do Pasquim ganharam de presente um volume de crônicas,’’Ivan Vê o Mundo’’.

Aos 64 anos, amarga ,sem dramatizar, a ausência da alma gêmea, Paulo Francis .’’Eu estou tendo agora de lidar com um buraco enorme chamado Paulo Francis, que, de repente, sem mais nem menos, se abriu diante de mim. O estrangeiro é espantosamente real, irreversível. Não me há mais Brasil. Fim de papo.Não tem mais ninguém do outro lado da linha’’ – escreveu na revista ‘’Veja’’ nos dias seguintes à morte do amigo de quase cinco décadas.

Senhoras e senhores : com a palavra,Mister Lessa - ferino,inquieto,irônico,brasileiro como nunca.
(Que zelo ? Que desperdício ? Que alma gêmea ? Que brasileiro ? Um Valium,urgente ! – murmurará,enquanto se mistura,anônimo,aos frequentadores das livrarias da Charing Cross Road).

1-Você diz numa crônica que o mundo é um lugar estrangeiro,’’assim que a gente bota os pés na rua, fora de casa’’.O sentimento de estranheza diante do mundo é indispensavel á vida intelectual ou é algo que você sempre teve ?

Ivan Lessa : ‘’Você me faz ficar sério…A gente vai ao Camus, a ‘’O Estrangeiro’’, o encontro com o outro. Mas olhe aqui : nasci em Sao Paulo; garoto ainda, a primeira vez que entrei em colégio foi nos Estados Unidos; quando voltei, fui para o Rio.Depois, garotao ainda, fui para Paris. Isso nao quer dizer nada, era viagem. Mas acho, sim, que o homem é estranho na terra. Deve manter, por uma questão de saúde mental, essa sensação de ser um estrangeiro aqui, no meio de árvores, pedras e seja lá o que for. Os alienígenas somos nós ! É isso mesmo, é isso mesmo : manter a sensação de ser um estrangeiro tem um lado muito saudável. Nao há motivo nenhum para vocè ficar muito à vontade no mundo ! Não há motivo para que se diga ‘’estou à vontade’’. Não,não. Fique com uma certa timidez. Isso é bom : manter uma certa distância’’.

2- A essa altura,a ausência prolongada do Brasil (vinte e um anos) ja se transformou num acontecimento importante em sua biografia. Nâo vou perguntar por que é que você passou tanto tempo sem ir ao Brasil…

Ivan Lessa(interrompendo): ‘’Que bom ! ‘’.

Mas vou perguntar : você planeja voltar um dia ?

Ivan Lessa : ‘’Nao planejo, não planejo mesmo ! Nao digo que não, porque aí parece implicancia. Mas simplesmente nao e’ algo que esteja em meus planos.O que planejo é passar novamente as minhas férias de julho, no ano que vem, em Portugal, porque tenho um apartamento lá. É uma coisa de rotina. Sou rotineiro. Gosto de rotina porque a rotina me ajuda a me situar no mundo e a me sentir menos estrangeiro. Eu sei que, em novembro, darei uma chegada a Paris. Disso tudo eu sei porque são meus planos. Mas voltar ao Brasil nao está nos meus planos, simplesmente. Nisso não vai birra nenhuma, querela nenhuma, disputa nenhuma. Não estou reclamando da acústica da plateia, ao contrário de Joao Gilberto…’’.

3- Sao irritantes para você essas teorias que se fazem sobre ‘’por que é que Ivan Lessa não volta ao Brasil’’ ? O motivo pode ser pessoal : a mãe mora em Portugal, você vai passar as férias lá e ponto final…

Ivan Lessa : ‘’Sou ruim de numero. Quantos são na diáspora brasileira ? Nós, que estamos no estrangeiro ? Quantos somos nós, agora ? Há um milhão de brasileiros no estrangeiro ? Então, pergunta a eles também ! Não estou sendo desaforado com você - e você sabe que não. Sou apenas um imigrante a mais que foi tentar uma vida melhorzinha no estrangeiro. Ponto’’.

4- Uma das coisas que o fizeram sair do Brasil foi a mania do brasileiro de assoviar dentro do elevador.Qual é a outra mania brasileira que lhe ‘’dá nos nervos’’,como voce gosta de dizer ?

Ivan Lessa : ‘’Informalidade ! Pra resumir numa frase : pegar na gente.Você sabe o que é que quero dizer ? Inglês não pega em você!. Mas se você me encontra ou se eu encontro você na rua e eu digo ‘’Olá, Geneton, como é que vai ?…’’ e fico pegando, fico catucando…É como aquele camarada que, ao falar com você, cola a boca no seu ouvido, como se você fosse surdo. Dá para fazer toda uma galeria de tipos desagradáveis, num plano leviano…’’.

O inglês se limita a um aperto de mão, na primeira vez…

Ivan Lessa : ‘’Uma apresentaçâo,um aperto de mão, como diz o samba de Francisco Alves. Mas às vezes apertam a mão outra vez, quando veem você novamente. Francês é que aperta a mão o tempo todo. É um motivo para não ir muito à França. Se eu trabalhasse com você num escritório e todo dia apertasse a sua mão na hora de chegar e na hora de ir embora…Há uma certa pegação. E essa pegação pode ser transcendental : podem querer pegar na sua alma também ! Pegar no seu pé, pegar na sua alma, você pode estender a metáfora’’.

Uma das coisas que falam -bem- do brasileiro é esta efusao…

Ivan Lessa : ‘’Nunca vi ninguém falar bem ! Nao estamos saindo com as mesmas pessoas…’’.

Quando comparam o brasileiro com estrangeiro…

Ivan Lessa(interrompendo) : ‘’Mas efusão para mim é barulho ! Um dos motivos por que saí -mesmo ! mesmo ! – é que eu nao podia nem conversar na sala com um amigo quando morava no decimo-primeiro andar na avenida Atlântica,esquina com a rua Bolívar,no Rio, em cima de um bar chamado, veja você,Transa ! Isso que você chama de ‘’animação’’…Lúcio Alves ia cantar lá em casa, eu tinha de fechar as janelas por causa do barulho – que criava um ‘’funil acústico’’ capaz de enloquecer qualquer João Gilberto ! E sem ter um Caetano para mediar !’‘ (Ivan Lessa se refere ao episodio da vaia sofrida por Joao Gilberto na inauguração de uma casa de espetáculos em São Paulo, num show em que Caetano tentou conter a reação da plateia).

5- De que maneira voce detectou, fora do Brasil,uma piora nos modos do brasileiro ? Isso foi através do telefone ?

Ivan Lessa : ‘‘Nestas novas geraçôes de brasileiros com quem vou me encontrando por um motivo ou por outro, noto, cada vez mais, um excesso de informalidade. O cara que assoviava no elevador -e me irritava – hoje piorou muito mais. Hoje em dia, ele já entra assoviando dentro da minha alma, não apenas no elevador’’.

6- A vaia a Joao Gilberto criou um certo escândalo, porque abriu um precedente : um monumento da MPB levando uma vaia durante um show. Isso assustou você ? Em que situação voce justitificaria uma vaia a esses monumentos da MPB ?

Ivan Lessa :’’Não me assustou. Com todos ‘’esses’’e ‘’erres’’,não. Em 1958,eu,com vinte e tres anos,economizo meu dinheiro para ir ver Billy Eckstine cantar no Fredy’s, na esquina da avenida Princesa Isabel com Atlântica. Peguei uma mesa quase ao lado do palco. Entre mim e o palco, havia uma mesa com Abrahao Medina e Sônia Dutra. Nesta época, Abrahao Medina patrocinava nada mais, nada menos que o programa ‘’Noite de Gala’’,em que Billy Eckstine iria se apresentar na segunda-feira. Eles falaram o tempo todo ! Billy Eckstine,então, parou de cantar e pediu para eles calarem. Delicadamente. Eu estava ali vendo o Billy Eckstine fazendo aquilo, porque a importancia de Billy Eckstein para mim é uma loucura.Para quem tem vinte e tres anos e economizou para ver o show…Ele estava cantando ‘’Blue Moon’’. Se em 1958 este era o comportamento da plateia com um astro internacional, por que é que vão interromper o papo para um sujeito chamado João cantar ou tocar violão ? Nós somos muito mal-educados ! É o negócio do cara que entra assoviando no elevador. Hà gente que não assovia no elevador, só assovia no show de João…’’.

Caetano Veloso deu, depois, uma entrevista irritada dizendo que eram cinquenta imbecis…..

Ivan Lessa(interrompendo) :’’Deu uma entrevista irritada, mas era uma daquelas falas demagogicas dele. Disse que os que vaiavam ‘’não me estão no coracao’’ ou algo assim. Em vez de chamar de filhos da puta ! Rodou a baiana, mas rodou muito mal pra cima deles. Deveria ter dito assim :’’Respeitem ! Joao está reclamando da acústica ! Parem de fazer barulho!’’- e não ficar falando ‘’meu coração não se alegra…’’. Não ! Respeitem o artista, deixem-no cantar, mesmo que fosse uma merda ! Mas deixem que ele cante! Fiquem quietos por cinco minutos. Não demora mais do que cinco minutos uma música !’’.

Um caso que foi lembrado, porque envolvia gente da estatura de Joao Gilberto, foi a vaia que Tom Jobim e Chico Buaque levaram naquele festival em que cantaram ‘’Sabiá’’…

Ivan Lessa : ‘’Mas ali havia torcida, era festival no Maracanãzinho, povão, todos eles insuflados, incentivados pela Globo. Aquilo vai adquirindo um clima de Fla-Flu, coisa que não havia no Credicard Hall. Era um pessoal que pagou – ou não – apenas para ver um cantor. O pessoal,no Maracanãzinho, estava torcendo,’’eu torço por Tom Jobim’’…Não era o ano de Geraldo Vandré ? Ele todo de preto, naquela época só ele e o violao. Mas aí é pra torcer.Se você não torcer num Fla-Flu, se quer ficar sentadinho, deve ter algo de errado com você. É melhor vir para Londres, porra ! ‘’.

7- Quando publicou o primeiro romance,’’Cabeça de Papel’’, Paulo Francis ficou deprimido ao constatar a falta de repercussão cultural do que se faz no Brasil. Francis achava que o romance iria ter uma repercussão muito maior. Disse que ficou deprimido, deitado, olhando para o teto. Você tem também tem essa sensação ? Assim como Paulo Francis, você acha que o Brasil vive num ‘’sertão cultural’’ ?

Ivan Lessa : ‘’Francis era meio ingênuo em certos troços. Eu disse : ‘’Oh, rapaz, esse negócio de romance, livro, o pessoal fala pra burro, você dá entrevista de duas páginas pra Veja e pra Istoé, sai nos quatro jornais de sempre -Folha, Estadão, Globo e JB - e, depois, acabou ! É isso mesmo,porra !. Assim como aqui na Inglaterra, você vai e escreve um novo romance ! Investe mais dois anos nisso !’’.
Mas Francis não pegou isso. Nesse ponto, eu sempre fui muito mais velho e muito mais cético do que Francis : talvez por este motivo é que ele tenha ido para Nova Iorque e eu, para Londres’’.

…Paulo Francis teve sucesso como romancista…

Ivan Lessa : ‘’Mas ele tinha o ‘’post-romance-tristis…‘’. Adaptando o post-coitum tristis, é o que tinha. Ficava deprimido. Mas nâo penso em sertão cultural nenhum não. Eu acho que há sertão cultural sim, mas não por causa do livro de Francis. Ele estava partindo do livro que tinha lançado. Eu não tenho porra nenhuma. O que acho triste é o fato de o meu livro sair ! Fiz as crônicas na esperanca de que fossem se perder no éter…Nunca guardei cópia’’.

8-…Mas você nao guarda o que você escreve ?

Ivan Lessa : ‘’Não ! Quem guarda isso é mãe ,tia…”

9- Sua mae nao guarda ?

Ivan Lessa : ‘’…Mas essas crônicas so saíram porque minha mâe guardou ! Eu escrevi entre 1978 e 1992 para o serviço brasileiro da BBC. Revezava, nos primeiros anos, com Vamberto Morais. Num domingo era eu, no outro era ele.D epois, fiquei eu. Sao quatorze anos de crônica. Eu escrevia em casa, entrava no estúdio, gravava, botava aquela fita amarela no comeco e a vermelha no fim e deixava la numa caixa azul, com uma cópia para que o sujeito que fazia o transmissao da noite soubesse o começo e o tempo. Depois,alguém arquivava lá. Mas nunca guardei cópia pra mim. Um dia, uma secretária escocesa estava limpando la e me perguntou : ‘’Voce quer isso aqui ? ‘’. Era um punhado de crônicas, um cadernão daqueles grandes. Eu disse : quero. Por um acaso, era fim de ano, época em que minha mãe vem para cá, passar o Natal. Botei tudo dentro da pasta de trabalho, chguei em casa e disse : ‘’Elsie,voceê quer isso aqui ?’’.Entâo, ela levou tudo com ela,para Cascais,Portugal. Helena Carone – que estava preparando um livro baseado em contribuições que eu fazia sem script para a parte cultural das transmissões do servico brasileiro da BBC – iria fazer a transcriçao do que eu tinha falado com ela. Mas aí eu estava em Cascais, como todos os anos ,monotonamente, passando minhas férias, mexendo na caixa da Elsie depois do almoço. Terminei achando as crônicas. Desci, fui ao português lé de baixo tirar xerox do que sobrou.Desses quatorze anos, sobraram umas oitenta crônicas,só. Trouxe para cá.D essas oitenta, Helena selecionou quarenta. As menores, as que não chegam a uma página, evidentemente não eram crônicas : eram transcrições da minha colaboração com o programa cultural’’.

Numa gravacao que fez com voce,na BBC,Paulo Francis disse que,diante da sociedade de massas, filistina e medíocre, ele se sentia ‘’tecnicamente morto’’…

Ivan Lessa : ‘’Agora eu me lembro…’’…

10- Voce tem tambem essa sensacao de ser um peixe fora do aquário ?

Ivan Lessa : ‘’Absolutamente ! Absolutamente ! Talvez porque Francis vivesse muito mais no Brasil e dependendo do Brasil. Repare que o dinheiro de Francis vinha do Brasil. Entao, muito corretamente, ele tinha de ir lá para regar a flor da carreira dele. De seis em seis meses,F rancis estava no Brasil, não só para rever os amigos – e ele os tinha ,muitos – mas para se acertar com o pessoal da Folha e, depois,o Estadão. Francis ganhava em dólar, mas era dinheiro que deixava o país. Eu,não. Eu ganho aqui mesmo, em Londres. O dinheiro quem paga é o contribuinte britanico. A verba da BBC é do ministério do interior. Em resumo : o que quero dizer é que não tenho necessidade de regar a flor da minha profissão. Como ia ao Brasil, Fancis talvez sofresse com esse deslocamento. Dava o choque de ida e vinda .A cada vez que descia no Galeão, sentia uma emoção, possivelmente. A cada vez que descia no Aeroporto Kennedy de Nova Iorque, também.Eu, não .Meus aeroportos são o Charles De Gaulle, o de Heatrow e o da Portela, em Lisboa, onde me mexo mais’’.

Mas quando Francis se declarava ‘’tecnicamente morto’’ não estava se referindo apenas ao Brasil, mas a uma situação geral…

Ivan Lessa :’’Francis tinha uma variação nos ‘’moods’’. Eu não traduzi essa. Tinha as suas ruas. Como é que que se diz quando alguém sobe e baixa…’’

Era ciclotímico…

Ivan Lessa : ‘’Tecnicamente, era ciclotímico. Eu,não. Estou na média ponderada. Não sou muito entusiasmado, mas não tenho depressões, graças a Deus. Também estou muito moço ainda: só tenho sessenta e quatro anos. Pode ser que a depressão venha ainda’’.

Eu me lembro que você me disse uma vez que quer é ficar na arquibancada – olhando o jogo…

Ivan Lessa :’’Agora,nem na arquibancada ! Quero ver o jogo pela TV a cabo’’.

Em breve, a TV brasileira vai chegar à Inglaterra, por assinatura….

Ivan Lessa : ’’Tomei contato com o Brasil agora nas minhas férias em Portugal, porque tinha o GNT e o Canal Brasil.Vi filme que nao acabava mais. Tudo o que podia. Fico muito tempo em casa, na piscina. Depois que saio da piscina, entro no apartamento e faço questão de ver tanto a programação do GNT como, principalmente, os filmes. Honestamente, pra ver chanchadas, essa coisa toda,eu não morria de saudades. Nao tive surpresa nenhuma em constatar que eram muito ruins. Eu, na epoca, já achava ruim, mas via e gostava de ver. Já os filmes mais pretensiosos, esses foram uma luta para ver.Puta que o pariu! Eu acho que, em cinema, a gente é ruim. Cinema a gente deveria esquecer. Com uma exceção.Você vai brigar comigo : gostei muito de todos os filmes que vi do Julio Bressane.Vi ‘’Brás Cubas’’,’’Tabu’’,’’Matou a Familia e Foi ao Cinema’’ e ‘’Cara a Cara’’. Eu nao tinha visto quando estava no Brasil. Quando morava no Brasil, eu nao via filme brasileiro porque achava um saco. Gostei muito, achei muito pessoal’’.

Júlio Bressane tem um estilo…

Ivan Lessa : ‘’Exatamente ! Um estilo urbano,safado – de citação. Eu sinto que ele faz para seis pessoas, seis entendidos,no bom sentido’’.

Voce escreveu que aqui no Brasil são trinta pessoas vendo um o que o outro faz…

Ivan Lessa :’’Num artigo sobre 68, eu disse que eram quarenta pessoas fazendo coisas para quarenta pessoas assistirem : teatro, cinema, bossa-nova. Eram so quarenta pessoas. Aliás, eram quarenta fazendo e quarenta consumindo. De vez em quando,havia um troca-troca’’.

Um dos dos problemas do cinema é industrial. Se o Brasil nao tem uma indústria de ponta, não vai ter um cinema. Se você nâo tem equipamento de última geração, não vai fazer, porque cinema não cai do céu. Vai haver sempre um problema técnico…

Ivan Lessa :’’Isso tudo completa o que estamos falando. Nós estamos ligadíssimos a tudo o que é americano. Então, a narrativa vai ser a convencional americana, com comeco, meio e fim americano.Você pega um filme francês : eles tentam escapar. O nocivo que vem dos Estados Unidos nao é a Barra da Tijuca que sofre não. É o proprio Central do Brasil”.

11- O Brasil aparece como sonho ou como pesadelo em suas noites londrinas ?

Ivan Lessa : ‘’Estou fora do Brasil há vinte e um anos enfileirados. Mas sonho é sempre desinteressante, é sempre bobagem. De vez em quando é ruim, é pesadelo. Hoje, segunda, por exemplo, eu entro na Internet para imprimir colunas de Elio Gaspari, Carlos Heitor Cony, Janio de Freitas.Em resumo : passando os olhos, fico horrorizado com o Brasil. Claro que fico. Acho o jornalismo de muito baixa qualidade. O nosso jornalismo piorou muito.Muito mesmo. Não quero ai entrar com meu plangente violão do saudosismo, mas piorou mesmo. Quanto a sonho e pesadelo, digo o seguinte : até os dez, quinze anos de ausência do Brasil, um e outro ocontecem. Depois, quando voce completa dezoito anos fora,o Brasil fica longe, no tempo e no espaco.N esta hora,você tem de botar Einstein na equação, porque o negócio fica totalmente imponderável. O Brasil fica mais distante do que um assunto como o tráfico de escravos e a Grã-Bretanha, tema de um documentário que gravei em vídeo ontem e hoje na tv. Por incrivel que pareca, é um assunto que fica mais próximo de mim e dos problemas atuais que vivo no sentido de sair de casa, pegar o metro e ir para o trabalho’’.

12- Voce reclama de que o calor ‘’prega pecas em nossa sensibilidade,inteligencia e discernimento’’.Você faz alguma relação entre calor e incivilidade ? Historicamente, parece que existe alguma…

Ivan Lessa : ‘’O calor dá sono.Você dorme, fica de calção ou até pelado. Fica ali pelo Rio, dá uma porrada no peixe. Mas o frio obriga você a ter roupa, a sair para matar um urso. É mais complicado matar urso do que matar peixe.’’Matar urso’’ quer dizer fazer um guarda-roupa de inverno mais adequado. Com o frio,você tem de fazer casa, é obrigado a produzir calor. Não adianta estender a carne no sol- Pernambuco que me desculpe. Então,vou naquela que diz que o frio civiliza. Qual é o outro lugar comum ? ‘’Nunca houve uma civilização abaixo dos trópicos’’. Não discordo muito. A mim, pelo menos, num aspecto pessoal, o frio me civiliza’’.

Há o lado estético tambem : o frio obriga as pessoas a se vestirem melhor…

Ivan Lessa : ‘’Exatamente ! Eu,como estou engordando, disfarco melhor a barriga com roupa de frio….’’

13 – Você escreve que desenhos e caricaturas de seus amigos,pendurados na parede de casa,parecem dizer : ‘’era uma vez,era uma vez,era uma vez…’’. É natural achar o passado sempre mais interessante que o presente ?

Ivan Lessa : ‘’Nao é questao de ser interessante. Hà no livro – o que sobrou das crônicas que faco na BBC – um nítido saudosismo. Quem escreve crônica tem a tendência a se autobiografar, no sentido de se entender. Procuro evitar a babaquice, a nostalgia pela nostalgia, o saudosismo pelo saudosismo, mas é uma maneira de a gente se entender e se autobiografar. Todo mundo, numa certa altura da vida, quer se botar em ordem. Já que vimos, neste fim de milênio, que o sofá de Freud não deu certo, queremos nos botar em ordem, então.
Mas há um detalhe que acho importante na ligação com o passado. É uma coisa muito,mas muito importante mesmo. Poucas pessoas entenderam o que vou dizer agora : o passado não só ajuda você (nós, a gente, um povo) a se entender, mas também nos ajuda a compreender aquilo a que aspirávamos ! Isso é muito importante !. Se você pegar a arquitetura do Recife ou da Bahia ou do Rio ou de São Paulo,há uma aspiração ali ! Vamos para Brasilia : ha uma aspiração naquela arquitetura. Um dia,possivelmente, vão derrubá-la para fazer outra coisa em cima. Então,nao é endeusar o repertório de Orestes Barbosa ou de Noel Rosa… Aliás, devemos endeusar sem esquecer jamais que aquilo é uma contribuicao á cultura. Mas a conexão com o passado é tambem a conexão com a nossa aspiração como um povo,como um todo. O lugar comum é aquele : você vai ao passado para se entender. Mas é para entender aquilo a que a gente um dia aspirou,rapaz ! ‘’

Quem olhar para a Barra da Tijuca, daqui a trinta anos, vai ver que aquilo é uma copia de Miami. Hoje, então, existe um Brasil que aspira a ser Miami…

Ivan Lessa : ‘’Eu li, no New York Times, um artigo excelente sobre a Barra, escrito por um americano, dizendo exatamente isso. O autor do artigo vai enfileirando desde a arquitetura até os nomes dos lugares, feito este Credicard Hall. Eu acho até que ele errou um pouco, ao dizer que o Leblon e Ipanema estavam mais ligados à Franca. Dá como exemplo aqueles edificios do Sergio Dourado, já nos anos setenta, com nomes franceses.Mas ai ele errou, porque nossa influencia francesa é muito anterior, pode ser vista no Teatro Municipal – que é o Opera’’.

14 – Quando a Disneylandia Paris foi inaugurada, os franceses disseram que aquilo era o Chernobyl cultural. Ariano Suassuna escreveu que aquele era o maior monumento à imbecilidade humana.Você, que esteve lá ,concorda com essas duas avaliações ?

Ivan Lessa : ‘’Sem dúvida nenhuma ! Mas acontece que, como tudo o mais, vai ficando natural. Os japoneses devem ter ficado muito mais chocados que os franceses, mas aceitaram docilmente. Os franceses já aceitaram tambem. Devem rir um pouco das pessoas que vão lá. Mas acabam aceitando, como parte da paisagem .Hampstead,aqui em Londres, é um bairro metido a besta, intelctual, mais ou menos como Ipanema nos anos sessenta.Não tinha McDonald’s lá. Para conseguirem abrir um McDonald’s lá, foi uma luta. Então, fizeram uma fachada meio disfarcada, mas abriram um McDonald’s em Hampstead,sim.Você acaba aceitando.Vai em frente ! É a globalizacao,rapaz, a escrotidão ! É essa Barra da Tijuca. O artigo do New York Times lembra que a California também aparece na Barra da Tijuca’’.

E’ americana nesse sentido : para viver e se deslocar na Barra da Tujuca,você tem de ter carro…

Ivan Lessa : ‘’Como na costa oeste americana ! Se a polícia vê você andando, em Los Angeles ou Beverly Hills, ela para imediatamente para pedir documento. É o que estou dizendo : qual é a diferenca entre a Barra da Tijuca e a Disneylandia ? Apenas que a Disneylandia é mais organizada. Pateta, o camundongo Mickey e o Pato Donald sao vizinhos melhores do que o pessoal que infesta a Barra da Tijuca’’.

….Onde haverá uma replica da Estatua da Liberdade…

Ivan Lessa :’’A história da réplica da Estátua é que motivou a reportagem do New York Times…’’.

As agencias do Banco do Brasil exibem placas dizendo ‘’personal banking’’ junto dos caixas eletronicos. Sem patriotada : por que nao escrever em português ?

Ivan Lessa : ‘’Isso é grotesco. Eu abro o jornal. Todo mundo tem ‘’personal trainer’’. Não ! É demais ! Você aceita, na lingugem da economia, um ‘’over’’aqui,ou uma ‘’net’’, ou palavras como ‘’deletar’’. Mas o presidente da República falar em ‘’cenário’’ no sentido de hipótese,não ! Um absurdo ! A Academia Brasileira de Letras foi criada para proteger a língua e para ajudá-la a lidar com inovações. Então,ao invés de ficarem se premiando, deveriam dar uma mãozinha, porque supostamente são alfabetizados ! Não digo forçar a barra como os franceses tentaram, ao baixar uma lei para que quarenta por cento de toda música tocada tem de ser francesa…Computador na Franca é ‘’ordinateur’’. O software é ‘’logiciel’’. Pelo menos tentaram. E essas duas palavras pegaram.O aparelho de gravar é ‘‘magnetophone’’. O que quero dizer é o seguinte : deve haver um esforço no sentido de tentar traduzir. O jornalismo entra aí…’’.

Um deputado brasileiro vem tentando criar uma lei que limite o uso de expressoes inglesas em locais publicos…

Ivan Lessa : ‘’Nao dá. Legislar a lingua nao pode. A Academia Brasileira, já que é um dos poucos lugares onde há supostamente intelectuais reunidos, e com algum poder, poderia tentar sugerir. Antonio Houaiss não estava lá com um projeto de reforma ortográfica que era uma besteira enorme ? A Folha, o Estado de S.Paulo não têm manual de estilo ? Sempre que possível, deveriam tentar traduzir as palavras, porque elas pegam…’’.

15- Você -que é especialista em musica popular brasileira dos anos quarenta e cinquenta – acha que a MPB daquele tempo era melhor do que a de hoje ?

Ivan Lessa :’’Não estou no Brasil para acompanhar ,mas acho que, em matéria de música popular,a gente é danado de bom. O último que ouvi foi Ginga; qualquer coisa que Aldir Blanc faz eu acho sensacional. Honestamente ! Outros nunca ouvi. Anunciaram um concerto enorme aqui em Londres com a turma de sempre -Caetano,Gil,Chico Buarque- e uma de quem nunca ouvi falar : Virgínia Rodrigues. O que quero dizer, entao ,é que não estou acompanhando. Caetanices à parte, tiro o chapéu para Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque não sou idiota. Brinco com eles, mas não sou idiota para não ver o extraordinário talento que existe ali. Eu acho que estamos melhores em música do que em futebol. Vi trechos do Brasil e Holanda…Há o lugar comum que diz nós, brasileiros, sempre fomos bons de futebol e bons de música. Somos bons ! Então, acho que a música não piorou…’’.

Houve brigas com os baianos,heranca da epoca do Pasquim,principalmente com Caetano Veloso…

Ivan Lessa : ‘’Jaguar chamava de baiunos…’’…

As brigas eram com Millôr Fernandes, o próprio Paulo Francis…

Ivan Lessa : ‘’Os baianos enchiam muito o saco, com muita autopromoção. Era odara,oxalá’,como é aquele negocio azul ? Araça azul ! Uma fase de Caetano Veloso. Então, Caetano tem aquele negócio de se reiventar.É a fórmula de David Bowie, a de ter ‘’personas’’ artísticas. Implico um pouco com a parte promocional, mas o produto final, o que me interessa, é o disco. Uma das vantagens de não estar no Brasil é que só me chega o disco; não tenho de acompanhar as entrevistas, ver aquelas tolices enormes e aquelas bobajadas que as pessoas são obrigadas a dizer para promover. De certa maneira, estou dizendo minhas bobajadas aqui para ajudar a vender o meu ‘’disquinho’’,o livro. Mas quanto ao produto final nao tenho dúvida nenhuma’’.

16 – Durante anos houve aquela briga, entre aspas, entre o público de Caetano e de Chico Buarque, hoje inteiramente superada.Você chegou a tomar partido ?

Ivan Lessa : ‘’Não,porque era bobagem tomar partido. Eu poderia gostar mais do que Chico fazia. Meu Deus do céu : eram anos em que Chico não errava uma ! Com essa mania de fazer listas neste fim de milênio, se você tiver de fazer uma lista de cinquenta álbuns (vamos falar de álbuns conceituais,com começo,meio e fim),’’Construção’’,o álbum de Chico Buarque, é uma loucura, rapaz ! Chico fazia uma atrás da outra.Pá,pá,pá ! Havia, em Chico Buarque, uma consistência de qualidade que era absolutamente extraordinária. Então, eu apenas gostava mais de Chico, o que não significava que eu fosse brigar com Caetano Veloso. Os dois davam concerto, cantavam juntos aquela ‘’Bárbara,Bárbara…’’(cantarola a música do disco ‘’Chico e Caetano Juntos e ao Vivo’’,lancado em 1972). Entao, essa briga, para efeitos de Pasquim ou de sacanagem no botequim da esquina ou na mesa de bar, tudo bem, acho que vale.Mas – falando sério mesmo – acho que não vale não ! Apenas Chico me falava mais. Sou mais urbano; estou por fora de orixá, aracá azul, odara e mandacaru vermelho ! Eu estou por fora dessas porras ! Letra de Aldir Blanc marca minha vida. Eu manjo o ‘’dois pra la,dois pra ca’’.Eu estive lá !’’.

17 – Voce constata que o folego literario brasileiro é curto, com exceção de Euclides da Cunha. Enquanto o resto da América Latina produz escritores que você chama de ‘’caudalosos’’, nós seriamos ‘’excelentes’’ no ping-pong do conto, com Machado de Assis, Dalton Trevisan,entre outros. Você não acha que um pais que, pelo menos grograficamente, tem vocação para grandeza, como o Brasil, não deveria produzir também uma literatura mais épica ?

Ivan Lessa : ‘’Se não produzir, há algum motivo.C abe a pessoas mais bem qualificadas do que eu entender o por quê.
Mas há o reverso do que falei. Citei o conto, mas me esqueci de citar os nomes de tres gigantes : Manoel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade. O que é a poesia se não a linguagem em alta tensão ? Voce tem ai tres poetas de estatura mundial em qualquer época ! Ja que vivemos esta febre de fazer listas neste fim de milênio, seguramente você pode botar essses três em qualquer lista dos maiores poeta do século ! Você sabe muito bem que não sou ufanista nem nacionalista. Era apenas uma crônica o que escrevi. E crônica é para sair no jornal e, no dia seguinte, estar embrulhando peixe, aquela velha história. Se você parar e pensar, alem de Dalton Trevisan, Rubem Fonseca ou dos cronistas que não citei, como Rubem Braga, basta citar estes três poetas. Nossa Senhora ! O Brasil dá um banho em poesia ! Do outro lado do Atlântico,você tem Fernando Pessoa’’.

18- A presenca do Brasil no exterior se deve basicamente ao futebol – em primeiro lugar – e à musica popular,em segundo. O fato de o Brasil ser sinônimo de futebol e música é sempre um motivo de orgulho ou é um incômodo para você – que vive fora do país ?

Ivan Lessa : ‘’Para efeito externo, faço assim (e sei que estou fazendo conscientemente de birra; senao, teria enlouquecido há muito tempo) :’’Ah,esse time nao é de nada, é uma cambada de vagabundos, esse Ronaldinho não vale porra nenhuma, vai perder para o franceses, eu torco pelo Zidane e essa coisa toda…Mas não. O que me chateia é o torcedor ! O inimigo é o amigo. O inimigo é esse cara que vive dizendo ‘’somos os maiores,o Brasil já ganhou, é o tetra ,é o penta ,Caetano Veloso é o maior do mundo, a música brasileira é a melhor !’’.O inimigo é esse !’’.

19- Qual é a grande música brasileira do século vinte ? Qual é a canção que você vai passar o resto da vida ouvindo ?

Ivan Lessa : ‘’O titulo do romance que não escrevi seria ‘’Nos Astros,Distraído’’. Entao, por aí você tem uma ideia (N: o título vem da letra da musica ‘’Chão de Estrelas’’,o clássico de Orestes Barbosa e Silvio caldas). O livro que não escrevi fala de um camarada que, em 1949, vivia de biscate, um tipo que conheci muito no Rio de Janeiro dos anos quarenta e cinquenta. Era um sujeito que escrevia para Radio Nacional, tentava escrever.P ara cinema, ele estava tentando fazer uma daquelas cinebiografias terríveis da Atlantida, filmes de meio de ano, sobre Noel Rosa. Para rádio, ele vai tentar fazer a de Orestes Barbosa. Entao, esse era o tema do romance : eu ia levando num tom de deboche. Resolvi escolher 1949 porque em 1949 não existia ditadura : era Dutra. Ainda não tinha Maracanã e,principalmente, não existia televisão. É por isso que o romance se passava em 1949 .Era um tipo que tinha como influência cultural os cinemas da praça Saenz Pena e o radio que ele ouvia…Entao, quanto à musica, estou entre Noel e Orestes, entre asfalto e morro, se bem que, a rigor, Noel falava de morro mas não subia morro não. Era asfalto tambem’’.

20- Voce parou em que altura o romance ? Chegou a escrever ?

Ivan Lessa : ‘’A sinopse do Noel foi publicada no primeiro exemplar da revista dos meninos do Casseta & Planeta. Eu dei pro Reinaldo’’.

21- Quase tao irritantes quanto as cobrancas sobre por que você nao vai ao Brasil deve ser a cobranca sobre por que você nao escreveu até agora “o romance da sua geração”.Você não tem vontade ?

Ivan Lessa : ‘’Nao tenho nenhuma vontade mais .Eu escrevi alguns capítulos, porque tinha um negócio bolado. Mas veio a preguiça. Bateu-me o Caboclo Macunaíma. Ai,que preguica (dá uma gargalhada)…Pura preguiça ! Nada mais brasileiro que Ivan Lessa. Preguica ! Macunaima !’’.

22- Voce confessa que sentiu mais uma manhã de sol em Copacabana, num banco com a namorada, do que o suicidio de Ana Karenina de Leon Tolstoi. Isso quer dizer que, invariavelmente,a vida é superior à literatura ? Ou a literatura pode ter também o poder de marcar a gente pelo resto da vida, através de uma frase, uma passagem ?

Ivan Lessa :’’Eu, levianamente, escrevi essa frase numa crõnica. Mas,para ficar pretensioso ,qual é o subtexto do que eu escrevi ? É que talvez, ao ler Ana Karenina, você se empolga, acompanha a mulher até ela se jogar embaixo de um trem, mas,se você se lembrar dessa meia hora na praça ou num jardim, evidentemente essas experiencias têm,em você, um impacto pessoal que a literatura jamais vai dar. Posso,agora, ler um poema terrível,terrível.Vamos ficar no João Cabral. Pego o poema O Rio, é um horror aquilo que ele narra, mas é tao bonito, é tao bem-feito que você sai quase empolgado. Então, esse é um velho problema de arte : você pode despertar a atenção para uma coisa, mas termina filmando bonitinho…Tenho um tape guardado com o ‘’Morte e Vida Severina’’, dirigido por Avancini. Há umas nuvens bonitas. Nunca vai ser o horror que é a vida real. O que quero dizer é que um livro pode me ajudar para que eu busque,em mim, os meus próprios dados para entender certos problemas basicos, como vida, copulação e morte. Isso soa pretensioso. Minha crônica é leve’’.

23- Logo depois da morte de Paulo Francis,você deu um depoimento obviamente desencantado dizendo que já não tinha interlocutores : ’’Só sei que de repente passei a me sentir mais sozinho do que nunca, mais distante ainda de um Brasil que deixou de existir, talvez nunca tenha existido. O estrangeiro é espantosamente real,irreversivel’’. A sensação permanece ?

Ivan Lessa(depois de um breve silêncio): ‘’Permanece. Permanece. Mas tudo bem’’.

( Entrevista gravada em 1999 )

Posted by geneton at 12:23 PM

junho 04, 2012

PAULO EGYDIO MARTINS

EX-GOVERNADOR DE SÃO PAULO DÁ VEREDITO: “SUICÍDIO FOI MAQUIADO. HERZOG FOI ASSASSINADO NO II EXÉRCITO”. E DESCREVE CHANTAGEM PRATICADA POR MILITARES DO DOI-CODI CONTRA UM GENERAL

A Globonews reapresenta nesta terça-feira, às onze e cinco da manhã, o DOSSIÊ GLOBONEWS em que o ex-governador Paulo Egydio Martins se torna a primeira autoridade a se oferecer publicamente a depor na Comissão da Verdade. Egydio – que governou São Paulo de março de 1975 a março de 1979 - descreve com detalhes, na entrevista, cenas de bastidores ocorridas em momentos críticos do regime militar, como a crise provocada pelas mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho nas dependências do II Exército. Pela primeira vez, uma autoridade da época faz uma declaração tão direta sobre as circunstâncias da morte do jornalista: “O suicídio foi maquiado. Herzog foi assassinado dentro das dependências do II Exército, na rua Tutóia, em São Paulo”.

O ex-governador também se refere, na entrevista, a um caso que jamais foi esclarecido: uma chantagem praticada por subordinados contra um general do II Exército. O fato de não se saber do desfecho da chantagem parece ser uma prova de que ainda há capítulos inteiros a serem contados sobre a história do regime militar.

Trechos da entrevista:

GMN: O senhor revela que o chefe do Estado Maior do II Exército foi vítima de uma chantagem, praticada por dois militares que ameaçavam denunciar publicamente a prática de torturas no II Exército. Que providências o senhor tomou ?

Paulo Egydio: “Quando o coronel Erasmo Dias ( secretário de segurança ) me procurou, me disse o seguinte: “Governador, o general Marques me procurou,nervosíssimo, extremamente tenso, porque um sargento e um cabo, integrantes da equipe do DOI-CODI, foram a ele pedindo um volume de dinheiro. Senão, iriam delatar para a imprensa o que se passava dentro do DOI-CODI. E ele ficou sem saber o que fazer. Veio me pedir se eu podia arranjar esse dinheiro da verba secretra da Secretaria de Segurança”.
Quando eu assumi o governo, extingui a verba secreta do gabinete do governador. E disse a Erasmo que a verba secreta da Secretaria de Segurança era de responsabilidade dele. Jamais eu iria intervir. Virei para ele e disse: “Erasmo, a decisão é sua, sobre se vai atender ao Marques ou se não vai atender. Chantagem só tem duas respostas: “Ou você mata ou você morre”. Porque qualquer tentativa de aceitar chantagem é horrível, é péssima. É minha reação pessoal. Você faz o que você quiser fazer” .
Nunca mais tive retorno dessa conversa. Nada aflorou dessa chantagem. Mas ela mostra o que significa, como quebra de hierarquia militar: a gravidade deste episódio. Porque, quando um cabo e um sargento procuram um general comandante do Estado Maior de um Exército e chantageiam pedindo dinheiro para não contar o que estava se passando dentro do recinto pertencente a esse mesmo Exército, acabou qualquer hierarquia militar, qualquer espírito militar. Isso é absoluta e totalmente incompreensível e inaceitável”.

GMN: O fato de esses militares não terem feito a denúncia pública não significa que eles podem ter recebido o dinheiro ?

Paulo Egydio: “Eu não saberia lhe responder. A dúvida paira. Não voltei a conversar com Erasmo. Não foi pedida prestação de contas. A verba era secreta. Não estava sujeita à aprovação de ninguém. Não saberia lhe responder. Posso dizer que sim e posso dizer que não”.

O Caso Herzog: Egydio pediu a órgãos de segurança a ficha do jornalista. Conclusão: Nada consta.

GMN : O senhor fez uma reunião com o então secretário de Cultura, José Mindlin; com o coronel Erasmo Dias, secretário de segurança; com o diretor do DOPS, Romeu Tuma e com o representante do SNI, coronel Paiva, para discutir a nomeação do jornalista Vladimir Herzog para a TV Cultura. Qual foi o resultado da reunião ?

Paulo Egydio: “Quem me trouxe o problema foi o secretário de Cultura, meu amigo José Mindlin, que disse:”Estou recebendo acusações de ter escolhido, com muitas dificuldades, um responsável pelo Jornal da Cultura. E esse indivíduo que escolhi agora está sendo acusado – por uma imprensa marrom – de ser comunista” . Eu não tinha a menor idéia, cá entre nós. Se a Globo tinha cinqüenta por cento de audiência, o Jornal da Cultura deveria ter zero vírgula zero um de audiência. Quem era o diretor de jornal da TV Cultura era algo que não estava na minha cabeça – de jeito nenhum. Se era comunista, se não era comunista….Virei para Mindlin: “O problema não é meu. É seu. Você resolve como quiser”. E Mindlin: “Isso tem me causado incômodo. Preciso que você verifique se procede alguma coisa ou não”. Numa reunião, deixei instruções específicas : eu queria ter informações do Serviço Secreto do Exército , Marinha e Aeronáutica e do SNI sobre se alguma coisa constava sobre aquele diretor de jornal da TV Cultura – de quem eu nunca ouvido o nome antes – , chamado Vladimir Herzog. Passaram-se dez, quinze dias. Houve outra reunião, em que as mesmas pessoas se reportaram a mim: “Nós levantamos tudo. Nada consta, senhor governador”. Eu disse: “Mindlin, veja a resposta: se nada consta, você fica livre para decidir o que quiser. Já cumprimos nossa obrigação de verificar se procedia uma acusação ou não. Ficou provado que não procede. Você, agora, aja como quiser agir. Quer manter, mantenha. Não quer manter, não mantém. Após esse incidente, houve a determinação se ele comparecer ao DOI-CODI, onde acabou assassinado”.

GMN :Se nada constava contra Vladimir Herzog nos órgãos de informação, se a ficha era limpa, como o senhor diz, a prisão foi inteiramente injustificada. Depois da morte de Vladimir Herzog, o senhor fez esta comunicação ao presidente Geisel ?

Paulo Egydio: “Fiz. Não só fiz esta comunicação, como eu tinha liberdade com ele de pensar alto. Eu estranhava o que estava se passando, aquele luta intestina, aquela luta em quarto escuro. Você não tem meios de comprovar essas coisas com clareza. Como é que você comprova uma tortura ? Só assiste a tortura o torturador. E um torturador não vai dedurar outro torturador. Num caso desse aqui, eu dizia para
Geisel: “Presidente, estou estranhando : existe alguma coisa a mais”. E Geisel: “Paulo, tire isso da cabeça! Enquanto eu for Presidente desse país, nada vai acontecer”. Geisel não aceitava que a autoridade dele pudesse ser questionada. Não é mais um fato de você averiguar: é um fato histórico. Havia um plano de derrubar o general Ernesto Geisel da presidência da República. Tentaram me usar como governador do
Estado mais forte da federação naquela ocasião pela minha ligação pessoal com ele – que era pública e notória (….). Havia uma briga interna do Exército que nós, civis, não avaliamos. Não tenho a menor dúvida quanto a um embate dentro de duas facções do Exército nacional que disputavam o Poder”.

GMN: Quando o senhor tratou com o presidente Geisel pela primeira vez sobre a morte de Vladimir Herzog, o senhor disse a ele que nada constava contra o jornalista Vladimir Herzog nos órgãos de segurança?

Paulo Egydio:”Disse. E disse claramente, como acabo de repetir para você. Ele sabia disso ( silêncio). Se maquiou um suicídio ! O suicídio foi maquiado ! Não houve suicídio! Herzog foi assassinado dentro das dependências do II Exército na rua Tutóia, em São Paulo”.

GMN: O senhor testemunhou uma cena importantíssima dos bastidores do regime militar: o dia em que o presidente Geisel chamou o então comandante do II Exército, general Ednardo D`Ávila, logo depois da morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do quartel. O que foi exatamente que o general Geisel disse ao gen0eral Ednardo ?

Paulo Egydio :”Eu já tinha me recolhido com o presidente Geisel para a ala residencial do Palácio dos Bandeirantes. Estávamos sentados na biblioteca. Ednardo subiu para a ala residencial. Quando apareceu na porta, fiz um gesto de me levantar .Não ia ficar presente a uma reunião do Presidente da República com o comandante do II Exército, os dois generais. Geisel virou para mim e disse: “Não,não, Paulo. Quero que você fique aí e escute”. E o general Ednardo D`Ávila Melo, perfilado, em posição de sentido, na frente de Geisel e na minha, ficou ouvindo Geisel se dirigir a ele assim: “Ednardo, você me conhece muito bem. Você sabe do meu passado. Você sabe da minha história. Não vou admitir que fatos como esses que ocorreram aqui no II Exército se repitam. Quero que você saiba que vou tomar medidas. Você vai tomar conhecimento pelo seu ministro do Exército e pelo Diário Oficial. Vou tornar isso um decreto: proibir que alguém seja preso antes de uma comunicação ao meu gabinete – ao gabinete militar, ao SNI ou a mim, pessoalmente. Só depois dessa comunicação é que posso admitir que um preso político seja levado ao recinto de um quartel do Exército. O senhor está me ouvindo? Está entendendo? “. E o general: “Sim, senhor Presidente; sim,senhor Presidente”. Geisel: “Pode se retirar”. Escutei tudo aquilo quieto e calado. Meses depois, houve o caso de Manoel Fiel Filho – que contrariou juridicamente, formalmente e hierarquicamente todas as determinações do Presidente da República, comandante-em-chefe das Forças Armadas do Brasil. Consequência: o general, fiel às palavras que tinha proferido na minha frente, exonerou um general de quatro estrelas do comando do II Exército, fato inédito na história do Exército brasileiro”.

PAULOEGYDIO1A-300x225.jpg Paulo Egydio: os bastidores da crise militar (Foto: Jorge Mansur)
GMN: Se o senhor for convocado a depor na Comissão da Verdade para relatar as cenas de bastidores que aconteceram nos episódios das mortes de Vladimir Herzog e de Manoel Fiel Filho, o senhor vai comparecer?

Paulo Egydio: “Claro. Se eu não comparecer, faça um favor: mande uma cópia deste depoimento. Irei a qualquer hora, a qualquer instante. Não temos de temer nada. É hora de botar para fora tudo o que for para botar para fora. Vivemos numa democracia para ser verdadeira”.

Posted by geneton at 12:23 PM

março 29, 2012

MILLÔR FERNANDES

NUM FIM DE TARDE DE DOMINGO EM IPANEMA, MILLÔR FERNANDES CONFESSA DIANTE DO GRAVADOR: “NÃO FUI DOMINADO POR QUADROS ACADÊMICOS NEM PELA IGREJA NEM PELO MARXISMO”

Millôr Fernandes nasceu no vigésimo-quarto dia de agosto do vigésimo-quarto ano do século XX ( havia “controvérsia” sobre a data exata). Bateu em retirada neste fim de março. Viveu 87 anos, portanto. A morte é sempre uma lástima, uma lástima, uma lástima. De qualquer maneira, o balanço final, no caso de Millôr Fernandes, é extremamente positivo. Porque, durante décadas, ele soube transformar uma inteligência fulgurante em textos, desenhos, peças, filosofia.

A TIB (Taxa de Inteligência Brasileira) sofreu uma redução espetacular depois das mortes de Millôr Fernandes e de Chico Anysio. Millôr Fernandes passou a vida combatendo a vulgaridade. Chico Anysio deu alegria a milhões. Não é pouco. Cumpriram com brilho o script.

Tive a chance de entrevistar Millôr Fernandes longamente, numa tarde de domingo, no apartamento de Ipanema que ele usava como estúdio, ateliê e refúgio. Era uma espécie de bunker - de onde disparava petardos contra a vulgaridade geral. Terminada a gravação, pude alinhavar um decálogo do que ouvi do homem. O que um repórter pode fazer de útil na vida, além de ligar o gravador ? Reviro meus arquivos não tão implacáveis. Eis o principal do que ele disse:

“Jornalismo cultural brasileiro é extremamente mafioso”
“O ceticismo é uma indagação permanente – que leva à criatividade”
“Não fui dominado por quadros acadêmicos nem pela Igreja nem pelo marxismo”
“Sou uma pessoa lamentavelmente feliz”
“Há a babaquice inerradicável do intelectual brasileiro”
“O ser humano sempre chorou à beira do abismo”
“O homem é um animal inviável. Mas eu sou viável !”
“Popularidade é extremamente vulgar”
“Não quero andar na rua e ser reconhecido”
“Brigar com os poderes públicos é sempre uma coisa nobre”

Diante de tanto ceticismo, é exagero dizer, para Millôr Fernandes, a vida é uma doença hereditária ?

Millôr : “A vida é – mas não para mim. Sou uma pessoa lamentavelmente feliz. Não cobro do passado o fato de não ter nascido príncipe da Inglaterra. Ou mais bonito, mais inteligente e mais capaz do que eu sou.

Sempre tive boa saúde. Sempre tive em torno de mim pessoas me amando, gostando de mim intensamente e me fazendo sentir bastante protegido. É o que interessa, em última análise. Quanto ao resto, sou cético. Ainda assim, todo o meu trabalho, durante minha vida inteira, sempre foi solicitado, o que me dá segurança. Há sempre gente querendo que eu faça mais do que eu faço. Não tenho amargura, portanto.

Não vou cobrar o dinheiro que não tive. Não vou cobrar as viagens que não fiz. Não vou cobrar o curso de linguística em Masachussets que não pude fazer. Não tive nenhuma formação acadêmica, o que tem um lado negativo e um positivo. Não fui dominado por quadros acadêmicos nem pela Igreja – que é uma bitola fundamental – nem pelo marxismo. Para o bem e para o mal, tenho o meu próprio pensamento. Você me dá uma coisa – e eu penso. Sou uma pessoa profundamente interessada em pensar as coisas.

Não sou, definitivamente, paranóico. Não tenho doenças. E sei que, à proporção que a gente vive, a morte se aproxima. Quanto tem dez anos de idade, você é eterno. Com 20 ou 30 anos, também. Mas um momento em que você sabe que não é eterno. Não é um medo. É uma constatação”.

“Torre de marfim – reserva três para mim” – é o que você diz, num Hai Kai. Você admite que vive numa torre de marfim ?

Millôr: “Não tenho dúvida! Basta ser branco e de classe média no Brasil para já estar numa posição privilegiada. O que é que eu ganho, meu Deus do céu ? Vamos dizer que eu ganhe 50, 100 salários mínimos, o que for. Basta ganhar 50 salários mínimos para ser superprivilegiado. Não tenho do que me queixar. Consegui uma coisa que é absolutamente rara. Digo mais: rara, rara, rara. Nunca tive, a não ser através da violência estatal, uma coisa minha cortada em qualquer órgão de imprensa em que trabalhei.

Brigar com os poderes públicos é sempre algo nobre. O que me deixa humilhado é , por causa de um empreguinho, você aceitar que cortem suas ideias”.

Em que grande causa você acredita ainda hoje ?

Millôr: “Estou completamente cético. Vou dizer uma coisa trivial: o mundo tem, hoje, pela primeira vez na história, a capacidade de se auto-exterminar. Acrescento: o que não faria mal à economia do cosmo.

Chegamos aqui e vamos sair sem que ninguém perceba nada. Talvez seja este o próprio processo ecológico. Sem considerar estas causas metafísicas, acho que o ser humano sempre chorou à beira do abismo. Sempre ia acabar, sempre ia morrer, mas vem fazendo progressos sistemáticos através dos tempos. Ainda que não pareça, o ser humano progrediu do lado ético e moral. O que impede hoje a pena de morte não são fatores como “essa medida vai aumentar a credibilidade” ou “vai diminuir”. Não. O melhor ser humano de hoje – que somos nós dois, no caso – não admite moralmente a pena de morte. Ponto”.

Um dos seus Hai-Kais fala do “cético sábio que ri com um só lábio”. O Hai-Kai é ilustrado, no livro, com um auto-retrato. Você se reconhece na figura do “cético sábio” ?

Millôr : “Eu me reconheço no cético. Mas me reconhecer no sábio seria uma petulância !”.

Você prefere ser chamado de humorista ou de escritor ?

Millôr : “Eu, até há pouco tempo, tinha vergonha quando via o meu nome como escritor. E humorista é algo que há em mim. Se você quiser um termo, é escritor. Ninguém é humorista o tempo todo. Eu, na maior parte do tempo, não sei se estou escrevendo coisas engraçada ou não engraçada”.

Se o homem, como você diz, é um “bípede inviável” – e se é tão difícil acreditar em alguma coisa -, qual é a força que faz você criar ?

Millôr : “Criei uma série de frases no Pasquim. Ziraldo – que se diz a toda hora meu seguidor – vive repetindo-as. Apesar de nossas brigas – este é o lado positivo de Ziraldo - ,ele me corteja através da televisão ( ri). Mas Ziraldo de vez em quando me acusava, dizia que aquela ideia de que o homem era um bípede inviável era de direita. Eu dizia: “Não, Ziraldo ! O homem é um animal inviável ! Mas eu sou viável !”.

Não sou inviável ! Se você quiser falar mal de mim, aconselho você a vir aqui amanhã quando minha empregada estará aí – e falar mal de mim. Experimente falar mal de mim com as pessoas com quem trabalho intimamente – e até com minhas amigas, no sentido mais amplo da palavra. Dificilmente você encontrará alguém que diga que sou um calhorda ou que, na intimidade, não represento aquilo que as pessoas pensam. Isso é que é importante”.

A TV – você escreveu – “é um meio inventado pelo homem medíocre para ser utilizado pela mediocridade para a mediocridade”. A hostilidade que você faz questãode cultivar em relação à TV não corre o risco de parecer anacrônica diante de casos de intelectuais e artistas insuspeitos, como Ziraldo e Paulo Francis, que emprestaram o rosto à TV ?

Millôr: “De Ziraldo não sei qual é a posição. Paulo Francis vive esculhambando a TV. As pessoas vão para a TV tentadas pela coisa humana que é aparecer, algo que não tenho. O pouco que tinha refreei. Popularidade é extremamente vulgar. Não quero andar na rua e ser reconhecido. Mas gosto de um certo prestígio. Gosto de ir a um lugar e não ficar sozinho.

Quanto à TV, é atraente exatamente por esta razão: as pessoas não resistem a mostrar a bunda para um número maior de espectadores. “Calma, você está mostrando a bunda para 30 mil espectadores !”. “Não, mas na outra emissora são 30 milhões…”. É como disco. Se o cantor vende um milhão e passa a vender 800 mil, fica infeliz.

Juro a você: não estou preocupado com essas coisas. Quero que meu trabalho tenha o alcance suficiente para que eu possa continuar a fazê-las”.

Carlos Drummond de Andrade lamentou, dias antes de morrer, que hoje há no Brasil escritores premiados que sequer sabem dominar a língua. Você, como intelectual cultíssimo, constata a vitória do despreparo ?

Millôr : “Totalmente ! É impressionante. E é um dos sintomas da desagregação de um país que não chegou a se agregar completamente. O que se escreve mal…Não falo de ortografia, porque de vez em quando aparece um bobalhão para dizer que você errou ao escrever uma palavra qualquer com “z”, o que é uma bobagem. Ortografia não entra em questão. O que entra é todo o problema sintático do conhecimento, invenção, riqueza e propriedade da língua. A maior das pessoas anda escrevendo muito mal. Isso choca muito. Não vou falar de pessoas que, mal ou bem, são colegas. Parece que você quer ficar apontando erros…

Há poucos dias, saiu um lobby pago pelo Divaldo Suruagy (ex-governador de Alagoas) em todos os jornais. Você lê a matéria paga e vê que aquilo é caso para botar esse rapaz na cadeia. É um analfabeto ! O lobby de Suruagy arranjou dinheiro para pagar aquilo. Gastou uma fortuna. O texto publicado em todos os jornais é de um analfabetismo total, como escritura e como empostação. Como é que ele paga, para ampará-lo como um “grande candidato” ao cargo de ministro da Educação, uma porção de nomezinhos que não têm a menor importância ? Só mostra que não tem a menor noção do que são os fatores culturais do país.

Há pouco, apontei 40 e tantos erros num texto da Petrobrás. Fiz também sobre o Banco do Brasil. Isso sem você querer ser preciosista ! São apenas erros indiscutíveis. Mas, se você procurar coisas mal escritas e os textos em que o autor quer dizer uma coisa e diz outra, encontrará todo dia”.

O intelectual deve ser implacável com todos os governantes, indistintamente ?

Millôr : “Indistintamente. Se você pegar tudo que escrevi, raramente você verá um ataque meu à pessoa física. Com os poderosos, não quero nem saber. Mas procuro ser justo. Evidentemente, não vou fazer um ataque a Afonso Arinos. Posso fazer uma restrição. Mas não vou fazer como faço com Sarney. Desde o princípio, eu sabia que Sarney era um idiota. Infelizmente, eu estava certo. Amanhã, posso fazer restrições a Valdir Pires. Mas não vou tratar Valdir Pires como trato Figueiredo”.

A posição de independência e crítica intransigente a todos os governantes é uma questão ética, para você ?

Millôr: “É uma questão ética, com esta gradação : se amanhã Valdir Pires for presidente, não o tratei, é evidente, como trato Sarney. Ainda que você seja injusto, o homem do poder público tem sempre uma tribuna e meios muito maiores do que você tem para reagir e anular o mal que ocasionalmente você lhe faça”.

Você sempre se refere aos idiotas com irritação, nos textos que você escreve. Qual é o maior exemplo de idiotice hoje no Brasil ?

Millôr : “Quem gostava de falar de idiota era Nélson Rodrigues. Se você quiser saber hoje quem é o maior idiota – pode parecer agressivo, mas não é – vamos botar: entre os maiores idiotas do Brasil está Sarney ( quando da gravação da entrevista, Sarney era presidente da República). Não estou brincando com você. Eu o livro que ele escreveu. É um subintelectual. Absolutamente subintelectual. Uma pessoa a quem a vida deu uma oportunidade histórica inconcebível – e ele jogou a oportunidade no lixo, individualmente e sob o ponto de vista nacional. Se você não classificar esta pessoa como idiota, não sei quem você vai classificar”.

O jornalismo cultural que se faz no Brasil presta ?

Millôr: “Infelizmente, não. Sobretudo, ele é extremamente mafioso. Deixa se seduzir por qualquer coisa, desde o poderoso que oferece uísque na piscina até o amiguinho que não tem nenhuma capacidade de transpor esse perigoso ciclo do envolvimento. Não entro no mérito da qualidade intelectual – aí, vão sempre se salvar algumas pessoas”.

É raríssimo ver Millôr Fernandes falando na imprensa, fora das colunas que você escreve. Em TV, praticamente você não aparece nunca. É excesso de timidez, zelo com a imagem ou patrulhagem ?

Millôr : “É cuidado com a imagem. E, mais do que timidez, um imenso tédio. Vejo tanta gente dizendo besteira e tanta gente salvando a humanidade na TV…Outra coisa: pela minha própria profissão, apareço demais. Há outro ponto fundamental: nestas duas últimas vezes em que fui à TV – inclusive num programa a que todo mundo quer ir, o de Roberto D´Ávila – fui pago. Só fui porque me pagaram. Sou um profissional. Não vou encher a hora do seu Roberto Marinho, Saad ou lá quem seja com um tempo da minha vida – que levei anos e anos para valorizar.

Há a babaquice inerradicável do intelectual brasileiro. Ora, o intelectual brasileiro é até hoje um provinciano que acha bonitinho ir à televisão e aparecer. Acha bonitinho escrever nos jornais. Digo que não são só os intelectuais novos e os que não têm nome. Se você pegar a Folha de S. Paulo, é escândalo que inúmeros daqueles colaboradores socialistas do jornal – dou os nomes: Severo Gomes, Fernando Henrique Cardoso – não se dêem conta de que estão fazendo uma lamentável concorrência desleal aos profissionais do setor. São grande nomes, necessários à imprensa. Mas deveriam se reunir, fazer um salário-piso e doar o dinheiro, se acham que não precisam. Mas não podem é escrever de graça. O sistema é mesquinho”.

O que é que tira inteiramente o humor de Millôr Fernandes ?

Millôr: “Sou uma pessoa de um ceticismo muito grande. Não confundir com pessimismo ! O ceticismo é uma indagação permanente – que leva à criatividade. É o contrário do babaca que é o idealista perene ou que aceita o moderno que existe em tudo hoje: existe no feminismo, na pintura, no teatro. O cara vê um movimentozinho qualquer que lhe parece moderno e fica seguro do não-reacionarismo porque entra naquela corporação e naquela ideia. Mas, na verdade, a única coisa que não perdoo – e é realmente imperdoável – é a participação na violência. Não perdoo os políticos que estão aí, inclusive Sarney. Participou. Só não participou mais porque é um abúlico, assim como não participa deste governo até hoje.

Você pode ser o que quiser. Pode ser de direita. Penso que a direita tem todo o direito de estabelecer um critério. Qual é o critério básico da direita ? A superioridade das elites. O que não pode é levar à violência, não pode é dar soco na cara do inimigo, não pode é alijar o inimigo de maneira atrabiliária. O resto ? Podem dizer o que quiserem”.

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*Entrevista gravada em outubro de 1987. Trechos publicados na edição de 07/11/1987 do Jornal do Brasil, no caderno Idéias

Posted by geneton at 12:46 PM

março 15, 2012

CARLOS VEREZA

CARLOS VEREZA DESCREVE DELÍRIO VIVIDO NUMA CLÍNICA, NA CAMA DE RAUL SEIXAS

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Carlos Vereza faz parte de uma liga especial de atores: aqueles que, sem aparentar grandes esforços, são capazes de “incorporar” os personagens que interpretam, como se fossem médiuns.

Quando estrelou “Memórias do Cárcere”, Carlos Vereza incorporou, na tela, a figura do escritor Graciliano Ramos. É um dos grandes momentos do cinema nacional.

Agora, o ator que se transfigurou em tantos personagens decide se desnudar em público, num livro chamado “Efeito Especial : Estilhaços Biográficos”. É um texto curto, mas intenso e envolvente.

O “médium” Vereza fará uma noite de autógrafos no dia 25 de março, a partir das 18 horas, na livraria República do Bardo ( Rainha Elizabeth, 122, loja E, Copacabana).

Vereza passou anos atormentado por um “zumbido interno” que lhe incomodava desde que tombou vítima da explosão de um tiro de festim numa cena da série “Delegacia de Mulheres”. Terminou internado numa clínica em São Paulo. Batizou o cenário de Morro dos Ventos Uivantes.

Quando desembarca na clínica, Vereza é informado de que iria repousar na cama que tinha sido usada por outro paciente ilustre – Raul Seixas. O enfermeiro lhe deu a notícia na vã tentativa de animá-lo.

Eis uma avant-première do texto autobiográfico de Vereza:

1
” CLÍNICA DO MORRO DOS VENTOS UIVANTES. 1990 . A clínica, suntuosa, ficava no alto de uma colina. São Paulo, inverno, vento cortante. Não sei por que me veio à mente um plano geral do filme O Morro dos Ventos Uivantes, onde o som da chuva e tempestade por instantes confundia-se com o zumbido, o que me proporcionou um grande alívio – era isso: tinha sempre que ter um grande ruído que cobrisse aquele horror na minha cabeça.

O Dr. O… dono da clínica, recebeu-me com extrema delicadeza, mas não conseguia conter a perplexidade ao apertar minha mão.

Meu aspecto era o de um aidético em fase terminal, eu estava com um pouco mais de 40 kg, trêmulo, amparado por um enfermeiro e Delma que ficou comigo, no mesmo quarto na primeira semana.

O Dr. O… e uma equipe de atendentes colocou-me em uma cadeira de rodas e conduziram-me por um interminável corredor até o quarto que eu deveria ocupar. Um dos enfermeiros, talvez para me animar, sussurrou no meu ouvido-sirene:

– Aí, ó! Você vai ficar no mesmo quarto que o Raul Seixas ficou.

Balancei a cabeça “agradecido” e o cara concluiu:

– Vai ver até que é a mesma cama!

Entramos. Era um quarto amplo, com a tal cama, uma mesa, duas cadeiras e uma pesada cortina cobrindo o que deveria ser uma janela.

(….) A enfermeira aproximou-se com a seringa, eu deitado na cama de Raul, como regularmente me era lembrado e, com o tom de voz de menininha que não cresceu:

– Senhor Vereza, sua veia é do tipo bailarina, mas fique tranqüilo, que eu sempre consigo pegar.

Pegou. Senhoras e senhores! No mesmo instante em que o líquido era injetado em minha veia, entendi por que o Seixas se internou naquela clínica: todos os tipos de drogas experimentadas na década de 70 não passavam de Melhoral Infantil comparados àquela aplicação.

Imediatamente me vi girando numa espécie de disco 78 RPM, só que meio inclinado, e cada faixa era de uma cor. Eu agarrava uma banda do tal 78 e tive a sensação de sair voando pela janela, atravessando cortinas, vidraças e o que mais tivesse pela frente!

Vi-me criança, depois adolescente, indo do Lins de Vasconcelos para Cascadura, com a merenda embrulhadinha em papel de pão e envolta num guardanapo branquinho. Vi o Zepelim no quintal de minha madrinha, e comecei a escorregar de faixa em faixa até o que me pareceu ser o pino central que fazia o disco girar.

Lá estava eu de fardinha, esperando o meu padrasto na Avenida Presidente Vargas, expedicionário que voltava da Itália: fim da Segunda Guerra Mundial. Percebi minha mãe, atravessando o cordão de isolamento e correndo atrás do jipe e tentando beijar meu padrasto e acabou batendo a cabeça no capacete dele. Ouvi até o som daquela porradinha romântica.

Aos poucos, o disco foi girando cada vez mais lentamente, meio rouco enquanto arco-íris transmutavam-se em lanternas multifacetadas brilhantes e deslocavam-se, pouco a pouco, subindo pelas paredes do quarto e, como balões japoneses, flutuavam sobre minha cabeça. Não sei quanto tempo durou.

Quando consegui abrir os olhos, a enfermeira com voz de bebê não estava mais no quarto e, em seu lugar, uma moça sentada numa cadeira ao lado de minha cama chorava copiosamente. Soube depois que se tratava de uma psiquiatra que acompanhara toda a minha “gravação” em 78 RPM”

2
“BREVE SOLILÓQUIO: A minha ida a Paris não teve nada a ver com o glamour de autoexilado perseguido pela ditadura (embora eu tenha sido), nem o charme de sentar-me à mesa do Café de Flore, próximo ao de Sartre e Simone. Não: o fato em si, como já disse, foram os prêmios que me possibilitaram esta viagem. Se eles tivessem como destino o Alasca, o Tibete ou o Kilimanjaro, enfim, qualquer lugar que fizesse frio e ficasse bem distante do Brasil, eu teria ido da mesma maneira.

Fui sequestrado duas vezes, torturado comme il faut, minha mãe, em consequência, teve um aneurisma e morreu em sete dias, segurando a minha mão, e eu tive que ordenar aos médicos que desligassem os aparelhos.

Minha mãe, que num conjugado de vinte metros quadrados, escondera parte do Comitê Estadual do Partido Comunista, porque o filho pedia. Eu queria sair, desaparecer deste absurdo de país, que conseguiu ir da descoberta à decadência, sem fazer baldeação. Este povo apático, desfibrado… A verdade é que a Ditadura acabou, porque não interessava mais aos Estados Unidos. Os militares dizimaram os guerrilheiros e ainda contavam com o apoio de grande parte da classe média. Poderiam, se quisessem, permanecer mais uns dez anos no poder”.

3
“MURO DA VERGONHA. Berlim, 1986. Antes de voltar ao Brasil, Larissa perguntou-me o que era liberdade. Como não sei o significado até hoje, aluguei um carro por 250 francos, comprei tinta, pincéis, um balde e fomos até Berlim.

Mostrei-lhe o muro – realmente uma vergonha – expliquei-lhe que aquele paredão era a falta de liberdade; que famílias estavam separadas há anos e, quem tentasse fugir do lado Oriental para o Ocidental, era sumariamente executado.

Larissa não hesitou: “pegou o espírito da coisa”, mais um pincel e pichou em azul no muro: PAZ! BRASIL! Olhou para mim toda orgulhosa…

E ali, no olhar de minha filha, esvaneceu-se o comunista dentro de mim…”

Posted by geneton at 12:51 PM

fevereiro 24, 2012

CARLOS FUENTES

O DIA EM QUE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ GRITOU, DENTRO DE UM RIO GELADO: “NÓS SOMOS FLORES TROPICAIS ! O QUE É QUE ESTAMOS FAZENDO AQUI ?”

A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, com reprise no domingo, ao meio-dia e meia, uma entrevista com um dos mais importantes intelectuais latino-americanos : o mexicano Carlos Fuentes.

Ex-embaixador do México em Paris, professor visitante de universidades como a de Cambridge, na Inglaterra, Fuentes aponta, na entrevista, um novo fenômeno : o medo que o crescimento do Brasil inspira em outros países da América Latina.

Fuentes é amigo íntimo do Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez. Perguntei se ele já havia vivido, em companhia de Márquez, alguma cena digna de uma página do “realismo mágico”.


Fuentes não titubeou: citou a viagem que fez, no fim dos anos sessenta, à Tchecoslováquia, em companhia de Gabriel García Márquez e de Julio Cortázar, a convite de Milan Kundera. A Thecoslováquia – país que vivia sob as asas da União Soviética – experimentava, na época, a chamada Primavera de Praga, uma tentativa de criação de um “socialismo com face humana”. O problema é que a União Soviética não gostou nada da experiência liberalizante: Moscou mandou para Praga tanques que trataram de esmagar a Primavera. A linha-dura moscovita venceu.

Kundera tinha sido militante do Partido Comunista mas rompera com a linha dura desde o fim dos anos quarenta. Adepto da Primavera de Praga, chamou os amigos Márquez, Cortázar e Fuentes porque queria que eles testemunhassem o movimento.

A expedição do quarteto rumo à Primavera de Praga terminou produzindo uma cena inesquecível, digna de um conto: García Márquez mergulhado num rio gelado gritando “Nós somos flores tropicais !” .

Quatro décadas depois, é esta a grande lembrança que Fuentes guarda da viagem.

O relato de Fuentes:

“Minha relação com García Márquez é de longa data. São 40 anos de amizade. Não tenho como escolher só um momento. Escolho os 40 anos! Em 1968, um dos anos cruciais na História, houve os acontecimentos de maio em Paris e os de outubro, no México, além da Primavera de Praga. Como estava muito envolvido na Primavera de Praga, Milan Kundera convidou vários escritores a visitarem Praga. Era uma situação surreal, porque o exército soviético havia cercado Praga e estava esperando. Fingimos que Praga ainda era um lugar socialista democrático, mas já não era. Milan convidou também Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Também convidou Günter Grass. Depois, chamou García Márquez, Julio Cortázar e a mim. Estávamos em dezembro. Fazia muito frio. Continuávamos fingindo que o socialismo democrático tinha futuro na Tchecoslováquia, mas, quando chegou janeiro, já sabíamos que não era o caso. Milan Kundera nos disse que, em Praga, as paredes tinham ouvidos. Tudo que dizíamos era gravado. O único lugar seguro era a sauna. Fomos conversar na sauna, então. Mas Cortázar foi logo dizendo: “Não entro em saunas! Sou alto demais e magro demais. Eu me recuso a ser visto em uma sauna!”. García Márquez e eu acompanhamos Milan Kundera - que nos contou suas ideias sobre a Primavera de Praga. Estava muito quente na sauna, é lógico. Eu, então, disse: “Cadê o chuveiro? Estamos suando de calor!” Milan pediu que o seguíssemos. Abriu a porta e nos levou até o rio Vltava. Lá, ele nos jogou na água! García Márquez dava pulos e dizia: “Sou uma flor tropical!” Depois, voltou a mergulhar. Não me lembro do que disse, porque estava frio demais. Kundera ria um bocado. É uma lembrança. Imagine um rio em Praga em dezembro. Blocos de gelo passavam ao lado. E havia dois escritores latino-americanos dizendo: “Somos flores tropicais! O que é que estamos fazendo aqui?”

“Cortázar era um homem extraordinário. Extremamente inteligente e bondoso. Era um homem bondoso, gentil. Também era muito corajoso e se enfurecia com certos acontecimentos, especialmente com o que se viu na Argentina. Acima de tudo, foi um grande escritor. Contou grandes histórias. “Rayuela” é um grande romance. São monumentos ao gênio que foi Cortázar. Quando ele morreu repentinamente, eu estava em Nova York. Vi no jornal. Telefonei para García Márquez – que estava no México. Disse: “Gabo, tenho uma notícia terrível. Nosso grande amigo Julio Cortázar morreu!”. Houve um momento de silêncio. Depois, García Márquez disse: “Não acredite em tudo que lê nos jornais….”

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fevereiro 16, 2012

PAULO FRANCIS

PAULO FRANCIS: “EU ERA UMA CRIANÇA QUE CONFUNDIA DESEJO COM REALIDADE” ( (AQUI, O RELATO DE DOIS ENCONTROS COM O “LOBO HIDRÓFOBO”)

Faz quinze anos Paulo Francis morreu. Meus arquivos-não-tão implacáveis guardam o relato de dois dos tantos encontros que este locutor teve com a fera :

PRIMEIRA ESCALA : RIO DE JANEIRO, 1994

A presença de Paulo Francis intimida, porque ele é um caso clássico de “monstro sagrado” do jornalismo. Quando Jack Nickolson, no papel de âncora de telejornal de rede, vai visitar um escritório regional provoca em torno de si uma onda de silêncio reverente pontuado por olhares inquisidores, no momento em que, superior, entra na redação. A cena é do filme “Nos Bastidores da Notícia”.

Paulo Francis não chega a tanto, mas, quando sai, deixa ecos atrás de si. Fiz uma entrevista com ele para o “Fantástico”. Um dia depois do programa, Paulo Francis foi à redação, para, civilizadamente, dizer que tinha gostado do material. Fez uma cópia da entrevista em VHS. Ia levar para Nova Iorque. Segundos depois da saída de Francis, ouvi comentários de todo tipo. Um amigo, brincalhão, simpatizante do PT, saiu-se com essa :”Ok,agora só falta você fazer matéria com o outro Paulo – o Maluf” – uma referência enviezada às críticas contundentes que Paulo Francis passou anos fazendo à administração Erundina na Prefeitura de São Paulo. Outro amigo veio correndo me cumprimentar: “Gostei de ver ! Paulo Francis veio bater continência !”. Luiz Petry,excelente poeta que nas horas vagas é editor do Fantástico, confessa, ao lado, que aprendeu com Paulo Francis a escrever em estilo direto, com frases curtas. O que mais um jornalista pode querer, além de espalhar influências pelas redações ?

Hélio Fernandes rugiu na Tribuna da Imprensa : “Melancólica,humilhante,ridícula e até vergonhosa a apresentação de Paulo Francis no Fantástico. É natural que ele queira iludir os espectadores para vender o seu livreco”. Ninguém fica indiferente à fera.

Ao contrário de todas as aparências, Paulo Francis não late nem morde. É um “doce de pessoa” – dizem os que convivem profissionalmente com ele. Bem humorado, brincalhão, solta gargalhadas quando conta piadas sobre a aparição do “horto florestal” de Lílian Ramos no camarote de Itamar Franco, no Sambódromo. Parece sinceramente espantado quando lhe faço um breve relato das reações raivosas que provocou em Pernambuco quando deu uma pichada no suposto provincianismo do então ministro Gustavo Krause. Disse que depois elogiou a posição correta de Krause numa votação no Congresso. Além de tudo, chamou o Nordeste de região “desgraçada” – não os nordestinos.

“Desgraçado”, entre outras coisas, quer dizer “muito pobre,miserável,indigente”, informa o Dicionário Aurélio, nosso pai. Era,certamente, o que Paulo Francis queria dizer sobre o Nordeste. Por acaso é mentira ? Num comentário bem-humorado feito ao jornalista pernambucano George Moura – que o escolheu como tema de uma tese universitária – Francis disse, sorrindo, que o filme “Os Imperdoáveis” é sucesso em Pernambuco….

Provincianismo existe em Pernambuco e em Nova Iorque. Pausa para uma digressão na primeira pessoa do singular. Convidado a escrever um punhado de linhas sobre um livro escrito, impresso e lançado no Recife, vi meu texto, reescrito, ser trucidado por erros de concordância. Pensei em comprar uma página inteira para dizer, em matéria paga, que Pernambuco é o único lugar do mundo em que você é convidado a fazer um elogio a um livro e o que acontece ? Suas palavras são reescritas, desarrumadas,distorcidas e, finalmente, impressas na orelha do livro. Pode existir caso maior de provincianismo ? Isso também é sintoma de desgraça. Não quer dizer que se deva condenar o Nordeste a arder no quinto dos infernos. Ponto. Parágrafo.

Francis começa a falar.Vai logo escolhendo um político pernambucano entre os pouquíssimos de quem seria capaz de comprar um carro usado. É sinal de armistício com Pernambuco ? Pode ser.”Bandeira branca, amor”.

Francis diz estar plenamente convencido de que não tem influência alguma sobre o comportamento dos outros. Mas tem, sim. Ninguém precisa concordar com o que ele diz ,é claro. Mas a gente aprende com Francis a -pelo menos- tentar ser independente, a marcar posições, a não avalizar a mediocridade, a não seguir o rebanho geral com a docilidade de um boi zebu cabisbaixo a caminho do matadouro, a não referendar as imposturas dos poderosos. Ok, nem precisa tanto. Aprender com Paulo Francis a tentar escrever simples, direto, já é uma grande coisa. É tudo o que um jornalista deve querer.

O lobo vai falar. Senhoras e senhores, com vocês, Paulo Francis, o lobo hidrófobo – de volta às paradas de sucesso nas páginas do livro recém-lançado “Trinta Anos Esta Noite”, um texto que é um achado, porque mistura em doses certas a memória pessoal com a memória nacional.

1-De qual dos políticos brasileiros você compraria um carro usado ?

Francis – De vários. Tasso Jereissati, Fernando Henrique Cardoso – a quem dou um crédito de confiança grande, porque sei que é uma pessoa honesta, que vem fazendo o melhor que pode. Como é o nome daquele prefeito do Recife ? Jarbas Vasconcelos. Três já bastam.

2-Você é frequentemente criticado porque teria se transformado de revolucionário em conservador. Você aceita essas críticas ?

Francis – Passei de criança a adulto. Eu era uma criança que confundia desejo com realidade. Eu tinha certos desejos -que eram fraternais com relação à minha situação privilegiada e à situação desprivilegiada de outras pessoas. Mas descobri, ao ver o mundo aí fora, que a maneira de resolver esses problemas não é a maneira pregada pelos principais grupos populares aqui do Brasil. A grande transformação foi esta. Vi que os países ricos são paises que se abrem para o capital e fazem iniciativa privada. Como é que você vai empregar os brasileiros sem iniciativa privada ? Vai fazer de todo mundo funcionário público ? As repartições públicas já estão falindo ! E com esses milhões que estão aí o que é que você vai fazer ? É preciso abrir desde botequim a fabrica.Isso só com capital privado !

3-Você confessa hoje que tem simpatias pela social-democracia. O caminho para o Brasil pode ser esse ?

Francis – Certamente. A social democracia é imperfeita -sem dúvida- mas é a coisa mais justa que há. Porque garante o mínimo necessário a quem não pode lutar pela sobrevivência e, ao mesmo tempo, permite que quem pode se expanda sem ditadura sem nada. Veja os países mais avançados do mundo : sÃo os escandinavos. A própria Alemanha é uma social-democracia,a França … E os Estados Unidos são uma social democracia – desorganizada, mas, se você falar assim nos Estados Unidos, eles acham que você é comunista. O que tem de auxílio às pessoas necessitadas é igual a qualquer social-democracia européia.

4-Você se considera o último representante de um tipo de jornalista que tem opinião própria e ocupa espaço privilegiado na grande imprensa ? Hoje,você é um caso único no Brasil…

Francis – Há vários outros que estão por aí. A minha tendência – escrever, discutir,ter opiniões – caiu muito de moda. A tendência hoje é fazer tudo curto, tudo pequenininho – mas trabalho também no curto e no pequenininho. Tanto é que faço comentário de um minuto na televisÃo. Mas há um desequilíbrio hoje entre as duas tendências. O período da minha juventude foi um grande período jornalístico, com Carlos Lacerda, Joel Silveira, Moacyr Werneck de Castro, Paulo Silveira, Octavio Malta – são incontáveis. Todos eram pessoas com opiniões definidas que se expressavam. Não estou nem julgando tendências. Só estou falando da qualidade. Hoje,na imprensa brasileira, há uma falta grande de gente que discute e dá opiniÕes. Eu de fato sou um dos que vai contra a corrente.

5-Quando publicou o romance Cabeça de Papel,você ficou deprimido com a falta de repercussÃo cultural aqui no Brasil.Isso ainda assusta você ?

Francis – NÃo. Resolvi botar o freio nos dentes e ir em frente(rindo). Você deve fazer aquilo que quer. “Trinta Anos esta Noite” é um livro que senti muito prazer em escrever. Afinal de contas, 1964 foi o acontecimento decisivo na minha geração. Eu tinha a idade de Cristo – 33 anos. O mundo que eu imaginava era completamente diferente do que viria a acontecer. As gerações mais jovens – que não têm idéia do que foi l964 -sofreram sem saber uma influência profunda do acontecimento. Por isso, eu quis tornar público o meu depoimento, porque há poucas histórias de 1964. Não estou dizendo que a minha história seja a única. Mas é uma versão da história que eu conheço e testemunhei. Não pretendo saber o que estava na cabeça de A,B ou C.

6-Como é que você espera ver o Brasil nesses próximos anos ?

Francis – Eu li em sete de fevereiro de 1994 uma nota surpreendente -para mim,pelo menos – no Wall Street Journal : em 1992 e 1993,entraram mais de 50 bilhões de dolares no Brasil. Você sabe a que isso se deve ? A pequenas entreaberturas que o senhor Fernando Collor fez quando presidente, como baixar tarifas, por exemplo. Se o Brasil abrir,entram 500 bilhões de dólares ! Vai haver emprego e vai haver prosperidade. É essa a minha esperança.

7-Em qual dos atuais presidenciáveis você apostaria uma ficha ?

Francis – Não cheguei ainda a uma conclusão. Certamente não apostaria em Lula. Não há a menor dúvida, porque ele quer um retrocesso quando fala em reestatizar .O maior problema brasileiro são as estatais ! A grande dívida interna brasileira, a razão central da inflação – não a única – é esta máquina estatal que devora os recursos e toma todo o capital.Você não pode abrir uma empresa porque os juros estão na lua ! Pela constituição,o governo não pode imprimir dinheiro. Então,ele tem de tomar dinheiro emprestado. Para emprestar a um governo desse,você tem de emprestar a juros altíssimos. Quanto mais diminui o dinheiro, mais aumentam os juros.

8-E se JoÃo Goulart tivesse resistido em 1964 ?

Francis – Você teria certamente o início de uma guerra civil,mas, dado o temperamento brasileiro, haveria um acordo, um armistício dos militares. Talvez se convocasse uma eleição. Nós estávamos a um ano de uma eleição. A verdade era essa. Teríamos com toda certeza uma guerra civil, porque Jango tinha amplas condições de resistência. Quanto à guerra civil, tenho certeza. Quanto ao acordo, estou especulando – haveria um acordo entre os militares para o cessar-fogo. Haveria uma eleição que estava prevista para o ano seguinte, onde Carlos Lacerda defrontaria Juscelino Kubitscheck.

9-Jango estava mal informado sobre a conspiração ?

Francis – A meu ver, estava totalmente desinformado, porque ele nÃo tinha uma assessoria capaz,o que é um problema aliás muito de político brasileiro. A assessoria militar de Jango era especialmente fraca. Eu me refiro a Assis Brasil – que era um homem de grande coragem pessoal,general corajoso pra chuchu,mas um homem entediado. Não informava Jango da disposição de outros generais, como deveria informar.

Vou fazer uma revelação a você : participei como espectador de uma reunião -nem contei no livro, é uma coisa confidencial,não posso nem dar o nome das pessoas. Mas participei de uma reunião de generais que me mostrou -a mim e a outros civis- como os quadros do Terceiro Exército que tinham empossado Jango estavam sendo pouco a pouco substituídos por generais hostis ao presidente.

10-Quem foi a vedete que ia ver João Goulart no exílio ?

Francis – Há uma frase em inglês que diz:”Kiss and tell”-beijar e contar.Sou inteiramente contra essa frase….(rindo).

11-Qual foi a melhor e a pior herança deixada por 1964 ?

Francis – A melhor foi a do crescimento econômico. Pela estrutura montada no governo Castelo Branco pelo senhor Roberto Campos e pelo senhor Gouveia de Bulhões, o Brasil nos períodos seguintes -no governo Médici- cresceu como nunca na história. A pior foi a despolitização total do nosso povo- uma espécie de névoa que caiu sobre a sociedade civil brasileira e arruinou várias gerações que poderiam ter sido líderes políticos e não vieram a ser. Hoje,estamos aprendendo duramente com esses líderes de quinta categoria que temos aí.

12-Você diz que quando era criança parecia um cão hidrófobo .E hoje,você se parece com o quê ?

Francis – Que tal um lobo hidrófobo ?

13-O fato de ser imitado em programas de humor incomoda voce ?

Francis – De jeito nenhum.Acho que se voce e uma figura publica – como e o caso de um jornalista de televisão – voce tem de estar preparado para tudo. A imitação é a mais expressiva forma de lisonja – esta é que é a verdade.

14-Qual o personagem mais interessante da história recente do Brasil ?

Francis - Getúlio Vargas inventou o Brasil moderno, o Brasil uniformizado. A influência de Getúlio Vargas é tão positiva quanto nefasta. Ele é contraditorio. O sujeito mais difamado do Brasil é um homem que participou de todas as decisões econômicas importantes do Brasil. Chama-se Roberto de Oliveira Campos – que, indiscutivelmente, é uma presença intelectual fortíssima na vida brasileira, mas negada pelos seus inúmeros inimigos, tanto quando Getúlio Vargas foi uma presença política muito mais forte do que qualquer outra pessoa no nosso tempo.

15-Quando é afinal que o Brasil vai ser um pais rico e feliz ?

Francis – O Brasil só não é rico porque não quer. Viajei para o Brasil com o diretor de uma grande empresa americana – que adora o nosso país.Vai se aposentar aqui. Fica estupefacto com as chances que nós perdemos de ficarmos ricos.Temos de vencer uma certa infantilidade que há no nosso temperamento,uma confusão de desejo com realidade. Mas felicidade é um conceito mais complexo. Ser rico não significa necessariamente ser feliz. Mas é claro que ficar rico ajuda bastante. O Brasil tem um dever consigo próprio de eliminar as necessidades básicas do ser humano – e o Brasil não cumpre isso,os governos não cumprem isso,a nossa sociedade não cumpre isso”.

SEGUNDA ESCALA : LONDRES, 1996

Cenas londrinas. O locutor-que-vos-fala passa numa livraria num fim de tarde, para, num exercício de masoquismo, checar o QI (Quociente de Ignorâncias ). A visão de vitrines abarrotadas de livros que jamais serão lidos, por absoluta falta de tempo, provoca temores íntimos.

Diante de prateleiras superlotadas de títulos novos, um sentimento parece inevitável: é frustrante saber que o Quociente de Ignorâncias permanecerá alto até o dia do blecaute final. Resta um consolo: deve ser saudável a compulsão íntima de passar o resto dos dias, meses e anos em silêncio aboluto, numa ilha do Oceano Pacífico, a milhares de quilômetros de qualquer aglomeração humana, em companhia de livros que – estes sim – fazem falta.

“O inferno são os outros”, já dizia o velho Jean Paul Sartre, coberto de razão da primeira vogal à última consoante. Desde então, não surgiu sob o sol ninguém capaz de alinhavar dois argumentos razoáveis contra esta verdade indiscutível. Bendita seja a solidão dos Robinsons Crusoés. Porque eles terão, na solidão de duas ilhas imaginárias, tempo e silêncio para ler todos os livros que ninguém jamais lerá.

O locutor-que-vos-fala vai articulando este discurso silencioso entre uma e outra prateleira de uma livraria, em Piccadilly, quando é surpreendido por um tapa ( amistoso ) nas costas. Surpresa ! Quem se materializa, ali, numa tarde de sábado da primavera de Londres ? O lobo hidrófobo em pessoa – Paulo Francis.

“Vendo os clássicos ? Meus parabéns: é a única seção que presta aqui…” – exclama, enquanto chama a mulher, a simpática Sônia Nolasco. Um dia antes, no escritório da TV Globo, Francis falava do holocausto nefrológico ocorrido em Caruaru. Reclamava da reação tímida do governador Miguel Arraes, sinal de “desprezo pela opinião pública”. Queixava-se também do tempo insuficiente dedicado pelas TVs à cobertura da tragédia. Comparou: os telejornais noturnos dos Estados Unidos levaram ao ar reportagens de dez minutos sobre o caso daquela menina que morreu ao tentar pilotar um avião. Se uma tragédia como a de Caruaru tivesse ocorrido nos Estados Unidos – diz Francis – “dez repórteres estariam lá entrevistando todo mundo”.

A Editora Objetiva publica um livro que o jornalista pernambucano George Moura escreveu sobre um Paulo Francis praticamente desconhecido – o ator, diretor e crítico de teatro. A pesquisa teve cenas de odisseia: George Moura localizou, em velhos exemplares do já extinto Diário Carioca, nada menos de 1.238 críticas de teatro assinadas por Paulo Francis, ali pelo final de década de cinquenta, início da década de sessenta.

A redescoberta dos artigos tem um sabor extra: há décadas, Paulo Francis já exercitava, naquele estilo de frases curtas, sem rodeios, a indispensável “metralhadora giratória”. Tal virulência faz falta no jornalismo cultural que se pratica no Brasil.

A virulência do jornalismo cultural de Paulo Francis – exercido com brilho nas críticas teatrais – deve ser saudada com fogos. É óbvio que ninguém precisa concordar com os julgamentos de valor que ele faz. De resto, Francis não é candidato a nada, não anda à procura do voto de ninguém. Prefere dizer o que pensa. E o que ele pensa não se adapta à mentalidade mediana fundada sobre boas intenções “politicamente corretas”.

O alvoroço provocado por um comentário de Francis sobre o Nordeste é típico. Num artigo, ele chamou o região de “desgraçada”. O dicionário ensina que o adjetivo desgraçado se aplica a quem é “muito pobre, miserável, indigente” – cenário extremamente familiar a nós, nordestinos. Ou será que não ? É facílimo constatar. Basta passar quinze minutos em qualquer ruela da zona da mata, habitada por gente infestada de esquistossomose, crianças que jamais tiveram a chance de se alfabetizar, trabalhadores braçais que cumprem a rotina animalesca de trabalhar feito bichos para conseguir o mínimo necessário à sobrevivência – e assim por gerações & gerações & gerações.

A convivência com a miséria, já incorporada à paisagem nordestina, cega o observador. De tão visto, o quadro de absurdos passa a soar tão natural quanto o por-do-sol. Não é, obviamente. Acostumado a ver a fome como mera referência literária, qualquer europeu bem informado certamente se chocaria com a visão da desgraça em estado bruto nos grotões nordestinos. Se a paisagem da miséria não é “desgraçada”, então o que será ?

…Mas o livro do pernambucano George Moura sobre Paulo Francis são entra, obviamente, na discussão semântica sobre a palavra “desgraçado”. Apenas mostrará que um jornalismo cultural exercido com independência, com rigor de julgamento e com senso crítico extremado é um produto que faz bem a qualquer país em qualquer tempo.

Admiradores ou desafetos de Paulo Francis ganharão com a descoberta deste ex-crítico de teatro que agora, neste fim de tarde de um sábado de primavera, transita anônimo entre prateleiras de uma livraria no centro de Londres.

(*) O artigo “Quatro ou Cinco Coisas que Devem ser Ditas sobre o sr. Paulo Francis” foi publicado em maio de 1996, no Diário de Pernambuco. Meses depois desta expedição londrina, Francis estava morto. That´s life.

Posted by geneton at 12:57 PM

fevereiro 10, 2012

JARBAS PASSARINHO

UMA CENA DOS BASTIDORES DO REGIME MILITAR : O CORONEL QUE PODERIA TER SIDO PRESIDENTE


Bato na porta da casa de um personagem que poderia ter sido presidente da República durante o regime militar.

(Aos que desembarcaram ontem no Planeta Brasil: nem faz tanto tempo, a escolha do nome de quem ocuparia o posto de presidente da República não era tarefa dos milhões de eleitores. Dependia da vontade de um fechadíssimo colegiado de militares. O Congresso Nacional apenas referendava o nome de quem já tinha sido escolhido nos quartéis).

Quando o marechal Costa e Silva morreu, em 1969, o nome do coronel da reserva Jarbas Passarinho chegou a ser cogitado para sucedê-lo na Presidência da República.

Quem resolveu botar o nome de Passarinho na roda foi um general que, por coincidência, viria a ser o ungido : Emílio Garrastazu Médici. Coronel da reserva, Passarinho ocupava o Ministério do Trabalho no governo Costa e Silva.

O plano de Médici – o de submeter o nome do coronel da reserva Jarbas Passarinho ao crivo do colegiado verde-oliva como possível sucessor de Costa e Silva - não prosperou. Quando, por fim, foi indicado para a Presidência, o general Médici nomeou Passarinho para o Ministério da Educação. Em resumo : o homem que Médici queria ver na presidência terminou virando ministro do próprio Médici. Adiante,o general emitiria outro sinal de que queria ver Passarinho na Presidência.

Quem descreve estas cenas de um tempo em que voto popular para Presidência era um luxo inalcançável é o homem que esteve no centro destas cenas de bastidores do poder militar.

Ei-lo: o ex-ministro, ex-senador e ex-governador Jarbas Passarinho mora no fim de uma rua de pouquíssimo movimento no Lago Norte, em Brasília.

Solitário, contempla os livros da biblioteca abarrotada. Lá estão volumes e volumes de memória política e militar de personagens de todos os “matizes ideológicos”. Aqui, a ex-dama de ferro britânica Margareth Thatcher se mistura com o trotskista Jacob Gorender, autor de um volume que passa em revista a luta armada contra a ditadura militar.

Nossa expedição ao refúgio do ex-ministro rendeu um programa, o DOSSIÊ GLOBONEWS. Tive o cuidado de levar para a entrevista o áudio da famosa reunião em que o regime militar decretou o AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968. Ao justificar por que estava votando a favor do ato, o então ministro Passarinho fez, naquela sexta-feira aziaga de 1968, duas declarações marcantes. Primeiro, admitiu, sem meias palavras, que o país estava mergulhando numa ditadura. Em seguida, disse que mandava “às favas” todos os “escrúpulos de consciência”. Tanto tempo depois, o ministro ouviu, circunspecto, a gravação. Disse que, sob circunstâncias idênticas, assinaria de novo o ato, porque os chefes militares o convenceram de que, dentro da normalidade democrática, não conseguiriam manter a ordem. Certo de que,um dia, seria cobrado por ter assinado um ato que teria um efeito devastador sobre a democracia, Passarinho teve o cuidado de fazer um bilhete manuscrito, endereçado à mulher - D. Ruth – e ao filho mais velho. A reunião do AI-5 foi, claro, um dos temas da entrevista. O vídeo pode ser visto aqui:

http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1622262-17665-337,00.html

Dias depois, voltei a procurá-lo, para que ele descrevesse cenas que não chegaram a ser abordadas na gravação para a TV : o dia em que o general Médici emitiu um sinal de que queria ver Jarbas Passarinho entronizado no Palácio do Planalto.

A gravação:

O senhor foi cotado para suceder o presidente Costa e Silva. Em algum momento, o general Médici tratou com o senhor sobre este assunto ?

Jarbas Passarinho: “Daniel Krieger (senador pelo Rio Grande do Sul) conta que, quando Médici comandava o III Exército, o chamou a Porto Alegre para dizer que gostaria de levar ao comando uma chapa para a sucessão de Costa e Silva. A chapa que Médici submetia a Krieger seria: eu para a presidência da República e Daniel Krieger para a vice.

Num ato de extrema dignidade, Krieger, que era nosso guru político, concordou. Eu tinha passado pouco tempo no Senado naquele tempo, porque fui logo para o ministério. Médici trouxe a sugestão. E não foi bem sucedido na proposta de apresentar esta chapa ao colégio eleitoral”.

A chapa não foi bem sucedida porque o senhor não era general : era apenas coronel ?

Jarbas Passarinho: “A cena é atribuída a um dos generais mais prestigiosos – que disse: ”Gosto muito de Passarinho, mas não bato continência para coronel”…Isso foi muito falado – e nunca admitido”.

A frase é atribuída ao general Orlando Geisel…

Passarinho: “A frase foi atribuída a ele, mas não confirmada….”

Em algum momento na sucessão de Costa e Silva o general Médici chegou a falar com o senhor ou só falou com o senador Daniel Krieger ?

Passarinho: “O general Médici falou com Krieger, mas também com o Estado Maior do III Exército,em Porto Alegre. O coronel Hestel,membro do Estado Maior, me comunicou que o general Médici tinha dito a eles que iria fazer a proposta”.

Obviamente, a possibilidade de ser presidente da República lhe passou pela cabeça. O senhor chegou a pensar no que faria ?

Passarinho: “Não cheguei, talvez porque tivesse chegado, quase tranquilamente, à conclusão de que era, no caso da sucessão de Costa e Silva, o momento era muito prematuro para mim. Já no caso da sucessão do próprio Médici, ele teve uma palavra que fica comigo. Vim dos Estados Unidos, onde estava numa reunião dos ministros do trabalho das Américas. Médici me recebeu na Ilha do Governador, no Rio, onde estava preparando o governo. Neste momento, ele mostrou claramente, com palavras, algo que tenho guardado comigo….”

Ou seja: ele citou o senhor como o possível sucessor ?

Passarinho: “Houve um fato concreto: Médici estava fumando. Acabou de fumar. Enrolou o que restou do cigarro no maço e me passou aquilo. Como eu não fumava, na hora não entendi o gesto. Médici, então, me disse: “Quero lhe passar o bastão”. O governo Médici não tinha nem começado! Àquela altura, sete dos generais da minha turma já tinham as quatro estrelas. Hélio Fernandes tinha dito,na Tribuna da Imprensa, que eu não era benquisto. Os sete generais, então, escreveram uma carta em que falavam, claríssimamente, sobre o apoio que me davam”.

A cena do cigarro foi a última vez em que ele insinuou que o senhor poderia ser indicado ?

Passarinho: “Sim. Seis meses depois, numa conversa com Médici, eu disse: “Presidente, tenho muitas dificuldades, entre nós mesmos…”. E ele fez com a cabeça um sinal de “sim”, sem dar uma palavra”.

As ”diferenças” eram militares ?

Passarinho: “Não. Eu não sentia diferenças militares, porque nunca senti agressão neste sentido. O Exército sempre foi muito honroso para mim, o tempo todo, em todas as funções posteriores que exerci. Deu-me o título de professor emérito da Escola do Estado Maior e o diploma de doutor em ciências militares”.

As diferenças eram políticas, então. Havia grupos que não queriam que a candidatura Passarinho prosperasse. Que grupos eram esses ?

Passarinho: “Não identifiquei. Quando falei com o Presidente Médici, sabia que havia resistências a mim. Chegaram a pensar que eu era “infiltrado” na Revolução….”

Quanto à frase atribuída ao general Orlando Geisel – de que não bateria continência para um coronel : vem daí a distância do senhor em relação ao presidente Geisel ?

Passarinho : “A distância minha com Geisel era muito marcada porque o gabinete, chefiado na Casa Civil pelo general Golbery, tinha, contra mim, argumentos políticos que envolviam o Pará. Defendiam o rapaz que foi meu aluno, meu cadete e, depois, meu tenente, com quem fui capitão e com quem eu tinha rompido- o tal do Alacid ( Passarinho refere-se a Alacid Nunes – que foi indicado pelo general Geisel,em 1978, para governar o Pará). O general Moraes Rego, meu colega na Escola Preparatória de Cadetes, em Porto Alegre, também era deste grupo – que procurava me atingir de qualquer maneira, ainda que sem nenhum motivo. Não apresentavam nenhum fato real. Era apenas : “Não cabe, não tem sentido” . De qualquer maneira, não fiz nada no sentido de voltar ao governo do Pará. Não tinha nenhuma aspiração. O meu desejo era ficar junto com os meus. Não iria me separar da família aqui em Brasília. Fui, então, deslocado para o posto de líder do governo Figueiredo. O presidente Geisel,numa carta que tenho, diz que não teve nada com a escolha,mas que compreendeu que minha ida para o governo Figueiredo era muito mais importante. O “ciclo militar”, aliás, já estava declinante. Chamo de “ciclo”. Regime militar o que conheci no Peru. Quando fui lá, em visita oficial, o general Alvarado começou o discurso dizendo assim: “O governo das Forças Armadas e do povo do Peru”. Isso é que entendi como governo militar”.

O principal motivo,nos anos dos governos militares, foi, afinal, o fato de a patente do senhor não ser a de general ?

Passarinho: “Nunca foi confirmada nem nunca foi desmentida esta história de que Orlando Geisel teria dito que não bateria continência para coronel. Orlando Geisel me tratava muitíssimo bem, diferente do Ernesto Geisel- que tinha reservas que membros do gabinete constituíram…Quando já estávamos no governo Figueiredo, Golbery me disse : “Eu não podia comparar Alacid com vosmicê”…Golbery tinha a mania de chamar os outros de “vosmicê”. Mas disse que foi subordinado do general Cordeiro de Farias. E Cordeiro era inteiramente ligado a Alacid – que foi ajudante de ordens…”.

O fato de não ter sido,no final das contas, Presidente da República virou uma frustração para o senhor ?

Passarinho: “Digo, com absoluta sinceridade, que não virou”.

Posted by geneton at 07:26 PM

janeiro 27, 2012

JOSEPH PETRO

AGENTES DO SERVIÇO SECRETO NÃO SAEM DE PERTO DO PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS – NEM NA HORA EM QUE ELE PRECISA FAZER UMA COLONOSCOPIA

A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS, uma entrevista exclusiva com o ex-agente do Serviço Secreto encarregado de trabalhar diretamente com o Presidente dos Estados Unidos.

Um agente do Serviço Secreto americano recebeu uma missão inesperada durante a festa da posse do presidente Fernando Collor de Mello, em 1990. Joseph Petro passou anos trabalhando diretamente na proteção do Presidente Ronald Reagan. Depois, recebeu a missão de proteger o vice-presidente de George Bush pai, Dan Quayle.

Quayle viajou a Brasília, para representar o presidente americano na posse de Collor. Fidel Castro era um dos convidados para a festa. O vice-presidente dos Estados Unidos fez um pedido ao agente do Serviço Secreto que o protegia: disse que não queria ser fotografado ao lado de Fidel. E agora ?

Diz o ex-agente:

“Tive uma experiência interessante no Brasil. Estive lá com o vice-presidente Dan Quayle, durante a posse do presidente Collor. Houve uma recepção à qual compareceram todos os chefes de Estado, inclusive Fidel Castro – de Cuba. Eu lembro de que o vice-presidente me disse que era importante que ele não encontrasse Fidel Castro. Eu deveria fazer todo o possível para mantê-lo longe de qualquer local próximo a Castro, de modo que eles não precisassem se cruzar. Porque a imprensa estava lá filmando tudo. Por questões diplomáticas e políticas, era importante não acontecer aquele encontro em público. Eu e outro agente ficávamos trocando o vice-presidente de lugar. Um ficava de olho em Castro, para garantir que eles estivessem em partes diferentes da sala a noite toda”.

Em entrevista exclusiva gravada em Nova York, Joseph Petro revela quais são as técnicas que um agente do Serviço Secreto usa para identificar suspeitos numa multidão. Descreve, também, qual é a diferença básica entre um agente do Serviço Secreto e um policial comum.

Em resumo: um agente do Serviço Secreto é treinado para não reagir instintivamente. Quando ouve um tiro, qualquer pessoa tem uma reação instintiva: fica agachada para se proteger. Se estiver armada, provavelmente apontará para a origem dos tiros. Quando ocorre o chamado AOP ( abreviatura em inglês de Ataque Contra o Principal ) – ou seja: um atentado contra o Presidente -, os agentes do Serviço Secreto reagem de uma maneira totalmente diferente. Em vez de se agacharem, eles se jogam sobre o Presidente, para protegê-lo e tirá-lo do local o mais rápido possível. Petro diz que quem analisar com cuidado as imagens do atentado contra Ronald Reagan distinguirá com toda clareza quem é agente do Serviço Secreto e quem é policial comum. A reação aos tiros é totalmente diferente.

Um detalhe: o Presidente dos Estados Unidos é obrigado, por lei, a ser acompanhado por um agente do Serviço Secreto assim que sair da Casa Branca. Queira ou não queira, o Presidente é obrigado a ter esta companhia – nem sempre desejável. Ao gravar a entrevista para a Globonews, Petro preferiu não usar a palavra “colonoscopia” diante da câmera. Mas acompanhou o Presidente Ronald Reagan quando ele submeteu a uma colonoscopia, um exame invasivo. Neste momento, tudo o que o agente pode fazer é disfarçar o constrangimento:

“O Serviço Secreto, por lei, deve proteger o presidente 24 horas por dia, onde quer que ele ou ela esteja. Há ocasiões – diz Joseph Petro – em que o presidente vai fazer exames em um hospital. E um agente deve estar presente! Quando o presidente Reagan foi ferido, Jerry Parr, que era chefe da segurança, passou a noite com ele no hospital, dentro da sala de cirurgia, enquanto ele era operado”.

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janeiro 20, 2012

PRISCILLA JOHNSON MCMILLAN

MULHER QUE INTERROGOU ASSASSINO DO PRESIDENTE KENNEDY DIZ À GLOBONEWS QUE LEE OSWALD APERTOU O GATILHO PORQUE QUERIA ENTRAR PARA A HISTÓRIA

A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS, uma entrevista exclusiva com a mulher que teve a chance de interrogar longamente aquele que, pouco tempo depois, se tornaria um dos mais célebres assassinos da História: Lee Harvey Oswald, o homem que matou o Presidente John Kennedy.

Uma busca rápida na Amazon – a maior livraria virtual do planeta – indica que há 5.351 livros sobre o assassinato do presidente Kennedy. É uma obsessão americana.

Alguém já disse que é fácil explicar a existência de tantas e tantas teorias conspiratórias sobre o crime : é difícil imaginar que um homem fracassado, anônimo, desimportante e confuso possa, sozinho, tirar a vida de um Presidente jovem, bem-sucedido, carismático e popular. Mas pode. E foi o que aconteceu. Como a desimportância do assassino não combina com a dimensão da tragédia, os chamados “conspiracionistas” produzem, até hoje, todo tipo de teoria para dar um toque de grandeza à trama.

O novo livro de Stephen King, fabricante habitual de best-sellers, chama-se….”22/11/1963″. Aos que nasceram ontem: sexta-feira, 22 de novembro de 1963, foi a data em que o um ex-fuzileiro naval chamado Lee Oswald disparou três tiros contra a comitiva do Presidente Kennedy numa praça em Dallas, no Texas.

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(22/11/1963: o Presidente Kennedy desembarca em Dallas com Jaqueline. Meia hora depois, seria atingido pelas balas de Lee Oswald)

Jonathan Demme, diretor do filme “Silêncio dos Inocentes”, não perdeu tempo: já comprou os direitos para filmar o livro. O enredo não chega a ser original, mas deve garantir um bom filme de suspense: alguém descobre que uma universidade americana desenvolve secretamente uma experiência de viagem no tempo. Resultado: volta ao dia 22 de novembro. Tenta influir no chamado “curso dos acontecimentos”.

Já se perdeu a conta de quantas e quantas teorias conspiratórias foram arquitetadas para tentar explicar a morte de Kennedy. Autores sérios – como o advogado Gerald Posner, autor do excelente “Case Closed” – confirmam: todas as análises feitas até hoje comprovam, sem sombra de dúvida, que as balas que mataram Kennedy só podem ter vindo de um lugar, com exclusão de todos os outros - a janela do sexto andar do Depósito de Livros Escolares do Texas. É uma questão de balística. Todo o resto é hipótese sem comprovação prática.

As balas só podem ter saído de uma arma: justamente, o rifle que foi encontrado na janela. As ranhuras encontradas nas balas que atingiram o Presidente casam perfeitamente com o rifle. E o rifle pertencia a uma pessoa, sem qualquer dúvida : Lee Harvey Oswald. A história se fecha assim.

O promotor Vincent Bugliosi publicou há pouco um livraço de mil e tantas páginas chamado “Reclaiming History: The Assassination of President Kennedy”. Passou vinte anos pesquisando as circunstâncias do assassinato. Queria publicar o livro definitivo sobre o caso. Tive a curiosidade de ler os principais trechos. Bugliosi não deixa margem a dúvidas: Oswald foi o único atirador. Os que acreditam em teorias conspiratórias podem continuar imaginando todas as conexões possíveis, mas os fatos são indesmentíveis: Oswald disparou três tiros contra o carro do Presidente. Acertou dois. Ponto final.

A BBC de Londres produziu um documentário chamado “Kennedy Assassination : Beyond Conspiracy”, encontrável, aliás, no You Tube, como quase tudo que se produz no planeta…O documentário prova - com tecnologia de hoje - que Oswald foi o único atirador.

O fato de Oswald ter sido assassinado dois dias depois, diante das câmeras de TV, por Jack Ruby, dono de boate revoltado com a morte do Presidente, só serviu para alimentar a torrente de teorias. De novo: jamais alguém conseguiu provar consistentemente a existência de vínculos entre Jack Ruby e a Máfia, por exemplo.

Justiça se faça: há teorias conspiratórias que fazem todo sentido. O problema é que pesquisadores sérios não podem ( nem devem ) se deixar levar pelas tentações da imaginação. Um exemplo: uma das mais recorrentes teorias diz que Kennedy planejava promover, no final de 1963, uma redução do número de tropas americanas deslocadas para o Vietnam. A intenção de Kennedy foi descrita num documento. O chamado “complexo industrial-militar” não teria gostado nada da ideia porque perderia bilhões de dólares. Indústria armamentista vive de guerra. Resultado: a mão invisível do tal “complexo industrial militar” teria tramado o assassinado do Presidente. Faz sentido ? Faz. Mas, uma voz impertinente pergunta, para silêncio geral: cadê as provas ?

O diretor Oliver Stone assume esta teoria conspiratória, no filme JFK. É um bom filme de “suspense”. Em alguns momentos, é arrebatador, como na cena do assassinato. Não por acaso, ganhou o Oscar de melhor montagem. Mas não se segura como documento histórico, porque apresenta como verdade consumada aquilo que é, na melhor das hipóteses, uma teoria discutível.

O irmão de Lee Oswald, Robert Oswald, resolveu parar de falar sobre o caso. Incomodei-o por telefone. O homem poderia ter desligado na hora por ter sido importunado pela enésima vez. Mas foi razoavelmente atencioso. Deu-se ao trabalho de dizer que - de uns anos para cá – resolvera guardar silêncio sobre o irmão . Já dissera e repetira que não tinha dúvidas de que Oswald agira sozinho. Numa gravação para a TV americana, disse que “se houve alguma conspiração, foi dentro da cebaça de Lee” . Ainda assim, Robert Oswald pediu que eu escrevesse dizendo o que eu queria. A mensagem – um pedido de entrevista - ficou sem resposta.

2013 vai marcar os cinquenta anos da morte de Kennedy. Vem aí uma torrente de livros, além do filme de Jonathan Demme. A obsessão continua. Mas tudo que tinha de ser investigado já foi. Não há crime que tenha sido tão esmiuçado. Cada metro quadrado da Dealey Plaza foi vasculhado. Cada frame de cada filme foi dissecado. E nada: ninguém nunca conseguiu provar que houve outro atirador, além do solitário Oswald, escondido na janela do sexto andar.

Gravei em Boston uma entrevista com Priscilla Johnson McMillan, a mulher que teve a chance de interrogar longamente Lee Oswald, em Moscou, na época em que ele tentava conseguir uma cidadania soviética. Tempos depois, ele se tornaria um dos mais célebres assassinos da História. Resultado: Priscilla virou fonte importante de consulta sobre Lee Oswald. Porque pode dar um depoimento pessoal sobre ele. Priscilla foi ouvida pela comissão que investigou o assassinato do presidente. Terminou escrevendo um livro, hoje esgotado, objeto de desejo de colecionadores : “Marina & Lee” . Priscilla Johnson ficou amiga íntima da viúva de Lee Oswald, uma russa chamada Marina, fonte fundamental para o livro.

Por uma grande coincidência, ela tinha trabalhado com o então senador John Kennedy. É a única pessoa que conheceu tanto o Presidente quanto o assassino. Historiadora e jornalista, Priscilla já publicou livros sobre outros temas, como o ex-líder soviético Nikita Kruschev. Mas nada ocupa tanto suas atenções quanto a história daquele ex-fuzileiro que subiu ao sexto andar do Depósito de Livros, com um rifle camuflado, disposto a sair de uma vez por todas do anonimato.

Trechos da entrevista de Priscilla Johnson McMillan para a Globonews, em que ela dá pistas sobre o homem Lee Harvey Oswald :

“Marina – com quem conversei por vários meses - me contou que ela e o marido falavam muito sobre os Kennedy. Falavam sobre os filhos e as ideias de Kennedy. Oswald parava para ouvir quando Kennedy falava no rádio. Os Oswald não tinham televisão em casa. Marina me contou que tivera em Minsk, na Rússia, um namorado que se parecia com Kennedy. E ela mantinha na mesa da sala de estar, nos EUA, uma foto de Kennedy, tirada da revista “Life”, para se lembrar do namorado. Logo no início de 1963, ela escreveu ao ex-namorado dizendo: “Eu me arrependo de ter casado com Lee Oswald. Queria ter casado com você.” Mas Oswald interceptou a carta… Depois de visitar Oswald na prisão, quando ele foi preso por matar o policial Tippit e, possivelmente, por matar o presidente, Marina viu que ele parecia muito arrependido. Ela me disse: “Eu vi a culpa em seus olhos”. A irmã do presidente Kennedy, Eunice, uma vez me perguntou: “Por que Oswald odiava tanto meu irmão a ponto de matá-lo”? Tive que responder: “Oswald gostava do seu irmão. Gostava de Jacqueline Kennedy.” Mas havia vários aspectos de Kennedy que faziam com que Oswald quisesse se parecer com ele. Kennedy era um escritor com livros publicados. Oswald queria ser escritor. Kennedy era um oficial da marinha que lutara na Segunda Guerra Mundial. Oswald fora fuzileiro naval, mas fora rebaixado duas vezes do posto de cabo para o de marinheiro. Kennedy era um grande herói. Oswald gostaria de ser um. Como o presidente, Oswald era casado e tinha dois filhos. Havia semelhanças. Oswald lia bastante sobre Kennedy. Discordava de algumas de suas políticas, mas concordava, principalmente, com a dos direitos civis. Havia,então, esse apreço. É preciso se importar e gostar de uma pessoa antes de odiá-la a ponto de querer matá-la”.

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(Lee Oswald: cem por cento dos estudos sérios o apontam como único atirador)

“O maior motivo pelo qual Oswald matou Kennedy foi entrar para a História. Depois que Oswald saiu da minha sala, - já era tarde da noite -, sentei à minha escrivaninha e escrevi um artigo sobre ele. Eu levei a história no dia seguinte ao Telégrafo Central de Moscou, onde a imprensa ocidental submetia seus artigos ao censor. Entreguei meu artigo, mas o censor não cortou nada. Perguntei a Oswald que vida ele levaria se ele tivesse que voltar aos EUA. Oswald me disse: “Minha mãe trabalhou a vida toda. É um bom exemplo do que acontece com trabalhadores nos EUA.” Oswald achava que se tornaria apenas um trabalhador comum e teria uma vida horrível, como ele achava que a mãe tinha nos EUA”.

“Marina me contou que Oswald não teria cumprido ordens, não teria participado de uma conspiração. Se alguém lhe dissesse para atirar em outra pessoa, ele se recusaria pelo simples fato de que alguém mandou que o fizesse. Oswald resistia tanto a receber ordens que não teria atirado em ninguém se alguém o mandasse fazer algo assim. Teria feito o contrário”

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novembro 25, 2011

BONI

BONI PERGUNTA ONDE ESTARÁ FILME QUE MILITARES “ARRANCARAM DA MOVIOLA” NA SEDE DA TV GLOBO (E DÁ A FÓRMULA IDEAL PARA A TV : O SEGREDO É FAZER O POPULAR BEM-FEITO)

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Boni: memória da tevê brasileira (Foto: Luciano Gazio)

A Globonews reapresente neste domingo, às 17:05, uma entrevista especial com um homem que entrou para a história da TV brasileira: José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Durante três décadas, ele foi o principal executivo da Rede Globo. Entre outros temas, Boni descreve, por exemplo, o sumiço de um filme que foi confiscado por militares na sede da Rede Globo, no Jardim Botânico, no governo Médici. Fala sobre a censura à primeira versão da novela Roque Santeiro. E dá a receita da “filosofia Boni” para a TV.

Um trecho da entrevista:

Você diz que o filme sobre a morte do guerrilheiro Carlos Lamarca foi confiscado por militares na ilha de edição na TV Globo. Você fez alguma gestão para tentar reaver este material ?

“Todos nós fizemos. O filme foi retirado ainda na montagem. Naquele tempo, era filmado ( N: o vídeotape já existia, mas as equipes de jornalismo usavam filmes, na época. A substituição de filme por VT, no jornalismo, só ocorreria anos depois ) . E o filme foi arrancado da moviola. Fiz gestões. Armando Nogueira ( N: à época, diretor da Central Globo de Jornalismo, a CGJ) fez gestões, Alice Maria (diretora-executiva da CGJ) também. O próprio Dr. Roberto Marinho ( presidente das Organizações Globo ) entrou no assunto, porque, afinal de contas, ele tinha um argumento: Lamarca estava morto. Não há o que esconder. As fotos tinham sido publicadas nos jornais do dia seguinte. Mas, não sei por que razão, o filme não só foi confiscado, como sumiu. Não sei onde foi parar o filme que foi arrancado da moviola. A gente não entendeu qual o motivo, porque não havia qualquer intepretação que pudesse comprometer nada”.

( Depois de abandonar o Exército, o capitão Carlos Lamarca de integrou à guerrilha. Fez parte da Vanguarda Popular Revolucionária ( VPR ). Terminou morto no interior da Bahia, em setembro de 1971 )

Tevê é tempo. Você poderia resumir em um minuto a filosofia televisiva de Boni ? Qual é o primeiro mandamento ?

Boni : “Posso. O primeiro mandamento é o seguinte: fazer o popular bem-feito. Há duas coisas muito fáceis de fazer na televisão: o hermético – que ninguém entende - e o popularesco, que todo mundo entende. O meio disso - o popular bem-feito – é muito difícil de fazer! É uma linha tênue – que você tem de observar com muito cuidado. A receita é você sempre estar um degrau acima do público – e não um degrau abaixo, para servir ao público. Temos de melhorar o público e ter responsabilidade social. A televisão não é apenas um entretenimento. A tevê tem alguma coisa a fazer pelo país e pela comunidade. Devemos, sempre, pensar nesta questão: a de fazer alguma coisa que seja útil. Que o conteúdo e a forma tragam alguma contribuição para o telespectador”.

Boni lança, no dia 30, “O Livro de Boni”, numa noite de autógrafos que, obviamente, promete ser concorridíssima, no Copacabana Palace.

Posted by geneton at 01:22 PM

novembro 20, 2011

JIMMY CARTER E DESMOND TUTU

PRESIDENTE DOS EUA QUERIA VER DOM PAULO EVARISTO ARNS ELEITO PAPA

A Globonews exibe, neste domingo, às 17:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS, a entrevista completa com dois ganhadores do Prêmio Nobel da Paz: o ex-presidente Jimmy Carter e o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, herói da luta contra a discriminação racial.

Quando era presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter cumpriu um ritual : ao fim de cada jornada de trabalho, ditava para um gravador, sem qualquer autocensura, suas impressões pessoais sobre o que tinha visto e ouvido ao longo do dia.Um trecho foi publicado num livro inédito brasil: “O Diário da Casa Banca : Jimmy Carter” ( The White House Diary : Jimmy Carter ).

Há referências a dois brasileiros. Agora, é possível saber que um presidente americano queria ver um cardeal brasileiro escolhido Papa:

“De início, fiquei confuso sobre quem era o cardeal Arns, porque ele agia com modéstia. Depois, eu o convidei para ir conosco, no carro, até o aeroporto. Eu realmente gostei desta conversa pessoal. É um homem extremamente bom. Com certeza,eu gostaria que ele um dia fosse Papa. É extremamente corajoso”.

Carter confessadamente criou dificuldades para que o Brasil adquirisse tecnologia nuclear da Alemanha ( ver post anterior) , mas simpatizou com o presidente Ernesto Geisel:

“Eu, pessoalmente, gostei muito do presidente Geisel. É um cavalheiro idoso, militar, franco, honesto, brusco; agiu com certa frieza ao fazer o discurso de boas vindas. Recusei a sugestão do secretário Zbigniew Brzezinski de que fôssemos frios também. Fiz um a declaração muito calorosa”.

Por uma grande coincidência, meses depois do comentário que Carter fez em seus diários pessoais sobre o desejo de ver Dom Paulo eleito Papa, haveria não apenas uma,mas duas eleições no Vaticano. Morto Paulo VI, os cardeais elegeram o cardeal italiano Albino Luciani - que escolheu o nome de João Paulo I. O papado de João Paulo I duraria pouquíssimo: um enfarte o matou apenas trinta e três dias depois da eleição – uma notícia que chocou o mundo. O polonês Carol Woitila foi eleito Papa. Em homenagem ao antecessor, adotou o nome de João Paulo II. Dom Paulo Evaristo Arns participou de ambas as eleições – como eleitor.

Aos noventa anos de idade, recém-completados, Dom Paulo Evaristo Arns hoje vive, recolhido, numa instituição religiosa no interior de São Paulo.

Posted by geneton at 01:22 PM

novembro 18, 2011

JIMMY CARTER

JIMMY CARTER CONFIRMA: ESTADOS UNIDOS NÃO QUERIAM QUE REGIME MILITAR BRASILEIRO FABRICASSE ARMA ATÔMICA

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(Carter: pressão para que o Brasil não tivesse arma atômica)

A Globonews reapresenta nesta domingo,às 17:05, uma entrevista exclusiva com dois ganhadores do Prêmio Nobel da Paz : o ex-presidente americano Jimmy Carter e o arcebispo Desmond Tutu, herói da luta contra a discriminação racial. A entrevista dos dois ao DOSSIÊ GLOBONEWS foi a única que eles gravaram para a televisão durante a passagem pelo Rio de Janeiro – onde participaram da reunião do The Elders. Fundada por Nelson Mandela, o grupo The Elders reúne ex-governantes e ex-líderes políticos que tentam solucionar conflitos internacionais e influenciar na luta contra a desigualdade e a opressão.

Durante a gravação, o ex-presidente americano confirmou que interferiu pessoalmente, junto ao chefe de governo da Alemanha Federal, para evitar que o Brasil fabricasse uma arma atômica. O governo Carter via com preocupação uma “corrida armamentista” entre o Brasil e a Argentina. Hoje, Carter defende o fim de todas as armas atômicas.

Um trecho da entrevista:

Para efeito the registro histórico : O senhor pressionou a Alemanha a não vender tecnologia nuclear para o Brasil, nos anos setenta. A pergunta é: o que é que o senhor disse ao chefe do governo alemão, Helmut Schmidt, sobre o presidente brasileiro, o general Ernesto Geisel ?

Carter: “Quando fui eleito presidente, havia uma corrida nuclear entre a Argentina e o Brasil para desenvolver a capacidade de produzir armas nucleares. Mas o Tratado de Tlatelolco bane as armas nucleares em toda a América Latina. O Brasil e a Argentina estavam violando esse tratado. Vim ao Brasil. Falei com o presidente Geisel. Depois, minha mulher veio e conversou com o presidente. A Alemanha estava fornecendo a tecnologia ao Brasil. A Suíça a estava fornecendo à Argentina. Fui à Suíça e à Alemanha. Falei com Helmut Schmidt, que era chanceler, na época. Pedi que ele parasse de fornecer a tecnologia ao Brasil, para evitar que o Brasil conseguisse produzir armas nucleares. E, finalmente, por causa disso e de outras coisas, o Brasil tomou a decisão correta de não desenvolver a capacidade de fabricar armas nucleares”.

Alguém não muito simpático aos Estados Unidos poderia argumentar: por que os Estados Unidos podem ter toda a capacidade nuclear do mundo mas outros países não podem ?

Carter : “Como você sabe, ao final da Segunda Guerra Mundial cinco nações se tornaram potências nucleares: Estados Unidos, União Soviética, França, Reino Unido e China. Minha esperança, meu discurso público, minha crença e meu compromisso, desde quando eu era presidente, era banir todas as armas nucleares. A política do Elders é tentar trabalhar para o fim das armas nucleares. Mas, desde aquela época, outros países desenvolveram armas nucleares. Israel tem um grande arsenal, como você deve saber. A Coreia do Norte, que visitamos no começo do ano, tem uma pequena quantidade de armas nucleares. Nós acreditamos que todas as armas nucleares deveriam ser eliminadas da face da Terra. E eu acredito que os EUA e a Rússia devem ser os primeiros”.

Posted by geneton at 01:24 PM

outubro 22, 2011

PAULO BROSSARD

O DIA EM QUE SARNEY DECIDIU RENUNCIAR À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (O EX-SENADOR PAULO BROSSARD FAZ UMA VIAGEM AO “BOULEVARD DA MEMÓRIA”, ÀS VÉSPERAS DE COMPLETAR 87 ANOS. E EXPLICA: O QUE SERÁ A “FATALIDADE HISTÓRICA DOS ALGARISMOS ?”)

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Brossard: uma expedição ao País da Memória, às vésperas dos 87 anos de idade (Foto: Ricardo Chaves)

A Globonews exibe, neste domingo, ao meio-dia e meia, uma entrevista gravada em Porto Alegre com o senador que já foi líder da oposição no Senado durante o regime militar: Paulo Brossard. Aqui, um texto que este repórter escreveu para o jornal Zero Hora:

O então ministro da Justiça Paulo Brossard foi o primeiro brasileiro a saber que o Presidente da República iria renunciar ao mandato. A notícia bombástica lhe foi dada pelo próprio Presidente, numa audiência no Palácio do Planalto. “Fiquei um tanto perplexo” – resume, hoje, Brossard, às vésperas de completar 87 anos de idade.

O presidente era José Sarney, o vice que chegara ao cargo num inacreditável golpe do destino: como se sabe, o presidente eleito, Tancredo Neves, foi internado num hospital na véspera de tomar posse. Não se recuperaria. Quando foi entronizado na Presidência, Sarney tinha diante de si seis anos de mandato. A duração do mandato fora reduzida para cinco. Mas uma porção considerável do Congresso queria porque queria estabelecer uma nova redução do mandato – desta vez, para quatro anos. O presidente perdeu a paciência. Chegou à conclusão de que perderia as condições políticas de governar se o Congresso reduzisse para quatro anos o mandato presidencial.


O que fez Sarney ? Chamou o ministro Brossard para dizer que a decisão estava selada: iria renunciar. O país certamente enfrentaria turbulências : se Sarney renunciasse ali, em 1988, não havia um vice à mão para assumir. O presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, teria de convocar imediatamente uma eleição para Presidente da República. Acontece que o Congresso estava mergulhado na preparação de uma nova Constituição. Uma eleição inesperada, ali, atropelaria os trabalhos da Constituinte, além de jogar para o ar o calendário da redemocratização.

O senhor diz que ficou “perplexo”. Quando o Presidente lhe disse que iria renunciar, o senhor tentou demovê-lo ? – pergunto, durante a gravação da entrevista para o Dossiê Globonews (Canal 40 da Net).

“Não” – responde, firme, Brossard. “Eu tinha perguntado ao Presidente se aquilo era uma inclinação, uma hipótese ou uma resolução. Quando ele me disse que era uma resolução, eu disse: “Então, vamos tratar como uma resolução!”.

Brossard descreve o drama que estava se armando no Palácio do Planalto:

“Eu disse ao Presidente: “Compreendo a situação. Mas estou agora numa situação extremamente desconfortável. Porque – sabendo deste fato e nada fazendo – não cumpro o meu dever com o País. Ao mesmo tempo, não posso tomar qualquer iniciativa à revelia do senhor”.

O que fez o então ministro ? Avisou ao Presidente que iria convocar para uma “reunião reservada”, de manhã cedo, na sede do Ministério da Justiça, os líderes dos quatro maiores partidos: Ulysses Guimarães (PMDB), Jarbas Passarinho (PDS), Marco Maciel (PFL) e Paiva Muniz (PTB). Assim foi feito. O ministro disse aos quatro que, diante da pressão pela redução do mandato, o Presidente decidira abandonar o cargo. Os quatro ficaram tão perplexos quanto o ministro tinha ficado. Deixaram o Ministério discretamente, sem atrair a atenção de ninguém. Nenhum repórter viu o quarteto entrar ou sair do prédio. “Não tinha ninguém no Ministério. Não houve jornal que publicasse. Nada, nada”, descreve Brossard.

Depois da reunião secreta, a campanha pelos quatro anos arrefeceu. Brossard aposta que os quatro líderes trataram de alertar os seus liderados mais exaltados sobre o que estava para acontecer. O certo é que a renúncia não se consumou. Sarney, como se sabe, cumpriu cinco anos de mandato.

O ex-ministro produziu um documento sobre esta cena dos bastidores do Poder. Redigiu um relato de sessenta e cinco linhas sobre a ameaça de renúncia. Tratou de mandar uma cópia do relato para o próprio Sarney e os dois sobreviventes do quarteto de líderes partidários: Marco Maciel e Passarinho. Pediu que os três atestassem, por escrito, que o relato era fiel aos fatos. Os três atenderam ao pedido. Num gesto raro entre políticos, Brossard disse que vai encaminhar o documento à Biblioteca Nacional e ao Instituto Histórico e Geográfico.

O que é que alimenta um político já afastado da ribalta ? A memória, esta entidade impalpável mas fascinante – é o que penso, enquanto, diante de mim, o ex-ministro descreve com detalhes cenas de que foi personagem e testemunha privilegiada.

Agora, é o repórter que embarca no Boulevard da Memória.

CHEGA DE ESCURIDÃO

A palavra é esta: um acontecimento.

A chegada do então líder da oposição Paulo Brossard ao Recife era um acontecimento ali, na segunda metade dos anos setenta.

Eu fazia parte daquele pequeno enxame de repórteres abelhudos que iam ao Aeroporto dos Guararapes em busca de alguma estocada que, com certeza, o senador iria desferir contra as arbitrariedades do general que dava plantão na Presidência da República ( Pernambuco não era brincadeira: era a terra de Miguel Arraes – o governador de deposto e exilado; Francisco Julião, o líder que queria fazer reforma agrária “na lei ou na marra” e Gregório Bezerra, o militante comunista que fora arrastado pelas ruas feito bicho. O Estado era uma das bases de operações dos “autênticos” do MDB. Ainda assim, víamos o Rio Grande do Sul com uma ponta de inveja e admiração: a cada vez que fossem abertas, as urnas da terra de João Goulart, Leonel Brizola, Paulo Brossard e Pedro Simon haveriam de pronunciar sempre um rotundo “não” à ditadura. Nem sempre foi assim, claro, mas uma indefinível mística gaúcha reverberava lá do outro lado do Brasil). Havia um tom ligeiramente épico em imagens como aquela de Paulo Brossard montado num cavalo no dia em que venceu a eleição para o Senado Federal.

A gente sabia que, logo depois de desembarcar no Recife, o senador tiraria o chapéu, se acomodaria numa poltrona do terminal de desembarque , passaria a mão na testa e pronunciaria um punhado de frases ferinas – com aquelas pausas brossardianamente dramáticas e aqueles gestos brossardianamente teatrais. A bem da verdade, as pausas da fala do senador seriam um desastre para a televisão. Mas, oh tempos, as TVs não costumavam acompanhar as perorações de senadores inconvenientes. Já os gestos teatrais faziam a alegria dos fotógrafos.

Uma vez, acompanhei uma expedição do senador pelo agreste pernambucano. Meus arquivos não tão implacáveis guardam uma foto tirada num comício: num canto do palanque, eu, repórter de jornal, vinte anos de idade, ouvia o que aquele senador que vinha dos Pampas tinha a dizer à multidão reunida numa praça de Caruaru, sob a lua clara do agreste. O ano: 1976. O discurso dizia : chega de arbítrio, chega de eleições indiretas, chega de exilados, chega de cassações, chegada de AI-5. Ah, em nome do Brasil, chega de escuridão.

Três décadas e meia depois, desembarco no casarão do senador, num bairro batizado com um nome que causa certa estranheza aos meus ouvidos pernambucanos: Petrópolis. Quem diabos terá tido a ideia de batizar aquele pedaço de Porto Alegre com o nome de uma cidade fluminense ? “Colonos alemães”, responde prontamente o Dr. Google.

Lá vem Paulo Brossard. Em algum ponto do salão devo ter visto um chapéu, pendurado num cabide (ou terá sido uma alucinação visual provocada pela lembrança das andanças pernambucanas do senador?) . As paredes estão entulhadas de livros. As estantes guardam raridades bibliográficas como uma coleção completa da Documentos Brasileiros, a coleção que Gilberto Freyre dirigiu nos anos quarenta na Editora José Olympio.

Quando Brossard subia à tribuna, para disparar petardos contra o arbítrio do regime dos generais ou para disputar pelejas com o líder do governo, Jarbas Passarinho, o Senado ouvia com reverência. Que palavras hoje seriam capazes de eletrizar o eleitorado ?

O discurso emociona, ainda hoje. Interrompido aqui e ali por aplausos, Brossard bradava:

“Daqui, diremos ao Brasil: a nossa vitória está longe ainda de ser alcançada. Mas, dia mais, dia a menos, ela virá, pela voz dos homens que, no fundo das trevas, não perdem esperança” – brada a voz de Brossard, num discurso de 1979, preservado no site do Senado Federal.

( http://www.senado.gov.br/senado/grandesMomentos/brossard.shtm#senador1 )

Imagino: se um dia, em meio a uma caminhada solitária entre as estantes, o senador se der ao trabalho de ouvir gravações como esta, haverá de respirar aliviado, porque sabe que, lá atrás, naquele tempo de trevas, ele estava do lado certo : brigava pela volta da democracia.

“Daqui,diremos ao Brasil….”

O repórter sente a tentação de roubar as palavras do tribuno: daqui, diremos ao Brasil…..que o senador vai bem, obrigado. Os quase oitenta e sete anos lhe pesam nos ombros. O homem já não se move com tanta facilidade. É natural. O outono, quando chega, é assim. Mas a fluência é espantosa. A memória não claudica em momento algum. Os cabelos e o bigode algo acinzentados combinam com a cor do paletó. A gravata é consistentemente preta. ( É curioso como nenhum senador é chamado de “ex”. O título de senador passa o resto da vida colado ao nome de quem um dia ganhou um mandato).

Daqui, diremos ao Brasil que, durante a entrevista para a Globonews, Brossard falou de um telefonema dramático que recebeu do então líder do governo, Jarbas Passarinho, pouco depois do atentado ao Riocentro. Passarinho disse a Brossard que tinha falado com o Presidente Figueiredo. O governo iria apurar o caso.

Apurou nada.

Depois, Brossard descreveria uma cena inesquecível: uma conversa com o Comandante Fidel Castro, em Cuba. Quando soube que o delegação tinha viajado a Cuba num avião de fabricação brasileira, Fidel tirou do bolso uma caderneta e começou a fazer contas, até concluir que aquele tinha sido uma boa iniciativa. Em seguida, Fidel falou “com a mais absoluta tranquilidade e serenidade” sobre a execução de dissidentes cubanos. Brossard pensou que Fidel iria demonstrar algum constrangimento ao tocar em tema tão controverso.

Demonstrou nada.

E o telefonema que Brossard receberia do ainda vice-presidente Sarney em Bagé, quando Tancredo estava internado ? Brossard estava otimista com o noticiário sobre a alegada recuperação do presidente. Sarney tratou de dizer que não, a situação era dramática. Hoje, Brossard pode dizer, sem constrangimento: “Conhecido o estado real de Tancredo, ficou evidente que havia realmente o propósito de ocultá-lo, na medida do possível”. Mas, antes de receber o telefonema de Sarney, Brossard chegou a pensou que Tancredo iria sair da cama do hospital para botar a faixa de Presidente no peito.

Botou nada.

A entrevista prosseguiria: Brossard guarda na memória um encontro absolutamente fortuito que teve em Portugal com o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, à época exilado na Argélia. Arraes fez uma confissão: disse a Brossard que estaria disposto a permanecer indefinidamente no exílio, desde que, em troca, os militares tratassem de devolver o país à normalidade democrática. “Isso Arraes me disse com lágrimas nos olhos. Não me esqueci. Não poderia esquecer”. Brossard pensou que a anistia viria logo, logo.

Veio nada.

Por fim, Brossard cita a frase inesquecível que ouviu, faz décadas, “nos tempos de mocidade”, quando ainda servia ao Exército,no CPOR. Quando queria parecer profundo, grave e filosófico, o capitão que atuava como instrutor da turma de Brossard no CPOR pronunciava uma frase que mereceria um lugar glorioso nas antologias:

“É a fatalidade histórica dos algarismos !”.

Ainda hoje, quando repete a frase do capitão, o senador ri, deliciado, como se saboreasse cada uma das letras da sentença imortal. A frase foi devidamente registrada no livro de 573 páginas que Luiz Valls produziu sobre a caminhada do senador: “Brossard: 80 Anos na História Política do Brasil”.

Não é que o capitão poderia estar certo ? Os algarismos bem que podem estar por trás de tudo. Estava escrito que Brossard seria eleito em 1974 para oito anos de mandato no Senado Federal. Estava escrito que tantos discursos, tanta campanha, tantas expedições pelo Brasil afora, como aquela que passou por Caruaru, um dia dariam resultado: quinze anos depois do golpe de 1964, os exilados voltariam ao País. Arraes não precisaria fazer o sacrifício de passar o resto da vida longe das águas do Recife. Estava escrito que o senador chegaria aos 87 anos perfeitamente lúcido, entre montanhas de livro. Se tivesse a chance de voltar no tempo para perguntar àquele instrutor do CPOR qual a explicação para tudo, o senador sabe que a resposta viria fulminante e definitiva:

“É a fatalidade histórica dos algarismos !”.

Eis aí seis palavras que podem explicar tudo e todos, a chave de todos os mistérios, o guia de todos os destinos.

Faz tempo que o habitante do casarão número 716 de uma rua do bairro do Petrópolis aprendeu a lição.

Tento a última pergunta antes de bater em retirada:

Se o senhor fosse resumir estes 87 anos de vida em uma só palavra, qual seria ?

“Em uma, não dá. Em duas ou três: não tenho queixas. Acho que recebi demais”.

Posted by geneton at 01:32 PM

setembro 09, 2011

RICK GARZA

O DEPOIMENTO DO HOMEM QUE DEU AULA DE PILOTAGEM A TERRORISTAS : ELES REZARAM NA HORA DO POUSO

A Globonews leva ao ar nesta sexta, às 8 e 5 da noite, com reprise à meia-noite e meia, uma reportagem gravada nos EUA, na cidade que serviu de “porta entrada” de terroristas que viriam a cometer o mais devastador atentado da História. É o penúltimo episódio da série DOSSIÊ GLOBONEWS: SEGREDOS DE ESTADO.

O “ovo da serpente” estava ali. Mas ninguém notou. Os primeiros terroristas do 11 de Setembro a desembarcarem em território americano escolheram, como primeira escala, um lugar insuspeito – San Diego, na Califórnia, onde vivem cerca de cem mil muçulmanos.

Khalid Al-Midhar e Nawaf Al-Hawzi chegaram em janeiro de 2.000, exatamente um ano e oito meses antes dos ataques. Não despertaram qualquer suspeita.

Khalid tinha 26 anos de idade. Nawf,vinte e cinco. Eram árabes. Passaram a frequentar a mesquita do Centro Islâmico de San Diego. Alugaram um apartamento num conjunto residencial chamado Parkwood, na zona norte da cidade. Um vizinho estranhou o fato de que os inquilinos quase não tinham móveis. Falavam em voz baixa em celulares De vez em quando, saíam de carro – de madrugada.

Os dois se matricularam numa escola de aviação. Dois detalhes chamaram a atenção do instrutor .

Primeiro: os alunos – que diziam ter planos de trabalharem como pilotos na Arábia Saudita – queriam aprender logo a pilotar Boeings. O desejo parecia despropositado, porque os dois, além de falarem inglês precariamente, entendiam pouquíssimo de aviação. Além de tudo, ninguém começa um curso querendo pôr as mãos no painel de controle de um Boeing. É como chegar a uma escola de música querendo reger a Orquestra Sinfônica. Mas o desejo da dupla de alunos pareceu uma mera e inofensiva esquisitice.

Segundo detalhe: quando estava a bordo do pequeno avião, em companhia dos dois estudantes que, na verdade, eram terroristas, o instrutor se surpreendeu com uma cena. Os dois começaram a rezar em voz alta. O fato de um seguidor do islamismo interromper as atividades para rezar não chega a ser extraordinário, é claro. O que chamou a atenção foi o fato de o ritual ser praticado a bordo de um avião, em meio a uma aula.

Um dos personagens do DOSSIÊ GLOBONEWS:SEGREDOS DE ESTADO é, justamente, o instrutor que, sem suspeitar de nada, deu aula de pilotagem aos dois, a bordo do Cesnna, modelo 172 N, prefixo N 739 RF.

Rick Garza, o instrutor, lembra:

“Quanto a atitudes incomuns: os dois pareciam demorar a aprender as coisas. Em um vôo, notei que um dos dois, Khalid al-Mihdhar, começou a rezar para Alá, em árabe, no fundo do avião. Isso aconteceu no momento que estávamos pousando. Por ser uma pessoa religiosa e espiritual, achei curioso o fato de ele estar rezando naquele momento. Não entendi se ele estava nervoso ou com medo. Não sabia o que ele estava fazendo. Aquilo ficou na minha mente. Perguntei para quem ele estava rezando. Disse a ele que eu era um homem muito espiritual”

“Perguntei porque achei muito interessante. A princípio, eles estavam um pouco fechados. Dirigi minha pergunta a Khalid al-Mihdhar. Mas ele não disse nada. Apenas perguntei: “Para qual Deus que você está rezando? ” . E ele: “Para Alá”. Começou a dizer outras coisas em árabe. Não entendi. Eu apenas disse a ele que, como cristão e um homem muito espiritual,achava aquilo muito interessante. Isso foi muito marcante”.

Pergunto ao instrutor se ele hoje desconfiaria de um estudante estrangeiro que, sem maiores referências, quisesse aprender a pilotar:

“É uma pergunta interessante. Não recusaria um estudante estrangeiro hoje. Eu não gostaria de ser conhecido como alguém que cria perfis, raciais ou não. De qualquer maneira, se eu recebesse alguém vindo do Oriente Médio, perguntaria a cidadania e onde o aluno foi criado. Tentaria achar o máximo de informações possível sobre eles e diria a razão. Desde então, conheci pessoas do Oriente Médio que são cidadãos americanos muito dedicados. Não tenho problemas em dar aulas a alguém assim. Mas eu teria um problema com estrangeiros que não falassem inglês e com quem houvesse alguma similaridade ou algum paralelo que pudesse ser feito com os terroristas. Eu os recusaria educadamente”. ( As entrevistas com o instrutor, o proprietário da escola e o líder do Centro Islâmico de San Diego vão ao ar no DOSSIÊ GLOBONEWS )

Os dois alunos que tiveram aulas de pilotagem em San Diego não chegaram a concluir o curso. De San Diego, partiram para outros pontos dos EUA. A dupla, comprovadamente, passou pelo Arizona. Os dois embarcariam, na manhã do 11 de setembro de 2001, no avião que foi jogado sobre o Pentágono, o centro do poder militar americano. Quem assumiu o controle do avião foi outro terrorista – Hani Hanjour – que concluíra o curso.

A investigação sobre o atentado revelaria quer os terroristas suicidas usavam nomes em código para definir os alvos dos ataques.

O Pentágono era chamado de “Faculdade de Belas Artes”.

Posted by geneton at 01:32 PM

setembro 08, 2011

DOUGLAS FEITH

“CÉREBRO DA INVASÃO DO IRAQUE” DIZ COMO DECISÃO FOI TOMADA: “O PRESIDENTE CONCLUIU QUE ERA MAIS PERIGOSO DEIXAR SADDAM NO PODER DO QUE IR À GUERRA”

A Globonews exibe à meia-noite e meia, dentro da série DOSSIÊ GLOBONEWS : SEGREDOS DE ESTADO, entrevista inédita com o homem que ocupou um posto-chave no Pentágono durante o governo Bush. A exibição de episódios inéditos da série ocorre sempre às 20:05, mas, hoje, excepcionalmente, será à meia-noite e meia, em virtude da transmissão ao vivo do pronunciamento do presidente Obama sobre a economia. A série vai ao ar até o sábado, dia 10.

Douglas Feith vai passar o resto da vida explicando uma decisão extremamente polêmica que foi tomada quando ele ocupava um posto importante no Pentágono durante o governo de George W. Bush : a invasão do Iraque, em 2003, como parte da chamada “Guerra ao Terror”.

Poucas decisões foram tão criticadas. O custo – em dinheiro e em vidas – foi imenso. Cerca de cinco mil soldados americanos morreram. Quarenta mil foram feridos. Calcula-se em dez mil o número de militares iraquianos mortos – e, em cem mil, o número de civis ( o número foi citado por um agente da CIA que, durante anos, atuou no Oriente Médio: Robert Baer, personagem de um dos programas da série DOSSIÊ GLOBONEWS : SEGREDOS DE ESTADO). Vincent Bugliosi, promotor que ficou famoso nos anos sessenta por ter atuado no julgamento da Família Manson ( o bando de assassinos que matou, entre outros, a atriz Sharon Tate ), quer que Bush seja julgado como “criminoso de guerra”.

Feith era homem de confiança total do então secretário de Estado, Donald Rumsfeld. Ocupou o posto de subsecretário. Em suas memórias, Rumsfeld diz que encomendou a Feith um relatório detalhado sobre o que deveria ser feito no Iraque.

Quando estava no poder, raramente Feith falava com jornalistas. Fora do Pentágono, disse que se arrepende do mutismo. Deveria ter se pronunciado com mais frequência.

Hoje, é diretor do Centro de Estratégias para Segurança Nacional do Instituto Hudson, em Washington. Publicou um livro, inédito no Brasil: “War and Decision”. Quando nos recebeu, estava apressado, porque tinha um compromisso marcado para logo depois, fora do Instituto. Mas não se furtou a responder a nenhuma pergunta, inclusive sobre temas que o deixam levemente irritado, como, por exemplo, o fato de ter sido chamado de “falcão” pela imprensa. Ou as suspeitas de que o petróleo estaria, no fim das contas, por trás da decisão de invadir o Iraque. A entrevista terminou se estendendo.

Douglas Feith fala com clareza sobre um ponto fundamental : diz que, desde o início das discussões internas sobre como os Estados Unidos deveriam aos ataques do 11 de Setembro, ficou claro qual seria a Estratégia Bush. A decisão tomada foi a seguinte : a prioridade não era punir os autores do ataque – o que seria feito, também -, mas evitar que outros atentados ocorressem. Assim, nasceu a ideia ( controversa) da intervenção no Iraque, país que, sob o regime de Saddam Hussein, acumulava um histórico de hostilidades contra os EUA.

Sempre tive curiosidade de ouvir de alguém do governo Bush uma explicação sobre o Caso do Iraque. Que explicação ele daria sobre a “velha” dúvida: se o Iraque não tinha relação com a Al-Qaeda - a organização terrorista responsável pelos atentados de 11 de Setembro – por que os EUA invadiram o país ? Douglas Feith era o destinatário perfeito da pergunta, porque, desde o início, participou das discussões sobre a reação dos EUA aos atentados do 11 de Setembro. ( Repórter existe poara fazer perguntas e ouvir. Ponto. Simples assim. Fazer julgamento é papel dos comentaristas ).

Feith chegou a descrever uma cena típica de bastidores : quando as tropas da chamada “coalizão” chegaram a Bagdá, um soldado americano tratou de encobrir a cabeça de uma estátua de Saddam Hussein com a bandeira americana. A imagem foi transmitida para o mundo todo. Sem que ninguém soubesse, o gesto do soldado provocou uma correria nos bastidores do poder, em Washington : o próprio Douglas Feith correu ao telefone para pedir aos comandantes militares que mandassem o soldado tirar imediatamente aquela bandeira americana da cabeça da estátua Saddam. O gesto do soldado, com toda razão, poderia ser visto como uma provocação gratuita. Em questão de segundos, o soldado tirou a bandeira americana da estátua. Douglas Feith acha que nem houve tempo de a reclamação chegar aos ouvidos do soldado. É provável que o próprio soldado tenha se dado conta da besteira que estava fazendo.

A entrevista de Feith é um belo documento sobre o que pensa um estrategista que embarcou, sem titubear, numa decisão que será tema de discussão pelas próximas décadas ( a íntegra do que ele disse vai no ar no DOSSIÊ GLOBONEWS: SEGREDOS DE ESTADO) :

“O Iraque representava um perigo à segurança nacional já antes do 11 de setembro. Era um problema que o governo Bush herdou do governo Clinton e do governo do Bush pai. Por toda a década de 1990, houve inúmeras resoluções para tentar lidar com os perigos do regime iraquiano. Quando assumiu, em 2001, o presidente Bush tinha de lidar com o fato de que a estratégia de contenção que a ONU havia criado para o regime de Saddam Hussein estava desmoronando. O problema geral do Iraque foi, então,reexaminado à luz dos ataques do 11 de setembro. O presidente decidiu que o problema iraquiano era ainda mais importante e urgente à luz dos ataques do 11 de setembro. O Iraque era um elemento da rede terrorista internacional e um dos principais patrocinadores estatais de grupos terroristas. Não quer dizer que estava ligado ao 11 de setembro, mas era parte da rede global que nos preocupava. Sobre a razão de termos agido contra o Iraque ao invés de outros países, a maioria perguntava: Por que não atacar o Irã? Por que não atacar a Coreia do Norte? A resposta curta é que, antes de considerar a ação militar, temos que ter certeza de que tentamos tudo o que era possível para resolver o problema. Estava claro que muita diplomacia seria necessária para ver se podíamos lidar com o problema norte-coreano ou com os problemas e ameaças iranianos. Eram problemas que exigiam diplomacia. Quanto ao caso do Iraque, incontáveis esforços diplomáticos foram feitos ao longo de anos para lidar com o problema. O presidente, sensatamente, concluiu que havíamos esgotado todos os meios pacíficos para lidar com essa perigosa ameaça”.

“Se você olhar para os fatos que baseiam a análise do presidente Bush e da equipe do governo sobre a razão de termos tomado ações militares contra os perigos impostos por Saddam, verá que foi um plano muito bem elaborado. Mas houve erros. O mais famoso foi a crença de que o Iraque tinha estoques de armas de destruição em massa. Havia erros no plano. Isso era um grande problema. De um modo geral, o plano envolvia elementos sobre o histórico iraquiano de agressão contra seus vizinhos, hostilidade contra os Estados Unidos, apoio a grupos terroristas, uso e busca de armas de destruição em massa. Pode ser verdade que eles não tinham os estoques, mas esses outros elementos eram parte importante da análise. Baseado em tudo o que se sabia, o presidente concluiu – de forma sensata – que era mais perigoso deixar Saddam no poder do que ir à guerra. Por mais que ir à guerra fôsse muito perigoso. Isso não criou um mau precedente nem serviu de incentivo para outros irem à guerra por razões fúteis. Os Estados Unidos pesaram essas razões com muito cuidado, discutiram o tema com vários países e o presidente tomou uma decisão sensata”.

“A pergunta é se eu aceito ser chamado de falcão? Não sei exatamente o que as pessoas querem dizer com o termo! Durante meses, houve deliberações sobre se a ação militar era necessária no Iraque. Participei dessas deliberações como uma de muitas autoridades. Concordei com a decisão do presidente de que ação militar era necessária. O presidente tomou a decisão certa. O mundo ficou muito melhor depois de termos removido Saddam Hussein do poder”.

Posted by geneton at 01:40 PM

setembro 07, 2011

FRED BURTON

UMA ARMA DE PAPEL NA GUERRA AO TERROR: EUA OFERECEM “DINHEIRO VIVO” EM TROCA DE INFORMAÇÕES SOBRE TERRORISTAS. MAIOR RECOMPENSA: R$ 40 MILHÕES (A OFERTA É VÁLIDA PARA O BRASIL…)

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Fred Burton dá entrevista à Globonews em Austin, Texas : o agente descreve operações feitas no "mundo das sombras" (Foto: Eduardo Torres)

A Globonews exibe nesta quarta-feira, às 20:05 (reprise: meia-noite e meia), entrevista inédita em que o ex-agente do Serviço de Segurança Diplomática do Departamento de Estado americano, Fred Burton, fala sobre recompensas milionárias pagas pelo governo dos EUA em troca de informações sobre terroristas

O governo americano usa uma poderosa arma de papel na chamada Guerra ao Terror : dinheiro para informantes.

O Departamento de Estado dos EUA mantém, desde os anos oitenta, um programa chamado “Rewards For Justice”. Cem milhões de dólares já foram pagos a cerca de sessenta informantes que passaram ao governo americano informações que levaram à captura de terroristas. As recompensas não são pagas apenas a quem ajudar a esclarecer ataques terroristas já ocorridos : o prêmio vale, também, para quem der informações que evitem novos atentados.

Não há qualquer restrição geográfica: as recompensas podem ser pagas a informantes de qualquer parte do mundo.

Gravamos em Austin, Texas, uma longa entrevista com o agente que, durante anos, atuou na frente contra o terror. Chama-se Fred Burton. É autor de livros como “Ghost: Confessions of a Counterterrorism Agent” .

Burton cita um detalhe : as recompensas são pagas, em geral, em “dinheiro vivo”, “em notas de cem dólares” – numa “mala preta”. Se o informante é valioso, pode receber ajuda para ganhar um novo endereço e mudar de identidade. É o que aconteceu com o cúmplice de Ramzi Yousef, o responsável pelo primeiro ataque ao World Trade Center, em 1993. Quando soube que o programa oferecia recompensas pulpudas, o cúmplice entregou o chefe. Recebeu 1 milhão e 100 mil dólares em dinheiro vivo. Trocou de identidade. Final da novela: o informante “sumiu na poeira da estrada”. Yousef foi preso no Paquistão, transferido para os Estados Unidos e condenado à prisão perpétua.

A maior recompensa oferecida, hoje, é de 25 milhões de dólares ( cerca de 40 milhões de reais ) a quem der informações que resultem na captura do sucessor de Bin Laden na Al-Qaeda, o médico egípcio Ayman al-Zawahiri. Há uma lista de cerca de trinta terroristas que valem, na avaliação do Reards for Justice, cinco milhões de dólares cada ( cerca de 8 milhões de reais ).

O Departamento de Estado publica a lista em vinte e oito idiomas – inclusive o português :

http://www.rewardsforjustice.net/index.cfm?page=wanted_terrorist&language=portuguese

Trechos da entrevista que a Globonews levará ao ar nesta quarta-feira:

“A fonte que nos permitiu capturar Ramzi Yousef, o mentor do primeiro ataque ao World Trade Center, recebeu Us$ 1,2 milhão em dinheiro vivo, em uma maleta preta da Samsonite…O dinheiro veio de uma ferramenta poderosa do governo americano: um programa chamado “Rewards for Justice”. O programa foi, literalmente, projetado em um guardanapo no início da década de oitenta. Os informantes recebem pagamento. Não importa em que lugar do mundo estejam. Por exemplo: cidadãos do Brasil, Europa ou sudeste da Ásia podem entrar em contato com o governo americano através de um número gratuito, pelo nosso website, ou por embaixadas e consulados dos EUA em qualquer país , com informações. O governo americano vai tentar confirmá-las. Se forem substanciais, este indivíduo pode receber milhões de dólares. O informante a quem pagamos 1,2 milhão foi transferido para os Estados Unidos, depois que o tiramos do Paquistão. Literalmente, desconheço o paradeiro desse informante hoje. Nós demos o dinheiro a ele. E ele seguiu adiante. Pelo que sei, nunca voltou a entrar em contato conosco. Nunca nos procurou. Era muito dinheiro. Espero que ele tenha investido bem”

“Sempre que oferecemos a alguém a oportunidade de ganhar dinheiro, temos que investigar para excluir pistas forjadas ou alegações malucas – que chegam aos montes. Há os que nos escrevem, nos telefonam ou nos visitam alegando coisas absurdas. Dizem que Muammar Kadhafi vai tomar o plenário da ONU. Ou que o presidente Obama na verdade não trabalha para os Estados Unidos, mas para a Nova Ordem Mundial. Quando divulgamos este tipo de programa para o público, temos que excluir informações errôneas ou ridículas. Usávamos procedimentos como dizer: “Tudo bem. Agora que nos trouxe informação sobre esta ameaça, você aceita passar pelo detector de mentiras ?”. A maioria saía correndo”.

O agente também trata de um caso que envolve o Brasil: o assassinato do coronel Josef Alon, adido militar da Embaixada de Israel nos Estados Unidos, em julho de 1973, em Washington, poucos meses depois do massacre dos atletas israelenses nas Olimpíadas Munique, em setembro de 1972. O ataque à delegação isralense foi feito pela organização Setembro Negro. A investigação comandada por Burton descobriu que o terrorista que se infiltrou nos EUA para eliminar o adido militar israelenses tinha ligações com a organização terrorista que cometera o ataque em Munique. Depois de obter um passaporte falso, o homem que matou o adido militar israelense teria embarcado para o Brasil – onde, segundo garante Burton, se refugiou em Porto Alegre:

“O terrorista do Setembro Negro que apertou o gatilho e matou o coronel Alon fugiu dos EUA após o assassinato. Recebeu do Setembro Negro uma identidade falsa – que facilitou a viagem ao Brasil. Viajou para Porto Alegre, especificamente, onde se refugiou no interior de uma comunidade palestina durante anos. Tentei localizá-lo no Brasil,o que foi muito difícil. É parecido com a situação na Tríplice Fronteira : não conseguíamos a ajuda de ninguém, o auxílio de ninguém. Eu suspeitava fortemente de alguém o teria advertido sobre nós. O homem fugiu do Brasil e foi para o Líbano, onde estava protegido pelo Hezbollah – que lhe deu abrigo. O que me impressioniou foi a capacidade do Setembro Negro de conseguir um passaporte para ele e levá-lo imediatamente para o Brasil depois do assassinato. Sou impedido por lei de divulgar o nome do verdadeiro assassino. Depois que ele fugiu para o Brasil, voltou para o Líbano. Fontes que tenho na comunidade de inteligência israelense me enviaram uma mensagem por celular. Meus contatos em Israel disseram que eles tinham “resolvido o assunto”. Tinham “cuidado do problema”. Entendi que os israelenses fizeram esse indivíduo desaparecer. Quando ao que aconteceu com ele, só posso especular. Não sei ao certo. Imagino que tenham feito com o atirador o que fizeram com outros agentes palestinos após o massacre de Munique: devem tê-lo assassinado”.

Depois da morte dos atletas israelenses em Munique, o governo de Israel promoveu uma operação clandestina : caçou e eliminou, um por um, em vários países, os terroristas palestinos responsáveis pelo ataque. A operação, batizada de Ira de Deus, virou tema do filme “Munique”, dirigido por Steven Spielberg.

A saga do agente Burton para tentar esclarecer a morte do adido militar da embaixada israelense é o assunto principal do livro que Burton acaba de lançar: “Chasing Shadows” (“Caçando Sombras”).

A entrevista de Burton ao DOSSIÊ GLOBONEWS : SEGREDOS DE ESTADO joga um pouco de luz sobre operações que, como ele admite, ocorrem quase sempre no mundo das sombras.

Posted by geneton at 01:42 PM

setembro 06, 2011

ANTHONY SHAFFER

EX-ESPIÃO AMERICANO REVELA QUAL A PALAVRA QUE USAVA ASSUSTAR SUSPEITOS DURANTE INTERROGATÓRIOS NO AFEGANISTÃO: “GUANTÁNAMO”

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Anthony Shaffer, em entrevista à Globonews : livro destruído pelo Pentágono ( Foto: Eduardo Torres )

A Globonews leva ao ar nesta terça-feira, às 20:05, na série DOSSIÊ GLOBONEWS: SEGREDOS DE ESTADO, uma entrevista com Anthony Shaffer, o espião americano que, depois dos atentatos do 11 de Setembro, cumpriu duas missões no Afeganistão, na chamada “Guerra ao Terror”.

O coronel Anthony Shaffer se envolveu numa polêmica inesperada: quando voltou do Afeganistão, depois de participar de operações secretas contra a organização terrorista Al-Qaeda, resolveu publicar um livro. Como sempre acontece, o texto foi submetido previamente à aprovação do comando militar americano.

Título: “Operation Dark Heart” ( o título é uma citação indireta ao filme Apocalipse Now, a obra-prima de Francis Ford Coppola inspirada em “Heart of Darkness”/”O Coração das Trevas”, o livro de Joseph Conrad. A citação não foi gratuita : quando se embrenhou numa área remota do Afeganistão, no encalço de militantes da Al-Qaeda, Shaffer diz que se lembrou do filme de Coppola ).

Assim que o livro saiu, Shaffer teve uma péssima surpresa: o Pentágono comprou – e destruiu- todos os exemplares da primeira edição. Um porta-voz se limitou a dizer que o texto trazia informações que poderiam comprometer a segurança nacional. Resultado: os poucos exemplares que escaparam da destruição terminaram leiloados na Internet por preços que chegaram a dois mil exemplares. Viraram “relíquia”. Uma nova edição, cheia de tarjas pretas, foi lançada.

O livro descreve uma operação que, na avaliação de Shaffer, deveria ter sido realizada, em território paquistanês, contra uma base da Al-Qaeda. Estava tudo pronto para que um ponto de reunião de líderes da Al-Qaeda fosse bombardeado. Mas o comando militar americano não autorizou a incursão. Tempos depois, Bin Laden seria capturado em circunstâncias parecidas : numa incursão clandestina realizada em território do Paquistão.

O New York Times deu destaque à proibição do livro do espião. Disse que a “tática do Pentágono” era “destruir livros para guardar segredos”.

Shaffer já tinha virado notícia ao fazer uma declaração que causara alvoroço: disse que, um ano antes dos ataques do 11 de Setembro, encontrara, durante uma investigação feita nos EUA, uma foto de Mohammed Atta, o estudante egípcio que viria a liderar o grupo de terroristas que lançaram aviões contra o Word Trade Center e o Pentágono. A investigação sobre Atta, no entanto, não teria sido levada adiante - o que configuraria um grave erro de avialiação dos órgãos de segurança interna dos EUA.

Convocado a depor no Congresso americano, diante da Comissão que investigava o 11 de Setembro, Shaffer manteve o que disse: o homem que ele vira numa foto um ano antes dos ataques era Atta, sim. Mas a Comissão não conseguiu uma prova definitiva de que o homem que viria a chefiar o bando de terroristas tinha sido identificado com tanta antecedência. Ficou, no ar, a polêmica.

Shaffer gravou a entrevista para a Globonews num domingo, em casa, nos arredores de Washington. Revelou qual a palavra que usava para assustar prisioneiros durante interrogatórios: Guantánamo, a prisão que os EUA abriram numa base militar para abrigar suspeitos de terrorismo. A base, como se sabe, fica em território cubano, numa área arrendada desde o início do Século XX pelo governo americano. O próprio Shaffer reconhece, na entrevista, que a reputação de Guantánamo é “péssima”. Assim, bastaria citar o nome da prisão para despertar medo nos interrogados.

Shaffer não se recusa a tocar num ponto delicado: o tratamento dado a prisioneiros. Em resumo, o ex-espião se declara contra o uso de métodos violentos, mas diz que, numa situação extrema, para evitar um atentado devastador, ele recorreria à tortura para arrancar informações de um suspeito que soubesse o que iria acontecer.

Um trecho da entrevista:

“Uma das melhores abordagens em qualquer interrogatório é usar o medo. E não técnicas violentas. Não sou a favor de interrogatórios violentos. Não apoio a tortura. Mas, se você identifica o medo de alguém, pode usar o medo como ferramenta. Usei, muitas vezes, a ideia de Guantánamo, uma prisão lendária e com péssima reputação na cabeça de qualquer um. A maioria não quer ir para lá. Durante os interrogatórios, em especial de indivíduos suscetíveis, que não queriam ir para Guantánamo, citar a prisão com certeza é uma boa ferramenta. É como dizer: “Se você não cooperar, se não sentirmos que você vai falar toda a verdade, vamos mandar você para Guantánamo!”. A ameaça é, claramente, bem mais eficaz do que o ato em si. Era o que usávamos. Interrogamos um cidadão americano que, obviamente, temia ir para Guantánamo. Usamos o medo em nosso favor. E ele acabou cedendo, porque teve medo. Isso é o que deve ser feito nos bons interrogatórios”.

O senhor torturaria alguém ?

“Se houvesse um perigo claro e iminente, ou se eu acreditasse que aquele indivíduo tivesse informações sobre atos que poderiam resultar na morte de dezenas de milhares ou milhões de pessoas, como um ataque nuclear, por exemplo, acho que sim. Se eu estivesse convicto de alguém tinha a informação, eu torturaria. Isso é muito simples. Em interrogatórios com tortura, as pessoas falam o que você quer ouvir, para fazerem com que você vá embora. Isso, no entanto, não quer dizer que elas saibam o que você quer saber! Só há uma possibilidade: só um ataque nuclear ou outro ataque potencialmente catastrófico justificaria o uso de tortura. Nunca vi algo assim em todos esses anos. Ouvi amigos e parceiros comentarem a respeito. É um cenário altamente improvável, mas é o único que, para mim, justificaria a tortura. Quero deixar claro que não somos treinados para torturar”.

“Com base em experiência própria, eu, francamente, nunca acreditei na necessidade de interrogatórios violentos quando você entende como é o sujeito que você interroga. Hoje, esse debate ainda continua. Não estou dizendo – quero que fique bem claro ! – que eu nunca torturaria alguém.. Mas não acredito que seja o caminho correto. Talvez por um momento, como Jack Bauer ? Não creio. Quero deixar claro, novamente, que não acho má ideia obrigar alguém a ficar acordado ouvindo músicas de Perry Como… Há coisas que incomodam muito o prisioneiro. Como incentivo para que ele fale, podemos usar melhoria das condições do cárcere, assim como os seus próprios medos. É só mantê-lo acordado, não deixar que as coisas fiquem agradáveis e ir devolvendo os privilégios conforme ele for cooperando. Nada além. Isso não é tortura. É criar incômodos até o sujeito começar a cooperar”.

Posted by geneton at 01:46 PM

ANTHONY SHAFFER

EX-ESPIÃO AMERICANO REVELA QUAL A PALAVRA QUE USAVA ASSUSTAR SUSPEITOS DURANTE INTERROGATÓRIOS NO AFEGANISTÃO: “GUANTÁNAMO”

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Anthony Shaffer, em entrevista à Globonews : livro destruído pelo Pentágono ( Foto: Eduardo Torres )

A Globonews leva ao ar nesta terça-feira, às 20:05, na série DOSSIÊ GLOBONEWS: SEGREDOS DE ESTADO, uma entrevista com Anthony Shaffer, o espião americano que, depois dos atentatos do 11 de Setembro, cumpriu duas missões no Afeganistão, na chamada “Guerra ao Terror”.

O coronel Anthony Shaffer se envolveu numa polêmica inesperada: quando voltou do Afeganistão, depois de participar de operações secretas contra a organização terrorista Al-Qaeda, resolveu publicar um livro. Como sempre acontece, o texto foi submetido previamente à aprovação do comando militar americano.

Título: “Operation Dark Heart” ( o título é uma citação indireta ao filme Apocalipse Now, a obra-prima de Francis Ford Coppola inspirada em “Heart of Darkness”/”O Coração das Trevas”, o livro de Joseph Conrad. A citação não foi gratuita : quando se embrenhou numa área remota do Afeganistão, no encalço de militantes da Al-Qaeda, Shaffer diz que se lembrou do filme de Coppola ).

Assim que o livro saiu, Shaffer teve uma péssima surpresa: o Pentágono comprou – e destruiu- todos os exemplares da primeira edição. Um porta-voz se limitou a dizer que o texto trazia informações que poderiam comprometer a segurança nacional. Resultado: os poucos exemplares que escaparam da destruição terminaram leiloados na Internet por preços que chegaram a dois mil exemplares. Viraram “relíquia”. Uma nova edição, cheia de tarjas pretas, foi lançada.

O livro descreve uma operação que, na avaliação de Shaffer, deveria ter sido realizada, em território paquistanês, contra uma base da Al-Qaeda. Estava tudo pronto para que um ponto de reunião de líderes da Al-Qaeda fosse bombardeado. Mas o comando militar americano não autorizou a incursão. Tempos depois, Bin Laden seria capturado em circunstâncias parecidas : numa incursão clandestina realizada em território do Paquistão.

O New York Times deu destaque à proibição do livro do espião. Disse que a “tática do Pentágono” era “destruir livros para guardar segredos”.

Shaffer já tinha virado notícia ao fazer uma declaração que causara alvoroço: disse que, um ano antes dos ataques do 11 de Setembro, encontrara, durante uma investigação feita nos EUA, uma foto de Mohammed Atta, o estudante egípcio que viria a liderar o grupo de terroristas que lançaram aviões contra o Word Trade Center e o Pentágono. A investigação sobre Atta, no entanto, não teria sido levada adiante - o que configuraria um grave erro de avialiação dos órgãos de segurança interna dos EUA.

Convocado a depor no Congresso americano, diante da Comissão que investigava o 11 de Setembro, Shaffer manteve o que disse: o homem que ele vira numa foto um ano antes dos ataques era Atta, sim. Mas a Comissão não conseguiu uma prova definitiva de que o homem que viria a chefiar o bando de terroristas tinha sido identificado com tanta antecedência. Ficou, no ar, a polêmica.

Shaffer gravou a entrevista para a Globonews num domingo, em casa, nos arredores de Washington. Revelou qual a palavra que usava para assustar prisioneiros durante interrogatórios: Guantánamo, a prisão que os EUA abriram numa base militar para abrigar suspeitos de terrorismo. A base, como se sabe, fica em território cubano, numa área arrendada desde o início do Século XX pelo governo americano. O próprio Shaffer reconhece, na entrevista, que a reputação de Guantánamo é “péssima”. Assim, bastaria citar o nome da prisão para despertar medo nos interrogados.

Shaffer não se recusa a tocar num ponto delicado: o tratamento dado a prisioneiros. Em resumo, o ex-espião se declara contra o uso de métodos violentos, mas diz que, numa situação extrema, para evitar um atentado devastador, ele recorreria à tortura para arrancar informações de um suspeito que soubesse o que iria acontecer.

Um trecho da entrevista:

“Uma das melhores abordagens em qualquer interrogatório é usar o medo. E não técnicas violentas. Não sou a favor de interrogatórios violentos. Não apoio a tortura. Mas, se você identifica o medo de alguém, pode usar o medo como ferramenta. Usei, muitas vezes, a ideia de Guantánamo, uma prisão lendária e com péssima reputação na cabeça de qualquer um. A maioria não quer ir para lá. Durante os interrogatórios, em especial de indivíduos suscetíveis, que não queriam ir para Guantánamo, citar a prisão com certeza é uma boa ferramenta. É como dizer: “Se você não cooperar, se não sentirmos que você vai falar toda a verdade, vamos mandar você para Guantánamo!”. A ameaça é, claramente, bem mais eficaz do que o ato em si. Era o que usávamos. Interrogamos um cidadão americano que, obviamente, temia ir para Guantánamo. Usamos o medo em nosso favor. E ele acabou cedendo, porque teve medo. Isso é o que deve ser feito nos bons interrogatórios”.

O senhor torturaria alguém ?

“Se houvesse um perigo claro e iminente, ou se eu acreditasse que aquele indivíduo tivesse informações sobre atos que poderiam resultar na morte de dezenas de milhares ou milhões de pessoas, como um ataque nuclear, por exemplo, acho que sim. Se eu estivesse convicto de alguém tinha a informação, eu torturaria. Isso é muito simples. Em interrogatórios com tortura, as pessoas falam o que você quer ouvir, para fazerem com que você vá embora. Isso, no entanto, não quer dizer que elas saibam o que você quer saber! Só há uma possibilidade: só um ataque nuclear ou outro ataque potencialmente catastrófico justificaria o uso de tortura. Nunca vi algo assim em todos esses anos. Ouvi amigos e parceiros comentarem a respeito. É um cenário altamente improvável, mas é o único que, para mim, justificaria a tortura. Quero deixar claro que não somos treinados para torturar”.

“Com base em experiência própria, eu, francamente, nunca acreditei na necessidade de interrogatórios violentos quando você entende como é o sujeito que você interroga. Hoje, esse debate ainda continua. Não estou dizendo – quero que fique bem claro ! – que eu nunca torturaria alguém.. Mas não acredito que seja o caminho correto. Talvez por um momento, como Jack Bauer ? Não creio. Quero deixar claro, novamente, que não acho má ideia obrigar alguém a ficar acordado ouvindo músicas de Perry Como… Há coisas que incomodam muito o prisioneiro. Como incentivo para que ele fale, podemos usar melhoria das condições do cárcere, assim como os seus próprios medos. É só mantê-lo acordado, não deixar que as coisas fiquem agradáveis e ir devolvendo os privilégios conforme ele for cooperando. Nada além. Isso não é tortura. É criar incômodos até o sujeito começar a cooperar”.

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setembro 05, 2011

ROBERT BAER

AGENTE DA CIA QUE TENTOU MATAR SADDAM HUSSEIN FAZ “CÁLCULO CRUEL” E CONCLUI: “ASSASSINATOS POLÍTICOS” SÃO “JUSTIFICÁVEIS” QUANDO EVITAM OU TERMINAM UMA GUERRA

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O ex-agente da CIA Robert Baer: contra a invasão do Iraque, a favor de assassinatos políticos que evitem uma guerra (Foto: Eduardo Torres)

A Globonews exibe hoje, segunda, às 20:05 ( com reprise à meia-noite e meia ) o terceiro programa da série DOSSIÊ GLOBONEWS:SEGREDOS DE ESTADO. Entrevistado: Robert Baer, o agente da CIA que, confessadamente, participou de uma conspiração para matar Saddam Hussein.

Espionagem internacional não é para amadores. Que o diga Robert Baer, o ex-agente da CIA que se envolveu em operações de alto risco no Iraque. Esteve pessoalmente envolvido na conspiração armada por militares iraquianos para matar o ditador Saddam Hussein. Considerado por fontes insuspeitas, como o jornalista Seymour Hersh, como “talvez o melhor agente de campo em atuação no Oriente Médio”, Baer foi acusado (pelo FBI!) de ter tramado a morte de Saddam. Teve de se explicar em Washington. Ou seja: Baer terminou envolvido numa intriga interna envolvendo CIA e FBI.

A entrevista com Robert Baer foi gravada na Califórnia. O ex-agente da CIA enfrenta as limitações na hora de falar: precisa submeter à agência, até o fim da vida, todo texto que escrever para publicação ( Baer é autor de livros como “See no Evil” e “The Company We Keep”, inéditos no Brasil mas facilmente acessíveis através de livrarias virtuais como a Amazon).

Por coincidência, um dia antes de gravar a entrevista para a Globonews, Baer tinha recebido uma ordem da CIA : estava proibido de publicar, na revista Time, detalhes sobre a operação que resultou na morte de Bin Laden. Assim foi feito. Quando acontece um grande caso, a revista recorre a Baer como uma espécie de “consultor”. A ordem da CIA chegou em forma de carta, endereçada à casa do agente- onde estávamos agora para a gravação da entrevista.

O cinegrafista Eduardo Torres estava se preparando para fazer imagens do ex-agente diante de um monitor que exibia a carta da CIA, já devidamente escaneada. Cuidadoso, Baer pediu que esperássemos por um momento. Usou, então, um pequeno pedaço de fita adesiva preta para encobrir, no monitor, o trecho da carta da CIA em que aparece o endereço da casa onde estávamos. Tratei de tranquilizá-lo. Disse a ele que não se preocupasse: não iríamos exibir, no programa, um endereço pessoal. Mas, cauteloso como qualquer agente que se preze, Baer preferiu se resguardar. Colou o minúsculo pedaço de fita adesiva sobre o endereço.

Baer não usa meias palavras. Diz que a invasão do Iraque, em 2003, foi uma “loucura”, uma “catástrofe” que alterará o equilíbrio do Oriente Médio pelas próximas décadas. As declarações do ex-agente da CIA contra a intervenção no Iraque poderiam ter saído da boca de um militante anti-Bush. Mas, fiel ao estilo direto e contundente, o agente faz, também, declarações que teriam lugar garantido num compêndio de falas “politicamente incorretas”. Sem o menor temor de ofender ouvidos sensíveis, ele diz que assassinatos políticos são plenamente justificáveis quando são cometidos, por exemplo, para evitar uma guerra.

Cita logo dois exemplos: se Bin Laden tivesse sido eliminado logo depois dos ataques de 11 de Setembro, os EUA não teriam prolongado por tanto tempo as operações militares no Afeganistão. Idem com o Iraque : o agente garante que, se Saddam Hussein tivesse sido eliminado ainda nos anos noventa, os Estados Unidos não teriam invadido o país em 2003. Quantas vidas teriam sido poupadas ? – pergunta ele. Baer diz que o cálculo é “cruel”, mas se for para escolher entre uma guerra e um assassinato político, ele fica com segunda alternativa, sem discussão.

Entrevistados que falam sem rodeios são perfeitos para TV. Sou suspeito para falar, mas aviso, a quem interessar possa: quem quiser entender a lógica – às vezes “cruel” – de um agente secreto que ostenta uma extensa folha de serviços prestados à espionagem internacional deve ver a entrevista do ex-agente Baer. Vale a pena. É instrutivo. Ouvir a palavra de quem atuou na sombra por tanto tempo é sempre um bom exercício jornalístico.

Um pequeno trecho do que ele disse :

Sobre a conspiração para matar Saddam Hussein: “Tentei matá-lo. Só lamento não ter conseguido. Porque não teríamos tido essas guerra desastrosa que temos no Iraque. A invasão do Iraque, em 2003, foi uma loucura, Nós – você, eu, todo mundo – vamos pagar por ela. Cem mil iraquianos foram mortos sem necessidade. O equilíbrio do Oriente Médio foi destruído. É uma catástrofe – ainda que consideremos apejas o número de mortos. E será uma fonte de instabilidade no Oriente Médio pelos próximos cem anos, graças a George W. Bush, a Dick Cheney ( vice-presidente no Governo Bush) e todo o resto. Aquilo foi uma loucura. Não há outra forma de descrever”.

“Dei sinal verde ( aos conspiradores). O objetivo era esse ! Nós sabíamos, na CIA, que os neoconservadores do Congresso estavam pressionando para aprovar uma invasão do Iraque – para derrubar o regime e mudar o país. Tal ideia era uma idiotice. Nós sabíamos. Ao mesmo, sabíamos que o problema era um homem: Saddam Hussein – e seus dois filhos. Deveríamos nos livrar de Saddam e deixar o regime lá. Claramente, ele era o objetivo. Tínhamos oficiais militares prontos para assumir depois de Saddam. Eu acho, até hoje, que a lógica toda de novs livrarmos de Saddam é ainda válida”. ( militares hostis a Saddam Hussein planejaram um golpe que foi mal sucedido. Baer teve encontros secretos com os conspiradores. Deu a eles sinal verde).

Sobre o efeito de assassinatos políticos: “Os assassinatos, segundo meus cálculos morais e o de outros, são justificáveis para terminar uma guerra ou para evitar uma. Isso é importante. Nós estamos falando de cálculos morais. Quando os EUA se veem na iminência de uma guerra, é muito melhor substituir a guerra por um assassinato. Bin Laden é um caso óbvio. Em outubro de 2001, deveria ter sido assassinado, provavelmente por via aérea, com bombardeiros B-1. Isso teria nos evitado a guerra no Afeganistão e no Paquistão. Não há justificativa para a Guerra no Iraque. Mas, se tivéssemos conseguido assassinar Saddam, poderíamos não ter entrado em guerra. Os Estados Unidos deveriam parar de ser a polícia do mundo e não cometer assassinatos ou invasões. Mas, se é preciso escolher entre assassinato e invasão, dado o número de vidas perdidas – é um cálculo bem frio – eu escolho o assassinato. Os dois assassinatos teriam deixado os EUA fora de duas guerras. O primeiro seria o de Bin Laden. Por que ir para o Afeganistão se ele já estaria morto ? O movimento estaria, supostamente, terminado. Ou então deveriam matar a ideia desse culto, dessa guerra contra o Ocidente. Mas não se pode matar uma ideia com uma invasão. O mesmo acontecia no Iraque. Saddam era o problema. Era imprevisível. A ideia era: se matássemos Saddam - e alguns de seus seguranças – mataríamos umas cinco pessoas, em vez de….quantos milhões de pessoas vão acabar mortas ? É um cálculo cruel, mas, para mim, faz sentido”.

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setembro 03, 2011

ETHAN MCCORD

ACORDA, DANIEL ELLSBERG! ELES ENLOUQUECERAM ! (OU: QUEM GRITA, HOJE, EM FAVOR DOS DISSIDENTES ? EM TEMPOS MEDÍOCRES, A GRANDE MARCHA DOS INDIFERENTES AVANÇA)

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(Daniel Ellsberg : foto postada no site em defesa do soldado dissidente)

A partir de hoje, sábado, a Globonews levará ao ar, diariamente, sempre às 20:05 ( com reprise à meia-noite e meia), o DOSSIÊ GLOBONEWS; SEGREDOS DE ESTADO – uma série de oito entrevistas inéditas com personagens pouco conhecidos do público. Durante três semanas, o locutor-que-vos-fala percorreu os EUA, em companhia do cinegrafista Eduardo Torres, no encalço de espiões, ex-agentes da CIA, pilotos militares, diplomatas. Haverá reprises extras, às 8:30 e às 16:30.

O primeiro personagem a entrar em cena na série DOSSIÊ GLOBONEWS : SEGREDOS ESTADO é um soldado americano que viveu um drama inesperado na Guerra do Iraque : ao se aproximar de um carro atingido por um bombardeio, ele descobriu que havia duas crianças dentro do carro. O que fazer ?

Se fosse cumprir rigorosamente os códigos militares, o soldado não teria socorrido as crianças. Afinal, não é papel de um soldado socorrer feridos do “lado inimigo” – ainda que sejam crianças, atingidas “por acaso”. Mas o sentimento de solidariedade fez com que o soldado tentasse salvar as duas crianças que, por um grande azar, tinham ido parar no meio de um bombardeio. As duas estavam a bordo de uma van dirigida pelo pai.

Depois de socorrer as crianças, o soldado passou a ter pesadelos. Pior: chegou a ser admoestado por seus superiores. Virou motivo de piada entre os colegas. Logo depois, teve de voltar aos EUA, por ter sido ferido numa explosão. De volta para casa, tentou se matar porque não conseguia conviver com o chamado “stress pós-traumático”. A lembrança das crianças feridas o atormentava. Terminou se engajando numa campanha contra a Guerra do Iraque. Nome do soldado que virou pacifista: Ethan McCord.

A história terminaria aí : um veterano de guerra convivendo, em casa, com seus fantasmas. Mas o caso teve uma reviravolta espetacular. Toda a operação militar – que resultou no bombardeio da van que conduzia as crianças – tinha sido gravada pelo Exército americano. Ao ver as imagens, um outro soldado resolveu passar o vídeo, secretamente, para o Wikileaks ( a organização que se especializou em divulgar documentos secretos de governos ) . Tornadas públicas, as imagens provocaram choque, indignação, pavor. São – de fato – impressionantes. Ninguém fica indiferente a elas.

Um novo drama começou: o autor do vazamento foi imediatamente identificado pelo Exército. Era um soldado de vinte anos chamado Bradley Manning. Preso, ele foi imediatamente retirado do Iraque, levado ao Kwait e, afinal, “recambiado” para os Estados Unidos, onde chegou a ser submetido a um regime de isolamento numa prisão militar. Agora, aguarda julgamento.

É provável que o autor do vazamento vá passar os próximos anos atrás da grades, por ter desobedecido a uma série de códigos militares. Afinal, divulgou imagens e documentos confidenciais das Forças Armadas. Em um e-mail, o soldado dizia que iria vazar o vídeo do bombardeio porque queria provocar um debate planetário sobre abusos cometidos na Guerra do Iraque. Ou seja: a intenção era a melhor possível. O problema é que, no mundo real, boas intenções podem ser passíveis de punição severa.

Um abaixo-assinado mundial foi lançado em defesa de Bradley Manning ( aqui: www.bradleymanning.org ). Qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo pode assinar,pela Internet. A petição vai ser encaminhada ao Pentágono. Internautas postam, no site, fotos em que exibem para a câmera pequenos cartazes com os dizeres: “Eu sou Bradley Manning”.

A verdade é que a campanha não vem tendo a repercussão merecida. Não me lembro de ter visto, na nossa imprensa, nenhuma grande matéria sobre o tema. A pouca repercussão da campanha em solidariedade ao soldado que queria denunciar um absurdo cometido na Guerra do Iraque é um sintoma destes tempos despolitizados e medíocres em que vivemos. A dissidência virou uma flor rara. Ah, a Grande Conspiração da Mediocridade….Ah, a Grande Marcha dos Indiferentes….

Houve, no final dos anos sessenta, um caso parecido com o do soldado que virou dissidente. Um analista do Pentágono chamado Daniel Ellsberg vazou para a imprensa documentos secretos sobre o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnam. Provocou um grande debate planetário sobre o tema, mas foi preso e levado aos tribunais. Houve uma grande mobilização em favor de Ellsberg. E agora ?

Um detalhe: aos oitenta anos de idade, Daniel Ellsberg se engajou totalmente na campanha em solidariedade a Bradley Manning. Primeiro, assinou a petição no site. Posou para uma foto em que exibe um cartaz : “Eu era Bradley Manning” . Depois, participou de uma manifestação pública em defesa de Bradley Manning, em Washington, nas proximidades da Casa Branca. Terminou detido pela polícia. O octogenário Daniel Ellsberg parece não ter perdido aquela “chama de solidariedade” que, hoje, lastimavelmente, já não é capaz de incendiar corações e mentes :

http://www.youtube.com/watch?v=d8UL5aXBlsc

Quando as tropas soviéticas marcharam sobre a Tchecoslováquia, em 1968, para pingar um ponto final na Primavera de Praga – uma tentativa de criação de um “socialismo com face humana” -, um estudante, ingênuo, escreveu num muro: “Acorda, Lênin ! Eles enlouqueceram”.

Diante da Grande Marcha dos Indiferentes, a hora é de dizer : “Acorda, Daniel Ellsberg ! Eles enlouqueceram”

——————-

Aqui, trechos da entrevista que a Globonews levará ao ar. O soldado Ethan McCord – que, depois de socorrer crianças, virou pacifista – nos recebeu em casa. O programa exibirá as imagens que Bradley Manning vazou para o Wikileaks. Os dois – McCord e Manning – vivem dramas diferentes. Manning continua numa prisão militar, à espera da hora de ir para o tribunal. McCord convive, em casa, com os fantasmas que o atormentam desde o dia em que descobriu que, dentro da van destroçada por um bombardeio, havia duas crianças :

1

“Os EUA, principalmente nas Forças Armadas, retrataram o país todo como vilão. Fizeram com que a gente visse todos os iraquianos como inimigos. Eu achava que o Iraque era um país cheio de terroristas”

2

“Arrombávamos portas com máscaras de caveira. Tirávamos moradores de suas casas no meio da noite. Batíamos nas pessoas. Atirávamos em gente inocente. A maioria das pessoas mortas no Iraque eram homens, mulheres e crianças inocentes. Nós é que éramos os terroristas”.

3

“Eu estava animado para ir para o Iraque, porque achava que seria uma espécie de herói. O que eu esperava era levar liberdade e democracia para gente que tinha sido oprimida durante tanto tempo. Eu achava que estava indo para uma guerra justa”

4

“O surpreendente é que fui para o Iraque para levar a liberdade aos iraquianos. Mas os iraquianos é que me libertaram. Os iraquianos me libertaram de ser um escravo cego do meu governo. Abriram os meus olhos para o mundo à minha volta”.

5

“Soldados riram de mim. Disseram que eu tinha coração mole. Ou que eu parecia uma mulher por me preocupar com crianças. Outros soldados me disseram que, se estivessem lá, teriam atirado na cabeça das crianças, porque elas seriam futuros terroristas. O Exército treina os soldados para acreditarem que as crianças do Iraque ou do Afeganistão vão ser terroristas”.

6

“Depois de voltar do Iraque, tentei me matar, pelo sentimento de culpa de ter participado daquilo. Emocionalmente, é extenuante até hoje. Tenho flashbacks. Sempre que fecho os olhos, vejo corpos. É muito traumatizante”.

7

“Eu diria a George Bush que ele nos usou por motivos ilegais e imorais. Espero que ele não durma bem à noite. Tomara que as imagens dos soldados e de suas famílias e dos mortos no Iraque e no Afeganistão o assombrem toda noite. E continuam assombrando-o pelo resto da vida”.

8

“Não sou dissidente. Sou muito patriota. Amo o meu país. Aomo o povo do meu país, mas amo também toda a Humanidade, todas as pessoas do mundo”

9

“Se me arrependo de ter matado gente no Iraque ? Com certeza. As pessoas que matei no Iraque, tivessem elas armas ou não, vão me assombrar pelo resto da minha vida. Vou para a sepultura assombrado pela imagem dos rostos das pessoas que matei”.

10

“A grande mídia dos EUA não dá espaço para veteranos que se opõem à guerra, pois somos vistos como loucos. Mas os que apoiam esta guerra é que são loucos”

O vídeo completo:

http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2011/09/ex-soldado-americano-vira-pacifista-apos-atuar-na-guerra-do-iraque.html

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julho 04, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 10

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE -10 (FINAL) : E O CHEFE DA REDAÇÃO CONSPIRAVA COM MILITARES, POR TELEFONE, CONTRA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Um novo trecho da entrevista inédita com o jornalista Evandro Carlos de Andrade – que morreu há exatamente dez anos, em junho de 2001, quando ocupava o cargo de diretor da Central Globo de Jornalismo :

Encerrada a breve aventura de estréia jornalística na redação do Correio Radical, no início dos anos cinqüenta, Evandro Carlos de Andrade desembarcou no Diário Carioca . Em pouquíssimo tempo,viraria chefe, por obra e graça de um convite de Pompeu de Sousa. Teve a sorte de estar “no lugar certo na hora certa” : as inovações estilísticas adotadas pelo Diário da Carioca são tidas, hoje,como um momento marcante no processo de modernização da imprensa brasileira.

“Dos jornais da época em eu estava iniciando a carreira, no Rio, qual era o mais charmoso, o mais irreverente, o mais irresponsável, o mais politiqueiro ? O Diário Carioca” , responde Evandro. “Pompeu de Sousa, chefe da redação, era um conspirador político permanente : toda noite, ficava horas a fio conspirando com oficiais da Aeronáutica contra o presidente Getúlio Vargas – pelo telefone ! O clima era esse quando cheguei à redação. Mas o Diário Carioca era, sobretudo, um jornal que renovou a linguagem jornalística”.

“Duas pessoas exerceram, na redação do Diário Carioca, influência direta sobre mim. Com Paulistano, o chefe de reportagem, aprendi sobretudo como se apura um jornalismo popular, porque me ocupava de assuntos policiais e sindicais. Luís Paulistano viria, depois, a ser o assessor de imprensa de Roberto Silveira, governador do Estado do Rio. Teve uma morte horrível : era um ocupantes do helicóptero do governador – que bateu numa árvore e pegou fogo assim que decolou do Palácio para uma viagem de inspeção a área inundadas numa enchente no norte do Estado,em fevereiro de 1961. Paulistano não morreu na hora. Ficou cego, todo queimado, sofreu dores atrozes até morrer – dias depois. O resto do meu aprendizado foi com Pompeu de Sousa, porque ele é que imprimia uma personalidade ao Diário Carioca. A propriedade do jornal podia ser de Horácio de Carvalho – e era. Mas, para nós, jornalistas, o Diário Carioca era de Pompeu. Anos depois, quando eu estava no Globo e Pompeu cumpria um mandato de senador em Brasília, ele me ligou para reclamar contra qualquer coisa : estigmatizava com ênfase os procedimentos da “grande imprensa” até que eu o aparteei : “Mas Pompeu, não há nada que eu faça que não tenha aprendido com você !”.

“Pompeu era um grande conspirador político. Mas não se pode imaginar, hoje, o chefe da redação conspirando para derrubar um governo, metido com militares da Aeronáutica –que iam à redação do Diário Carioca tratar de tirar Getúlio Vargas do poder. É uma cena hoje impensável. Aqueles militares que queriam derrubar Getúlio estavam se aproximando de Carlos Lacerda. Quando, em agosto de 54, houve o atentado contra Carlos Lacerda na rua Toneleros, os militares da Aeronáutica tomaram a frente das investigações no Galeão. Passamos, então, a chamar Pompeu de “Presidente da República do Galeão” porque ele tinha uma influência incrível”.

“Qual foi a marca que a convivência com Pompeu de Sousa na redação do Diário Carioca deixou em mim ? Pode ter sido a seguinte : a recusa em levar as coisas muito a sério. Diferentemente de Pompeu,o chefe de reportagem Luís Paulistano levava tudo muito a sério. Talvez por essa razão, tenha sido levado a sofrer e a beber. Minha formação inicial, como repórter, se deu com Paulistano. Quem me comandava era ele – que tinha o hábito de descer da redação para beber cachaça na rua. Primeiro, entornava um pouco da bebida para o “santo”. Depois, ao engolir a cachaça, fazia aquela caretona horrorosa. Eu, que sempre detestei cachaça, era incapaz de acompanhá-lo no ritual. Entre os jornalistas, bebia-se muito naquela época. Tinha-se que beber – o que, para mim, era horrível, porque eu abominava a bebida. Beber, no meu caso, era um sacrifício. Mas Paulistano ,meu chefe, me chamava. Todo dia, eu testemunhava -umas seis,sete vezes - aquela cena : o meu chefe de reportagem bebendo cachaça. Quando a noite se acabava, lá íamos nós para o restaurante Colombo, onde os jornalistas se reuniam , na alta madrugada, depois do fechamento dos jornais”.

“Aprendi ali ,naquele início de carreira, no Diário Carioca, a não levar a sério sobretudo as estrelas e os figurões. Vi que se deve – sempre - ver o figurão apenas como um ser humano que as circunstâncias empurraram para uma determinada posição. E só”.

Posted by geneton at 03:09 AM

julho 02, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 9

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE -9/ O JORNAL TINHA UM CONTÍNUO QUE FICARIA FAMOSO: CARTOLA. E UM COPIDESQUE QUE VIRARIA CINEASTA: NÉLSON PEREIRA DOS SANTOS

Evandro Carlos de Andrade conviveu, na redação do Diário Carioca, com personagens que, anos depois, ficariam célebres, por motivos que nada tinham a ver com o jornalismo. Aqui, o homem que, no futuro, dirigiria redações importantes faz uma confissão: ficou “tentado” a aceitar o convite para atuar num filme que entraria para a história do cinema brasileiro:

“Uma lembrança que guardei da redação : Cartola, que depois ficaria famoso como compositor,era nosso contínuo no Diário da Carioca. Homem modestíssimo, contínuo simpático e prestativo, já era relativamente conhecido como sambista, mas não cantava na redação. Vivia numa pobreza tremenda. Nélson Pereira dos Santos, que viria a dirigir o filme “Vidas Secas”, também estava no Diário Carioca – na equipe de copidesques do jornal. Luis Carlos Barreto, fotógrafo do O Cruzeiro que estava começando a produzir cinema, me chamou para trabalhar num filme que seria dirigido por Nélson Pereira – “Vidas Secas”. Que maluquice! Eu seria um dos piores canastrões da história do cinema nacional. Quando eu disse à minha mulher, em casa, que tinha recebido o convite, ela não admitiu de jeito nenhum. Pensei : entre o casamento e o cinema, fico com a família. Renunciei ao meu posto cinematográfico. Cedi o lugar a Átila Iório. Luís Carlos Barreto me achou com pinta de galã. Infelizmente,não concordo com ele. Mas fiquei levemente tentado pelo convite. O problema é que eu era –e sou – um tímido. Ficava trêmulo quando tinha de falar em público”.

“Nunca cheguei a levar a sério a possibilidade de seguir uma carreira artística. Para dizer a verdade, como cantor, eu era razoavelmente afinado.Um rapaz que morava perto da minha casa, na São Francisco Xavier, na Tijuca, uma vez organizou um pequeno grupo para cantar. Chamou-me para fazer o grave. Eu tinha dezoito anos. O autor do convite tinha um talento incrível. Era conhecido como Johnny Alf – pseudônimo com que ficou famoso, anos depois, como compositor e intérprete de “Eu e a Brisa”. Começamos a ensaiar. Mas o grupo se desfez logo. Havia outro grupo – que também não durou muito – chamado Os Modernistas, sob a liderança de João Donato, um tremendo músico, um craque do acordeon. Donato liderava as apresentações do grupo Os Modernistas no Tijuca Tênis Clube. Nosso grupo não passou da fase de ensaios. A primeira música que ensaiamos, sob o comando de Johnny Alf, foi “I Don’t Know Why”, lançada por Frank Sinatra”.

“Depois de décadas, me encontrei com Johnny Alf – que estava tocando,com um ar meio entediado, numa casa noturna na Lagoa. Resolvi me aproximar : “Johnny Alf,você se lembra daquele grupo que você organizou lá na rua São Francisco Xavier ? “. Ouvi a seguinte resposta : “Não ! Não me lembro ” .

“Não, não me lembro….”. “Devo confessar que a resposta de Johnny Alf me deu um frio na barriga – uma horrorosa sensação de desconforto”.

Posted by geneton at 03:17 AM

ITAMAR FRANCO

O SEGREDO QUE ITAMAR GUARDOU ATÉ O FIM: O DIA EM QUE RECEBEU, NA PRESIDÊNCIA, UMA PROPOSTA MAIS “TENEBROSA” DO QUE FECHAR O CONGRESSO NACIONAL

Definitivamente, “Itamar não é fácil”. A presidência da República também não. Ponto. Parágrafo.

Quando assumiu o poder, no rastro do furacão de denúncias que varreu Fernando Collor do Palácio do Planalto, Itamar Franco aprendeu logo duas lições. Primeira: ao contrário do que as aparências fazem supor, a presidência é, essencialmente, um cargo solitário. (Daqui a pouco, ele falará sobre a sensação de ver desfilar diante dos olhos, em seus “momentos de reclusão” palaciana, nos fins de noite, as imagens de tudo o que poderia acontecer num país eternamente sujeito a solavancos.)

Segunda lição: quem ocupa a presidência deve estar preparado para ouvir propostas capazes de tirar o sono. Itamar Franco seria surpreendido pela proposta de um grupo de parlamentares – e se o presidente, num arroubo, fechasse o Congresso Nacional para depurar o parlamento da presença de roedores do dinheiro público?

O depoimento que o ex-presidente gravará neste final da manhã foi precedido de incertezas tipicamente itamarinas: durante quatro meses, houve troca de e-mails e telefonemas com assessores do homem, em Juiz Fora e na Embaixada do Brasil em Roma. A matéria complexa chamada Itamar Franco poderia render um curso intensivo: as aulas valeriam inclusive para amigos próximos- que, somente assim, aprenderiam a antever as reações do ex-presidente. Forasteiros, como repórteres interessados em extrair confissões da esfinge, aprendem logo a lição: nada é cem por cento fácil com ele.

Lá vem ele. São onze da manhã. Itamar prefere gravar a entrevista na sede da TV Panorama, em Juiz de Fora. Quando desce do banco traseiro de um carro de vidros escuros, exibe a inconfundível contribuição capilar dada à iconografia política brasileira: o célebre topete, alegria dos cartunistas. Não faz frio, mas Itamar enverga um suéter sob o paletó azul escuro. A gravata é vermelha.

Como se fosse um candidato prestes a debater com adversários eleitorais, o ex-presidente traz debaixo do braço uma pasta com documentos que compulsará para reforçar o que diz. Guarda com especial cuidado um texto em que o ex-ministro Delfim Netto elogia a performance do governo Itamar na área da economia. As palavras de Delfim são a arma que Itamar faz questão de empunhar para se defender da rejeição que (ele jura) São Paulo lhe devota. Não se conhecem demonstrações da suposta rejeição paulista a Itamar. Mas, na intricada psicologia itamarina, há sempre espaço vago para acomodar desconfianças desse calibre.

Uma frase famosa, atribuída a Tancredo Neves, diz que Itamar guarda rancor na geladeira. Eis um exemplo: o ex-presidente não engole até hoje a capa que a revista Veja lhe dedicou no início do mandato, com uma manchete que questionava a estatura do ministério recém-nomeado. Quando Itamar deixou o governo, contudo, a mesmíssima Veja publicou um balanço que lhe era francamente favorável.

Assinada pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo, a longa matéria – “Enfim, um presidente que deu certo” – lembrava o marco zero da era Itamar: “Um veterano sócio do clube juiz-forano, Mauro Durante, já advertira, semanas antes, ao observar que o movimento no gabinete do vice aumentava na medida em que se tornava mais real o impeachment de Collor: ‘Os urubus estão chegando’. Agora, urubus, perigosas águias, pacíficas pombas, papagaios tagarelas e caladas corujas, sem esquecer os tucanos, comprimiam-se naquele pequeno espaço, em que encontravam um presidente tão falto de solenidade que nem preparara discurso para a ocasião”.

Pois bem: Itamar, hoje, não cita os elogios da revista. Prefere guardar, em prateleira de honra da geladeira dos rancores, a capa que o enfureceu. “Itamar não é fácil” é a frase que se ouve à exaustão entre os que tiveram a oportunidade de conviver com ele.

Quando convidado por Fernando Collor para ser candidato a vice, nas eleições presidenciais de 1989, Itamar Franco protagonizou de novo intermináveis cenas de suspense antes de tomar a decisão. Disse “sim”. Terminou virando presidente, o que lhe garantiu de uma vez por todas a fama de “sortudo”. Itamar Franco aceita de bom grado o adjetivo, mas despachará diretamente para a geladeira dos rancores quem disser que ele escalou a rampa da política por obra e graça do “acaso”. Com uma ponta de irritação, lembra que virou presidente não por acaso, mas porque a Constituição assim determinava. Recusa-se a estender a pesada troca de farpas com o antigo cabeça-de-chapa, Collor. Fora da gravação, diz que começou a discordar do então presidente já na primeira semana de governo, quando do traumático confisco do dinheiro depositado em cadernetas de poupança e em contas correntes. “Ali aconteceu o primeiro conflito”, confessa.

Os vocábulos estocados nos dicionários da língua portuguesa não são suficientes para adjetivar a personalidade do engenheiro Itamar Augusto Cautiero Franco. O homem já foi chamado de temperamental. Imprevisível. Surpreendente. Indecifrável. Enigmático. Um adjetivo, contudo, ficou colado ao nome de Itamar Franco quase como se fosse outro sobrenome: “mercurial”. O problema é que a palavra não existe nos dicionários – pelo menos, não no sentido usado pelos cronistas políticos para se referir ao ex-presidente. Lingüistas, correi: Itamar Franco conseguiu criar um problema para os dicionaristas.

Dono de uma coluna que trata da língua portuguesa no site da revista eletrônica No Mínimo, o jornalista Sérgio Rodrigues foi abordado por um leitor intrigado com o uso da palavra “mercurial” para definir personalidades sujeitas a rompantes – como, por exemplo, o presidente da Argentina, Nestor Kirchner, capaz de abandonar pelo meio uma reunião internacional, sem disfarçar o tédio ou o descontentamento. Rodrigues foi a campo para matar a curiosidade do leitor: de fato, lexicógrafos brasileiros limitam-se a dar ao adjetivo mercurial o sentido de “relativo a mercúrio”. Nada a ver com oscilações de temperamento. O que explica, então, o uso da palavra com sentido tão diferente?

A explicação do tira-dúvidas Rodrigues: “Mercurial é um estrangeirismo semântico, isto é, uma palavra que teve o sentido tradicional alterado ou estendido por contágio de outro idioma. Em dicionários de inglês, encontraremos a seguinte definição: ‘sujeito a alterações bruscas e imprevisíveis; que tem comportamento errático; temperamental’. Exatamente como Kirchner, o bocejador. Ou, a propósito, Itamar Franco, certamente a pessoa que mais foi chamada de ‘mercurial’ na história da imprensa brasileira”. Resumo da ópera: para tentar definir Itamar Franco, os cronistas tiveram de recorrer aos dicionários de inglês.

Quando fala, como vai fazer agora, a esfinge de Minas sabe guardar segredos. Cita, mas não revela, um conselho “tenebroso” que teria recebido enquanto ocupava a presidência – algo ainda pior do que a sugestão de fechar o Congresso. Mas termina fornecendo pistas reveladoras sobre os métodos que seguiu quando era o homem mais poderoso do Brasil. Admite que passava a imagem de um presidente cerceado pelo poderoso “primeiro-ministro” Fernando Henrique Cardoso. Mas avisa aos navegantes: a encenação era planejada. Não havia amadorismo ali.

“Itamar não é fácil”: até as pedras das ruas de Juiz de Fora sabem que o ex-prefeito, ex-senador, ex-governador e ex-presidente nunca foi dado a fazer confidências a repórteres. Quando baixa a guarda, porém, o mercurial-mor da República é capaz de produzir depoimentos reveladores para quem tenta entender o enigma Itamar Franco.

CONFIRMADO : POLÍTICOS SUGERIRAM AO PRESIDENTE ITAMAR QUE FECHASSE ,POR UM TEMPO, O CONGRESSO NACIONAL

Que segredo o senhor teve de guardar quando estava na presidência mas hoje pode contar?

Não sei se posso contar todos os segredos. De pronto, posso mencionar um, ocorrido quando assumimos o governo. Dentro da turbulência e da falta de auto-estima que o País vivia, nosso primeiro objetivo, naquele momento, era a manutenção do estado de direito e da democracia. Eu, particularmente, tinha lutado pela democracia desde jovem, desde que tinha sido prefeito de Juiz de Fora. A primeira preocupação, portanto, era essa.

Quando estava tentando formar o ministério, falei com uma figura muito importante, que ocuparia um cargo fundamental. A resposta que obtive foi: “Itamar, gosto tanto de você, mas, pelo amor de Deus, me deixe onde estou, porque você não vai durar 48 horas na presidência”. Aquilo realmente me trouxe preocupação.

Resolvi substituir os ministros militares, por quem tinha muito respeito. Sempre tive, aliás, muito respeito pelas Forças Armadas. Mas eu tinha de fazer a substituição dos ministros militares. Fernando Henrique Cardoso, a quem nós já havíamos escolhido para ser ministro das Relações Exteriores, assustou-se um pouco: achou que aquilo poderia impedir a continuidade do governo.

Tivemos durante algum tempo a sensação de que poderia não haver uma continuidade – sobretudo depois que determinada revista, já na primeira semana após a nossa posse, publicou, na capa, um título provocado pelo fato de que não havíamos nomeado nenhum ministro de São Paulo para a área do Ministério da Fazenda ou do Planejamento. Tínhamos escolhido um nordestino e um mineiro: Gustavo Krause, para a Fazenda, e Paulo Haddad, para o Planejamento, dois grandes ministros, dois grandes amigos. Mas a revista veio assim: “Ministros pífios”(O ex-presidente refere-se à Veja – que, na edição de 7 de outubro de 1992, estampava na capa o seguinte título: “Início pífio: Itamar monta um ministério de compadres”). A gente já imaginava que atrás daqueles “ministros pífios” poderia haver outro movimento…

O importante é que, ao longo do processo que vivi como presidente da República, sempre me preocupei, até por formação, com a manutenção do estado de direito. É uma formação que vem de dentro de casa e também da atividade política, desde os tempos de prefeito da minha querida cidade de Juiz de Fora. Tantos lutaram pelo estado de direito, um ideal que perseguimos ao longo da vida. Queríamos também dar ao País uma nova ordem econômica, o que terminou acontecendo, realmente.

É verdade que o senhor recebeu uma sugestão para fechar o Congresso?

Você vai me colocar numa situação difícil. Mas é verdade. Só não vou dizer o nome dos parlamentares. Vou preservar o nome dos parlamentares porque acho que devo manter esse detalhe sem uma revelação pública. Nós estávamos no palácio, quando dois deputados e um senador entraram de repente, abruptamente, no gabinete e disseram: “O Congresso enfrenta uma crise muito séria. Há corrupção generalizada na área da comissão de orçamento. Quem sabe, você fecharia o Congresso? Faria uma limpeza e, então, daríamos uma nova ordem institucional ao País”.

Falei: “Não! Não! Eu quebraria tudo aquilo que aprendi desde jovem, tudo aquilo que sinto. O Congresso é fundamental num processo democrático. Comigo não contem! Vamos resolver a crise no Congresso. O governo dará todo o apoio que for necessário”. Tanto deu que criou uma comissão de notáveis, encarregada de dar tudo aquilo que a comissão orçamentária precisasse. O que se viu ? Deputados foram cassados.

Quando ouvi a proposta, vivi uma hora difícil. Houve uma segunda vez, um diálogo mais particular. “Vamos fechar o Congresso, vamos limpar, vamos fazer assim, tipo De Gaulle?” (Em meio à crise provocada pelos protestos de estudantes e operários em 1968 em Paris, o general Charles De Gaulle, presidente da França, dissolveu o parlamento, convocou novas eleições e obteve grande vitória eleitoral). Respondi: “Como ‘tipo De Gaulle’? Nós estamos longe da França! Vamos manter a situação. A minha idéia é: custe o que custar, nós entregaremos a faixa ao novo presidente da República, que será eleito democraticamente, como exige e quer a sociedade brasileira. Tenho pedido a Deus que me dê sempre humildade, sabedoria e, sobretudo, equilíbrio para que possa entregar o governo ao sucessor de uma maneira democrática”.

Em que altura do mandato o senhor recebeu a sugestão dos deputados e do senador para fechar o Congresso Nacional?

A proposta foi feita logo que houve a crise da Comissão de Orçamento. Deve ter sido em outubro, novembro de 1993. A crise continuou em 1994. Por que fechar o Congresso? Por que o Congresso não poderia resolver os seus problemas? Há um aspecto importante: em toda crise, sempre respeitamos as decisões do Congresso. Mas, quando a crise ocorria no Executivo, nós sustávamos imediatamente o problema.

Tive um problema com o chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, amigo fraternal, a quem eu conhecia há anos. O pai de Hargreaves tinha sido meu líder na Câmara dos Deputados. Tenho, portanto, uma amizade fraterna com o ministro Henrique Hargreaves. Quando houve um episódio em que estavam querendo envolvê-lo, o próprio Hargreaves me procurou: “Itamar, é melhor eu sair. Depois, se você quiser, volto. Mas só depois que eu resolver o problema”. Assim aconteceu. (Acusado de ter ligações com irregularidades descobertas na Comissão de Orçamento do Congresso, o chefe da Casa Civil se afastou em novembro de 1993 e voltou ao cargo em fevereiro de 1994, depois de inocentado.)

O então ministro da Fazenda, hoje deputado, Eliseu Resende, é um grande amigo que tenho. Mas eu dizia: “Você é o ministro. Quando o Senado da República começa a discutir quem pagou suas diárias de hotel em Nova York, diminui muito o ministro da Fazenda. Infelizmente, você não pode continuar até resolver esse problema”. (Eliseu Resende perdeu o cargo depois da publicação de denúncias de que favoreceria a empreiteira Norberto Odebrecht). A mesma coisa aconteceu com o ministro das Minas e Energia que, de repente, faz um bilhete em que dizia que uma obra deveria ser dirigida para apoiar o candidato Fernando Henrique Cardoso. Tive de tirá-lo também. (Em memorando interno que vazou para a imprensa, o então ministro de Minas e Energia, Alexis Stepanenko, recomendava a assessores que programassem a inauguração de obras para antes das eleições.)

Internamente, portanto, agíamos na mesma hora. Não deixávamos. Podem me negar tudo – menos a percepção de que, em qualquer crise, nós sabíamos que o poder legislativo deveria ter, sempre, a solução dos problemas atinentes.

UM MISTÉRIO : O CONSELHO “TENEBROSO” QUE ITAMAR RECEBEU ERA AINDA “PIOR” DO QUE FECHAR O CONGRESSO

Qual foi o pior conselho que o senhor ouviu quando era presidente da República?

Prefiro não dizer. Recebi conselhos complicados. Em um regime presidencialista, o presidente é um homem solitário. Não se deve achar que o presidente tem aqueles que o cercam, os amigos, os ministros. É diferente quando o presidente vai para o quarto: em seus momentos de reclusão, ele vê passar rapidamente diante dos olhos e na mente tudo o que acontece e o que pode acontecer no País. Certos conselhos que recebi prefiro não revelar: foram tão tenebrosos que prefiro lembrar das coisas boas do meu governo.

Mas o pior foi o de fechar o Congresso?

Houve um pior.

Não quer dar nenhuma pista?

Não. Mas vamos ser sinceros: fechar o Congresso é complicadíssimo. Tivemos um presidente que fechou o Congresso durante dias. (O Congresso Nacional foi posto pela última vez em recesso no governo do general Ernesto Geisel, em abril de 1977, com base no Ato Institucional nº 5 – que conferiu poderes ilimitados ao Poder Executivo de dezembro de 1968 a outubro de 1978). Não foi bom para o País. Como não é boa para o País nenhuma crise. O governo acha que a crise não existe. Pensa que a crise pode ser tamponada e escondida, tenta impedir que uma Comissão Parlamentar de Inquérito se instale. Isso é mau para o País. Porque a crise se agrava e se aprofunda. É o que acontece também quando o presidente resolve manter nos cargos elementos do governo que estão processados pelo Supremo Tribunal Federal ou acusados deste ou daquele delito. Não estou entrando no mérito. Mas estou dizendo que são quistos que não devem existir. Isso, no entanto, é problema de cada presidente.

Qual foi o momento mais dramático que o senhor viveu no Palácio do Planalto?

Quer queira ou não, o presidente é um homem solitário no regime presidencialista – sobretudo, nas crises e nos momentos em que precisa tomar decisões difíceis. São decisões que, às vezes, chocam a alma e a mente do presidente. Defendo o regime parlamentarista desde que era rapaz, desde os tempos de estudante de engenharia. Basta dizer que o meu diretório acadêmico foi um dos primeiros a imprimir o parlamentarismo no estatuto. Imagine só: engenheiros estudando o parlamentarismo! Coincidentemente, fui orador da turma de engenharia: meu paraninfo, o doutor José Bonifácio, fez um discurso de apologia ao parlamentarismo, uma idéia que sempre me impregnou.

O parlamentarismo resolve facilmente as crises. É o que se vê na Itália. O presidente fica imune a qualquer crise. Cai o primeiro-ministro ou cai o gabinete, mas a nação não sofre nenhuma perturbação forte. Já as turbulências do presidencialismo podem levar a crises institucionais, se não se tomar cuidado. São crises institucionais que, às vezes, independem do presidente e independem da própria sociedade. Mas, quando a crise avança… Costuma-se dizer no Senado: “A gente sabe como uma CPI começa, mas nunca sabe como termina”.

Os momentos mais dramáticos foram as primeiras noites. Aquilo martelava os meus ouvidos: “Não dura 48 horas. Não dura 48 horas.” Devo dizer que aquilo não apenas martelava os ouvidos, mas machucava a alma e obrigava a mente a achar que aquela era uma expressão que não vingaria num país que tinha lutado tanto para alcançar a democracia.

Qual foi o comentário mais surpreendente que o senhor ouviu de um dirigente estrangeiro?

Sempre imaginaram que o Brasil não era um país realmente democrata. Pensavam que não éramos um país que buscava, como sempre buscou, o estado de direito. O Brasil vivia sob um estado de direito no final do meu governo. Fomos nessa época, em dezembro de 1994, à famosa Cúpula das Américas, a reunião em que se ia discutir a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), em Miami.

Resolvi levar comigo o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso. Eu era o presidente da República, ele era o presidente eleito. O fato de eu levar o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso e dar a ele todas as honras, a ponto até de me afastar um pouco, surpreendeu aos que pensaram “O Brasil, então, mudou! O Brasil tem um presidente que traz o presidente eleito!” Por que eu levei? Porque ele tinha sido eleito por nós. A eleição de Fernando Henrique Cardoso dependeu do Plano Real, sobretudo. Pode ele não gostar, porque costuma dizer que ele é quem fez o Plano Real.

Não discuto nem brigo: um dia, vão ver que a assinatura não foi a de Fernando Henrique. Porque muitos trabalharam no Plano Real: Paulo Haddad, Gustavo Krause, Eliseu Resende, Fernando Henrique Cardoso e o grande sacerdote do plano, o ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero. Lamentavelmente, o ministro Ricúpero teve de sair, pelas condições que todo o Brasil conhece. Depois, veio o ministro Ciro Gomes, a quem muito devo também. Mas, naquele instante, Fernando Henrique se agarrou ao Plano Real. Como o plano não era uma planta de beira de rio, que vai embora na primeira enchente, Fernando Henrique ficou agarrado a ele. Assim, elegeu-se, independentemente de todas as qualidades que tenha.

(Ao todo, o presidente Itamar teve seis ministros da Fazenda: Gustavo Krause- outubro de 1992 a janeiro de 1993;Paulo Haddad- janeiro a março de 1993; Eliseu Resende- março a maio de 1993; Fernando Henrique Cardoso- maio de 1993 a abril de 1994; Rubens Ricupero – abril a setembro de 1994; Ciro Gomes- setembro de 1994 a janeiro de 1995.)

Quando o presidente eleito Fernando Henrique foi comigo para Miami, deixei que ele aparecesse sempre em primeiro plano. Em outras ocasiões, durante meu governo, deixei que ele aparecesse em primeiro plano, ao contrário do que esperavam os que não o queriam como meu candidato. Eu, às vezes, até me afastava. Ria quando a imprensa dizia: “Fernando Henrique é o primeiro-ministro…”

Eu até achava bom, porque aquilo favorecia um homem que, nas primeiras pesquisas (eleitorais), tinha 16% (de intenções de voto) contra 44% de Lula. Fernando Henrique, então, precisava aparecer comigo. Isso era feito não porque eu fosse bobo: era proposital! Mas a imprensa achava que eu era bobo. Fui deixando Fernando Henrique ser “primeiro-ministro”. Preciso dizer, aqui, o seguinte: depois de muito tempo na história republicana, nós fizemos o nosso sucessor – e sem usar a máquina administrativa!

Quando levei o presidente eleito comigo para a reunião de Miami, presidentes que ali estavam – acredito que até o presidente Bill Clinton – notaram: “Interessante – o Brasil traz o presidente eleito. O processo democrático vai ter continuidade com Fernando Henrique Cardoso”.

O senhor nomeou Fernando Henrique Cardoso ministro da Fazenda, no Diário Oficial, sem que ele tivesse aceitado o convite?

Eu tinha enfrentado uma crise, triste, para mim: a destituição do ministro Eliseu Resende, às duas e meia da madrugada, quando eu disse a ele o que pensava em relação ao problema discutido no Senado da República. Peguei o telefone: “Fernando, estou com necessidade de um ministro da Fazenda. Vejo que você, apesar de sociólogo, tem as qualificações para assumir neste momento…” Diga-se de passagem que nós nos dávamos muito bem na época. Disse a Fernando: “Se você pudesse assumir o Ministério da Fazenda…” Fernando Henrique não me disse nem sim nem não. Ficou de pensar. Mas resolvi publicar a nomeação. Se ele não quisesse, eu teria revogado.

Isso foi uma maneira de forçá-lo a aceitar?

Fez bem a ele.

ITAMAR FALA DE UM ASSUNTO QUE O INCOMODA : O “CONSTRANGIMENTO” DE TER SIDO FOTOGRAFADO, NUM CAMAROTE DO SAMBÓDROMO, AO LADO DE UMA MODELO QUE NÃO USAVA CALCINHA

O fato de uma modelo ter sido fotografada ao lado do senhor, numa pose indiscreta, foi o momento mais constrangedor que o senhor viveu como presidente da República?

Aquele foi o momento mais constrangedor. Mas se aquela modelo entrou no camarote, pergunto: eu poderia pôr um espelho embaixo, para verificar se a pessoa estava nua? Não tinha jeito! Não podia fazer. Ou podia pôr um espelhinho? Se soubesse, talvez pusesse, sim, um espelho grande, para ver quem estava sem calça ou com calça… Mas aquele foi um momento de muito constrangimento. (Depois de ter desfilado no Sambódromo, no Rio de Janeiro, a modelo Lilian Ramos posou ao lado do presidente vestindo apenas uma camiseta curta sobre o corpo nu – os flagrantes registrados pelos fotógrafos, postados abaixo do camarote, correram o mundo nos dias seguintes.)

Não sei se ele se recorda, mas fui o primeiro governador de estado a fazer a campanha do então candidato Lula. Logo que assumi o governo, nós o lançamos, em Ouro Preto. Nem candidato ele era. Depois, ao longo do meu mandato de governador, defendi a candidatura do hoje presidente Lula, junto com José Dirceu, a quem quero muito bem. Fui igualmente o único governador que esteve presente ao último comício de Lula, em São Bernardo do Campo, quando ele se debulhou em lágrimas. Também emocionado, deixei as lágrimas caírem, debaixo da chuva. Não sei se o presidente Lula se recorda , mas ele chegou perto de mim e disse: “Itamar, o que é que você quer?” Resolveu me mandar para a embaixada do Brasil na Itália. Pela afetividade, por ligações familiares lá, aceitei, mas com receio exatamente do problema que já tinha acontecido. (Logo depois de ganhar fama instantânea, em 1995 Lilian Ramos passou a viver justamente em Roma.) Fiquei bastante preocupado.

A foto da modelo, tirada durante um desfile de carnaval, comprometeu de alguma maneira a imagem presidencial?

Tenho a impressão de que não, porque eu estava ali inocentemente. Não convidei a modelo para ir ao meu camarote. Como disse, para saber se ela estava de calcinha, eu teria de pôr um espelho por baixo – ou, então, levantar a saia, o que eu não faria. Mas aconteceu de ela estar sem a calcinha. Não se pode ter medo de dizer que ela estava sem calcinha, porque ela estava, sim. É o que se verificou, depois. Mas repito que ela não foi convidada por mim. Alguém a colocou lá, alguém que se aproveitou de um descuido qualquer. Meu processo de liberdade, em que não me rodeio de muita segurança e deixo as coisas acontecerem, às vezes pode ser um erro. Alguém introduziu a modelo ali, maldosamente. Afinal, ninguém entra sem roupa num camarote, sobretudo no do presidente da República.

Aquilo causou um constrangimento público ao senhor?

Ah, muito constrangimento público, muito constrangimento…

Porque a foto teve até repercussão internacional…

Teve repercussão internacional. Tentei, depois, dar um telefonema para a modelo. Queria dar o telefonema para chamá-la e enquadrá-la. Tive de usar outro artifício, mas ela entendeu diferente. Terminou gravando o telefonema. O episódio causou um constrangimento internacional. Quem brincou comigo, numa determinada solenidade, foi o rei (Juan Carlos I) da Espanha. Havia um quadro. O rei chegou perto de mim e disse: “Meu caro Itamar, eis aí uma coisa de que você gosta…” Nós brincamos, tal a liberdade que ele tinha comigo. Mas aquilo me custou caro – um banzé danado. Eu é que fui prejudicado, porque todo mundo se beneficiou.

Que personalidade nacional ou estrangeira decepcionou o senhor na presidência?

De personalidade nacional não quero falar, porque eu poderia levantar uma celeuma que não me interessa nesse instante. Entre as personalidades estrangeiras, não me recordo de nenhuma que tenha me decepcionado. Sempre respeitei a personalidade e o modo de dirigir dos governantes. A gente aprende que não se deve interferir na gestão desse ou daquele presidente. Ao contrário. Mas houve duas figuras que me impressionaram. Uma pertence ao campo da religião. Pode-se até discordar da linha que ele seguia. Não quero debater a doutrina social da Igreja. Mas devo dizer que o papa João Paulo II me impressionou. Considero-o um peregrino da paz. Fiquei impressionado com a peregrinação que ele fez por uma paz que, infelizmente, até hoje, no século XXI, não conseguimos.

Hoje, vejo falar das relações entre Brasil e Venezuela. Mas Brasil e Venezuela, em minha época nas presidência, estavam de costas um para o outro. Fui o primeiro a visitar o presidente da Venezuela, Rafael Caldeira, depois que ele foi eleito. Vi que ele tinha um amor grande pelo Brasil. Ali, foi possível fazer com que Venezuela e Brasil voltassem a ter amizade. A aproximação foi tão grande que o presidente Rafael Caldeira tornou-se um dos primeiros presidentes a defender a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU.

São figuras que me impressionaram. O presidente Rafael Caldeira, pela simplicidade, pelo bem querer em relação ao Brasil e por seus desejos democratas. O Papa João Paulo II, por ser um peregrino da paz, uma figura notável.

Tive três encontros com o Papa. Dois encontros ocorreram aqui no Brasil. Um ocorreu em Roma, quando o presidente Lula me pediu que o representasse no Jubileu do Papa (em 2003). Fui um dos 16 que puderam cumprimentá-lo. O Papa já estava doente. A gente seguia todo o drama pessoal não do Papa em si, mas daquela figura humana. Ao me ajoelhar para pegar na mão de João Paulo II e olhar para a face daquele homem, me emocionei bastante. Quando disse que era brasileiro, ele respondeu: “Oh, brasileiro”. Olhou-me rapidamente nos olhos. Pude ver que ali estava um homem que claramente demonstrava, no olhar, uma tristeza profunda.

(*) Trechos de entrevista publicada na íntegra no livro “DOSSIÊ BRASÍLIA : OS SEGREDOS DOS PRESIDENTES” - que reúne depoimentos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, gravados em 2005.

Posted by geneton at 03:12 AM

julho 01, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 8

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE – 8/ MORTE DE CHEFE DA GUARDA PESSOAL DO PRESIDENTE FOI “QUEIMA DE ARQUIVO TÍPICA”

O verbete “Vargas, Getúlio” ocupa um espaço privilegiado nas lembranças do repórter que começou a exercer a profissão quando o segundo governo de Vargas agonizava em meio a sucessivas crises políticas. Evandro Carlos de Andrade agita-se ao fazer um retrato falado daquele fim de época :

“Não considero que a herança de Getúlio tenha sido nociva ao país ! O que foi o governo Dutra – que veio depois da queda da ditadura de Getúlio no Estado Novo ? Dutra, um homem seriíssimo, fez um governo com o PSD – que era a elite com quem Getúlio tinha governado. Mas desperdiçou recursos acumulados durante a guerra. Houve uma festa de importações. Quando voltou ao Poder, Getúlio quis fazer um governo democrático, mas estava politicamente enfraquecido. Não resistiu à pressão. A ação dos militares contra Getúlio é até hoje um enigma para mim. Por que aquele ódio? Por que a Aeronáutica queria tanto derrubar o Getúlio?. É um mistério”

“Pude acompanhar o fim do segundo governo. Participei da cobertura da crise provocada pelo atentado na Rua Tonelero (N: um pistoleiro atirou em Carlos Lacerda, adversário de Getúlio Vargas, mas terminou matando o major da Aeronáutica Rubens Vaz. A crise aberta com o atentado culminou com o suicídio do presidente). Nunca tive dúvida sobre a natureza do atentado: tinha sido forjado no Palácio do Catete por Gregório Fortunato, o chefe da guarda pessoal de Getúlio. A morte de Gregório, anos depois, na prisão, foi uma queima de arquivo impressionante. Gregório tinha um comportamento exemplar. Quando ia ser libertado, foi esfaqueado dentro da prisão – queima de arquivo típica. Porque possivelmente ele entregaria quem o estimulou”. ( Oito anos de pois de preso, Gregório foi esfaqueado, na prisão, por outro detento do presídio Frei Caneca, em outubro de 1962. Tinha dito que estava escrevendo um diário – que, no entanto, jamais foi encontrado ).

“Carlos Lacerda chegou a levantar suspeitas – que não foram comprovadas – sobre o empresário Euvaldo Lodi, dirigente da Confederação Nacional da Indústria. Gregório tinha por Getúlio uma paixão e uma devoção de criatura para criador. Porque o Gregório tenente foi criado por Getúlio. O que levou Gregório a preparar um atentado que, no fim das contas, foi o que destruiu o segundo governo de Getúlio ? Nunca ficou claro quem estava por trás de tudo. Para o próprio Getúlio, o atentado foi um choque horroroso. Tentaram envolver a família do presidente no atentado. Duvido que a família de Getúlio estivesse envolvida. Duvido que qualquer dos filhos estivesse. Lodi pode ter tido conversas do tipo “esse camarada só matando…”. O atentado da rua Tonelero foi testemunhado por Armando Nogueira – que escreveu um texto na primeira pessoa para o Diário Carioca. Fui ao apartamento de Lacerda, logo de manhã, bem cedo, para fazer um registro sobre como estava o ambiente. Havia a suposição de que,em meio ao tiroteio, o próprio Lacerda tivesse atirado no pé, porque ele não tinha treino nenhum no manuseio de armas. Era possível. Lacerda passou pelo hospital, rapidamente, depois do atentado, mas não ficou internado. Terminou voltando para casa”.

“Quando cheguei ao apartamento, tive a sensação de tumulto e agitação. Lacerda era afoito, não tinha medo físico. Adauto Lúcio Cardoso um dia me disse que convidou Lacerda para ir visitá-lo num sítio em Teresópolis. Lacerda quase morreu afogado porque se atirou numa piscina sem saber nadar direito. Não tinha nenhuma noção do perigo”.

Posted by geneton at 03:20 AM

junho 30, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 7

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE -7/ “NÓS, JORNALISTAS, SOMOS CONVOCADOS PARA O CINISMO” ( E O DIA EM QUE O BRIGADEIRO DISSE QUAL SERIA O REMÉDIO PARA O MURRO QUE CARLOS LACERDA LEVOU)

O impacto produzido no país pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas não chegou a perturbar pessoalmente o repórter iniciante. Evandro começava ali, inconscientemente, a tecer em torno de si a couraça de “cinismo” que termina envolvendo a pele dos jornalistas :

- “ Não pude ficar horas e horas no Palácio do Catete logo depois do suicídio porque tinha que ir para o jornal o mais rápido possível para fazer a matéria. Vi o corpo descer. Fiquei ali assistindo ao velório. Testemunhei uma comoção que, naquele momento, nem vinha de pessoas notáveis – mas do povo. Não verti nenhuma lágrima. A verdade é que o jornalista se torna – muito rapidamente- um cínico. Nós, jornalistas, somos convocados para o cinismo, porque estamos sempre vendo o horror e a mentira. Mas um choque é sempre um choque, como foi o suicídio do Getúlio. O que é que se faz uma hora dessas ? Corre-se para a redação - que é o ponto de referência. Logo em seguida, fui ao Palácio do Catete, para esperar a hora do início do velório”.

O Diário Carioca descreveria assim,em texto não assinado,na primeira página da edição de 25 de agosto de 1954 :

“Com a cabeça voltada para o quadro que representa o juramento da Constituição de 1891 e os pés para o quadro “Pátria”, a cuja frente se acha um crucifixo,o corpo do presidente Getúlio Vargas recebe,desde as 17: 30 horas de ontem, no salão do Gabinete da Casa Militar da Presidência da República, no Palácio do Catete,as despedidas de milhares de populares que vão lhe fazer a última visita.(…) –”Nada fazia crer que fosse o Presidente se matar”,disseram-nos o general Caiado de Castro e Jango Goulart, com os quais ele conversara minutos antes de se recolher. O sr. Getúlio Vargas se recolheu ao quarto, sem mais uma palavra. Passados uns minutos – o tempo normal para a troca de roupa- ouviu-se um disparo. Acudiu, incontinenti,o sr. N. Sarmanho, que se encontrava na janela da sala contígua (a do elevador privativo do presidente). Já o sr.Getúlio Vargas agonizava. Da janela, o sr.Sarmanho fez um sinal para um oficial, pedindo que fosse o general Caiado avisado de que o sr. Getúlio Vargas havia se matado.Logo em seguida, o general Caiado chegava ao quarto,onde, não resistindo ao impacto da tragédia, foi acometido de forte crise de nervos, sofrendo uma síncope. A seguir, correndo escada acima, o sr.Benjamin Vargas gritava :”Getúlio se matou!”. O Palácio ficou em pânico, a família do presidente acorreu,entre gritos e lágrimas. Também o sr.Oswaldo Aranha logo chegou .Junto à cama, chorando,exclamou :”Abusaram demais da bonda de desse homem !”.

Por que você diz que o Getúlio da ditadura do Estado Novo foi “melhor” que o Getúlio eleito democraticamente, em 1950, para um segundo governo ? – pergunto.

Evandro se anima a fazer um relato que mistura observação política com convivência familiar :

“O Getúlio do segundo governo era uma personalidade decadente”- responde. “O que era que acontecia ? A inflação estava crescendo;os ministros não tinham expressão. Tinha-se formado, entre as chamadas “classes dominantes”, um ressentimento contra o papel que Getúlio Vargas representava – o de Pai dos Pobres. Já o Getúlio do Estado Novo convocou as principais personalidades políticas do país para fazer um governo sob a ditadura. Os ministros todos de Getúlio eram homens públicos honradíssimos, dedicados e competentes : a elite do Brasil governando junto com o Getúlio numa ditadura. Getúlio pessoalmente era um homem intocável : despachava em pé no Palácio do Catete olhando pela janela, porque não admitia que ninguém pusesse lhe pusesse as mãos. Com ele,não existia “tapinha na barriga”. Não havia hipótese. Era um homem que se dava ao respeito - extremamente conservador. O “revolucionarismo” de Getúlio era uma contingência, porque ele, na verdade, era um conservador extremado. Quando foi ministro da fazenda do governo Washington Luís, Getúlio era um padrão de conservadorismo. Não queria derrubar o Presidente”.

“Admiração pelo Getúlio da ditadura – não pelo Getúlio decadente do segundo governo – só vim a ter depois, ao me informar sobre quem eram as personalidades que o cercaram. O ambiente em minha casa era antigetulista. Minha família tinha índole udenista. Para dizer a verdade, era de índole integralista. Quando eu era menino,dizia anauê (N: saudação do Movimento Integralista). Eu tinha dois ou três tios engajados no integralismo : quando houve o putsch de 1938 (tentativa de golpe dos integralistas contra o governo de Getúlio Vargas), eles tiveram de fugir para o interior do Mato Grosso”.

“Minhas simpatias iam para a UDN. Vou ser franco : a minha alma é udenista.Isso ficou em mim. Sou um udenista, mas detestei o golpismo de Carlos Lacerda naquele período. Hoje,tenho admiração pela figura histórica de Lacerda, mas, naquele momento, eu o detestei”.

“Nunca tive paciência para ler “O Capital”, mas tive influências de leituras sobre o pensamento marxista, sobre a análise do capitalismo, sobre a formação do capital. O que eu abominava, sobretudo, era a idéia de golpe militar. Revi posições, mas, no fundo, sou um udenista”.

“O meu udenismo vem da família : quando em 1945 se iniciou o processo do fim da ditadura do Estado Novo, minha família pendeu para a UDN. Fui junto. A queda de Getúlio obedeceu a uma espécie de progressão. Não foi de uma vez. Getúlio só caiu quando quis fazer do irmão, Benjamin Vargas, o Benja,chefe de polícia”.

“Quem era o meu ídolo entre os udenistas ? Vou dizer baixinho : era o Brigadeiro Eduardo Gomes. Eu via no Brigadeiro a figura de um herói, um homem de uma grande integridade. Nem sei se ele tinha a visão adequada de um Brasil efervescente,como era o país naquele momento. Mas era um homem absolutamente correto - um padrão moral. Tinha arriscado a vida na revolta dos Dezoito do Forte. Contavam-se duas histórias engraçadas sobre o Brigadeiro. Um dia, ele disse que quem tomou o forte foram 13, não 18. Quando quiseram saber “mas por que o senhor nunca disse que tinham sido 13 ? “, ele respondeu simplesmente :”Porque nunca me perguntaram !”. Carlos Lacerda uma vez levou um murro dentro do elevador da Rádio Mayrink Veiga . Dizia-se quem mandou dar o murro foi o marechal Mendes de Morais, prefeito do Rio de Janeiro na época. Lacerda sempre foi uma fera : comentarista da rádio, denunciava casos de corrupção e combatia o prefeito. Agredido violentamente, Lacerda ficou com um inchaço. Toda a UDN estava reunida na casa de Lacerda quando entra o Brigadeiro Eduardo Gomes. Fez-se silêncio. Todos esperavam que o Brigadeiro dissesse uma frase histórica sobre a agressão. Mas o Brigadeiro chegou bem perto do inchaço de Lacerda e disse :

-Bom pra isso é bife cru….. “

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junho 29, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 6

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE – 6/ “JK TINHA UMA NOTÓRIA AMANTE. NÃO SE FALAVA SOBRE O ASSUNTO”

Neste trecho da entrevista, o jornalista Evandro Carlos de Andrade relembra o dia em que viajou a Belo Horizonte com a missão de fazer uma entrevista com o candidato que viria a se tornar um dos mais populares presidentes da República :

“Tive a chance de fazer a primeira entrevista com Juscelino como presidente eleito. A entrevista não foi feita para o Diário Carioca, mas para a revista Manchete. Pompeu de Souza (chefe de Evandro no Diário Carioca) ficou enciumado. Diretor da Manchete, Otto Lara Rezende me convidou para fazer a entrevista com Juscelino. Consultei Pompeu : “A Manchete me convidou. Algum problema ? “. Como ele disse que eu poderia atender ao convite, viajei para Minas Gerais, em companhia do fotógrafo Gervásio Batista,exclusivamente para fazer a entrevista. Quando voltei ao Rio, notei que Pompeu tinha ficado enciumado, porque ele me disse : “Ah,não esperava que você fosse…”. Respondi : “…Mas eu pedi autorização! E você é que deu !”.

“Juscelino estava tranqüilo quando o encontrei, em Belo Horizonte. Chegou a brincar quando eu disse que as projeções indicavam que ele vencera a eleição : “Mas essas contas estão certas ?”. A contagem dos votos não tinha terminado. A apuração dava vantagem a Ademar de Barros mas não havia dúvida nenhuma de que Juscelino seria eleito para a Presidência da República. Eu tenho certeza de que ele estava cansado de saber que iria ganhar. Ainda assim, me perguntou: “Como é que você fez esse cálculo ? “. Juscelino estava brincando. Era extremamente simpático e gentil. Estava cansado, mas sorridente e eufórico. Quando o fotógrafo se preparava para fazer as primeiras fotos, amigos sugeriram que Juscelino trocasse por “um terno presidencial” a roupa meio amarrotada que ele usara na viagem do Rio a Belo Horizonte. Juscelino, então, se levantou. Quando voltou, estava de terno cinza-escuro, colete, gravata em minúsculo xadrez preto e branco e sapatos pretos, conforme registrei na reportagem. Quando ainda estava em desvantagem na contagem dos votos, Juscelino ouviu de um repórter, na saída de uma missa de ação de graças pelo aniversário de Dona Sara, uma perguntava sobre se não estava assustado com o resultado. Respondeu : “ Você nunca ouviu falar em Nossa Senhora do Bom Princípio. Porque o que existe é Nosso Senhor do Bonfim. E desse eu sou devoto !”.

“Não teve nem cafezinho : eu me sentei ao lado do presidente eleito, fiz a entrevista, fui embora para o Rio. Juscelino tinha estado na casa de um amigo. Era notoriamente amante da mulher do dono da casa”.

“Juscelino aproveitou a entrevista para mandar um recado aos que não queriam que ele tomasse posse. Quando perguntei se ele acreditava que o movimento contrário a ele iria recrudescer, respondeu : “Considero esta pergunta totalmente superada. A eleição de três de outubro arrasou com qualquer veleidade de grupos que quisessem opor-se à vontade do povo. Nem considero esta pergunta como tema para dissertação. O eleito é ungido. Nenhuma força impedirá a posse”.

“Quando Juscelino assumiu a Presidência,passei a escrever uma coluna diária no Diário Carioca sobre o que acontecia no Palácio do Catete. A gente sabia da fama de Juscelino : a de ser de mulherengo. Tinha uma notória amante – uma mulher casada. Não se falava sobre esse assunto. Veja-se o próprio Getúlio Vargas. Quando eu soube que Getúlio tinha sido amante de Virgínia Lane, tive uma surpresa. Eu não tinha nenhuma idéia de que Getúlio fosse sexualmente praticante”.

“Juscelino não tinha intimidade com os repórteres que o acompanhavam. Era simpático, mas se dava ao respeito. Passei a campanha toda dentro do avião de Juscelino. Ainda assim, ele não me dava nenhum tratamento especial. Só raramente. Posso dizer que sofri quando fui distinguido com um convite. Quando Juscelino foi fazer uma viagem a Belo Horizonte por uma estrada de terra, prosseguimento da União Indústria, me convidou. O convite foi feito também porque o Diário Carioca o apoiava. Mas foi um horror, um tormento para mim. Viajei no quarto carro da comitiva. Alimentei-me de poeira durante doze horas”.

“Tanto durante a campanha quanto durante o exercício da Presidência, Juscelino sabia ser espontâneo e comunicativo durante as entrevistas. Pode-se dizer que foi o primeiro homem público a usar bem a televisão, no sentido pró-governo.Carlos Lacerda usou o poder demolidor da TV. Ao perceber o poder de fogo da TV, Juscelino –que tinha poderes para tanto – proibiu Lacerda de ter acesso à televisão”.

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junho 28, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 5

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE -5 / CENAS DOS BASTIDORES DE UMA CAMPANHA PRESIDENCIAL : JORNALISTAS RECEBEM REVÓLVERES PARA ACOMPANHAR O COMÍCIO DE JK NO SERTÃO DE PERNAMBUCO

O Diário Carioca daria a um Evandro ainda verde na profissão a primeira grande chance de participar intensamente de uma cobertura importante. Quatro candidatos disputavam a Presidência da República : Juscelino Kubitschek (PSD/PTB); Juarez Távora (UDN/PDC); Ademar de Barros (PSP) e Plínio Salgado (PRP). Coube a Evandro a tarefa de acompanhar, para o Diário Carioca, a campanha de um candidato sorridente que, depois de ganhar no voto o governo de Minas Gerais, agora sonhava com a Presidência da República : Juscelino Kubitschek de Oliveira.

O relato de Evandro:

“Durante a campanha, enfrentamos situações de perigo a bordo do avião que servia a Juscelino. Mas, diante de situações como, por exemplo, o incômodo do calor e da poeira no Nordeste, eu preferia estar voando a estar em terra. Parecia mais confortável. Mas devo dizer que o avião que Juscelino usou durante toda a campanha não podia ser mais desconfortável : o DC-3 não tinha pressurização, não tinha nada - uma coisa horrível. Guardei o prefixo : era um avião da Nacional Transportes Aéreos, PP-ANY. Houve cenas assim : Juscelino recebeu um aviso de que não deveria seguir de Manaus para Santarém, porque o tempo estava horroroso. Mas o avião tentou pousar, debaixo de tempestade. Além da chuva tremenda, o capim cobria a pista. Resultado : o avião arremeteu três vezes. Quando o piloto tentava pousar, tinha de desistir da manobra, porque o capim e a tempestade atrapalhavam a visão do traçado da pista de pouso. Só conseguiu depois da terceira tentativa”.

“Depois, ao decolar, no interior do Rio Grande do Sul, o avião levantou um pouco , teve uma pane e caiu num banhado logo em seguida. Os pilotos Prates e Torres – que tinham sido da FAB – faziam coisas incríveis durante essa maratona da campanha. Viajamos de Salvador a Recife a quinze metros de altura – um vôo rasante pelo litoral. Os pescadores se abaixavam quando viam aquele bichão dando rasante. Era o avião de Juscelino. José Moraes, secretário de imprensa de Juscelino, se indispôs uma vez com um dos pilotos, em Santa Catarina. Como vingança, o piloto resolveu brincar com o avião. Fazia manobras quase na vertical. Quando pousamos, havia gente machucada a bordo. Juscelino não estava no avião, porque tinha embarcado num teco-teco para percorrer pequenas cidades do Estado. Eu escapei do susto porque, como cupincha dos pilotos, fui para a cabine. O engraçado é que, quando a gente passou por José Moraes – a quem os pilotos quiseram assustar com a manobra – ele estava lendo um livro de bolso. Sempre andava com um pocket book de ficção, em inglês. Lívido, sério, ele fazia de conta que estava absorvido pela leitura – mas o livro estava de cabeça para baixo. Fez de tudo para não passar recibo do susto. José Moraes era um bom sujeito. Bebia cachaça mas nunca tinha ressaca. Não ficava bêbado. Lá pelo segundo ano de governo, sentiu-se ligeiramente mal. Quando os médicos abriram, viram que ele estava todo corroído.Logo depois, ele morreu”.

“Quando íamos descer em Petrolina, no sertão de Pernambuco, para um comício, o operador recebeu um recado : “Não venham, porque vocês vão ser recebidos a tiros !” . O aviso nos foi transmitido por rádio. A bordo, havia uma mala de couro, cheia de munição. Cada um de nós recebeu uma arma. Desembarcamos em Petrolina armados com revólveres, para o comício que Juscelino ia fazer. As armas nos foram entregues ainda dentro do avião. Um major deve ter distribuído as armas. Nosso grupo devia ter uns dez pessoas. ”Vamos em frente”. Juscelino não era nada truculento. Mas o grupo estava pronto para o que desse e viesse. Para dizer a verdade, eu estava com um medo desgraçado, porque nunca tinha dado um tiro na vida. Mas estava pronto para o pau- uma maluquice completa. A arma pesava. Tinha munição de verdade. Era para morrer heroicamente em Petrolina…. Não era possível saber o que nos esperava, ali, no alto sertão. Mas – felizmente - nada de anormal aconteceu. Juscelino fez um comício ótimo, numa praça linda . Quem organizava bem essas manifestações, com faixas para todo lado, era o Partido Comunista. Juscelino era um sucesso. As multidões iam vê-lo, empolgadas, porque ele transmitia simpatia. De qualquer maneira, a ameaça que tinha sido transmitida à comitiva ainda no avião, antes do comício de Petrolina, nos assustou”.

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junho 27, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 4

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE – 4 :”SABER USAR CRASE É UM PATRIMÔNIO TÃO IMPORTANTE QUE DEVE SER DECLARADO NO IMPOSTO DE RENDA”

Um novo trecho da entrevista inédita com o jornalista Evandro Carlos de Andrade (ver posts anteriores) :

“Como é que se chega ao jornalismo ? Quando é o caso, chega-se por impulso político. Não foi o que aconteceu comigo. Nunca fui militante, nunca participei sequer de política estudantil. Chega-se ao jornalismo também por falta de vocação – o que é predominante. Somos jornalistas por falta de definição. Há também o fator multivocacional : o sujeito que acha que pode ser isso ou pode ser aquilo acaba se tornando jornalista, porque nossa característica fundamental é a superficialidade : o jornalista tem um interesse – sempre superficial – por tudo. É o meu caso. Sempre me interessei por tudo, mas muito superficialmente. Tudo me interessa - pela rama. Se alguém me perguntar : “ Você conhece todas as regras do futebol? “. “Eu ? Jamais ! Nunca li! “. Se alguém quiser saber de mim “Você já leu toda a Constituição?”. “Nunca ! Nunca !”. Mas me interesso por tudo. É o que faz de mim jornalista. Hoje, reconheço que a curiosidade superficial por tudo é uma qualidade insuficiente : todo jornalista deve se aprofundar em um ramo do conhecimento. Mas o jornalista em geral se interessa pelo esporte, pela política, pelo crime, pela economia. É um traço da profissão. Eu me interesso por cada seção do jornalismo. De Otto Lara Resende ouvi pela primeira vez a autodefinição profissional : “Sou especialista em idéias gerais”. É o que nós, jornalistas, continuamos a ser”.

“Além de se interessar por tudo, o jornalista deve, obviamente, tratar bem o idioma. Saber usar a crase é um patrimônio tão importante que deve ser declarado ao Imposto de Renda. Quando for preencher o formulário, quem souber usar corretamente a crase deve dizer : “tenho casa,tenho carro e sei usar crase” . Porque é incrível a dificuldade que jornalistas – inclusive os antigos e experientes – enfrentam quanto ao uso da crase. Ferreira Gullar disse que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”. Eu digo que a crase foi feita para humilhar quem não sabe usá-la.Uso a crase como símbolo do cuidado que os jornalistas devem ter com a língua” .

Os olhos grandes de Evandro – ampliados pelas lentes dos óculos – parecem ainda maiores quando ele faz uma radiografia rigorosa do jornal que o empregou pela primeira vez :

- “O Correio Radical na verdade era um jornal chantagista e ordinário, porque tomava dinheiro de bicheiros. Era o que se fazia : o jornal denuncia o bicheiro. Em seguida, o bicheiro vai ao jornal para saber : “Quanto é ? “. O jornal diz, o bicheiro paga, o assunto morre ali. É o que se fez durante anos e anos, nesse tipo de imprensa. Eu não ganhava nada para trabalhar no jornal. Absolutamente nada : nem um centavo. A greve foi uma tentativa de receber algum pagamento”.

“A primeira reportagem que fiz foi um grande vexame. Fazia-se muito “nariz de cera”.( N : gíria das redações para definir as introduções intermináveis que os redatores faziam ao redigir as reportagens). Minha tarefa era fazer uma matéria sobre o general Armando de Morais Âncora – que tinha sido nomeado por Getúlio Vargas para o posto de diretor-geral do Departamento Federal de Segurança Pública, o DFSP, no Rio de Janeiro. Pediram-me que eu fizesse um “nariz de cera” elogioso a ele. Nomeado, depois, para o comando do I Exército no Governo João Goulart, foi transferido para a reserva logo após o golpe de 1964. Tinha ficado a favor de Jango. Terminou morrendo de câncer – que, como dizia Otto Lara Resende, é uma doença da alma. Houve vários casos de generais que tinham ficado a favor da legalidade – e morreram, doentes, pouco tempo depois de 64. Eu associo sempre a doença ao desgosto que sentiram”.

“Ao redigir o “nariz de cera” para o Correio Radical, escrevi que o general era reconhecido pelo “opróbrio”. O meu raciocínio era o seguinte : se probo é alguém honesto, então opróbrio é sinônimo de honestidade. Acontece que é exatamente o contrário. Opróbrio quer dizer desonra, ignomínia. Paguei esse grande mico”.

“O pior é que o texto saiu. Alguém iria saber o que era opróbrio na redação ? Uma vergonha completa. Mas ninguém reclamou : nem o dono do jornal nem o general- com quem, aliás, não cheguei a falar antes de redigir a matéria. Não me encontrei com ele. O texto que o jornal iria publicar era uma badalação em cima do que já se sabia sobre o general. O acesso fácil de jornalista a autoridade é um fenômeno que só se espalhou depois da inauguração de Brasília. A acessibilidade que existe em Brasília é que criou uma convivência que, antes, não era a regra. Autoridade não olhava para repórter, não dava a menor pelota” .

Posted by geneton at 03:28 AM

junho 26, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 3

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE – 3 (OU: PEQUENO ROTEIRO DE CENAS “INCONFESSÁVEIS” OCORRIDAS NA REDAÇÃO DE UM JORNAL

O noticiário anda árido ? A atriz não disse nada de aproveitável na entrevista ? Que se crie uma Milícia de Proteção aos Pombos para comover os leitores. Ou acrescente-se à entrevista da atriz uma frase bem-humorada que ela poderia até ter dito ao repórter – mas não disse. O jornalista iniciante Evandro Carlos de Andrade foi “testemunha ocular” de invenções cometidas na redação de um jornal importante, o Diário Carioca.

O DOSSIÊ GERAL publica um novo trecho da entrevista (inédita) que o locutor-que-vos-fala fez com Evandro Carlos de Andrade, jornalista que se notabilizou como comandante de redações ( ver posts anteriores). Faz exatamente dez anos que morreu, aos sessenta e nove anos de idade, vítima de uma doença de nome esquisito: Policitemia Vera. Quando saiu de cena, comandava a Central Globo de Jornalismo.

Logo no início da carreira, nos anos cinquenta, teve a chance de frequentar a redação do jornal que seria laboratório de uma revolução estilística na imprensa brasileira: o Diário Carioca implantou a objetividade no texto jornalístico, até então marcado por academicismos, floreios, imprecisões. O editor Pompeu de Souza trouxe para o jornal o conceito americano de lead. Uma notícia deveria responder, já nos primeiros parágrafos, às seguintes perguntas básicas: ” Quem ? O quê ? Quando ? Onde ? Por quê ?”.

Mas….o jornal que entrou para a história da imprensa brasileira moderna por ter instaurado o reino da objetividade também cometia seus pecadilhos na busca pela atenção do leitor…

Diz Evandro:

“Assim que me apresentei ao jornal, conheci o chefe de reportagem Luís Paulistano, famoso criador da Milícia de Proteção aos Pombos da Candelária – uma invenção pura. Um fotógrafo tinha chegado à redação com a seguinte notícia : um gavião estava comendo os pombos da Candelária. Paulistano então deu a ordem : “Evandro, vá ver esse negócio.” Lá fomos nós – eu e o fotógrafo, Orlando. Tivemos de subir a cúpula da Igreja, aquela coisa imunda. Quando chegamos lá em cima, encontramos um diabo de um gavião. Orlando fez uma fotografia péssima – que teve que ser retocadíssima para que se pudesse ver do que se tratava. O Diário Carioca publicou a primeira matéria. Mas, nos dias seguintes, Paulistano resolveu inventar, porque queria manter o assunto vivo. Todo dia, ele escrevia sobre o gavião que estaria atacando os pombos – o que era pura ficção. Paulistano chegou a criar uma Milícia de Proteção aos Pombos da Candelária – a MPPC. Fez a sigla. Disse o seguinte: empresários da praça Mauá estão preocupados com os pombos. Tudo mentira, mentira, mentira, mas o assunto virou um ícone na imprensa do Rio. É inacreditável – mas as coisas aconteciam assim”.

A saga fictícia do gavião exterminador de pombos no centro do Rio de Janeiro não foi a única história “inconfessável” que Evandro Carlos de Andrade testemunhou na redação do Diário Carioca. Ruth Ellis, mãe de dois filhos, assassina confessa do amante, entrou para a crônica policial inglesa como a última mulher a ser condenada à morte no país – numa época em que a pena capital era o enforcamento. Os carrascos da prisão de Holloway , em Londres, cumpriram a sentença da justiça no dia 13 de julho de 1955. Ruth Ellis morreu sem saber que, num longínquo país da América do Sul, foi personagem de uma escandalosa fraude jornalística, na primeira página de um dos jornais da então capital federal – o Diário Carioca.

A testemunha Evandro Carlos de Andrade revela :

“Um dia, encantado com um texto que anunciava para o dia seguinte o primeiro enforcamento de mulher depois de décadas, Pompeu de Sousa quis publicá-lo acompanhado da fotografia da condenada. Não havia fotos. Pompeu mandou buscar no arquivo a pasta de fotos de pin-up girls, escolheu a mais bonita – de maiô e saltos altos- e publicou-a de cima a baixo na primeira página, como se fosse da mulher que seria enforcada horas depois. Otávio Malta, indignado, protestou na coluna da “Última Hora” em que fazia a crítica dos jornais, mas Pompeu, enquanto ria da reclamação, justificou-se : “Em jornalismo, não se pode ser acadêmico”. Nunca me esqueci da frase de Pompeu – “em jornalismo,não se pode ser acadêmico” – mas devo dizer que a máxima não me serviu de lição porque nunca achei certo o que se fez ali. Sempre considerei aquilo engraçado, mas incorreto”.

“Pompeu fez uma dessas comigo quando fui fazer uma entrevista com uma starlet americana de segunda categoria que tinha vindo ao Rio. Ibrahim Sued viveu o que se pode chamar de “conjunção carnal” com ela. A atriz teve uma gravidez tubária. Teve de ser internada no Hospital dos Ingleses. Lá fui eu, com o inglês capenga que tenho até hoje, para entrevistar a starlet. Obviamente, o motivo real da internação jamais foi publicado. Quando cheguei lá, tirou-se aquela fotografia clássica do repórter ao lado da entrevistada. Fiz uma matéria – completamente irrelevante – porque não havia assunto a tratar com ela. O promoter de cinema americano Harry Stone é que trazia esses artistas para o Rio, geralmente para o carnaval. Quando abro o Diário Carioca no dia seguinte, vejo a foto em que apareço ao lado da atriz. Pompeu escreveu na legenda : “Em dado momento,a atriz perguntou ao repórter do Diário Carioca : “Você é primo de Burt Lancaster ?””. Era apenas uma gracinha de Pompeu comigo. Eu pensava : “Isso não tem o menor cabimento !”. A atriz foi operada. Assim que recebeu alta, foi embora. Assim como Jorginho Guinle, Ibrahim Sued, com perdão da má palavra, comia todas. Ninguém passava impune. A starlet foi uma das conquistas de Ibrahim” .

“Pompeu de Sousa era um grande jornalista, mas exercia um estilo que, hoje, seria impossível : numa emergência, inventava. Era um homem engraçado. Vivia rindo da vida. Dava gargalhadas . Nunca o vi de mau humor. Quando me apresentei pela primeira vez na redação, Paulistano me incumbiu de fazer uma reportagem sobre um promotor chamado Cordeiro Guerra – “é uma fera, consegue condenação de todo mundo”. Fui procurar Cordeiro Guerra. Depois, entrevistei os advogados mais famosos da época, como Evandro Lins e Silva e Romeiro Neto. Deixei a matéria na redação. Era um sábado. Quando chegou, Pompeu de Sousa, o chefe da redação, perguntou a Paulistano, como sempre fazia : “O que temos aí para a primeira página ?”. Paulistano disse a Pompeu que um foca tinha deixado com ele o material sobre o promotor. Sem ler, Pompeu passou a matéria para Armando Nogueira : “Reescreva aí…”. Como devia estar morto de preguiça, porque era sábado e ele queria ir embora, Armando leu aquilo e disse : “Não tem o que mexer; é só botar uns entretítulos”. Pompeu publicou a reportagem, assinada por mim, na primeira página de domingo. Quando entrei numa banca, no Grajaú, quase tive um enfarte ao ver o Diário Carioca”.

“Quem fazia o noticiário político era Carlos Castello Branco, autor das melhores entrevistas. Mas não era uma característica do Diário Carioca ficar publicando entrevistas. Logo no início, fui repórter de assuntos sindicais : a última página era dedicada a sindicatos.A cobertura, intensíssima, era feita por mim e por Mário Wellington Pita Ribeiro – um bom companheiro mas um sujeito esquisito. Grisalho, magro, andava armado – sempre de paletó e gravata, como todos nós. Além de trabalhar no Diário Carioca, trabalhava numa “agência”. “Que agência, Mário?” – a gente perguntava. E ele : “Ah, minha agência…”. Não sei que tipo de agência era aquela. A gente sempre achou que Mário tinha uma atividade suspeita e inconfessável. A vida sindical, no fim da era Vargas, era agitada. Havia pancadarias tremendas nas greves : quando a polícia entrava, baixava o porrete”.

“Os eventos nos sindicatos sempre ocorriam no fim da tarde. A cobertura era uma tarefa pesada : o ambiente era áspero, quente, abafado. Ouvíamos horas e horas de discursos para, depois, fazermos uma matéria de uma lauda. Meu horário de saída do jornal dependia do humor de Pompeu. Ao fim de algum tempo, entusiasmado com minha dedicação, Pompeu passou a me chamar de “interno”, porque eu ficava no jornal todo dia até de madrugada. Comecei a receber pagamento do jornal – uma miséria : o piso era um salário-mínimo. Nem recebia regularmente : era vale. O piso salarial dos redatores eram dois salários mínimos”.

“A hora em que eu encerrava meu expediente na redação do Diário Carioca dependia do humor de Pompeu de Sousa. Os amores de Pompeu eram engraçadíssimos. Acompanhei tudo. Pompeu se casou duas vezes. Teve duas filhas no primeiro casamento. Depois,se casou com Otília, com quem teve quatro filhos. Otília tinha um ciúme louco : vivia colada em Pompeu”.

Otto Lara Resende fez,num texto de 1976 republicado em “O Príncipe e o Sabiá” (Companhia das Letras,1994), uma cobrança coletiva aos que passaram pela redação do Diário Carioca : que escrevessem a biografia do jornal. O Diário Carioca, dizia Resende, era um “ilustre morto de que é preciso fazer a biografia; inclusive pelo que representou no papel de modernizador da imprensa brasileira. Sobre isto, muitos são os que, desde aqueles tempos na Praça Tiradentes, ou depois, na praça Onze e na avenida Rio Branco,podem e devem depor : Carlos Castelo Branco, Nilson Viana, Evandro Carlos de Andrade, Armando Nogueira : cito só uns poucos de todos os que passaram pela risonha, franca e barulhenta escola de Pompeu de Sousa, em perfeito entendimento com a sempre polida e bem-humorada serenidade de Prudente de Morais,Neto”.

Evandro responde, parcialmente, à convocação do amigo, ao fazer um retrato falado dos tempos em que habitou a redação do jornal:

“Pompeu de Sousa – diz Evandro – tinha trabalhado na Voz da América, nos Estados Unidos, onde ficou até o fim da guerra. De lá,trouxe um estilo novo de fazer jornalismo e o inaugurou no Brasil com um título que se tornaria marco de renovação : “Sai Dutra, entra Góes”.O anúncio da substituição de um ministro da Guerra, feito dessa maneira, chocava pela informalidade e pela concisão – duas características que, a partir daí,seriam o fundamento de um jornalismo em busca da objetividade. Não que Pompeu fosse tão objetivo assim. Seu impulso romântico, permanente, o impedia”.

“Pompeu avaliava matérias, dava títulos, contratava e demitia – mas quase não escrevia. A gente dizia que ele tinha um estilo proustiano, porque era minucioso. Os textos de Pompeu eram extensos, por que ele queria sempre contar os detalhes. Para mim, era um texto pesado .Mas ele trouxe para o nosso jornalismo o “lead”, importado dos Estados Unidos”.

“Pompeu tinha ido para os Estados Unidos ainda no primeiro governo de Vargas, na ditadura do Estado Novo, mandado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda – uma tática para afastá-lo, porque ele era um jornalista incômodo. Usava os telegramas de guerra para, nas entrelinhas, hostilizar a ditadura de Vargas. Dos Estados Unidos,Pompeu trouxe a visão de um jornalismo objetivo – que aplicou no Diário Carioca quando assumiu a direção do jornal” .

Posted by geneton at 11:50 AM

junho 25, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE 2

ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE II // O REPÓRTER TESTEMUNHA A CENA SURPREENDENTE : UMA GOTA DE SANGUE ESCORRE DA BOCA DO PRESIDENTE MORTO

O DOSSIÊ GERAL publica desde ontem trechos do livro que um dia será concluído ( ver post anterior ) : uma longa entrevista com o jornalista Evandro Carlos de Andrade – que morreu há exatamente dez anos, em junho de 2001. Aqui, o repórter iniciante testemunha, no Palácio do Catete, o choque provocado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas :

Demitido do jornal Correio Radical por ter participado de uma greve por melhores salários, o repórter Evandro Carlos de Andrade já tinha conseguido um novo emprego – no Diário Carioca – quando testemunhou a cena inesquecível : uma gota de sangue escorrendo do canto direito da boca do presidente da República. A imagem atravessaria os próximos cinquenta anos guardada em algum escaninho da memória do repórter. Era impossível esquecê-la. Porque o Presidente estava morto.


A gota de sangue dava um toque surreal à maior tragédia da história republicana brasileira. Getúlio Dornelles Vargas tinha se suicidado com um tiro no peito, às oito e meia da manhã daquele 24 de agosto de 1954, em seus aposentos no terceiro andar do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. O tiro no peito de Getúlio foi o “batismo de fogo” do repórter estreante. Evandro foi correndo ao Palácio. Depois da autópsia, o corpo seria exposto à visitação pública, no salão onde funcionava o Gabinete Militar da Presidência da República, no térreo. O caixão foi transportado do pavimento superior ao andar térreo em meio ao empurra-empurra da multidão que ocupava cada centímetro do salão. O balanço do caixão deve ter provocado o movimento da gota de sangue no canto da boca presidencial .Intimamente,o repórter ficou matutando sobre o surrealismo da cena : um corpo morto dava sinais (mínimos) de atividade.

Em meio à confusão que se instalou no Palácio, Evandro bem que pode ter cruzado com um dos chefes de gabinete da presidência, o embaixador José Sette Câmara – que, quarenta anos depois, descreveria assim o que aconteceu no instante em que o caixão foi simbolicamente entregue à curiosidade popular :

- Salas,salões,corredores fervilhavam de gente, num vozear aturdidor. Somente às cinco da tarde um rebuliço vindo do lado da escadaria indicava que chegara o momento em que Getúlio Vargas desceria pela última vez de seu claustro no terceiro andar. Corri à porta da ante-sala que dá para as escadas.Vi, então, um espetaculo inesquecível. As escadas apinhadas de gente não davam passagem para ninguém. Emergindo do terceiro andar, o ataúde, que no ambiente estreito das escadarias se afigurava enorme e desproporcional, negro e maciço, descia de uma maneira fantasmagórica. Não era carregado por ninguém, pois a passagem pelas escadas à cunha era impossível. Deslizava por sobre as cabeças, movido por mil mãos amigas e carinhosas, escorregava lentamente, aos balanços, em meio a choros, gritos histéricos, lamentos, pedaços de frases, invocações, protestos de fidelidade, objurgatórias, tudo na excitação dos empurrões, cotoveladas e queixas da multidão comprimida que não podia se arredar um centímetro. Ao aparecer o negro caixão à porta do salão do Gabinete Militar, ocorreu uma explosão coletiva de dor, revolta, tristeza, indignação. Gritos excitados, soluços doridos, brados furiosos, tudo aquilo se misturou num guaiar gigantesco e desencontrado da multidão que ali se comprimia. O caixão prosseguia no seu fantástico escorregar sobre as cabecas do povaréu, em direção à essa armada no centro do salão. Alguém, na ânsia de vislumbrar o corpo de Getúlio Vargas, tentou em um salto pendurar-se num dos enormes lustres, que desabou com o fragor dos cristais quebrados, entremeado de gritos de dor dos que eram atingidos pelos pedacos do lustre despencado(…) Nós, funcionarios do Palácio, fomos os primeiros a aproximarmo-nos do caixão. Lá estava ele, debaixo da tampa de cristal. O lenço passado sob o maxilar e atado sobre a cabeca não tinha sido retirado. Notei que a tampa do caixão comprimia as suas mãos, embranquecidas no lugar da pressão. O terço de Apolonio Sales estava entre os seus dedos. Durante o velório,voltei várias vezes ao estrado para curvar-me diante da visão ainda inacreditável para mim de GetúlioVargas morto” .

As cenas de histeria da multidão,o horror desenhado no rosto dos ministros, o sentimento generalizado de incredulidade, tudo se dissipou na memória do repórter Evandro Carlos de Andrade meio século depois. Ficou a lembrança da gota de sangue no canto da boca : “memória seletiva” em estado bruto.

Evandro aproxima-se do gravador, ajeita-se na poltrona, descreve assim a imagem inesquecível :

“Sem dúvida,a lembrança mais forte que guardei do velório de Getúlio Vargas foi esta : a do momento em que conduziram o corpo por uma escada estreita, em direção à sala apinhada de gente. Com o sacolejar, em meio ao tumulto de tanta gente chorando, vi uma gota de sangue escorrer da boca do presidente. Os médicos do Instituto de Medicina Legal tinham acabado de fazer a autópsia. Um detalhe me chamou a atenção : vestido com uma jaquetão grafite ,Getúlio tinha os mãos cruzadas; eram mãos grossas, com dedos curtos e peludos. Pela primeira vez , eu via o presidente tão de perto. E ele estava morto. Quando menino, eu já tinha desfilado diante de Getúlio Vargas, na Avenida Rio Branco, pelo meu colégio. Batia surdo na banda da escola. Desfilávamos para o Presidente no chamado “Dia da Raça”. Vivia-se sob a ditadura do Estado Novo. Além de desfilar, participei também de um grande coro de estudantes que se apresentava para Getúlio Vargas, no estádio do Vasco da Gama,em São Januário,sob a regência do maestro Heitor Villa-Lobos. Cada turma do colégio tinha um canto. Eu tinha de cantar aqueles versos “oh, manhã de sol…..!” .Tínhamos de ensaiar tudo na escola, antes de sermos regidos pelo maestro” .

“Eu, que tinha desfilado para Getúlio Vargas como estudante, encontrei-o de novo no poder quando comecei a trabalhar em jornal. Quando ouvi pelo rádio a notícia da morte do presidente, eu estava em casa. Corri para a redação do Diário Carioca. Em pouco tempo,chega Prudente de Morais, Neto - que, com o pseudônimo de Pedro Dantas, assinava uma coluna política em que tinha feito uma grande campanha contra a posse de Getúlio Vargas na presidência. Dizia que Getúlio só poderia ser empossado se alcançasse a maioria absoluta dos votos. A tese da maioria absoluta era uma invenção. Não havia nada assim na Constituição que impedisse a posse. Mas Prudente de Morais,Neto lutou –e muito- na coluna contra a posse. Agora, poucas horas depois do suicídio do presidente, ele estava ali, na redação do jornal. Lá estávamos eu, Pompeu de Souza, Carlos Castelo Branco. Uma cena que me chocou foi ver Prudente tomado por um ódio surpreendente – logo ele, uma pessoa doce, boníssima : quando entrava na redação, cumprimentava, um por um, todos os funcionários. O que me chocou naquele momento foi vê-lo relhando os dentes e dizendo “Filho da puta !”, ao se referir a Getúlio. Prudente percebeu imediatamente que o suicídio de Getúlio Vargas iria mudar todo o rumo da política no Brasil”.

Posted by geneton at 11:53 AM

junho 24, 2011

EVANDRO CARLOS DE ANDRADE

UM DEPOIMENTO PESSOAL DO JORNALISTA QUE COMANDAVA REDAÇÕES: EVANDRO CARLOS DE ANDRADE (OU : “QUAL O SENTIDO DA VIDA ? OS FILHOS. PONTO FINAL”)

Tive a chance de gravar uma extensa entrevista com um jornalista que se notabilizou como comandante de redações: Evandro Carlos de Andrade. Não me lembro de ter feito tantas perguntas a um só entrevistado. A entrevista se estendeu por vinte horas, divididas em dez sessões de duas horas cada. O homem tinha histórias a contar sobre Getúlio Vargas, JK, Jânio Quadros, João Goulart, Castelo Branco, o regime militar, os bastidores da política e do jornalismo ( Evandro testemunhou, como jornalista iniciante, a revolução provocada pelo Diário Carioca, o jornal que trouxe para o Brasil as modernas técnicas jornalísticas americanas . Atuou durante anos como repórter político em Brasília. Chefiou a redação do jornal O Globo entre 1972 e 1995. Depois, comandou por seis anos o jornalismo da TV Globo ). Meses depois de encerrada a maratona de gravações, Evandro Carlos de Andrade morreu, aos sessenta e nove anos de idade, no dia 26 de junho de 2001. Faz exatamente dez anos, portanto.

O Dossiê Geral publica, nestes próximos dias, trechos do depoimento.

Tenho três “dívidas” graves com a memória do jornalismo. Tomara que me sobre tempo para pagá-las: quero “botar no papel” as gravações que fiz com três pesos pesados - Joel Silveira (com quem convivi durante vinte anos, na privilegiada condição de aprendiz daquele que era considerado o maior repórter brasileiro), Paulo Francis (o “lobo hidrófobo” que deu uma contribuição nem sempre reconhecida à evolução da prosa jornalística brasileira) e Evandro Carlos de Andrade.

Eis um bom passatempo para um repórter: bem ou mal, tentar produzir memória. É uma das (poucas) coisas realmente úteis que um jornalista pode fazer. Não tenho planos de escrever teses ou divagações sobre o jornalismo. A longa entrevista com Evandro Carlos de Andrade um dia será publicada porque deixá-la no fundo da gaveta, à espera do mofo e das traças, seria um crime de lesa-memória. Poderá servir, quem sabe, como matéria-prima para os que se ocupam da história da imprensa num período conturbado da vida brasileira. Já disseram que cabe ao jornalismo fazer o primeiro rascunho da história. Voilá.

A quase totalidade do depoimento se concentra no jornalismo e na política. Mas um trecho que trata de uma experiência pessoal vivida por Evandro Carlos de Andrade sempre me vem à memória. O motivo: depois de passar horas e horas falando sobre grandes acontecimentos, presidentes, pompas, poderes, dramas, glórias, fracassos e planaltos, ele chegava a uma conclusão surpreendentemente singela : “O sentido da vida são os filhos”.

Eis um trecho do livro que um dia será concluído:

O início da carreira coincide com um acontecimento de natureza íntima que Evandro considera “doloroso” : a perda da fé religiosa. Sem saber, Evandro experimentava, na prática,um sentimento que o filósofo Bertrand Russel já tinha descrito em tese. Num texto escrito em 1932, Russel constatava : para um jovem que teve formação religiosa ,a perda da fé pode ser uma fonte permanente de infelicidade. Já quem nunca teve de fé não sofre tanto :

- A crença em Deus e no outro mundo torna possível atravessar a vida com menos coragem estóica do que a necessária aos céticos. Muitos e muitos jovens perdem a fé nesses dogmas numa idade em que o desespero é fácil e têm então de enfrentar uma infelicidade muito mais intensa do que a que se abate sobre aqueles que não tiveram uma criação religiosa – diria Russel, um intelectual que considerava as religiões perniciosas porque todas se baseiam no temor humano – “medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte”.

Evandro descreve assim o abalo que sofreu justamente quando começava a exercer o jornalismo como profissão :

-“A descrença se instalou em mim. Quando fui escalado pelo jornal para fazer a cobertura do Congresso Eucarístico Internacional, em 1955, eu me lembro de ter feito a Dom Hélder Câmara um desafio para que ele restabelecesse a minha fé. Porque a perda da fé é a maior perda que alguém pode ter. Quando alguém se torna materialista, renuncia a toda metafísica. Passa a descrer totalmente em outra vida, o que é um tremendo empobrecimento. Repito : é a pior perda. Mas, quem começa a pensar começa também a destruir dogmas. Nada atrapalha tanto a fé quanto os dogmas religiosos. Um dia, dogmas como a ascensão de Jesus Cristo ou a assunção da Virgem começam a incomodar, porque são de uma impossibilidade absoluta. Tornam-se absurdos. É impossível alguém ascender aos céus fisicamente. Não há o menor cabimento. Quando alguém é obrigado a crer em dogmas como esses, começa a se sentir incomodado. A partir daí,o que é que se faz ? Passa-se a reler e a rever toda a História. Porque a vida é uma coletânea de histórias. Quando se começa a raciocinar -em termos lógicos- sobre as histórias que fundamentam as religiões, vê-se que todas elas podem ser revistas de uma maneira objetiva – jornalística, até. Todos os dogmas caem. A perda da fé é um sentimento que afeta –e muito – a vida de quem o experimenta. Passei por esta experiência quando estava começando no jornalismo. Vivi uma transição. Comecei a ler, a alimentar dúvidas. Vim de uma família extremamente católica e praticante. Minha mãe foi à missa até morrer. Eu ia à missa quase todo dia, às cinco horas da manhã, com a minha avó, na Igreja de Santo Afonso. A perda da fé não estava ligada a um eventual rompimento com a família. Porque eu não via na minha família nenhum fator negativo. Mas era, sim, uma família fechada e preconceituosa. Chegava a ser anti-semita. Passei a ter, depois, um sentimento oposto a esse anti-semitismo, não como represália ou como vingança contra a família, mas como conseqüência do fato de que, quando se descobre que se foi enganado na infância, passa-se a buscar o outro lado. Há quem veja a perda da fé como uma conquista. Eu vejo como o que ela realmente é : uma perda. Por quê ? Porque a perda da fé estreita o universo;reduz o sentido da vida `a terra;cria o sentimento de que tudo é uma vivência material que se encerra totalmente com a morte. Arthur Dapieve desenvolveu , numa crônica publicada no Globo, um raciocínio que achei brilhante : “Já estivemos mortos antes de termos nascido, eu não me lembro de nada, você também não, é tudo”. Ou seja : todos nós estivemos mortos por milhões e milhões de anos. Nossa existência é brevíssima. Somente o DNA permanece. Quem crê na existência de vida eterna pode nem dar um sentido lógico a essa fé, mas encontra um consolo enorme”.

“O que move os artistas e os criadores é o impulso, o desejo de permanecer. Toda manifestação artística traz um ardor,uma necessidade de exprimir o conflito do autor com o real. Desse choque, nasce o gênio – que não se conforma com o que é real no mundo. A essência da arte é essa. Eu – pelo contrário - me conformo até bastante. Não estou em conflito. Não estou brigando com minha pobre existência. A perenidade que vejo é a biológica. Fiz uma vez uma especulação. Um primo distante meu, Juliano Macedo Soares, estudou a ascendência de minha família. Lá estavam todos os ascendentes diretos da minha mãe – até o século XVI. Eu poderia até estender a pesquisa, no Livro do Tombo, em Lisboa. Fiz a regressão para deixar para meus filhos e netos. Somente até o século XVI, uma família – a minha – tem cinqüenta mil ascendentes diretos ! Se a multiplicação continuar a ser feita, onde é que o cálculo vai parar ? Dá bilhões !. Vai englobar a população da terra. O mais remoto negro da África equatorial, o mais distante esquimó, os chineses, os aborígenes, todos estão lá “.

“Não cheguei a procurar uma base filosófica para a perda da minha fé. Mas bastava que se olhasse para o progresso da ciência – que destruía dogmas e ia tornando absurdas crenças desenvolvidas pelo catolicismo, a religião em que fui criado. Não acredito que a perda da fé aflija tanto a quem cresceu como fiel de outras religiões que não se vêem obrigadas a acreditar em coisas que hoje são tolas, como a ascensão de Cristo ou a assunção das Virgem. São tolices” .

“Quem perde a fé, como eu, pode até ganhar racionalidade. Mas é uma racionalidade que vai se fechar comigo. Quando eu morrer, adeus. Não tenho nenhuma ilusão quanto ao que virá depois. O que sei com certeza é que a minha permanência já foi transmitida aos meus filhos e netos. Os genes é que ligam todos os homens – uns aos outros. É o que digo há anos em casa. Basta fazer a projeção matemática de nossa ascendência. Quem fizer essa conta – relativamente simples – verá que , ao fim desses vinte séculos da era cristã, terá um número de ascendentes que correspondente à população da Terra ! Em resumo : cada um de nós descende de todos. É ridículo, então, falar de raças entre os homens. Somos impregnados de todas as raças . O que muda é a proporção de cada uma em cada um de nós. É claro que a hereditariedade imediata atua como uma força presente. Mas tudo, toda a história da terra pode ser lida no nosso DNA. É aí que se manifesta nossa perenidade. Quem se reproduz para continuar não é a espécie humana. É o gene. Então, o gene é que tem de continuar. Como ele continua ? Através dos descendentes”.

“Tenho seis filhos: cinco do primeiro casamento – Lúcia, Patrícia, Márcia, Guilherme e Bruno – e um do segundo – Leonardo. Quero dizer o seguinte : qual é o sentido da vida ? Os filhos. Ponto final ”.

Posted by geneton at 11:55 AM

março 26, 2011

FLÁVIO TAVARES

O DIA EM QUE O GUERRILHEIRO CHE GUEVARA DECRETOU : “VOCÊS, BRASILEIROS, FAZEM MILAGRE…”

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Brizola com Che Guevara: diálogo uruguaio (Foto: Flávio Tavares)

A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS (com reprise no domingo, ao meio-dia e meia), a entrevista que o locutor-que-vos-fala fez com um brasileiro que viu, ouviu e fotografou o guerrilheiro Ernesto Che Guevara durante a conferência pan-americana promovida no Uruguai, em 1961. O brasileiro se chama Flávio Tavares. É jornalista dublê de fotógrafo. Deve publicar, no segundo semestre, um livro que reúne todas as fotos que tirou naquela expedição uruguaia – e as lembranças que guardou do Che. A revolução dos barbudos já tinha triunfado em Cuba. Nomeado ministro da Indústria e Comércio, o argentino Che Guevara desembarcou no Uruguai como estrela da conferência. O então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, fazia parte da delegação brasileira. Flávio Tavares tinha um bloco de anotações na mão e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Atuou como intermediário de um encontro entre os dois. Não imaginava que Che Guevara iria se transformar em mito – hoje, aliás, submetido a uma revisão histórica que corrige uma quimera: o Che não é apenas o jovem médico que um dia sai de casa, na Argentina, romanticamente, para semear revoluções pelas serras e cordilheiras da América. Era, também, um comandante “implacável” que participou de execuções de adversários. Flávio faz uma ressalva: ali, naqueles encontros no Uruguai, Che ainda era, aos olhos de um jovem como ele, apenas o “herói” que se embrenhou nas montanhas para combater uma ditadura que transformara Cuba em quintal dos EUA. Um trecho da entrevista:

Qual foi o comentário mais surpreendente que você ouviu de Che Guevara ?

Flávio Tavares: “Perguntei o que era importante para um combatente, na guerrilha. O Che disse assim: “Os pés!”. E começou a bater nas botas e a descrever a importância dos pés para um combatenbte: os pés que nos levam para a frente, os pés que nos fazem retroceder, os pés que nos animam, os pés que nos fazem correr, os pés que nos fazem esperar. Faz este elogio e esta espécie de elegia aos pés.

Um detalhe estranho coincide com esta visão surpreendente: a de um comandante guerrilheiro que, como ministro de Estado, estava naquela conferência internacional como o grande astro - e dizendo que os pés é que eram importantes. Quando Che já estava na Bolívia, na travessia de um rio, a balsa é levada pela correnteza e ele perde as botas guerrilheiras..Não havia botas de reposição. Os guerrilheiros, então, matam um animal do campo e ele faz, com o couro cru, uma espécie de “sandália romana” que enrola nos pés. E é com estes pés, enrolados numa “sandália romana”, que ele é capturado na guerrilha. Porque ele tenta saltar de uma rocha para outra mas, traído pelos pés, ele cai. Ou seja: ele tinha razão. O fundamental eram os pés. Surpreendente mas concreto”.

Como se deu o encontro que você organizou entre Leonel Brizola e Che Guevara ?

Flávio Tavares: “O presidente do Uruguai oferece, em casa, em Punta Del Este, um churrasco para Che Guevara, com toda a delegação uruguaia. Convida só um estrangeiro: o jovem governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que, ali, era o conselheiro especial da delegação brasileira, nomeado pelo presidente Jânio Quadros. O presidente uruguaio queria reunir os gaúchos: Uruguai, Argentina, Rio Grande do Sul. Brizola perguntou a Che como era Cuba, onde é que ficavam as minas de níquel sobre as quais Che Guevara se referia. Che explica de uma maneira engraçada. Brizola pergunta “Ficam no norte ou no sul? “. Che Guevara diz: “Cuba não tem nem norte nem sul. Cuba é como uma lingüiça espichada no mar Caribe….”. Dias depois, Brizola me chama. Diz : “Só quero me despedir uma pessoa: traga o comandante Che Guevara !”. Fui encontrar Che Guevara num hotel, numa crise de asma. Eu me lembro: cheguei a entrar no quarto, a contragosto da segurança cubana, que não queria deixar. Mas,como já me tinham visto com o Che, não iriam cair em cima de alguém que já tinham visto com o “comandante”. Quando entrei, o Che estava sentado na cama, com a bombinha de asma. Era uma cama de solteiro. Havia no quarto duas camas. Explico a ele que o governador do Rio Grande do Sul ia deixar a conferência. Che Guevara, então, sobe no nosso carro – do governo do Rio Grande do Sul. Vamos à sede da conferência, que era muito próxima. Os dois se encontram. Brizola, ao fim, me faz o seguinte comentário: “Isso não é uma conferência dos povos da América Latina. É uma conferência das oligarquias latino-americanas ! ”. Naquela época, 1961, aquele frase não era de Brizola: era de Che Guevara – que ele incorporou. Isso foi em torno do dia dez de agosto. Quinze dias depois, o presidente Jânio Quadros renuncia. Os ministros militares vetam a posse do vice-presidente João Goulart – que estava na China comunista, em missão oficial. O veto militar era um golpe de estado. Brizola se rebela, literalmente, no Rio Grande do DSul, a tal que ponto que o III Exército adere à rebelião e passa a exigir a posse de João Goulart. Agora, eu pergunto, como conclusão deste encontro: Brizola,até então, não tinha tido nenhum ato revolucionário. 1961 foi um ato revolucionário – até de rebelião armada. Se Brizola não tivesse tido aquelas conversas com Che Guevara; se não tivesse conhecido o Che; se não tivesse sido influenciado pela mística do Che; se não tivesse, sob certos aspectos, tentado copiar ou imitar aquele mística do Che, bem ou mal, não teria havido aquela rebelião de 1961 no Rio Grande do Sul. Não teria havido o Movimento da Legalidade que faz, agora, cinqüenta anos. Digo: a influência de Che Guevara pode ter sido por nada do que ele tenha dito a Brizola. Mas pela figura do Che, o revolucionário. E é preciso ver isso com os olhos de 1961, não com os olhos de hoje, quando as revoluções perderam o sentido”.

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Che sobre o Brasil: "Vocês, brasileiros, fazem milagre..."(Foto:Flávio Tavares)

O que é que Che Guevara disse sobre o Brasil ?

Flávio Tavares: “O Brasil tinha tido uma posição dúbia: apoiava Cuba e apoiava os Estados Unidos. Estava em cima do muro, numa espécie de “milagre”. Ou seja: não ficava com os Estados Unidos,mas não ficava com Cuba, numa reunião feita para isolar Cuba do continente. Chego para fotografar.. Che pergunta: “Mas você não tem flash ? “.Era noite. Devo ter dito: “É, sim,sem flash !”. E ele: “Ah, vocês, brasileiros, fazem milagre…”. Já era algo ironia do Che: dizia “vocês, brasileiros, são exímios fazedores de milagres. Sabem fazer milagre como ninguém….” Com aquele comissura dos lábios, parecia que estava sempre sorrindo”.

(Dois anos e meio depois daquela viagem ao Uruguai, Brizola e Flávio Tavares vêem os militares tomarem o poder no Brasil. Era 1964. Brizola volta ao Uruguai- agora como exilado. Num primeiro momento, o ex-governador contemplou a possibilidade de optar pela luta armada contra o regime militar. Logo abandonou a ideia. Mas impressionou Flávio. Os dois tiveram longos diálogos. De volta ao Brasil, Flávio termina preso sob acusação de subversão. Parte para o exílio depois de ter entrado na lista de presos políticos que deveriam ser libertados pelos militares em troca do embaixador americano Charles Elbrick. As aventuras e desventuras de Flávio Tavares estão descritas num belo livro: “Memórias do Esquecimento”)

Você chegou a ver Brizola treinando pessoalmente para a guerrilha ?

Flávio Tavares: ” Brizola treinou pessoalmente para guerrilha : ele próprio me contou. Numa das vezes em que cheguei ao Uruguai, ele me ganha e me convence para a guerrilha. Era algo para o qual toda a minha geração queria ser convencida. Brizola nos convenceu de algo do qual já estávamos convencidos. Uma das coisas que ele me disse: ” Já estou treinando com o coronel Átilo tiro ao alvo; já estou treinando combate com baioneta”. O coronel Átilo era um coronel da Brigada Militar que tinha sido membro da Casa Militar quando governador”.

É verdade que você testemunhou uma discussão sobre quem deveria ser fuzilado no Brasil se houvesse uma vitória da guerrilha ?

Flávio Tavares: “Estamos num apartamento em Atlântida, onde Brizola estava internado: não podia sair daquela cidadezinha do litoral do Uruguai. Eu tinha chegado do Brasil. Tinha começado a contar o que estava acontecendo no país. Faço um relato jornalístico. Lá pelas tantas, o deputado Neiva Moreira, exilado e cassado, que era do estado-maior da luta armada de Brizola, diz: “Quando chegarmos ao poder, vamos executar toda esta gentalha! “. Brizola,então, se rebela: “Não ! Todos não! Mem de Sá não!”. Mem de Sá era ministro da Justiça de Castelo Branco. Era do Partido Libertador do Rio Grande do Sul. Tinha sido uma espécie de mentor intelectual de Brizola quando Brizola foi deputado estadual, em 1947. Era um liberal no governo Castelo Branco. Mas não era pelo lado liberal. Era o velho laço histórico. Acontece aquele discussão. Neiva Moreira: “Que Mem de Sá nada! Vamos executar toda essa gentalha, botar no paredã !”. E Brizola: “Mem de Sá não!”. Os dois começam a discutir. A terceira pessoa exilada, ali, em Montevidéu, o coronel Dagoberto Rodrigues, o único que sabia de armas, porque nós todos éramos civis, me olha como quem diz: “Que bobagem esta discussão…”. Nós dois nos levantamos. E só os dois ficaram discutindo: Brizola e Neiva Moreira. São as agruras do exílio. Porque o exílio tira as pessoas do conteúdo existencial concreto para nos levar a um mundo de devaneio, a uma “realidade” que não é concreta. Existe, mas existe na nossa ideia e na fantasia. Isso explica esta discussão”.

Posted by geneton at 11:57 AM

FLÁVIO TAVARES

O DIA EM QUE O GUERRILHEIRO CHE GUEVARA DECRETOU : “VOCÊS, BRASILEIROS, FAZEM MILAGRE…”

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Brizola com Che Guevara: diálogo uruguaio (Foto: Flávio Tavares)

A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, no DOSSIÊ GLOBONEWS (com reprise no domingo, ao meio-dia e meia), a entrevista que o locutor-que-vos-fala fez com um brasileiro que viu, ouviu e fotografou o guerrilheiro Ernesto Che Guevara durante a conferência pan-americana promovida no Uruguai, em 1961. O brasileiro se chama Flávio Tavares. É jornalista dublê de fotógrafo. Deve publicar, no segundo semestre, um livro que reúne todas as fotos que tirou naquela expedição uruguaia – e as lembranças que guardou do Che. A revolução dos barbudos já tinha triunfado em Cuba. Nomeado ministro da Indústria e Comércio, o argentino Che Guevara desembarcou no Uruguai como estrela da conferência. O então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, fazia parte da delegação brasileira. Flávio Tavares tinha um bloco de anotações na mão e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Atuou como intermediário de um encontro entre os dois. Não imaginava que Che Guevara iria se transformar em mito – hoje, aliás, submetido a uma revisão histórica que corrige uma quimera: o Che não é apenas o jovem médico que um dia sai de casa, na Argentina, romanticamente, para semear revoluções pelas serras e cordilheiras da América. Era, também, um comandante “implacável” que participou de execuções de adversários. Flávio faz uma ressalva: ali, naqueles encontros no Uruguai, Che ainda era, aos olhos de um jovem como ele, apenas o “herói” que se embrenhou nas montanhas para combater uma ditadura que transformara Cuba em quintal dos EUA. Um trecho da entrevista:

Qual foi o comentário mais surpreendente que você ouviu de Che Guevara ?

Flávio Tavares: “Perguntei o que era importante para um combatente, na guerrilha. O Che disse assim: “Os pés!”. E começou a bater nas botas e a descrever a importância dos pés para um combatenbte: os pés que nos levam para a frente, os pés que nos fazem retroceder, os pés que nos animam, os pés que nos fazem correr, os pés que nos fazem esperar. Faz este elogio e esta espécie de elegia aos pés.

Um detalhe estranho coincide com esta visão surpreendente: a de um comandante guerrilheiro que, como ministro de Estado, estava naquela conferência internacional como o grande astro - e dizendo que os pés é que eram importantes. Quando Che já estava na Bolívia, na travessia de um rio, a balsa é levada pela correnteza e ele perde as botas guerrilheiras..Não havia botas de reposição. Os guerrilheiros, então, matam um animal do campo e ele faz, com o couro cru, uma espécie de “sandália romana” que enrola nos pés. E é com estes pés, enrolados numa “sandália romana”, que ele é capturado na guerrilha. Porque ele tenta saltar de uma rocha para outra mas, traído pelos pés, ele cai. Ou seja: ele tinha razão. O fundamental eram os pés. Surpreendente mas concreto”.

Como se deu o encontro que você organizou entre Leonel Brizola e Che Guevara ?

Flávio Tavares: “O presidente do Uruguai oferece, em casa, em Punta Del Este, um churrasco para Che Guevara, com toda a delegação uruguaia. Convida só um estrangeiro: o jovem governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que, ali, era o conselheiro especial da delegação brasileira, nomeado pelo presidente Jânio Quadros. O presidente uruguaio queria reunir os gaúchos: Uruguai, Argentina, Rio Grande do Sul. Brizola perguntou a Che como era Cuba, onde é que ficavam as minas de níquel sobre as quais Che Guevara se referia. Che explica de uma maneira engraçada. Brizola pergunta “Ficam no norte ou no sul? “. Che Guevara diz: “Cuba não tem nem norte nem sul. Cuba é como uma lingüiça espichada no mar Caribe….”. Dias depois, Brizola me chama. Diz : “Só quero me despedir uma pessoa: traga o comandante Che Guevara !”. Fui encontrar Che Guevara num hotel, numa crise de asma. Eu me lembro: cheguei a entrar no quarto, a contragosto da segurança cubana, que não queria deixar. Mas,como já me tinham visto com o Che, não iriam cair em cima de alguém que já tinham visto com o “comandante”. Quando entrei, o Che estava sentado na cama, com a bombinha de asma. Era uma cama de solteiro. Havia no quarto duas camas. Explico a ele que o governador do Rio Grande do Sul ia deixar a conferência. Che Guevara, então, sobe no nosso carro – do governo do Rio Grande do Sul. Vamos à sede da conferência, que era muito próxima. Os dois se encontram. Brizola, ao fim, me faz o seguinte comentário: “Isso não é uma conferência dos povos da América Latina. É uma conferência das oligarquias latino-americanas ! ”. Naquela época, 1961, aquele frase não era de Brizola: era de Che Guevara – que ele incorporou. Isso foi em torno do dia dez de agosto. Quinze dias depois, o presidente Jânio Quadros renuncia. Os ministros militares vetam a posse do vice-presidente João Goulart – que estava na China comunista, em missão oficial. O veto militar era um golpe de estado. Brizola se rebela, literalmente, no Rio Grande do DSul, a tal que ponto que o III Exército adere à rebelião e passa a exigir a posse de João Goulart. Agora, eu pergunto, como conclusão deste encontro: Brizola,até então, não tinha tido nenhum ato revolucionário. 1961 foi um ato revolucionário – até de rebelião armada. Se Brizola não tivesse tido aquelas conversas com Che Guevara; se não tivesse conhecido o Che; se não tivesse sido influenciado pela mística do Che; se não tivesse, sob certos aspectos, tentado copiar ou imitar aquele mística do Che, bem ou mal, não teria havido aquela rebelião de 1961 no Rio Grande do Sul. Não teria havido o Movimento da Legalidade que faz, agora, cinqüenta anos. Digo: a influência de Che Guevara pode ter sido por nada do que ele tenha dito a Brizola. Mas pela figura do Che, o revolucionário. E é preciso ver isso com os olhos de 1961, não com os olhos de hoje, quando as revoluções perderam o sentido”.

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Che sobre o Brasil: "Vocês, brasileiros, fazem milagre..."(Foto:Flávio Tavares)

O que é que Che Guevara disse sobre o Brasil ?

Flávio Tavares: “O Brasil tinha tido uma posição dúbia: apoiava Cuba e apoiava os Estados Unidos. Estava em cima do muro, numa espécie de “milagre”. Ou seja: não ficava com os Estados Unidos,mas não ficava com Cuba, numa reunião feita para isolar Cuba do continente. Chego para fotografar.. Che pergunta: “Mas você não tem flash ? “.Era noite. Devo ter dito: “É, sim,sem flash !”. E ele: “Ah, vocês, brasileiros, fazem milagre…”. Já era algo ironia do Che: dizia “vocês, brasileiros, são exímios fazedores de milagres. Sabem fazer milagre como ninguém….” Com aquele comissura dos lábios, parecia que estava sempre sorrindo”.

(Dois anos e meio depois daquela viagem ao Uruguai, Brizola e Flávio Tavares vêem os militares tomarem o poder no Brasil. Era 1964. Brizola volta ao Uruguai- agora como exilado. Num primeiro momento, o ex-governador contemplou a possibilidade de optar pela luta armada contra o regime militar. Logo abandonou a ideia. Mas impressionou Flávio. Os dois tiveram longos diálogos. De volta ao Brasil, Flávio termina preso sob acusação de subversão. Parte para o exílio depois de ter entrado na lista de presos políticos que deveriam ser libertados pelos militares em troca do embaixador americano Charles Elbrick. As aventuras e desventuras de Flávio Tavares estão descritas num belo livro: “Memórias do Esquecimento”)

Você chegou a ver Brizola treinando pessoalmente para a guerrilha ?

Flávio Tavares: ” Brizola treinou pessoalmente para guerrilha : ele próprio me contou. Numa das vezes em que cheguei ao Uruguai, ele me ganha e me convence para a guerrilha. Era algo para o qual toda a minha geração queria ser convencida. Brizola nos convenceu de algo do qual já estávamos convencidos. Uma das coisas que ele me disse: ” Já estou treinando com o coronel Átilo tiro ao alvo; já estou treinando combate com baioneta”. O coronel Átilo era um coronel da Brigada Militar que tinha sido membro da Casa Militar quando governador”.

É verdade que você testemunhou uma discussão sobre quem deveria ser fuzilado no Brasil se houvesse uma vitória da guerrilha ?

Flávio Tavares: “Estamos num apartamento em Atlântida, onde Brizola estava internado: não podia sair daquela cidadezinha do litoral do Uruguai. Eu tinha chegado do Brasil. Tinha começado a contar o que estava acontecendo no país. Faço um relato jornalístico. Lá pelas tantas, o deputado Neiva Moreira, exilado e cassado, que era do estado-maior da luta armada de Brizola, diz: “Quando chegarmos ao poder, vamos executar toda esta gentalha! “. Brizola,então, se rebela: “Não ! Todos não! Mem de Sá não!”. Mem de Sá era ministro da Justiça de Castelo Branco. Era do Partido Libertador do Rio Grande do Sul. Tinha sido uma espécie de mentor intelectual de Brizola quando Brizola foi deputado estadual, em 1947. Era um liberal no governo Castelo Branco. Mas não era pelo lado liberal. Era o velho laço histórico. Acontece aquele discussão. Neiva Moreira: “Que Mem de Sá nada! Vamos executar toda essa gentalha, botar no paredã !”. E Brizola: “Mem de Sá não!”. Os dois começam a discutir. A terceira pessoa exilada, ali, em Montevidéu, o coronel Dagoberto Rodrigues, o único que sabia de armas, porque nós todos éramos civis, me olha como quem diz: “Que bobagem esta discussão…”. Nós dois nos levantamos. E só os dois ficaram discutindo: Brizola e Neiva Moreira. São as agruras do exílio. Porque o exílio tira as pessoas do conteúdo existencial concreto para nos levar a um mundo de devaneio, a uma “realidade” que não é concreta. Existe, mas existe na nossa ideia e na fantasia. Isso explica esta discussão”.

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fevereiro 26, 2011

RICARDO KOTSCHO

O PRESIDENTE DO BRASIL FAZ, NO PÉ DO OUVIDO DO SECRETÁRIO DE IMPRENSA, UMA PERGUNTA INESPERADA NUMA SOLENIDADE NO PALÁCIO DO ELISEU : “VOCÊ JÁ VIU MULHER MAIS FEIA NA VIDA?”

O presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, cochicha alguma coisa no ouvido do secretário de imprensa, Ricardo Kotscho, durante uma solenidade no Palácio do Eliseu, em Paris. Os jornalistas brasileiros pressionam o secretário de imprensa: querem porque querem saber o que o presidente brasileiro teria confidenciado. Por acaso, alguma revelação sobre os diálogos com o então presidente da França, Jacques Chirac ? Quem sabe, algum desabafo sobre a agenda sobrecarregada ? O secretário da imprensa desconversa, inventa uma desculpa, não diz o que ouviu . Se dissesse, certamente arrancaria risadas. Depois de ter apontado para uma madame que exibia um esplendoroso chapéu verde na cerimônia oficial no Palácio, o presidente Lula na verdade tinha dito o seguinte, ao pé do ouvido de Ricardo Kotscho: “Você já viu mulher mais feia na vida ?”.

É Lula em “estado puro” : capaz de fazer, numa solenidade no palácio presidencial francês, um comentário que – verdade seja diga – qualquer um teria a tentação de fazer….Excepcionalmente, Ricardo Kotscho estava ali não como repórter, mas como secretário de imprensa de um presidente que, ao final do mandato, viria a se revelar como um fenômeno imbatível de popularidade. O repórter travestido de secretário teve de guardar o que ouviu, para não criar eventuais constrangimentos. Agruras do cargo. Mas o “estado natural” de Kotscho, em qualquer situação, é o de repórter. Sempre foi assim. Passou dois anos como secretário de imprensa, mas terminou pedindo as contas e dizendo bye,bye, Brasília. Preferiu pegar o bloco de anotações e circular novamente pelas ruas e estradas do Brasil, em busca de personagens e histórias que mereçam ser contadas. Voltou a atuar, nas páginas da revista Brasileiros e no blog Balaio do Kotscho.

Aos não iniciados no zoológico das redações, esclareça-se que a rua é o único território em que um repórter de verdade se sente em casa. Pode parecer contraditório, mas é assim: o repórter só se sente em casa quando vai para a rua. São as loucuras da profissão. Os dois – o repórter e o sindicalista – tinham se conhecido na segunda metade dos anos setenta, quando o metalúrgico Lula mobilizava os “companheiros e companheiras” por melhores condições de trabalho. Ficaram amigos. Quando finalmente conquistou o direito de subir a rampa do Palácio do Planalto com a faixa de presidente no peito, em 2002, depois de três tentativas frustradas, em 1989, 1994 e 1998, Lula tratou de convocar o repórter Ricardo Kotscho para o posto de secretário de imprensa. Deve ter sido uma experiência rica.

De volta à planície ( literalmente), Kotscho voltou a atuar como repórter e como blogueiro. É o que nunca deixou de ser. Quero declarar aos senhores jurados que considero elogiável a postura de jornalistas que, depois de anos e anos e anos de estrada, mantêm intocado, em algum ponto de suas entranhas, o DNA da reportagem : são seres que poderiam, perfeita e legitimamente, estar aboletados atrás de uma mesa de redação distribuindo ordens ou dando canetadas. Mas, não. Preferem a poeira das ruas. Joel Silveira era assim: octogenário, dizia, bem humorado, que, se houvesse justiça no mundo, os nomes dos repórteres deveriam aparecer antes do nome dos proprietários no expediente dos jornais.

Acaba de chegar às livrarias uma nova investida editorial de Kotscho: publicado com esmero pela Editora Escrita Fina, o livro “Vida que Segue” reúne textos que ele produziu originalmente para o blog. Ao contrário do que podem supor espíritos equivocados, nem sempre o que se publica na Internet se dissolve no ar depois de quinze minutos. Textos nascidos no Planeta Internet podem migrar sem qualquer solavanco para as páginas de um livro. Eis um entre tantos outros exemplos.

( A propósito: Ricardo Kotscho é, também, um dos personagens de um livro-documento que já chegou às livrarias: “No Planalto,com a Imprensa”, uma publicação conjunta da Editora Massangana e da Secretaria da Imprensa da Presidência da República. Em dois volumes, “No Planalto, com a Imprensa” (o título é pouco inspirado, mas o conteúdo é valioso) traz depoimentos de porta-vozes e de secretários de imprensa da presidência da República desde os tempos de JK até os de Lula. São cenas de bastidores, histórias interessantes, registros inestimáveis. O locutor-que-vos-fala voltará ao assunto. O fato de nossos jornais quase não terem se ocupado do lançamento funciona como o enésimo exemplo de que, todo dia, em todas as redações do planeta, há, com toda certeza, um editor entediado jogando no lixo histórias interessantes. Além de entrevistado para a série de depoimentos, Kotscho já tinha publicado, no livro “Do golpe ao planalto – uma vida de repórter”(Companhia das Letras), parte de suas memórias como secretário de imprensa).

O DOSSIÊ GERAL pergunta, Ricardo Kotscho responde:

Qual são a primeira virtude e o pecado capital de um repórter ?

Kotscho: “Virtude: colocar-se no lugar do leitor e não ter vergonha de fazer todas as perguntas necessárias para contar uma boa história. Pecado capital: a soberba, a arrogância, o ar de doutor sabe tudo, grande formador de opinião, mais importante do que o entrevistado, o fato e a notícia, um comportamento muito comum hoje em dia”.

De todos os personagens – nacionais ou internacionais – que você já ouviu, qual decepcionou você quando “visto de perto” ?

Kotscho: “O grande Leonel Brizola, de quem ficaria amigo, ao entrevistá-lo pela primeira vez num encontro da internacional socialista, em Hamburgo, fins dos anos 1970, quando eu era correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha. Ele inverteu os papéis e começou a me entrevistar sobre o cenário político internacional. Logo eu entenderia o motivo: Brizola ficou tanto tempo longe do mundo, criando ovelhas no interior do Uruguai, que queria se informar melhor sobre o que estava acontecendo no mundo, principalmente no Brasil, antes de voltar a dar entrevistas”.

O fato de você – por um período relativamente breve - ter visto o poder “de dentro” desperta curiosidade sobre o que acontece nos bastidores. Qual a cena “impublicável” que você testemunhou no Palácio,não poderia divulgar na época mas hoje pode ?

Kotscho: “Se é “impublicável”, não posso te contar, por uma questão de ética e lealdade, já que eu ocupava um cargo de confiança junto ao presidente da república no Palácio do Planalto. Uma delas foi bem no início do governo, na primeira viagem do presidente Lula à Europa. Durante a conferência de imprensa ao lado Jacques Chirac, no Eliseu , ele me chamou para perguntar se eu tinha visto uma mulher de chapéu verde no fundo do salão. E me perguntou no ouvido: “Você já viu mulher mais feia na tua vida?”. Depois, tive que aguentar os coleguinhas: todos queriam saber o que o presidente tinha me falado…

Outra que não me esqueço aconteceu no final de um encontro de presidentes no México. Lula ficou um tempão conversando com George Bush no fundo do salão, só os dois, sem intérprete. Ao voltarmos para o avião, perguntei ao presidente em que língua eles falavam e ele me respondeu se eu não sabia que o Bush era do Texas, só conhecia o México antes de ser presidente e, portanto, eles se entendiam em portunhol. E por que riam tanto? “Ah, isto eu não posso te dizer porque são segredos de chefes de Estado…”

Que pergunta você jamais faria ao ex-presidente Lula ?

Kotscho: “Como repórter e amigo, sempre fiz as perguntas que queria ao presidente Lula, sem nenhum problema ou constrangimento. Mas sei que ele não gostaria de ouvir perguntas sobre as calúnias que circulam sem parar na internet sobre a sua vida pessoal e a sua família, para desconstruir a imagem do melhor Presidente da República que o nosso país já teve”.

Quando Lula perguntou a você se você gostaria de um dia ser presidente, você respondeu que não , porque esta é “a pior profissão do mundo”. O que ele disse ao ouvir esta resposta ?

Kotscho: “Não disse nada. Deu uma gargalhada e fez cara de quem diz: “Coitado, este rapaz não sabe o que é bom…” Pelo jeito, ele gostava muito de ser Presidente da República”

PS : Faz tempo: ali pela metade dos anos setenta, o locutor-que-voz-fala era um jovem repórter da sucursal Recife do Estado de S.Paulo. O país vivia uma época de grandes expectativas políticas. Os exilados estavam desembarcando de volta ao Brasil. Miguel Arraes foi recebido com uma festa épica no Recife. Ulysses Guimarães transitava por Pernambuco em caravanas em que pedia redemocratização, já. Tive a chance de fazer a cobertura da primeira visita que o líder sindical emergente Lula fez à terra natal, Pernambuco, depois de ter ficado “famoso” em São Paulo. Hoje,as palavras daquele líder sindical parecem relíquias improváveis: incrivelmente, Lula dizia que não tinha “vocação política”. Já relatei, aqui, este encontro com o metalúrgico que viraria presidente:

http://g1.globo.com/platb/geneton/2009/09/29/o-dia-em-que-o-metalurgico-e-ex-tintureiro-luiz-inacio-confessou-que-nao-tinha-vocacao-politica/

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fevereiro 08, 2011

CAETANO VELOSO

CAETANO REVELA: MILITARES GRAVARAM INTERROGATÓRIO A QUE FOI SUBMETIDO NO RIO DE JANEIRO E PERGUNTA: “ONDE ESTARÃO ESTAS FITAS ?” E MAIS: O DIA EM QUE CHICO ANYSIO SE OFERECEU PARA AJUDAR CAETANO A VOLTAR DO EXÍLIO

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Caetano Veloso,em CANÇÕES DO EXÍLIO: onde estão as fitas do interrogatório ?

Pouco depois de chegar a Londres, para um exílio que duraria dois anos e meio, Caetano Veloso teve uma surpresa : recebeu uma carta em que o humorista Chico Anysio se oferecia para intermediar um possível retorno ao Brasil. O gesto solidário de Chico Anysio comoveu Caetano – que tinha sido preso em São Paulo, juntamente com Gilberto Gil, duas semanas depois da decretação do AI-5, o ato que dava poderes absolutos ao regime militar. Trazidos ao Rio de carro, os dois passaram por três quartéis, até viajarem para Salvador, onde passaram seis meses sob regime de prisão domicilar. Em seguida, em meados de 1969, receberam autorização para sair do Brasil. Destino: Londres. Voltaram ao Brasil no início de 1972.

Diz Caetano:

“Chico Anysio me escreveu uma carta bem cedo, logo que eu tinha chegado a Londres. Respondi: “Chico, agradeço muito. Não há nada que eu queira mais do que voltar ao Brasil. Mas não quero dialogar com essas autoridades que trataram do jeito que me trataram….”. É a primeira vez que estou contando assim. Mas aconteceu. As cartas provavelmente estarão perdidas”.

A referência a Chico Anysio é parte do longo depoimento que Caetano Veloso gravou para o nosso documentário “CANÇÕES DO EXÍLIO: A LABAREDA QUE LAMBEU TUDO” ( a ser exibido nesta terça, quarta e quinta, em três episódios de 50 minutos, no Canal Brasil. A negociação para a volta ao Brasil é parte do segundo episódio. Além de Caetano Veloso, o documentário, produzido pela Multipress Digital para o Canal Brasil, traz depoimentos de Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner – e participações especiais de Paulo César Peréio e Lorena da Silva).

Cerca de um ano depois da oferta de Chico Anysio, Caetano Veloso recebeu, por fim, uma autorização para uma viagem ao Brasil: iria comparecer à comemoração dos quarenta anos de casamento dos pais, na Bahia. Maria Bethânia, irmã de Caetano Veloso, se encarregou de fazer os contatos, numa operação que incluiu o empresário Benil Santos e – de novo – o próprio Chico Anysio. “Bethânia estava trabalhando com o empresário Benil Santos – que trabalhava, também, com Chico Anysio”, diz Caetano, no documentário. “Chico se dispôs, através de Benil Santos, a ajudar Bethânia. De fato, ele ajudou Benil a ajudar Bethânia a conseguir”

A autorização foi dada para que Caetano Veloso permanecesse um mês em Salvador. Mas, ao desembarcar no Rio, uma surpresa esperava Caetano Veloso, ainda na pista do aeroporto :

“Vim com Dedé ( n: mulher de Caetano na época ). Quando chegamos ao Galeão, a gente desceu aquela escadinha. Já no pé da escada, tinha umFusca : me pegaram e dali mesmo saíram comigo. Levaram-se para um apartamento na avenida Presidente Vargas (centro do Rio) e, ali, me interrogaram. Estavam com um gravador de rolo. Onde estarão estas fitas hoje ? Gravaram tudo o que estavam perguntando e todas as minhas respostas. Isso durou seis horas. Queriam que eu fizesse uma canção louvando a Transamazônica. Disseram: “Alguns colegas seus estão colaborando conosco, fazendo músicas”… Pensei: “Voltei ao Brasil para ser preso de novo! Quase morro”.

As exigências apresentadas a Caetano Veloso: neste mês de permanência no Brasil, ele não deveria cortar o cabelo ou tirar a barba, para dar uma aparência de “normalidade”; não deveria sair da cidade de Salvador; ficaria sob a vigilância permanente de dois agentes; deveria fazer duas apresentações na TV. As exigências foram cumpridas.

Comando Militar do Leste informa : não há registros do “evento citado”
PS: Tentei, junto ao atual Comando Militar do Leste, obter alguma informação sobre o paradeiro das tais fitas que registraram o interrogatório de Caetano. A resposta que me foi enviada é um primor de concisão : “Prezado jornalista: Em atenção à sua solicitação informamos que: não foram encontrados registros sobre o evento citado em sua mensagem”.

Fica a dúvida no ar: as fitas foram preservadas ? Algum oficial teve o cuidado de guardá-las ? Como o interrogatório não foi “oficial” – até porque não havia uma acvusação formal contra Caetano Veloso -, é improvável que um dia haja uma palavra oficial sobre as gravações. Mas, como tanta coisa fica nas mãos do acaso, pode ser que um dia, no fundo de uma gaveta, na prateleira empoeirada de uma estante ou, quem sabe, na casa de um militar da reserva, estas fitas apareçam. Com certeza, seriam um documento precioso sobre aqueles tempos conturbados : uma época em que um compositor popular, tido como ameaça ao bem estar da República, era submetido a um interrogatório que teve momentos de teatro do absurdo. Ou alguém imaginaria que, sob coação, o compositor fosse criar um hino de louvação à rodovia Transamazônica, um dos símbolos do chamado “Brasil Grande” ?

Posted by geneton at 12:16 PM

fevereiro 06, 2011

GILBERTO GIL

CENA BRASILEIRA : PRESO, COM A CABEÇA RASPADA, GILBERTO GIL RECEBE, NA CELA, UM VIOLÃO DE UM SARGENTO. EM SEGUIDA, UMA CONVOCAÇÃO: QUER FAZER UM SHOW PARA A TROPA ?

Um dos lugares-comuns mais renitentes sobre esta República Ensolarada é aquele que diz : “Isso só acontece no Brasil !”.

O pior é que é verdade. Há cenas que, por todas as razões, dificilmente seriam testemunhadas em outras paragens. Um exemplo, entre centenas : em que outro país um cantor popular - encarcerado num quartel no auge de uma onda de prisões promovida por uma ditadura militar - receberia um violão emprestado por um sargento e seria convocado pelo comandante da guarda para se apresentar para a tropa, numa noite, depois do jantar ? Um detalhe : dias antes de receber o violão e a convocação para o show improvisado, o cantor, cabeludo, tivera a cabeça raspada – um constrangimento que lhe provocara uma incômoda sensação de “humilhação”. Em questão de dias, ele sentiu na pele essa mistura brasileira de brutalidade ( ter a cabeleira raspada ) e delicadeza (receber de um sargento a oferta de um violão).

As cenas ocorreram com Gilberto Gil. Preso em São Paulo, dias depois da decretação ao célebre Ato Institucional Número 5 – que dava poderes totais e absolutos ao regime militar -, Gilberto Gil foi trazido de carro para o Rio de Janeiro, onde passou por três quartéis. O companheiro de desventura de Gilberto Gil neste périplo iniciado em São Paulo chamava-se Caetano Veloso. Do Rio, os dois seguiram para um período de prisão domiciliar em Salvador. Seis meses depois da prisão em São Paulo, levantaram vôo para um exílio de dois anos e meio em Londres. Voltaram ao Brasil no início de 1972.

Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram longos depoimentos para o nosso documentário “CANÇÕES DO EXÍLIO : A LABAREDA QUE LAMBEU TUDO” – que será exibido em três episódios de 50 minutos, terça,quarta e quinta desta semana, às dez da noite, no Canal Brasil. Produzido pela Multipress Digital – de Jorge Mansur – para o Canal Brasil, CANÇÕES DO EXÍLIO traz também depoimentos de Jards Macalé e Jorge Mautner, além de uma participação especialíssima de Paulo César Peréio.

Eis um trecho do depoimento de Gilberto Gil, um retrato de como, no Brasil, as chamadas “relações pessoais” terminam se sobrepondo até a barreiras impostas entre carcereiros e prisioneiros numa ditadura militar….

CENA 1 : A “sensação de humilhação” : militares cortam os cabelos de Gilberto Gil e Caetano Veloso no quartel

Gilberto Gil : “Ficamos em celas coletivas. Caetano,numa; eu, em outra, em que estavam Antônio Callado, Ferreira Gullar, Perfeito Fortuna. Num dia desses, fomos chamados ao pátio do quartel onde, diante de um pequeno grupo de soldados e oficiais, nos rasparam as cabeças – a de Caetano e a minha. Tínhamos cabelos grandes naquela época. Era um dos símbolos da rebeldia juvenil. Fizeram questão de raspar nossas cabeças. Diziam algo como “Vamos cortar esses cabelos ! Cabelo comprido….coisa horrorosa!”. Cortaram o de Caetano. Depois, cortaram o meu. Nós estávamos, ali, muito abatidos moralmente. Ao retornar à cela, ainda sob aquela sensação de humilhação, eu me lembro de Antônio Callado me dizendo : “Não se abata ! Você é um menino maravilhoso ! Cortar os cabelos de vocês não significa nada ! Não vão conseguir nada fazendo isso !”. Tentava nos dar uma injeção de ânimo. Antônio Callado foi o primeiro a se manifestar, mas os outros também, como Ferreira Gullar. Todos os outros nos confortaram e nos animaram muito naquele momento. Havia muita aflição, muita ansiedade em relação ao que pudesse nos acontecer :uma sensação permanente de sobressalto diante daquilo tudo. Eu não via como encontrar, em mim mesmo, energia para brigar ou para gritar ou para reclamar do fato”.

Cena 2 : um sargento oferece um violão a Gilberto Gil, dentro da cela. Em seguida, o comandante pergunta se Gil quer cantar à noite para a tropa reunida no pátio

Gilberto Gil: “Ali, na prisão, o sargento Juarez, um mulato muito refinado, muito cortês e muito sereno, numa conversa comigo, na cela, me perguntou se eu gostaria de ter um violão. Eu disse que gostaria, mas estranhei a existência da possibilidade. E ele: “Não! Eu trago um violão para você ! Tenho um violão em casa, muito simples, que posso trazer”. Dito e feito :ele me trouxe um violão – que ficou comigo na cela e com o qual eu tocava, cantava e fiz quatro músicas. Uma foi “Futurível”. A outra foi “Cérebro Eletrônico”. Fiz “Vitrines” – que também vim a gravar no disco que fiz logo que em seguida à saída da prisão. E uma quarta música – de que me esqueci completamente. Perdeu-se. Uma noite, me chamaram: o comandante da guarda me perguntou se eu gostaria de cantar para a tropa. Eu disse que sim. Tinham me visto com o violão ali. Permitiram,todos, que o violão ficasse comigo. O comandante reuniu a tropa depois do jantar, no pátio do quartel. E cantei várias canções, como “Domingo no Parque” – que havia sido premiada com o segundo lugar no festival de música. Era o meu carro-chefe. Cantei “Procissão” e outras canções do meu primeiro disco. Isso aconteceu depois de quase um mês de cárcere”.

PS: Duas ou três coisas sobre a realização do documentário CANÇÕES DO EXÍLIO : A LABAREDA QUE LAMBEU TUDO:

A quem interessar possa: bem ou mal, tento retomar, com CANÇÕES DO EXÍLIO, um caminho que abandonei lá atrás : o de possível documentarista. O locutor-que-vos-fala já é uma ruína cinquentenária. Vivo repetindo para mim mesmo os títulos daqueles editoriais clássicos do Correio da Manhã: “Chega!”, “Basta!”, “Fora!”. Cinco vezes ao dia, penso em apagar a luz do meu velho teatro mambembe, recolher as tralhas, devolver aos incautos o dinheiro da entrada, bater em retirada e ir morar num cubículo minimamente confortável na zona rural de Santa Maria da Boa Vista, cidade onde nunca estive, aliás, mas que elegeria como destino favorito, pelo belo nome. Quanto a todo o resto, dou por visto o espetáculo. Veredito definitivo: risível. A recíproca, eu sei, é verdadeira. Há uma síndrome que imagino comum em quem um dia resolveu sair de casa : depois de algum tempo, a gente não resiste à tentação de fazer a pergunta “fatal” : Deus do céu, o que diabos vim fazer aqui, no “estrangeiro” ? De qualquer maneira, como diz o lixo subliterário de autoajuda, “nunca é tarde” para retomadas. Decidi, então, nem que fosse como mera experiência, retomar o fio de uma meada interrompida. Fiz um documentário. Poderia ser um bom passatempo. Em um texto narrado por Paulo César Peréio – uma das vozes mais marcantes do Brasil – ,exponho, logo na primeira parte do primeiro episódio de CANÇÕES DO EXÍLIO, as dúvidas e vacilações que tive depois de gravar os depoimentos. Como usá-los ? O que fazer com tudo o que Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner contaram ? Resolvi correr o “risco” de dividir estas dúvidas com os possíveis espectadores . A exposição pública das dúvidas do documentarista pode até criar alguma estranheza em quem espera ouvir, logo no início de CANÇÕES DO EXÍLIO, a palavra do timaço de entrevistados. Mas vou logo avisando: depois que o narrador sai de cena, a palavra é passada, “radicalmente” , aos entrevistados. Ninguém interfere : nem o entrevistador. Desta vez, atuo atrás das câmeras. É minha opção favorita. Sempre foi. Estar diante de uma câmera é, para mim, um incômodo comparável ao de obturar um dente sem anestesia. Tenho horror. Teria imensa alegria se um dia recebesse uma ordem judicial que me obrigasse a manter uma distância de 500 metros de uma câmera: eis a minha visão do paraíso. Depois de ver e rever as gravações feitas com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner em 2010 , fiz uma opção radical : a de deixar que os entrevistados simplesmente falassem – sem interrupções, sem cortes desnecessários, sem concessões ao ritmo “frenético” e à ditadura do tempo na TV, em que um minuto é uma eternidade. Há falas de cerca de dez minutos. Por que não ? Por que cortá-las, mutilá-las, desossá-las, em nome de uma suposta agilidade ? Devo dizer que foi uma honra ter tido a chance de contar com Peréio como uma espécie de “alter ego”. Não se pense que esta “divagação” sobre o que fazer com os depoimentos foi uma viagem em torno do próprio umbigo. “Pas de tout !”. Pelo contrário. A exposição das dúvidas vem sempre acompanhada de informação jornalística. Exemplo : se digo que poderia reforçar o documentário com entrevistas tiradas do baú, apresento, por exemplo, o áudio da gravação que fiz com Caetano Veloso, no Recife, no remotíssimo ano de 1973. Eu tinha 16 anos de idade. Mr. Veloso tinha voltado do exílio havia pouco tempo. Tratei de guardar a fita cassete. Preservada por todo este tempo, a gravação virou relíquia. Ganhou status de documento jornalístico: o que um dos mais importantes nomes da Geléia Geral Brasileira dizia, ali, no começo dos anos setenta ? Feitas as contas, tudo o que CANÇÕES DO EXÍLIO quer é fazer algo que, tenho certeza, pode ter alguma utilidade : produzir memória. Vivo dizendo que produzir memória é uma das (poucas) coisas realmente úteis que o jornalismo pode fazer. Se fosse escolher entre Cinema e Jornalismo, aliás, eu escolheria Cinema, sem vacilar. Já tinha escolhido, lá atrás. Quando era “inocente, puro e besta”, como na letra de Raul Seixas, no Recife dos anos setenta, fazia meus filmecos em Super-8. Mas terminei exercendo o Jornalismo, por mil razões. É sempre assim: a correnteza vai nos arrastando. C´est la vie. Mas – de vez em quando - é possível dar umas braçadas para tentar evitar o precipício – de resto, inevitável. Independentemente de qualidade, CANÇÕES DO EXÍLIO é uma tentativa bem pessoal de fazer as duas coisas, juntar as duas pontas: o que é documentário, afinal , se não Jornalismo para Cinema ? A disponibilidade, o talento e a dedicação de Jorge Mansur, ex-editor de telejornalismo que resolveu investir suas energias numa produtora, abriram o caminho para que a ideia do documentário se materializasse. Posso garantir aos senhores jurados que os depoimentos, reunidos, formam um documento precioso sobre os chamados “anos de chumbo”: a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, dois grandes nomes que, com o Tropicalismo, tinham incendiado o cenário da música brasileira. Lá estão: Caetano Veloso descrevendo com detalhes o interrogatório, gravado, a que foi submetido assim que desembarcou no Brasil para uma visita negociada : os militares queriam, entre outras coisas, que ele compusesse uma música em louvor à rodovia Transamazônica; Jorge Mautner explicando como e por que defendia, no exílio londrino, a ideia de que a novidade planetária não viria da Europa: viria do Brasil; Jards Macalé revivendo a sensação inesquecível que teve ao desembarcar de volta ao Brasil, no auge do verão de 1972, depois de amargar invernos londrinos: era a tal “labareda que lambeu tudo”; Gilberto Gil revelando o sofrimento que teve, pouco depois da volta ao Brasil, para compor, com Chico Buarque, uma música que jamais conseguiu gravar: a bela “Cálice”. A frase “Pai, afasta de mim este cálice/de vinho tinto de sangue” foi escrita numa sexta-feira da paixão. Atormentado com a dificuldade que estava encontrando para demonstrar solidariedade a Chico Buarque, vítima das tesouras da censura, Gil se lembrou do sofrimento do Cristo. Não por acaso, a música foi proibida. Só foi gravada, pelo próprio Chico Buarque, anos depois, ao lado de Milton Nascimento. Em resumo : ao fazer CANÇÕES DO EXÍLIO, constatei, pela enésima vez, que não há assunto esgotado. É bom saber que o que interessa foi feito : CANÇÕES DO EXÍLIO produziu memória. A palavra de ordem, então, bem que poderia ser : pé na estrada, câmera na mão & luz na tela. Ponto. Faz bem à saúde correr riscos, apostar no incerto. Depois de exibido em três episódios de 50 minutos no Canal Brasil, CANÇÕES DO EXÍLIO ganhará uma versão “cinematográfica”. Deve percorrer o chamado “circuito de festivais”. Já foi inscrito no Cine PE, o festival que reúne produções de todo o país em Pernambuco. Se for selecionado, terá, no Recife, a primeira exibição em tela grande. Missão cumprida. Próximo passatempo, por favor.

Posted by geneton at 12:24 PM

janeiro 20, 2011

EVA SCHLOSS

MULHER QUE VIVEU EXPERIÊNCIA “ATERRORIZANTE” COM DR.MENGELE NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO NÃO QUER OUVIR FALAR EM PERDÃO PARA CARRASCOS

A Globonews leva ao ar, neste sábado, às 21:05, com reprise no domingo, às 12:30, no DOSSIÊ GLOBONEWS, a entrevista completa com uma mulher que viveu e testemunhou horrores indescritíveis: quando tinha apenas quinze anos de idade, Eva Schloss foi capturada pela Gestapo, a temidíssima polícia secreta do nazista. Logo foi levada para o campo de concentração de Auschwitz, onde conheceria um personagem sinistro : o Doutor Joseph Mengele, médico que fazia experiências com prisioneiros. Hoje, aos 81 anos de idade, ela encontra disposição para correr mundo fazendo uma pregação contra a intolerância. Um trecho da entrevista:

Uma pergunta bem direta : a senhora perdoa ?

“Vou lhe dar uma resposta muito simples: não. Nunca vou perdoar os nazistas. Eu estive em Atlanta, há pouco tempo.Depois de minha palestra, alguém me perguntou: “A senhora os perdoou ?”. Eu respondi que não, não queria perdoá-los. Ele disse que rezaria por mim,para eu conseguir perdoá-los. Respondi que que ele não deveria perder tempo porque eu nunca perdoarei aquelas pessoas. Cometeram atos cruéis não apenas obedecendo ordens, mas também movidos por sua própria maldade,para inventar mais formas de sofrimentos para nós.Eu nunca esperaria que um ser humano agisse daquela forma”.

A senhora esteve frente a frente com um criminoso nazista que terminou se refugiando no Brasil: Joseph Mengele. Que lembrança a senhora guarda desse carrasco ?

“Dr. Mengele era uma figura infame no campo de concentração.Decidir quem ia morrer e quem ia sobreviver.Ele estava lá. A cada comboio que chegava, com as botas bem engraxadas e com luvas brancas,com uma pequena vareta na mão,como se fosse um maestro,conduzia os prisioneiros para a vida ou para a morte. A primeira impressão que tive foi esta. Um homem impecável, alto,bonito,sem qualquer expressão no rosto.Olhava para as pessoas e decidia.Não sabíamos disso a princípio, é claro. Depois, tive um encontro muito mais aterrorizante com ele.Ao sairmos do chuveiro, lá estava ele, para fazer uma triagem.Ficávamos nua diante de Mengele – que nos inspecionava e decidia: “Você vai viver, você vai morrer”. E decidiu que minha mãe não era forte o bastante para continuar viva.Deixou-a no lado dos quem iam morrer. Nunca me esqueci da forma como ele a condenou à morte. Mas,por um milagre, ela foi salva. Nós nos reencontramos”. ( Depois de fugir para a América do Sul, Joseph Mengele terminou morrendo afogado, numa praia em São Paulo, em 1979. Viveu anos, aqui, com nome falso).

Em algum momento, a senhora tentou não ir para o banheiro, onde havia câmaras de gás ?

“Durante a semana, não havia qualquer possibilidade de nos lavarmos. Ficávamos cheios de piolhos. Estávamos imundos. Todos estávamos com disenteria. Não havia papel higiênico. Uma vez por semana, tomávamos um banho, o que era maravilhoso.Mas, por outro lado, não tínhamos certeza se realmente tomaríamos um banho ou se iríamos para a câmara de gás. Por isso, relutávamos muito antes de entrar ali. Uma vez, haviam espalhado o boato de que, daquela vez, não seria um banho. Relutamos em ir para o chuveiro. Mas os guardas bateram em nós. E nos obrigaram a entrar. Felizmente, era um banho”

(O pai e o irmão de Eva Schloss morreram no campo de concentração. Depois de passar décadas sem tratar do horror que enfrentou no campo de concentração, Eva Schloss terminou escrevendo um livro de memórias – “A História de Eva”, recém-lançado no Brasil).

Posted by geneton at 12:27 PM

dezembro 13, 2010

LOBÃO

LOBÃO, PRATO CHEIO PARA OS “CÃES” QUE CAÇAM MANCHETES, NÃO É APENAS O ROQUEIRO QUE JÁ COMETEU UM CATÁLOGO DE EXTRAVAGÂNCIAS (É O ARTISTA QUE NUNCA ABRIU MÃO DA INQUIETUDE)

Quando já não podia esconder que estava com AIDS, o ator Rock Hudson finalmente concordou em mandar um comunicado aos repórteres que batiam na porta do hospital em busca de notícias. Um texto, curto, foi redigido por um assessor. Hudson ouviu em silêncio. Autorizou a divulgação do comunicado com uma frase curta: “Podem dá-lo aos cães”.

A cena foi registrada na biografia de Hudson.

Ah, os cães : era assim que o astro Hudson via os repórteres.

Eu diria: o bicho tinha uma ponta de razão. Almas puras devem achar que jornalistas são uma matilha de caçadores de escândalos, detalhes sórdidos, tropeços, escorregões.

São, sim.

Diante deste tribunal imaginário, arrisco-me a fazer a seguinte declaração, baseada em anos & anos & anos de observação do zoológico que habito : os jornalistas que desenvolvem um faro especial para os detalhes mais incomuns, mais “escandalosos”, mais surpreendentes e mais esdrúxulos são, justamente, os melhores. Já os entediados que, diante de uma boa história, exibem a pálpebra semi-cerrada pelo tédio são, não por acaso, os mais burocratas, os mais cinzentos, os mais nocivos à profissão.

É o que notei desde que pus as patas pela primeira vez numa redação – faz séculos e séculos.

Sorry about that, crianças, mas é assim que caminha a humanidade.

Em qualquer lugar do planeta, a guerra surda entre estas duas facções provoca faíscas nas redações. É interminável o embate entre os derrubadores de matérias (aqueles que jogam um belo assunto no lixo sob o argumento de que “fulano de tal já deu a matéria…”, como se o público fosse formado por maníacos que passassem o dia comparando o que jornais,rádios,sites e tvs publicam…) e os levantadores ( os ingênuos que acreditam que existirá sempre uma maneira atraente de transmitir uma informação para o público).

A diferença básica, portanto, é a seguinte : jornalista que faz Jornalismo para jornalista prestaria um grande serviço à Humanidade se mudasse imediatamente de profissão. Já jornalistas que fazem Jornalismo para o leitor ( ou o espectador ) merecem cada centavo do que ganham.

Não adianta fazer de conta que não : jornalista de verdade quer ver o circo pegar fogo.

O grande Paulo Francis dizia o seguinte : “Todo jornalista decente é um urubu na sorte dos outros mortais. Ficamos esperando que as pessoas escorreguem numa casca de banana e batam com a cara no chão. Se tudo corre muito bem, para nós é muito mal”.

Como eu ia dizendo antes de ser interrompido por esta divagação sobre os desvãos do jornalismo: a recém-lançada autobiografia do cantor Lobão, “50 Anos a Mil”, escrita em colaboração com Cláudio Tognolli, poderia se prestar perfeitamente a um belo exercício de escândalo jornalístico.

Um resenhista – ou entrevistador – atento poderia (e deveria) avançar sobre os pontos mais “chamativos” do livro.

Algo assim:

UM IMPACTO NO CONSULTÓRIO MÉDICO : LOBÃO DESCOBRE UM “IRMÃO GÊMEO” DENTRO DA CABEÇA

“Tinha uma consulta marcada para aquela tarde.Tinha que retirar um cisto que havia nascido bem no centro de minha cabeça. O procedimento cirúrgico é muito simples e rápido. Logo o médico está em poder de um vidrinho com o negócio dentro….e ele me diz :”Rapaz,você está ótimo! Isso aqui que foi retirado da sua cabeça é um cisto embrionário !…Isso deve ser o que restou de seu irmãozinho gêmeo!”. Aquilo me impactou profundamente”.

UMA SEMANA DE CHORO : O BEATLE TINHA MORRIDO

“A morte de Lennon teve um efeito devastador. Parecia que tinha perdido alguém muito próximo(…) Chorei copiosamente por uma semana…Nâo podia acreditar naquele absurdo…John Lennon estava morto”.

UMA VISITA-SURPRESA DE ROBERT DE NIRO, EMBALADA POR COCAÍNA

“Estava no meu quarto cheirando umas fileiras quando o Neville me aparece na portaria a me chamar. Nós havíamos combinado com nossas respectivas ex-esposas ir juntos para a Sapucaí. Só que tem um detalhe. Neville me manda: “Lobão, posso subir, é que eu estou com o Bob, um amigo meu que gostaria de te conhecer”. Em alguns minutos, toca a campainha com Neville e o Bob….Robert de Niro. Bob,que estava tentando engordar para fazer um filme de época (The Mission), colocou uma pedra de pó debaixo da língua”.

O SUMIÇO DA FITA QUE ELZA SOARES GRAVOU SOB O IMPACTO DA MORTE DO FILHO

“Estava chegando o grande momento: Elza topou participar! Vem o domingo e, à noitinha, assistindo ao Fantástico, recebo pela proa a trágica notícia: Garrinchinha morreu num acidente de carro. Chega a segunda-feira e,com o coração partido, telefono para Elzinha. Tinha acabado de chegar do enterro do filho. Para meu espanto e admiração, Elza me diz o seguinte: “Lobão, faço questão de ir agora mesmo para o estúdio, me espera lá que estou chegando”(…) Ninguém acreditava no que estava acontecendo. Em segundos, Elza se reeditou, se recompôs e,como uma fênix saída das cinzas, já era aquela garotinha sapeca que ela nunca deixou de ser (…) Pedi à gravadora a fita em que Elza realizara aquele improviso inesquecível, mas me disseram que a fita se perdeu”.

POLICIAIS DÃO FLAGRANTE EM LOBÃO – E FICAM COM O QUE RESTOU DA DROGA

“Estamos no terraço de um hotel, avec élégance, quando aparecem dois policiais com mandado de prisão, busca e apreensão. Os policiais tiveram a pachorra de selecionar na minha cara qual droga escolheriam para dar o flagrante. Escolheram uma quantidade ínfima o bastante para me incriminar….O resto…ficou com eles! “.

TORTURADO, O TRAFICANTE É JOGADO DENTRO DA CELA DE LOBÃO

“Quando começa a amanhecer, Zaca está sendo arrastado pelos braços, todo fudido. Estava num estado lastimável. Ele é jogado para dentro da nossa cela e aí é que percebemos o estrago: tinha todas as unhas arrancadas – dos pés e das mãos. O corpo todo queimado de ponta de cigarro e uma fratura exposta na canela”.

A POLÍCIA CHEGA AO MORRO. LOBÃO PEGA A ARMA. E MANDA BALA

“Estava lá no Buraco Quente quando acontece o inevitável : uma severa operação policial, um sacode no morro (…) Eu,que já estava virado de três dias, não quis ficar acocorado debaixo da mesa,esperando a morte chegar, enquanto meus companheiros levavam uma uma saraivada de chumbo, portanto, não titubeei: peguei um três-oitão em cima da mesa, uma caixa de munição e saí pra varanda a dar pipoco pra tudo quanto é lado”.

UM SUSTO NOS EUA : LOBÃO VAI AO HOSPITAL PENSANDO QUE ESTAVA COM AIDS

“Lá fui eu pedir socorro : “Tô com Aids!”.(…) Fomos colocados de avental ( aqueles com que a gente fica de bunda de fora), nos puseram numa maca e fomos ser examinados por um médico que, ao contarmos nosso histórico de sintomas, começou a rir na nossa cara. Disse que estávamos com uma puta ressaca. A coceira era a pele reagindo à umidade baixíssima daquela região desértica”.

UMA MOTO A TODA VELOCIDADE. UMA VARANDA SOBRE O NADA. LOBÃO TENTA SE MATAR

“Desmotivado, confuso, reativo, desestruturado, revoltado com o mundo, só me restou a autodestruição. Comecei a andar de moto de forma suicida (…) A moto desliza na poça e vai reto de encontro ao poste. Eu alço vôo e me espatifo de cara no meio-fio”.

“Tomei um porre de lascar, peguei um monte de calmantes e engoli, cortei os pulsos com a serrinha do meu canivete suíço e,em completo estado de delírio, correi para o parapeito da varanda para me atirar do último andar. Desses últimos momentos, eu já não me lembrava mais nada, não fosse a Regina pra me segurar. Quase morri, devido à hemorragia nos pulsos e, mais uma vez, acordei num quarto de hospital”.

Em resumo: Lobão é um prato cheio para aquela raça que Rock Hudson chamava de “cães” ( sem qualquer cinismo nem autocomiseração, declaro-me representante desta raça. Poderia ter tentado fazer Cinema, por exemplo, mas terminei caindo no Jornalismo, por “comodidade” e por falta de habilidade para executar tarefas realmente importantes. Dentro do Jornalismo, alisto-me na sub-categoria dos que apostam no poder de uma manchete atraente. Qual é o problema ? Só me arrependo parcialmente de ter mergulhado na profissão. O Jornalismo pode ser útil quando cria memória, por exemplo. Pode ser fascinante quando flagra a Grande Marcha dos Acontecimentos. Mas é lamentável,sim, quando exercido por ególatras incuráveis, burocratas entediados, derrubadores contumazes e todas as variações do gênero).

Lobão é prato cheio para os cães – entre os quais, como disse, me alisto. Diante de um relato de suas diatribes, eu tenderia, portanto, a carregar as tintas nas histórias mais estridentes. Por que não ? Não é pecado fazer manchetes chamativas.

Mas, surpreendentemente, eu diria que o Lobão de verdade não é aquele personagem que protagoniza tantas das extravagâncias transformáveis em manchetes.

O Lobão de verdade emerge lá no final do livro: “Sempre acabo tirando proveito de minhas tragédias(…) O aconchego com que minha avó Lula tanto cuidava em nos envolver hoje está dentro de mim (…) Só percebi que possuía este trunfo quando relaxei dessa angustiante tentativa de correr atrás de volta ao Lar, de correr atrás do que se perdeu pelo caminho(…) Eu me tornei o meu lar, minha vida interior e a alegria me nutriram e, por mais que possa parecer ser eu uma personalidade destrutiva, é pura ilusão de ótica(…) A gente aprende que,antes de qualquer coisa, o nosso trabalho é a nossa maior fonte de cura e crescimento, nos rejuvenesce e nos dá mais entusiasmo”.

Entendo perfeitamente quando Lobão esperneia por ser vítima do que ele chama de “clichês jornalísticos”. Em entrevista recente, ele disse: “Sou um artista e gostaria de ser tratado como tal. O livro pra mim é uma hercúlea tentativa em deixar de ser caricaturado”.

O “clichê jornalístico” reduz Lobão à caricatura do roqueiro enlouquecido dos anos oitenta. Eu poderia, agora, alinhavar vinte manchetes escandalosas sobre o assunto. Mas, feitas as contas, o Lobão que emerge de “50 Anos a Mil” não é o roqueiro extravagante; é o artista que não abre mão de uma energia fundamental: o fogo da inquietude. É algo absolutamente indispensável nas apenas à Arte, mas à vida. ( Que se saiba: Lobão já mergulhou numa depressão suicida simplesmente porque um ex-empresário o aconselhou a fazer um disco fácil, só com músicas que seriam “tiros certos”. By the way: a qualidade poética de tantas das letras de Lobão não deve passar sem registro). É bom saber que a “vida interior” e a “alegria” salvaram Lobão de cair nas armadilhas da loucura ou – pior ainda – do conformismo estéril.

É a lição possível: a desgraça ou a salvação não estão “nas estrelas” ou em algum recanto indecifrável, mas dentro de cada um de nós, em algum pomar, algum canteiro, algum hectare de nossas florestas anteriores – não importa que estejam calcinadas por velhos incêndios que fugiram do nosso controle. Parece banal,mas é cem por cento verdade. O caminho da salvação – pelo menos no caso de Lobão - foi a “vida interior” e a “alegria”. Por acaso haverá um outro ?

É prudente apostar que não.

Em suma: em última instância, o que move a máquina do mundo é a inteligência rebelada, não é o conformismo burro. Nunca foi. Se o combustível da inteligência for a alegria, melhor ainda.

Próximas pedradas, por favor.

Posted by geneton at 12:40 PM

dezembro 10, 2010

PAULO CÉSAR PERÉIO

O LAMENTO DE PAULO CÉSAR PERÉIO: “A MEDIOCRIDADE É ETERNA.OS GÊNIOS SÃO PERECÍVEIS”

A GLOBONEWS exibe neste sábado, às 21:05, uma entrevista especial com o polêmico, o desbocado, o irritado, o irascível, o explosivo Paulo César Peréio. O programa será reprisado na terça, às 11:05

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Paulo César Peréio completou setenta anos de idade em 2010.

O fato de um brasileiro completar setenta anos poderia parecer uma feliz banalidade, se o dono dos setenta anos não se chamasse Paulo César – o Peréio.

Neste caso, os 70 anos deixam de ser uma banalidade para se transformar num milagre da natureza.

Pergunto se ele se considera um sobrevivente. O bicho responde que se considera um “resistente”.

A escolha da palavra não é casual. Depois de desafiar a resistência do corpo com um catálogo de extravagâncias que faria Keith Richards soltar uma exclamação de sincero espanto, Peréio chega “são e salvo” aos setenta. Resistiu exemplarmente aos sacolejos, turbulências e terremotos da travessia.

Ainda bem.

Surpreendentemente, confessa que só depois dos sessenta é que teve momentos de legítima serenidade.

Se não tomar cuidado, terminará contratado para anunciar planos de saúde para a terceira idade.

É uma figura onipresente nas telas. Estava no elenco de “Terra em Transe”, o clássico de Glauber Rocha. Brilhou como um cafajeste em “Toda Nudez Será Castigada”, grande filme de Arnaldo Jabor. Em “Tudo Bem” e “Eu Te Amo”, ambos igualmente dirigidos por Jabor, Peréio dá show de bola.

O rosto exibe aquele ar de tédio. A voz merece, como poucas, o adjetivo “inconfundível”.

Aquele ruído que Peréio produz no fim das frases sempre me intrigou. Eu nunca soube se o ruído é um comentário crítico sobre a espécie humana, um grunhido de espanto contra a conspiração mundial da mediocridade ou um suspiro de tédio diante do estado geral das coisas. Quem saberá ?

Parto em direção à fera, numa gravação marcada para as dependências da produtora Multipress Digital, em plena muvuca da rua República do Líbano, no centro do Rio.

Peréio não perdoa: ataca.

Uma entrevista com Peréio é sempre um espetáculo televisivo: o homem eleva a voz, faz pausas dramáticas, emite suspiros enigmáticos, encara a câmera com um olhar irônico que vale por mil palavras. Um dos melhores momentos: quando Peréio faz uma antologia de situações que viveu ao lado de um gênio brasileiro – Nélson Rodrigues, morto há exatamente trinta anos, em dezembro de 1980. Peréio escala,também, Glauber Rocha na galeria de gênios brasileiros. Não são tantos.

Trechos da entrevista:

“Gênio não é eterno. Depois que ele morre, jamais nascerá outra coisa igual. O medíocre a gente nem percebe que morreu. E, já no dia seguinte à morte de um medíocre, aparece um igualzinho no lugar. A mediocridade, então, é eterna! O gênio, não: todos os gênios são perecíveis”.

“Durante a filmagem de “A Dama do Lotação”, faltou luz. Não tinha luz nem para filmar nem para o ar-condicionado. Eu e Sônia Braga ficamos pelados na cama, no calor, à espera de que a luz voltasse. Éramos amigos: a nudez passa a ser coisa de irmão. Não tinha essa carga de erotismo que o proibido dá. Nem eu nem Sandra botamos roupa,então. Estava coçando o saco. De repente, chegam Nélson Rodrigues e Jorge Dória- que diz: “Meu Deus, o que é aquilo? “. E Nélson: “Peréio é acima de nossa compreensão! Diante de Sônia Braga,aquele monumento, ele fica coçando aquele saco cor-de-rosa! ” . Repare o detalhe do cor de rosa! Nélson não saiu falando “Peréio ficou coçando o saco”. Disse: “Coçando aquele saco cor de rosa!”. Que fantástico! Detalhes assim é que davam a genialidade a Nélson”.

“Trinta dias depois de a peça “Anti-Nélson Rodrigues” entrar em cartaz, Nélson quis mudar o título para “Sexo é Para Operário”. Nélson odiava o fato de eu ter chamado José Wilker para fazer o papel de Oswaldinho, o personagem principal. Nélson me dizia: “José Wilker é autor. E nenhum brasileiro consegue ser autor de teatro sem, primeiro, me achar uma besta…”.

“Nélson ia ao meu camarim para fumar e tomar cafezinho escondido, porque a médica não deixava. Dizia coisas como “Peréio, todo canalha é magro!”. Respondi : “Todo magro é canalha ? Isso é arbitrário!”. E ele: “Em noventa e sete por cento das vezes em que sou arbitrário, eu estou certo”. Ou seja: Nélson nos dava três por cento de gorjeta….”

“A relação que tenho com outros atores – no cinema, na TV,no teatro ou na puta que o pariu – é de simpatia ou antipatia. Há atores que não considerados do c……mas detesto. Por exemplo: odeio Sean Penn. Não gosto daquela boquinha que ele faz. Mas dizem que é um baita de um ator. Aliás, parece que ele andou dando porrada em Madonna. Eu,então, até livro a cara de Sean Penn por conta disso….Também não suporto Elizabeth Taylor”.

“Eu me considero um resistente. Vou dizer uma coisa: eu recomendo os setenta anos ! Não me lembro de ter sido tão equilibrado. O desequilíbrio sempre produz certa ansiedade. Tenho momentos de calmaria que são muito bons. Baboseiras de que “minha infância foi uma coisa muito boa”…. picas! A juventude só é boa porque a gente tem tesão e não brochou. Mas serenidade, tranqüilidade e a ideia de momentos felizes passei a ter depois dos sessenta anos. E tenho melhorado! Tenho muito orgulho de ter saúde, apesar de tudo o que fiz”.

“A fama (de criador de casos, maldito e cafajeste) é merecida. Mas é uma coisa cultivada . Construo este mito,para ser pouco incomodado. É uma espécie de self-art. Peréio, na terceira pessoa, é obra minha. Posso ser considerado no Brasil uma celebridade. As pessoas me reconhecem na rua. Mas posso me dar ao direito de sair sozinho por aí, subir morro, andar na banda podre e na baixa sociedade, tranquilamente. Sei como não ser vítima disso. Conheço atores brasileiros que têm de fingir que são outra pessoa para sair na rua”.

“Sou temperamental. Fico puto. Depois, perdoo. Brigo, me encrespo. Mas baixo a bola e volto para o meu estado de falta de felicidade – que não quer dizer sofrimento nem dor”.

Posted by geneton at 12:36 AM

setembro 21, 2010

GERALDO VANDRÉ

GERALDO VANDRÉ ESPECIAL // TUDO O QUE O GRANDE MUDO DA MPB DISSE NA PRIMEIRA GRAVAÇÃO QUE FAZ PARA UMA TV DEPOIS DE DÉCADAS (HOJE, ELE GARANTE:”NÃO EXISTE NADA MAIS SUBVERSIVO DO QUE UM SUBDESENVOLVIDO ERUDITO”)

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Horários de reexibição da entrevista de Geraldo Vandré no DOSSIÊ GLOBONEWS: segunda:15:05; terça,11:05; sexta,12:05.

O “DECÁLOGO” DE GERALDO VANDRÉ NA PRIMEIRA ENTREVISTA QUE GRAVA PARA A TV DESDE O INÍCIO DOS ANOS SETENTA:

1.”EU ESTOU EXILADO AINDA – ATÉ HOJE, NÃO VOLTEI”
2.”ARTE É CULTURA INÚTIL. CONSEGUI SER MAIS INÚTIL DO QUE QUALQUER ARTISTA.SOU ADVOGADO NUM TEMPO SEM LEI”
3.”PROTESTO É COISA DE QUEM NÃO TEM PODER”
4.”NÃO EXISTE NADA MAIS SUBVERSIVO DO QUE UM SUBDESENVOLVIDO ERUDITO”
5.”NÃO SOU MILITARISTA. TAMBÉM NÃO SOU ANTI”
6.”NÃO TENHO O QUE CORRIGIR EM NADA DO QUE FIZ. TENHO ORGULHO”
7.”RARAMENTE ME ARREPENDO DO QUE FAÇO”
8.”A LOUCURA É A AVIAÇÃO. A MAIOR LOUCURA DO HOMEM É VOAR”
9.”O QUE EXISTE É CULTURA DE MASSA. NÃO É CULTURA ARTÍSTICA BRASILEIRA. NÃO HÁ ESPAÇO PARA A CULTURA ARTÍSTICA”
10.”NUNCA FUI MILITANTE POLÍTICO. NUNCA PERTENCI A NENHUM PARTIDO. NUNCA FUI POLÍTICO PROFISSIONAL”

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Um dos mais duradouros silêncios da Música Popular Brasileira foi quebrado num fim de tarde de domingo no Clube da Aeronáutica, no Rio de Janeiro.

“Demorou uma eternidade”, mas Geraldo Vandré, o grande mudo da MPB, resolveu falar diante de uma câmera de TV.

Desde que voltou para o Brasil, no segundo semestre de 1973, depois de quatro anos e meio de exílio, Geraldo Vandré mergulhou num mutismo quase absoluto.

O compositor e cantor que entrara para a história da MPB dos anos sessenta como autor de canções como “Disparada” (em parceria de Théo de Barros) e “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”/Caminhando” , parecia ter se especializado em provocar espantos em série no público.

Primeiro espanto: numa declaração feita na volta do exílio, anunciou que, a partir dali, só queria fazer “canções de amor e paz”. O Jornal do Brasil registrou outras declarações de Vandré: “Eu desejo, em primeiro lugar, integrar-me à nova realidade brasileira. Isso é um processo que demanda paciência e tranquilidade de espírito – que espero encontrar aqui, nessa nova realidade”.

Segundo espanto: ao contrário do que se esperava, não houve novas canções de “amor e paz”. Vandré sumiu. Nada de shows, nada de entrevistas, nada de excursões. Nada, nada, nada. Recolheu-se a um país que parece ter um só habitante: o próprio Geraldo Vandré.

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O Vandré pós-exílio não lembrava em nada o compositor que arrebatara o público no Festival Internacional da Canção de 1967. Entoados por Vandré diante de um Maracanãzinho superlotado, os versos de “Caminhando” ( “vem/vamos embora/que esperar não é saber/quem sabe faz a hora/não espera acontecer”) saíram daquele palco para entrar na história: viraram uma espécie de hino de protesto contra o regime militar. Sob uma vaia de fazer tremer as estruturas do ginásio, o júri deu o prêmio à “Sabiá”, a parceria de Chico Buarque com Tom Jobim. Mas o público foi seduzido pelo tom incendiário dos versos de “Caminhando”. Pouco depois, desabava sobre o país o Ato Institucional número 5 – que dava poderes absolutos aos militares. Vandré partiu para o exílio. A música “Caminhando” foi proibida.

O terceiro espanto viria anos depois: para surpresa geral, descobriu-se que Geraldo Vandré compôs uma peça sinfônica em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira. Sim, era verdade. Vandré não apenas compôs a declaração de amor à FAB como cultivou uma relação próxima com a Aeronáutica. Vive sozinho em São Paulo. Quando vem ao Rio, para visitar a mãe nonagenária, hospeda-se no hotel do Clube da Aeronáutica, nas proximidades do aeroporto Santos Dumont.

De vez em quando, faz aparições fugidias. Virou lenda. O mutismo deu origem a lendas de todo tipo. Vandré teria sido torturado na volta ao Brasil. Teria, simplesmente, “pirado”. Teria feito um acordo secreto com os militares. E assim por diante. A lenda mais estapafúrdia dizia que ele teria sido castrado ! O silêncio, claro, só servia para alimentar o mistério. Como acontece em casos assim, a fantasia toma o lugar dos fatos.

O que há de certo é que ele foi, sim, constrangido a gravar um depoimento no Aeroporto de Brasília, em 1973. A gravação foi exibida à noite, na TV. Por onde andaria este filme ? Fiz uma primeira busca. Voltei de mãos vazias. Vandré tem lembrança de que agentes da Polícia Federal participaram da operação. Não há registros do filme nem na Polícia Federal em Brasília nem no Arquivo Nacional. Faço uma tentativa no Centro de Documentação da Rede Globo. Nada. Com quem estará o filme ? O que se sabe é que uma empresa de Brasília - uma produtora que, entre outras atividades, fazia filmes para órgãos do governo – foi contratada para gravar o depoimento de Vandré, no aeroporto. O cinegrafista escalado pela produtora para a gravação foi Evilásio Carneiro - por coincidência, trabalha hoje na Globonews. Por falar no assunto: uma dupla de documentaristas prepara atualmente um filme sobre o dono da produtora mobilizada para a gravação do depoimento – um italiano radicado na capital da República. Nome: Dino Cazzola. Em breve, novas informações.

Igualmente, as imagens de Geraldo Vandré cantando “Caminhando” no Maracanãzinho estão desaparecidas. Restou o áudio da performance. Lá, é possível ouvir o pequeno discurso que Vandré, elegantemente, fez em defesa de Chico Buarque e de Tom Jobim, crucificados pelas vaias do público. “A vida não se resume a festivais”, diz, antes de começar a cantar “Caminhando”.

Houve, obviamente, uma ruptura profunda entre o Vandré de antes e o Vandré de depois do exílio. O próprio Vandré nos deu uma explicação : disse que perdeu a motivação e a razão para cantar porque aquele Brasil de 1973 já começava a viver um processo que ele chama de “massificação”. Num país em que a “cultura artística” foi engolida pela “cultura massificada”, não haveria lugar para o que ele fazia.

Depois de quatro meses de insistência, a produtora de TV Mariana Filgueiras terminou convencendo o Grande Mudo da MPB a falar. O mérito de ter derrubado o muro de silêncio que Vandré ergueu em volta de si deve ser creditado, portanto, à capacidade de insistência da produtora. É algo que ocorre com incrível frequência em TV: a responsável pelo furo de reportagem fica nos bastidores. C´est la vie. Mas fica feito o registro.

Vandré marcou o encontro para as cinco da tarde do domingo, doze de setembro – justamente o dia em que ele completava setenta e cinco anos de idade. Nasceu em setembro de 1935 em João Pessoa, Paraíba.

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O autor de pelo menos uma obra prima indiscutível – “Disparada” – escolheu o fim de tarde do domingo em que fazia aniversário para produzir um novo mistério – um, entre tantos outros que passou a cultivar desde que saiu de cena: o Grande Mudo decidiu, finalmente, que iria falar diante de uma câmera de TV. Por quê ? É provável que o fato de estar fazendo aniversário tenha pesado.

Para minha surpresa, o Grande Mudo estava solícito, falante, acessível. Aceitou sem reclamar os pedidos para caminhar no saguão do Clube de Aeronáutica diante da câmera do cinegrafista Ricardo Carvalho.

Quando a entrevista terminou, Vandré se recolheu a um quarto do Hotel da Aeronáutica. Cinegrafista improvisado, captei a cena com minha DVCAM: Vandré se afastando em direção à escadaria que dá acesso aos quartos. Estava sozinho. Terminava assim o domingo em que completava setenta e cinco anos. Não imaginei que um dia iria testemunhar esta cena - o cantor que um dia incendiou o país com seus versos de alta combustão estava ali, solitário, no dia em que fazia aniversário, depois de ter quebrado, diante de mim, um silêncio que se estendeu por décadas. Quem se lembra da última entrevista concedida por Vandré para uma TV ? Havia um tom ligeiramente melancólico na cena solitária protagonizada por Vandré no saguão do hotel, a caminho da ala dos hóspedes. Nada de grave. Os domingos à noite não são sempre assim ?

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O que importa é que Geraldo Vandré deu sinal de vida. Eu estava lá para testemunhar a cena. Estava fazendo minha pequena parte no circo de horrores geral : “produzir memória”, não deixar que as palavras se desfaçam no vento. Afinal, o que diabos um repórter pode fazer de útil, além de “produzir memória” ? Pouquíssima coisa. Quase nada. Quando Vandré sumiu na penumbra do corredor do hotel, dei por cumprida minha missão – o depoimento tinha sido devidamente colhido. É hora de passá-lo adiante. Eis o que o Grande Mudo falou no dia em que quebrou o silêncio:

A pergunta que todos gostariam de fazer é a mais simples possível: o que foi que aconteceu com Geraldo Vandré ?

Vandré : “Ficou fora dos acontecimentos (ri). Ficou fora dos acontecimentos. Acho melhor para ele. Tenho outras coisas para fazer. Estudei leis. Quando terminei meu curso de Direito aqui no Rio e fui me dedicar a uma carreira artística, já sabia que arte é cultura inútil. Mas hoje consegui ser mais inútil do que qualquer artista. Sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil do que isso ? Quando entrei na escola, para estudar, era a Universidade do Distrito Federal. Quando saí, era Universidade do Estado da Guanabara. Hoje, é Uerj, no Maracanã”.

Você se animaria a fazer uma temporada comercial,em teatros ?

Vandré : “Tenho uma prioridade: fazer a minha obra de língua espanhola. É uma obra popular. Além de tudo, o que quero fazer, antes de cantar canções populares no Brasil, é terminar uma série de estudos para piano, música erudita com vistas a composição de um poema sinfônico. Porque aí já é a subversão total. Não existe nada mais subversivo do que um subdesenvolvido erudito”.

O fato de a música “Caminhando” ter se tornado uma espécie de hino de protesto provoca o quê em você hoje: orgulho ou irritação ?

Vandré: “Estou tão distante de tudo. Mas não tenho o que corrigir em nada do que fiz. Tenho muito orgulho de tudo o que fiz. Protesto é coisa de quem não tem poder. Não faço canção de protesto. Fazia música brasileira. Canções brasileiras. A história de “protesto” tem muito a ver com a alienação denominatória, é o “protest song” norte-americano, a música country. Há algumas coincidências. Não concordo com a denominação “música de protesto”. Fiz música popular brasileira”.

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Você teve uma divergência artística com os tropicalistas – entre eles, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Hoje, você ainda considera ruim a música que eles faziam na época ?

Vandré : “Com essa pergunta, eu me lembrei de uma reposta que o próprio Gil deu uma vez. Fiz uma pergunta a ele. Não me lembro qual foi. E ele disse: “Ah, faço qualquer coisa. Uma tem que dar certo”. Eu não faço qualquer coisa”.

Mas você mudou de opinião sobre os tropicalistas ou não ?

Vandré: “Parece que eles continuam na mesma. É o que me parece. Eu estou distante de tudo – não só do Tropicalismo como de tudo praticamente que se faz do Brasil”.

Em que país vive Geraldo Vandré ?

Vandré: “Vive num Brasil que não está aqui. Geraldo Vandré vive no Brasil. Eu até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a maioria dos brasileiros. A quase totalidade dos brasileiros não vive mais no Brasil. Vive num amontoado”.

Como é este Brasil de Geraldo Vandré ?

Vandré : “É o antes – de quarenta anos atrás. O país que o Brasil era quando fiz música para o Brasil não era este país de hoje. Não existia este processo de massificação. Dentro da minha própria carreira – profissionalmente falando – houve uma mudança ali no Maracanãzinho. Ali, houve a passagem do que eu fazia para um público de um teatro de setecentas ou no máximo mil e duzentas pessoas para um ginásio com trinta mil pessoas. E a televisão direto no ar. Já foi a massificação”.

O Brasil de quarenta anos atrás era melhor do que o Brasil de hoje ?

Vandré: “Eu fazia música para aquele país”.

E por que não fazer música para o Brasil de hoje ?

Vandré: “Porque o país é outro. O que existe é cultura de massa. Não é cultura artística brasileira. Não há praticamente espaço para a cultura artística. Se você considerar os outros autores, eles fazem coisas de vez em quando. Não têm uma carreira como tinham antigamente – nem Chico Buarque nem Edu Lobo, ninguém. A carreira que eles têm é uma carreira hoje muito segmentada”.

Você se considera, então, uma espécie de exilado que vive dentro do Brasil ?

Vandré: “Estou exilado até hoje. Ainda não voltei. Eu estou exilado e afastado das atividades que eu tinha até 1968 no Brasil. Eu me afastei. Não retornei”.

Por que é que você resolveu se afastar totalmente da carreira artística naquela época ?

Vandré: “Naquela época, já era assim: já era como hoje. Quando voltei, o Brasil já estava num processo de massificação em que o público para quem eu tinha escrito e para quem eu tinha composto praticamente já não existia, aquela classe média de quatro anos e meio antes. Estava muito confuso tudo.Fui esperando, fui vendo outras coisas. Isso foi de mal a pior – cada vez mais. Para você ter uma ideia: quando terminei o curso de Direito no Rio e me mudei para São Paulo, em 1961, para fazer uma carreira artística, não existia bóia-fria em São Paulo. Hoje, São Paulo é a terra do bóia-fria: todo mundo amontodo nas cidades. Vão aos campos para plantar e para colher e depois voltam para a cidades. Quando fui para São Paulo, a cidade tinha quatro milhões de habitantes. Hoje, são dezesseis milhões de amontoados. É um genocídio. Tiraram todo mundo dos campos para produzir e exportar…”

A decisão de interromper a carreira,então, foi – de certa maneira – um protesto contra o que você via como “massificação” da sociedade brasileira ?

Vandré: “Não. O que houve foi muito mais uma falta de motivo, uma falta de razão para cantar. Protesto,não: falta de razão, falta de porquê. Estou fazendo o que acho que devia fazer”.

O que é que chama a atenção do Geraldo Vandré no Brasil de hoje ? Que manifestação artística desperta interesse ?

Vandré: “A miséria aumentou. Se você pegar a letra de “Caminhando” – ” pelos campos, as fomes em grandes plantações/pelas ruas marchando indecisos cordões/ ainda fazem da flor seu mais forte refrão/ e acreditam nas flores vencendo o canhão” -, hoje é mais ainda. Hoje, as ruas estão muito mais cheias de indecisos cordões. O processo de massificação destruiu praticamente a urbe brasileira”.

Você se animaria a fazer uma canção como “Caminhando” hoje ?

Vandré:”Não existe isso. A gente nunca faz uma canção como uma outra. Aquela é uma canção. Cada uma é uma.A gente faz independentemente de animação. Quando decide fazer, faz”.

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Você diria que o Brasil é um país ingrato ?

Vandré : “Não. De forma alguma. São coisas que ocorrem. Guerra é guerra.Não perdi (ri). Eu me lembrei agora de um poema muito bonito de Gonçalves Dias que aprendi com meu pai: “Não chores, meu filho, não chores/ Viver é lutar/ A vida,meu filho, é combate/é luta renhida/ que aos fracos abate e aos bravos só pode exaltar”.

Quando você se lembra hoje do Maracanãzinho inteiro cantando “Caminhando” que sentimento você tem ?

Vandré: “Aquilo foi muito bonito, muito bonito. Pena que eu não posso ver o VT. Estão guardando o VT não sei para quê.Quero ver o VT. Lá na sua estação eles devem ter. Procure lá. Consegue o VT para ver!” ( olhando para a câmera).

Você tem saudade daquela época ?

Vandré : “Saudades….Saudades…Um pouco. Mas também há tanta coisa para fazer que não dá muito tempo de sentir saudade”.

Você vive de quê hoje ? Você recebe direitos autorais ?

Vandré: “Nunca dependi de música para viver. Sou servidor público. Hoje, estou aposentado como servidor público federal”.

Você deixou de receber direitos autorais ?

Vandré: “Pagam o que querem. Não existe controle. Não existe critério. Se nós tivéssemos direito de autor, teríamos os direitos conexos, direitos de marcas, patentes, propriedade industrial. É um assunto complexo. Mas aí não seríamos subdesenvolvidos“.

Você foi o único grande nome daquela geração que não voltou aos palcos – entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque…

Vandré: “Eu não voltei. É uma boa pergunta: por que não voltei? Não mudou tudo ? Mas será que mudou ?As razões pelas quais me afastei continuam preponderantes no que que se apresenta como realidade brasileira”.

Se você fosse escrever um verbete numa enciclopédia sobre Geraldo Vandré qual seria a primeira frase ?

Vandré: “Criminoso (ri)”.

Por quê ?

Vandré : “O que você chama de governo ainda me tem como anistiado por haver cantado as canções que cantei. Fui demitido do serviço público por causa das canções. O que se apresenta como governo no Brasil até hoje cobra impostos sobre o “corpo de delito” que foram as canções que fiz. Deu para entender agora ? “.

Você foi punido pelo governo da época, perdeu o emprego público…

Vandré: “Fui demitido. Depois, retornei. Briguei, briguei, briguei..”

Em algum momento, você foi considerado “criminoso”…

Vandré: “Fui demitido por causa da canção. E essa canção que foi mltivo de minha demissão até hoje é…Voltei por força de um despacho dado com fundamento na Lei de Anistia, como se eu fosse criminoso. Anistia é para criminoso – condenado por sentença transitada em julgado, se ele aceitar. Porque ele pode não aceitar. Aceitar a anistia significa aceitar-se criminoso, beneficiário de anistia”.

Você acha que a grande injustiça foi esta : em algum momento você ser considerado um criminoso ?

Vandré: “Injustiça não é a palavra…”

Você teria cometido um “delito de opinião” …

Vandré: “Não. Era subversão mesmo, sob certos aspectos, porque não havia nada mais para fazer naquele instante. Não me lembro. Mas as Forças Armadas, propriamente ditas, entenderam muito melhor do que a sociedade civil. Nunca tive nenhum problema com as Forças Armadas propriamente. Sempre houve uma consideração e respeito entre nós”.

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Hoje, você nega que tenha sido em algum momento um antimilitarista nos anos sessenta ?

Vandré: “Nunca fui antimilitarista. Nunca assumi tal posição. Fui lá e falei o que queria dizer, numa canção que foi dita e cantada no Brasil diante de todo mundo. A canção foi cantada para os soldados, também”.

O grande equívoco sobre Geraldo Vandré foi este : achar que você era antimilitarista ?

Vandré : “Não houve, na realidade, um grande equívoco. Houve uma grande manipulação porque, quanto mais proibido, mais sucesso fazia; mais se vendia; menos conta se prestava. É uma questão muito séria”.

Qual foi a última manifestação artística que despertou o interesse e a curiosidade de Geraldo Vandré no Brasil ?

Vandré: “Passei quatro anos e meio fora do Brasil. Quando voltei, havia uma coisa muito importante que era o Movimento Armorial. Havia o Quinteto Armorial e a Orquestra Armorial. A sonoridade era muito condensada. O resultado era importante. Para mim, foi a coisa mais importante que aconteceu nos últimos tempos. Não me lembro de outra coisa que tenha ido além daquilo”.

E da produção recente, alguma coisa chamou a atenção do Geraldo Vandré ?

Vandré: “Nada. Tiririca (ri). Dizem que vai ser o deputado mais votado de São Paulo. Está bom ? “.

Você disse, numa discussão na época dos festivais: “A vida não se resume a festivais”. Hoje, tanto tempo depois dos festivais, qual é o principal interesse do Geraldo Vandré ?

Vandré : “São as outras coisas que não estão nos festivais. Minha vida funcional – de que cuidei até me aposentar; as minhas relações com a Força Aérea, o meu projeto de fazer estas gravações na América espanhola…Tenho muita coisa para fazer”.

Outro grande nome que se celebrizou como opositor do regime militar na música brasileira foi Chico Buarque de Holanda. Você acompanhou o que ele fez depois ?

Vandré: “Chico teve um caminho diferente do meu. Não chegou a parar. Produziu muito durante aquela época em que eu estava fora. Chico ficou aqui. Saiu e voltou, saiu e voltou. Passei quatro anos e meio fora. Quando voltei, fiz uma tentativa de apresentação num programa de televisão. Não vem ao caso qual, mas não gostei do que aconteceu: o jogo de pressões que se fez em volta. Recuei. Depois, passou-se um tempo. A própria Globo queria fazer um festival. Chegaram a me procurar. Não tive interesse em participar”.

O que é que a produção de Chico Buarque significa para você ?

Vandré: “Chico é uma pessoa muito talentosa, muito importante. Um grande artista”.

Você perdeu o contato com todos os seus companheiros de geração na música ?

Vandré: “Nunca fui muito enfronhado no meio artístico. Fazia minhas coisas. Voltava para minhas atividades extramusicais”.

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É verdade que você ficou escondido na casa da família Guimarães Rosa antes de ir para o exílio ?

Vandré: “Eu saí de circulação. Depois que o tempo foi passando, as coisas vão ficando claras: as Forças Armadas propriamente ditas não tinham nada contra mim. Não tomaram nenhuma iniciativa contra mim. Quando fecharam o Congresso Nacional, no dia 13 de dezembro de 1968, eu estava indo para Brasília para fazer um espetáculo.Evidentemente, suspendemos o espetáculo. Vim de carro – guiando – até São Paulo. Eu estava à mão das Forças Armadas….Nunca deixei de estar. Mas claro que algo poderia acontecer: ao andar à toa pela rua, eu poderia de repente encontrar um “guardinha de trânsito” que quisesse fazer média. Há sempre alguém que quer tirar proveito de situações assim. Para evitar, saí de circulação. Durante um tempo, estive na casa de Dona Aracy (viúva de Guimarães Rosa – que tinha morrido meses antes). Fiquei lá porque, quando vinha para o Rio, como não tinha casa aqui, sempre ficava na casa de amigos e de pessoas conhecidas”.

Por que você tomou esta decisão tão drástica – de interromper uma carreira de tanto sucesso ?

Vandré: “Decidir sair do Brasil naquele ano de 1968. (N:Os mesmos agentes que prenderam Caetano Veloso e Gilberto em São Paulo,em dezembro de 1968, tentaram prender Geraldo Vandré. Mas, avisado por Dedé, à época mulher de Caetano Veloso, Geraldo Vandré conseguiu escapar a tempo) Eu tinha uma programação para fazer fora do Brasil. Tinha um contrato com a televisão Bavária,na Alemanha, para fazer um filme sobre Geraldo Vandré. Fui fazer. Passei um ano e meio pela Europa. Depois, voltei para o Chile – para onde eu tinha ido do Brasil. Havia muitos brasileiros lá ainda. De lá, fui para o Peru. Ganhamos um festival em Lima em 1972 com uma canção que era a única não cantada em espanhol. Era cantada em “brasileiro” mesmo. O Brasil não conhece a canção.Chama-se “Pátria Amada Idolatrada, Salve, Salve – Canção terceira”.

Você se lembra da letra ?

Vandré : “Eu me lembro. É uma canção que foi feita para ser cantada por um homem e uma mulher. Existe de caso pensado – coincidentemente – uma confusão de sentimentos entre a ideia da pátria e a ideia da mulher amada.O homem canta: “Se é pra dizer-te adeus/ pra não te ver jamais/Eu – que dos filhos teus fui te querer demais-/no verso que hoje chora para me fazer capaz da dor que me devora/quero dizer-te mais/ que além de adeus/ agora eu te prometo em paz levar comigo afora o amor demais”.

E a mulher, cuja imagem se confunde com a noção da pátria, responde:

“Amado meu sempre será quem me guardou no seu cantar/ quem me levou além do céu/além dos seus/e além do mais/ amado meu/ que além de mim se dá/não se perdeu nem se perderá”.

Os dois cantam juntos um para o outro. É um contraponto”.

Você foi constrangido a gravar, em 1973, um depoimento em que negava que fosse militante político. Qual foi o peso deste depoimento na decisão de Geraldo Vandré de interromper a carreira ?

Vandré: “Nunca fui constrangido a declarar que não tive militância política. Nunca tive militância político-partidária. Nunca pertenci a nenhum partido. Nunca fui político profissional. Não fui obrigado a dizer que não era militante. Nunca fui militante político. Nesta contemporaneidade em que estamos, eu me lembrei de um professor de Filosofia que dizia: “O homem é um animal político”. Sou uma qualidade de animal político que não depende de eleição. Vamos estudar a diferença entre política e eleição ?”.

Que lembrança você guarda deste depoimento ? Você foi levado para uma sala do aeroporto de Brasília e gravou um depoimento em que – de certa maneira – renegava ….

Vandré (interrompendo) : “É um assunto que ficou muito confuso. Não me lembro exatamente. Gostaria de ver a declaração…”

Você gravou o depoimento quando voltou do Chile…

Vandré: “Gostaria de ver, porque houve montagens. Era gravação. O que foi para o ar não sei”

O depoimento criou espanto na época, porque – de certa maneira – era você negando a militância política…

Vandré: “Nunca fui militante. Se engajamento político é pertencer a um partido, nunca pertenci a nenhum. Nunca fui engajado politicamente”.

Você obrigado a gravar este depoimento ? Fazia parte do acordo para voltar para o Brasil ?

Vandré: “Queriam que eu fizesse uma declaração. Não me lembro o que foi que disse. Mas eu disse coisas que poderia dizer. O que eu disse era verdade. Não disse nada que não tenha querido dizer. A TV Globo deve ter isso. Procure lá…”

A gente procurou e não encontrou….

Vandré: “Pois é: somem com tudo. Que loucura essa…Por quê ? Veja se acha o vt do Maracanãzinho. É o que tem Tom Jobim. É o mesmo vt. A minha parte sumiu. Por quê ? Fizeram uma retrospectiva do Festival. Botaram o Festival no Maracanãzinho- Tom,Chico, todo mundo, Cynara e Cybele. Mas,na hora de botar o Geraldo Vandré, usaram um filme feito na Alemanha, em que eu estava de barba. Não é certo”…

Talvez tenham recolhido o filme…

Vandré: “Para mim, é muito difícil acreditar que a TV Globo tenha se desfeito do filme. Não acredito. Devem estar guardando muito bem guardado”

Só para esclarecer este episódio sobre o depoimento que você gravou quando voltou do exílio : que lembrança exatamente você tem ? Quem pediu a você para gravar este depoimento ?

Vandré: “Aquelas declarações foram feitas para uma pessoa que se me apresentava como da Polícia Federal. Fiz um depoimento aqui. Depois, disseram que eu tinha de ir para Brasília. Cheguei ao Brasil no dia 14 de julho. Dois meses depois, apareço como se estivesse chegando em Brasília. Aquilo foi uma manipulação. O depoimento foi gravado antes. Gravaram-me descendo do avião em Brasília. Tudo muito manipulado. É esta a história dos vts: normalmente, temos esta doença. Estou falando aqui. O que vai ser mostrado vai ser uma seleção que a estação vai fazer. Não vai ser o que estou dizendo. Isso é muito sério”.

Para encerrar o assunto: o depoimento teve um peso na decisão de interromper a carreira ? Você ficou incomodado com aquilo ?

Vandré: “Não. Eu estava chegando e vendo como estavam a coisas.Não tinha menor noção da realidade. Tive de passar por um processo de adaptação no retorno ao Brasil”.

O grande mistério que existe sobre Geraldo Vandré durante todas essas décadas é, afinal de contas, o que aconteceu com ele depois da volta do exílio: você foi maltratado fisicamente ?

Vandré: “Não.Não”

Se você tivesse a chance hoje de se dirigir a uma plateia de jovens num festival,o que é que você diria a eles ?

Vandré: “Vamos ter de dar um tempo aí, não é ?…” (rindo)

Um “tempo” de quantos anos ?

Vandré: “Não sei. Agora, vocês vão votar para presidente, deputado, senador. Estão ocupados com outras coisas. Estou por fora”.

Que papel você acha que vai caber a Geraldo Vandré na história da música popular brasileira moderna ?

Vandré: “Nunca fiz este tipo de avaliação”.

Que papel você espera ter ? Você se acha suficientemente reconhecido ?

Vandré: “Obtive o reconhecimento que procurei e quis”.

Você em algum momento se arrepende de ter interrompido a carreira ?

Vandré: “Não. Porque raramente me arrependo das coisas que faço. Calculo bem, reflito bem, meço bem : quando faço é para ficar feito mesmo. Não existe arrependimento não”.

Para efeito de registro histórico: você, primeiro, não se considera antimilitarista…

Vandré: “Não…”

Segundo: você não foi maltratado fisicamente durante o regime militar…

Vandré: “Não…”

Terceiro: você disse o que quis no depoimento que você foi forçado a gravar quando voltou do exílio…

Vandré: “E em quarto: há o Quarto Comando Aéreo Regional…Tenho uma canção para o “exército azul”, a Força Aérea…(ri e exibe o brasão da Aeronáutica, impresso numa espécie de cartão de visita que traz, no verso, a letra de “Fabiana“). A aviação é muito bonita. A loucura é a aviação. Porque a maior loucura do homem é voar. Conhece loucura maior do que esta ? Não existe”.

Como é que surgiu a fascinação de Geraldo Vandré pela aviação ?

Vandré: “Desde pequeno, desde criança”.

Você gostaria de ter sido aviador ?

Vandré: “É. Não fui aviador militar. Não sou piloto, mas – de certa forma – sou aviador, porque me ocupo de assuntos da aviação. Uma coisa é aviador, outra é piloto. Você pode ser piloto, co-piloto, rádio navegador, mecânico de bordo, médico aviador. Há vários caminhos – não necessariamente tem de ser piloto…”.

O fato de você ter composto uma música em homenagem à Força Aérea criou um certo espanto. Hoje, você se hospeda em hotéis da Aeronáutica, como este. Nós estamos num ambiente militar…

Vandré :”Relativamente, porque este é um instituto de direito privado…”

Houve alguma mudança na postura do Geraldo Vandré ou não em relação às Forças Armadas ?

Vandré : “O que houve foi o reconhecimento de uma parte da sociedade que nunca tinha tido oportunidade de saber realmente quais eram as minhas posições”.

Em que situação Geraldo Vandré voltaria a um palco hoje ?

Vandré:”Depende de onde. Tenho uma programação na qual investo meu tempo e minhas energias : gravar um disco no exterior, num país de língua espanhola. É minha prioridade. Depois, vou ver minha programação para o Brasil. Escrevi umas trinta canções originalmente em “americano de habla hispânica”. Quero gravar num país de música espanhola, com músicos de lá. Minha prioridade comercial é esta. Para o Brasil, por ora, o projeto é a canção da Força Aérea mesmo – e um projeto sinfônico. A canção se chama Fabiana porque nasceu na FAB – em sua honra e em seu louvor”.

Você, hoje, então prefere compor peças sinfônicas ?

Vandré: “Tenho estudado música. Compus uma série de estudos para piano – aproveitando da técnica de uma jovem pianista de São Paulo. Mas a música ganhou outras dimensões. Passou a ser física e matemática. Ritmos do coração. Fica mais complicado,mas, para mim, é música”.

Você tem planos de gravar a música que você fez em homenagem à FAB ?

Vandré: “Claro. Já fizemos uma apresentação numa festa da Força Aérea em torno das comemorações da Semana da Asa, em São Paulo, com um coral de trezentos infantes. Uma coisa muito bonita. Com o tempo, vamos ver quais são alternativas que se colocam”.

Você declarou algumas vezes : “Geraldo Vandré não existe mais….”

Vandré ( interrompendo) : “Não, não declarei. Eu disse que ele não canta no Brasil comercialmente. Apresentei uma canção para a Força Aérea do Brasil. Não canto comercialmente no Brasil porque os problemas todos que tive de enfrentar resultaram de especulações comerciais: vendas clandestinas, câmbio negro, tudo isso. Quanto mais se proibia,mais se vendia. A sociedade, às vezes, tem essa doença”.

Você canta “Disparada” hoje, em casa ?

Vandré : “Não. Faz tempo que não pego num violão. Tenho de voltar a estudar”.

Que instrumento, então, você toca ? Piano ?

Vandré :”Não. Não sou pianista. Toco de improviso alguma coisa”.

Pelo menos duas músicas que você compôs são conhecidíssimas até hoje: “Disparada” e “Caminhando”.

Vandré ( interrompendo) : “Pelo menos duas…”

Se você fosse escolher uma, que música você escolheria como típica da produção de Geraldo Vandré ?

Vandré: “Disparada” é mais brasileira, tem uma forma mais consequente com a tradição das formas da música popular : a moda de viola. “Caminhando” já é mais urbana. É uma crônica da realidade. É a primeira vez que fiz uma crônica. Deu no que deu. A realidade não estava muito querendo ser…”

Retratada…A obra-prima de Geraldo Vandré qual é ?

Vandré: “Todas são iguais. Para mim, são todas iguais. Isso de obra-prima é uma questão de seleção e de predileção do público, os meios de comunicação e os chamados formadores de opinião”.

Mas você deve ter uma predileção pessoal…

Vandré: “Não tenho. É tudo igual mesmo”.

As peças sinfônicas você compõe como ?

Vandré : “As melodias, algumas harmonias…Para escrever em notas convencionais, preciso da escrita de pessoas que estão muito mais afeitas a esta tarefa do que eu.Eu levaria anos para escrever uma partitura. Jamais escreveria como alguém que faz parte de uma orquestra, lê e escreve na hora, à primeira vista. Hoje,estou dedicado a preparar um poema sinfônico cuja abertura coralística será a Fabiana, a canção que fiz para a Força Aérea”.

Você hoje se animaria a fazer um espetáculo para o público brasileiro ?

Vandré :”Não.Para o público brasileiro, só uma coisa muito especial”…

Em que situação você voltaria a se apresentar no Brasil ?

Vandré: “Chegamos a cogitar de fazer uma apresentação da Fabiana no Clube de Aeronáutica. É um dos projetos de que chegamos a nos ocupar. Mas até agora as coisas ficaram postergadas, porque o clube vai entrar em reforma. Vêm aí as Olimpíadas Militares. O clube vai ter de se adequar”.

Qual é a grande inspiração que você tem para compor essas peças sinfônicas ? O que é que motiva você a compor ?

Vandré: “Nunca dependi muito da palavra inspiração. Escolhia os temas. O fundamental para mim é a memória que tenho do que ouvia no cancioneiro popular, as músicas de desde a minha infância”.

O público brasileiro ainda vai ter chance de ver Geraldo Vandré cantando “Caminhando” e “Disparada” no palco ?

Vandré: “Isso é profecia. Não sou profeta”.

O que é que levou você a fazer uma música em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira, você, que era tido nos anos sessenta como antimilitarista ?

Vandré: “Era tido. Por quem ? Isso deveria ser perguntado para os que a mim me tinham como antimilitarista.Não sou militarista. Mas também não sou anti. Todos os países soberanos do mundo têm suas forças armadas. O que é que devemos fazer com as nossas ? Entregá-las para outras pessoas ? Vamos fazer isso ? Acho que não!

Chamo de “Fabiana” porque nasceu na FAB. Costumamos dizer assim: uma servidora da FAB é “fabiana”. A letra diz : “Desde os tempos distantes de criança numa força,sem par, do pensamento teu sentido infinito e resultado do que sempre será meu sentimento/todo teu/todo amor e encantamento/vertente.resplendor e firmamento/ Como a flor do melhor entendimento/a certeza que nunca me faltou/na firmeza do teu querer bastante/seja perto ou distante é meu sustento/ De lamentos não vive o que é querente do teu ser no passado e no presente/Do futuro direi que sabem gentes de todos os rincões e continentes/que só tu saber do meu querer silente/porque só tu soubeste, enquanto infante, das luzes do luzir mais reluzente pertencer ao meu ser mais permanente”.

O refrão é, coincidentemente, um contraponto de “vem/vamos embora/ que esperar não é saber” : “Vive em tuas asas todo o meu viver/ meu sonhar marinho / todo amanhecer”.

Termina a entrevista. Já são quase sete da noite. O Grande Solitário da MPB caminha em direção à escadaria que dá acesso à ala de hóspedes do hotel que funciona no Clube da Aeronáutica. Parte sozinho. Vai em companhia do único habitante do Brasil que Geraldo Vandré criou para si: o próprio Geraldo Vandré.

Posted by geneton at 02:27 AM

GERALDO VANDRÉ

GERALDO VANDRÉ ESPECIAL // TUDO O QUE O GRANDE MUDO DA MPB DISSE NA PRIMEIRA GRAVAÇÃO QUE FAZ PARA UMA TV DEPOIS DE DÉCADAS (HOJE, ELE GARANTE:”NÃO EXISTE NADA MAIS SUBVERSIVO DO QUE UM SUBDESENVOLVIDO ERUDITO”)

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Horários de reexibição da entrevista de Geraldo Vandré no DOSSIÊ GLOBONEWS: segunda:15:05; terça,11:05; sexta,12:05.

O “DECÁLOGO” DE GERALDO VANDRÉ NA PRIMEIRA ENTREVISTA QUE GRAVA PARA A TV DESDE O INÍCIO DOS ANOS SETENTA:

1.”EU ESTOU EXILADO AINDA – ATÉ HOJE, NÃO VOLTEI”
2.”ARTE É CULTURA INÚTIL. CONSEGUI SER MAIS INÚTIL DO QUE QUALQUER ARTISTA.SOU ADVOGADO NUM TEMPO SEM LEI”
3.”PROTESTO É COISA DE QUEM NÃO TEM PODER”
4.”NÃO EXISTE NADA MAIS SUBVERSIVO DO QUE UM SUBDESENVOLVIDO ERUDITO”
5.”NÃO SOU MILITARISTA. TAMBÉM NÃO SOU ANTI”
6.”NÃO TENHO O QUE CORRIGIR EM NADA DO QUE FIZ. TENHO ORGULHO”
7.”RARAMENTE ME ARREPENDO DO QUE FAÇO”
8.”A LOUCURA É A AVIAÇÃO. A MAIOR LOUCURA DO HOMEM É VOAR”
9.”O QUE EXISTE É CULTURA DE MASSA. NÃO É CULTURA ARTÍSTICA BRASILEIRA. NÃO HÁ ESPAÇO PARA A CULTURA ARTÍSTICA”
10.”NUNCA FUI MILITANTE POLÍTICO. NUNCA PERTENCI A NENHUM PARTIDO. NUNCA FUI POLÍTICO PROFISSIONAL”

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Um dos mais duradouros silêncios da Música Popular Brasileira foi quebrado num fim de tarde de domingo no Clube da Aeronáutica, no Rio de Janeiro.

“Demorou uma eternidade”, mas Geraldo Vandré, o grande mudo da MPB, resolveu falar diante de uma câmera de TV.

Desde que voltou para o Brasil, no segundo semestre de 1973, depois de quatro anos e meio de exílio, Geraldo Vandré mergulhou num mutismo quase absoluto.

O compositor e cantor que entrara para a história da MPB dos anos sessenta como autor de canções como “Disparada” (em parceria de Théo de Barros) e “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”/Caminhando” , parecia ter se especializado em provocar espantos em série no público.

Primeiro espanto: numa declaração feita na volta do exílio, anunciou que, a partir dali, só queria fazer “canções de amor e paz”. O Jornal do Brasil registrou outras declarações de Vandré: “Eu desejo, em primeiro lugar, integrar-me à nova realidade brasileira. Isso é um processo que demanda paciência e tranquilidade de espírito – que espero encontrar aqui, nessa nova realidade”.

Segundo espanto: ao contrário do que se esperava, não houve novas canções de “amor e paz”. Vandré sumiu. Nada de shows, nada de entrevistas, nada de excursões. Nada, nada, nada. Recolheu-se a um país que parece ter um só habitante: o próprio Geraldo Vandré.

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O Vandré pós-exílio não lembrava em nada o compositor que arrebatara o público no Festival Internacional da Canção de 1967. Entoados por Vandré diante de um Maracanãzinho superlotado, os versos de “Caminhando” ( “vem/vamos embora/que esperar não é saber/quem sabe faz a hora/não espera acontecer”) saíram daquele palco para entrar na história: viraram uma espécie de hino de protesto contra o regime militar. Sob uma vaia de fazer tremer as estruturas do ginásio, o júri deu o prêmio à “Sabiá”, a parceria de Chico Buarque com Tom Jobim. Mas o público foi seduzido pelo tom incendiário dos versos de “Caminhando”. Pouco depois, desabava sobre o país o Ato Institucional número 5 – que dava poderes absolutos aos militares. Vandré partiu para o exílio. A música “Caminhando” foi proibida.

O terceiro espanto viria anos depois: para surpresa geral, descobriu-se que Geraldo Vandré compôs uma peça sinfônica em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira. Sim, era verdade. Vandré não apenas compôs a declaração de amor à FAB como cultivou uma relação próxima com a Aeronáutica. Vive sozinho em São Paulo. Quando vem ao Rio, para visitar a mãe nonagenária, hospeda-se no hotel do Clube da Aeronáutica, nas proximidades do aeroporto Santos Dumont.

De vez em quando, faz aparições fugidias. Virou lenda. O mutismo deu origem a lendas de todo tipo. Vandré teria sido torturado na volta ao Brasil. Teria, simplesmente, “pirado”. Teria feito um acordo secreto com os militares. E assim por diante. A lenda mais estapafúrdia dizia que ele teria sido castrado ! O silêncio, claro, só servia para alimentar o mistério. Como acontece em casos assim, a fantasia toma o lugar dos fatos.

O que há de certo é que ele foi, sim, constrangido a gravar um depoimento no Aeroporto de Brasília, em 1973. A gravação foi exibida à noite, na TV. Por onde andaria este filme ? Fiz uma primeira busca. Voltei de mãos vazias. Vandré tem lembrança de que agentes da Polícia Federal participaram da operação. Não há registros do filme nem na Polícia Federal em Brasília nem no Arquivo Nacional. Faço uma tentativa no Centro de Documentação da Rede Globo. Nada. Com quem estará o filme ? O que se sabe é que uma empresa de Brasília - uma produtora que, entre outras atividades, fazia filmes para órgãos do governo – foi contratada para gravar o depoimento de Vandré, no aeroporto. O cinegrafista escalado pela produtora para a gravação foi Evilásio Carneiro - por coincidência, trabalha hoje na Globonews. Por falar no assunto: uma dupla de documentaristas prepara atualmente um filme sobre o dono da produtora mobilizada para a gravação do depoimento – um italiano radicado na capital da República. Nome: Dino Cazzola. Em breve, novas informações.

Igualmente, as imagens de Geraldo Vandré cantando “Caminhando” no Maracanãzinho estão desaparecidas. Restou o áudio da performance. Lá, é possível ouvir o pequeno discurso que Vandré, elegantemente, fez em defesa de Chico Buarque e de Tom Jobim, crucificados pelas vaias do público. “A vida não se resume a festivais”, diz, antes de começar a cantar “Caminhando”.

Houve, obviamente, uma ruptura profunda entre o Vandré de antes e o Vandré de depois do exílio. O próprio Vandré nos deu uma explicação : disse que perdeu a motivação e a razão para cantar porque aquele Brasil de 1973 já começava a viver um processo que ele chama de “massificação”. Num país em que a “cultura artística” foi engolida pela “cultura massificada”, não haveria lugar para o que ele fazia.

Depois de quatro meses de insistência, a produtora de TV Mariana Filgueiras terminou convencendo o Grande Mudo da MPB a falar. O mérito de ter derrubado o muro de silêncio que Vandré ergueu em volta de si deve ser creditado, portanto, à capacidade de insistência da produtora. É algo que ocorre com incrível frequência em TV: a responsável pelo furo de reportagem fica nos bastidores. C´est la vie. Mas fica feito o registro.

Vandré marcou o encontro para as cinco da tarde do domingo, doze de setembro – justamente o dia em que ele completava setenta e cinco anos de idade. Nasceu em setembro de 1935 em João Pessoa, Paraíba.

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O autor de pelo menos uma obra prima indiscutível – “Disparada” – escolheu o fim de tarde do domingo em que fazia aniversário para produzir um novo mistério – um, entre tantos outros que passou a cultivar desde que saiu de cena: o Grande Mudo decidiu, finalmente, que iria falar diante de uma câmera de TV. Por quê ? É provável que o fato de estar fazendo aniversário tenha pesado.

Para minha surpresa, o Grande Mudo estava solícito, falante, acessível. Aceitou sem reclamar os pedidos para caminhar no saguão do Clube de Aeronáutica diante da câmera do cinegrafista Ricardo Carvalho.

Quando a entrevista terminou, Vandré se recolheu a um quarto do Hotel da Aeronáutica. Cinegrafista improvisado, captei a cena com minha DVCAM: Vandré se afastando em direção à escadaria que dá acesso aos quartos. Estava sozinho. Terminava assim o domingo em que completava setenta e cinco anos. Não imaginei que um dia iria testemunhar esta cena - o cantor que um dia incendiou o país com seus versos de alta combustão estava ali, solitário, no dia em que fazia aniversário, depois de ter quebrado, diante de mim, um silêncio que se estendeu por décadas. Quem se lembra da última entrevista concedida por Vandré para uma TV ? Havia um tom ligeiramente melancólico na cena solitária protagonizada por Vandré no saguão do hotel, a caminho da ala dos hóspedes. Nada de grave. Os domingos à noite não são sempre assim ?

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O que importa é que Geraldo Vandré deu sinal de vida. Eu estava lá para testemunhar a cena. Estava fazendo minha pequena parte no circo de horrores geral : “produzir memória”, não deixar que as palavras se desfaçam no vento. Afinal, o que diabos um repórter pode fazer de útil, além de “produzir memória” ? Pouquíssima coisa. Quase nada. Quando Vandré sumiu na penumbra do corredor do hotel, dei por cumprida minha missão – o depoimento tinha sido devidamente colhido. É hora de passá-lo adiante. Eis o que o Grande Mudo falou no dia em que quebrou o silêncio:

A pergunta que todos gostariam de fazer é a mais simples possível: o que foi que aconteceu com Geraldo Vandré ?

Vandré : “Ficou fora dos acontecimentos (ri). Ficou fora dos acontecimentos. Acho melhor para ele. Tenho outras coisas para fazer. Estudei leis. Quando terminei meu curso de Direito aqui no Rio e fui me dedicar a uma carreira artística, já sabia que arte é cultura inútil. Mas hoje consegui ser mais inútil do que qualquer artista. Sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil do que isso ? Quando entrei na escola, para estudar, era a Universidade do Distrito Federal. Quando saí, era Universidade do Estado da Guanabara. Hoje, é Uerj, no Maracanã”.

Você se animaria a fazer uma temporada comercial,em teatros ?

Vandré : “Tenho uma prioridade: fazer a minha obra de língua espanhola. É uma obra popular. Além de tudo, o que quero fazer, antes de cantar canções populares no Brasil, é terminar uma série de estudos para piano, música erudita com vistas a composição de um poema sinfônico. Porque aí já é a subversão total. Não existe nada mais subversivo do que um subdesenvolvido erudito”.

O fato de a música “Caminhando” ter se tornado uma espécie de hino de protesto provoca o quê em você hoje: orgulho ou irritação ?

Vandré: “Estou tão distante de tudo. Mas não tenho o que corrigir em nada do que fiz. Tenho muito orgulho de tudo o que fiz. Protesto é coisa de quem não tem poder. Não faço canção de protesto. Fazia música brasileira. Canções brasileiras. A história de “protesto” tem muito a ver com a alienação denominatória, é o “protest song” norte-americano, a música country. Há algumas coincidências. Não concordo com a denominação “música de protesto”. Fiz música popular brasileira”.

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Você teve uma divergência artística com os tropicalistas – entre eles, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Hoje, você ainda considera ruim a música que eles faziam na época ?

Vandré : “Com essa pergunta, eu me lembrei de uma reposta que o próprio Gil deu uma vez. Fiz uma pergunta a ele. Não me lembro qual foi. E ele disse: “Ah, faço qualquer coisa. Uma tem que dar certo”. Eu não faço qualquer coisa”.

Mas você mudou de opinião sobre os tropicalistas ou não ?

Vandré: “Parece que eles continuam na mesma. É o que me parece. Eu estou distante de tudo – não só do Tropicalismo como de tudo praticamente que se faz do Brasil”.

Em que país vive Geraldo Vandré ?

Vandré: “Vive num Brasil que não está aqui. Geraldo Vandré vive no Brasil. Eu até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a maioria dos brasileiros. A quase totalidade dos brasileiros não vive mais no Brasil. Vive num amontoado”.

Como é este Brasil de Geraldo Vandré ?

Vandré : “É o antes – de quarenta anos atrás. O país que o Brasil era quando fiz música para o Brasil não era este país de hoje. Não existia este processo de massificação. Dentro da minha própria carreira – profissionalmente falando – houve uma mudança ali no Maracanãzinho. Ali, houve a passagem do que eu fazia para um público de um teatro de setecentas ou no máximo mil e duzentas pessoas para um ginásio com trinta mil pessoas. E a televisão direto no ar. Já foi a massificação”.

O Brasil de quarenta anos atrás era melhor do que o Brasil de hoje ?

Vandré: “Eu fazia música para aquele país”.

E por que não fazer música para o Brasil de hoje ?

Vandré: “Porque o país é outro. O que existe é cultura de massa. Não é cultura artística brasileira. Não há praticamente espaço para a cultura artística. Se você considerar os outros autores, eles fazem coisas de vez em quando. Não têm uma carreira como tinham antigamente – nem Chico Buarque nem Edu Lobo, ninguém. A carreira que eles têm é uma carreira hoje muito segmentada”.

Você se considera, então, uma espécie de exilado que vive dentro do Brasil ?

Vandré: “Estou exilado até hoje. Ainda não voltei. Eu estou exilado e afastado das atividades que eu tinha até 1968 no Brasil. Eu me afastei. Não retornei”.

Por que é que você resolveu se afastar totalmente da carreira artística naquela época ?

Vandré: “Naquela época, já era assim: já era como hoje. Quando voltei, o Brasil já estava num processo de massificação em que o público para quem eu tinha escrito e para quem eu tinha composto praticamente já não existia, aquela classe média de quatro anos e meio antes. Estava muito confuso tudo.Fui esperando, fui vendo outras coisas. Isso foi de mal a pior – cada vez mais. Para você ter uma ideia: quando terminei o curso de Direito no Rio e me mudei para São Paulo, em 1961, para fazer uma carreira artística, não existia bóia-fria em São Paulo. Hoje, São Paulo é a terra do bóia-fria: todo mundo amontodo nas cidades. Vão aos campos para plantar e para colher e depois voltam para a cidades. Quando fui para São Paulo, a cidade tinha quatro milhões de habitantes. Hoje, são dezesseis milhões de amontoados. É um genocídio. Tiraram todo mundo dos campos para produzir e exportar…”

A decisão de interromper a carreira,então, foi – de certa maneira – um protesto contra o que você via como “massificação” da sociedade brasileira ?

Vandré: “Não. O que houve foi muito mais uma falta de motivo, uma falta de razão para cantar. Protesto,não: falta de razão, falta de porquê. Estou fazendo o que acho que devia fazer”.

O que é que chama a atenção do Geraldo Vandré no Brasil de hoje ? Que manifestação artística desperta interesse ?

Vandré: “A miséria aumentou. Se você pegar a letra de “Caminhando” – ” pelos campos, as fomes em grandes plantações/pelas ruas marchando indecisos cordões/ ainda fazem da flor seu mais forte refrão/ e acreditam nas flores vencendo o canhão” -, hoje é mais ainda. Hoje, as ruas estão muito mais cheias de indecisos cordões. O processo de massificação destruiu praticamente a urbe brasileira”.

Você se animaria a fazer uma canção como “Caminhando” hoje ?

Vandré:”Não existe isso. A gente nunca faz uma canção como uma outra. Aquela é uma canção. Cada uma é uma.A gente faz independentemente de animação. Quando decide fazer, faz”.

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Você diria que o Brasil é um país ingrato ?

Vandré : “Não. De forma alguma. São coisas que ocorrem. Guerra é guerra.Não perdi (ri). Eu me lembrei agora de um poema muito bonito de Gonçalves Dias que aprendi com meu pai: “Não chores, meu filho, não chores/ Viver é lutar/ A vida,meu filho, é combate/é luta renhida/ que aos fracos abate e aos bravos só pode exaltar”.

Quando você se lembra hoje do Maracanãzinho inteiro cantando “Caminhando” que sentimento você tem ?

Vandré: “Aquilo foi muito bonito, muito bonito. Pena que eu não posso ver o VT. Estão guardando o VT não sei para quê.Quero ver o VT. Lá na sua estação eles devem ter. Procure lá. Consegue o VT para ver!” ( olhando para a câmera).

Você tem saudade daquela época ?

Vandré : “Saudades….Saudades…Um pouco. Mas também há tanta coisa para fazer que não dá muito tempo de sentir saudade”.

Você vive de quê hoje ? Você recebe direitos autorais ?

Vandré: “Nunca dependi de música para viver. Sou servidor público. Hoje, estou aposentado como servidor público federal”.

Você deixou de receber direitos autorais ?

Vandré: “Pagam o que querem. Não existe controle. Não existe critério. Se nós tivéssemos direito de autor, teríamos os direitos conexos, direitos de marcas, patentes, propriedade industrial. É um assunto complexo. Mas aí não seríamos subdesenvolvidos“.

Você foi o único grande nome daquela geração que não voltou aos palcos – entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque…

Vandré: “Eu não voltei. É uma boa pergunta: por que não voltei? Não mudou tudo ? Mas será que mudou ?As razões pelas quais me afastei continuam preponderantes no que que se apresenta como realidade brasileira”.

Se você fosse escrever um verbete numa enciclopédia sobre Geraldo Vandré qual seria a primeira frase ?

Vandré: “Criminoso (ri)”.

Por quê ?

Vandré : “O que você chama de governo ainda me tem como anistiado por haver cantado as canções que cantei. Fui demitido do serviço público por causa das canções. O que se apresenta como governo no Brasil até hoje cobra impostos sobre o “corpo de delito” que foram as canções que fiz. Deu para entender agora ? “.

Você foi punido pelo governo da época, perdeu o emprego público…

Vandré: “Fui demitido. Depois, retornei. Briguei, briguei, briguei..”

Em algum momento, você foi considerado “criminoso”…

Vandré: “Fui demitido por causa da canção. E essa canção que foi mltivo de minha demissão até hoje é…Voltei por força de um despacho dado com fundamento na Lei de Anistia, como se eu fosse criminoso. Anistia é para criminoso – condenado por sentença transitada em julgado, se ele aceitar. Porque ele pode não aceitar. Aceitar a anistia significa aceitar-se criminoso, beneficiário de anistia”.

Você acha que a grande injustiça foi esta : em algum momento você ser considerado um criminoso ?

Vandré: “Injustiça não é a palavra…”

Você teria cometido um “delito de opinião” …

Vandré: “Não. Era subversão mesmo, sob certos aspectos, porque não havia nada mais para fazer naquele instante. Não me lembro. Mas as Forças Armadas, propriamente ditas, entenderam muito melhor do que a sociedade civil. Nunca tive nenhum problema com as Forças Armadas propriamente. Sempre houve uma consideração e respeito entre nós”.

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Hoje, você nega que tenha sido em algum momento um antimilitarista nos anos sessenta ?

Vandré: “Nunca fui antimilitarista. Nunca assumi tal posição. Fui lá e falei o que queria dizer, numa canção que foi dita e cantada no Brasil diante de todo mundo. A canção foi cantada para os soldados, também”.

O grande equívoco sobre Geraldo Vandré foi este : achar que você era antimilitarista ?

Vandré : “Não houve, na realidade, um grande equívoco. Houve uma grande manipulação porque, quanto mais proibido, mais sucesso fazia; mais se vendia; menos conta se prestava. É uma questão muito séria”.

Qual foi a última manifestação artística que despertou o interesse e a curiosidade de Geraldo Vandré no Brasil ?

Vandré: “Passei quatro anos e meio fora do Brasil. Quando voltei, havia uma coisa muito importante que era o Movimento Armorial. Havia o Quinteto Armorial e a Orquestra Armorial. A sonoridade era muito condensada. O resultado era importante. Para mim, foi a coisa mais importante que aconteceu nos últimos tempos. Não me lembro de outra coisa que tenha ido além daquilo”.

E da produção recente, alguma coisa chamou a atenção do Geraldo Vandré ?

Vandré: “Nada. Tiririca (ri). Dizem que vai ser o deputado mais votado de São Paulo. Está bom ? “.

Você disse, numa discussão na época dos festivais: “A vida não se resume a festivais”. Hoje, tanto tempo depois dos festivais, qual é o principal interesse do Geraldo Vandré ?

Vandré : “São as outras coisas que não estão nos festivais. Minha vida funcional – de que cuidei até me aposentar; as minhas relações com a Força Aérea, o meu projeto de fazer estas gravações na América espanhola…Tenho muita coisa para fazer”.

Outro grande nome que se celebrizou como opositor do regime militar na música brasileira foi Chico Buarque de Holanda. Você acompanhou o que ele fez depois ?

Vandré: “Chico teve um caminho diferente do meu. Não chegou a parar. Produziu muito durante aquela época em que eu estava fora. Chico ficou aqui. Saiu e voltou, saiu e voltou. Passei quatro anos e meio fora. Quando voltei, fiz uma tentativa de apresentação num programa de televisão. Não vem ao caso qual, mas não gostei do que aconteceu: o jogo de pressões que se fez em volta. Recuei. Depois, passou-se um tempo. A própria Globo queria fazer um festival. Chegaram a me procurar. Não tive interesse em participar”.

O que é que a produção de Chico Buarque significa para você ?

Vandré: “Chico é uma pessoa muito talentosa, muito importante. Um grande artista”.

Você perdeu o contato com todos os seus companheiros de geração na música ?

Vandré: “Nunca fui muito enfronhado no meio artístico. Fazia minhas coisas. Voltava para minhas atividades extramusicais”.

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É verdade que você ficou escondido na casa da família Guimarães Rosa antes de ir para o exílio ?

Vandré: “Eu saí de circulação. Depois que o tempo foi passando, as coisas vão ficando claras: as Forças Armadas propriamente ditas não tinham nada contra mim. Não tomaram nenhuma iniciativa contra mim. Quando fecharam o Congresso Nacional, no dia 13 de dezembro de 1968, eu estava indo para Brasília para fazer um espetáculo.Evidentemente, suspendemos o espetáculo. Vim de carro – guiando – até São Paulo. Eu estava à mão das Forças Armadas….Nunca deixei de estar. Mas claro que algo poderia acontecer: ao andar à toa pela rua, eu poderia de repente encontrar um “guardinha de trânsito” que quisesse fazer média. Há sempre alguém que quer tirar proveito de situações assim. Para evitar, saí de circulação. Durante um tempo, estive na casa de Dona Aracy (viúva de Guimarães Rosa – que tinha morrido meses antes). Fiquei lá porque, quando vinha para o Rio, como não tinha casa aqui, sempre ficava na casa de amigos e de pessoas conhecidas”.

Por que você tomou esta decisão tão drástica – de interromper uma carreira de tanto sucesso ?

Vandré: “Decidir sair do Brasil naquele ano de 1968. (N:Os mesmos agentes que prenderam Caetano Veloso e Gilberto em São Paulo,em dezembro de 1968, tentaram prender Geraldo Vandré. Mas, avisado por Dedé, à época mulher de Caetano Veloso, Geraldo Vandré conseguiu escapar a tempo) Eu tinha uma programação para fazer fora do Brasil. Tinha um contrato com a televisão Bavária,na Alemanha, para fazer um filme sobre Geraldo Vandré. Fui fazer. Passei um ano e meio pela Europa. Depois, voltei para o Chile – para onde eu tinha ido do Brasil. Havia muitos brasileiros lá ainda. De lá, fui para o Peru. Ganhamos um festival em Lima em 1972 com uma canção que era a única não cantada em espanhol. Era cantada em “brasileiro” mesmo. O Brasil não conhece a canção.Chama-se “Pátria Amada Idolatrada, Salve, Salve – Canção terceira”.

Você se lembra da letra ?

Vandré : “Eu me lembro. É uma canção que foi feita para ser cantada por um homem e uma mulher. Existe de caso pensado – coincidentemente – uma confusão de sentimentos entre a ideia da pátria e a ideia da mulher amada.O homem canta: “Se é pra dizer-te adeus/ pra não te ver jamais/Eu – que dos filhos teus fui te querer demais-/no verso que hoje chora para me fazer capaz da dor que me devora/quero dizer-te mais/ que além de adeus/ agora eu te prometo em paz levar comigo afora o amor demais”.

E a mulher, cuja imagem se confunde com a noção da pátria, responde:

“Amado meu sempre será quem me guardou no seu cantar/ quem me levou além do céu/além dos seus/e além do mais/ amado meu/ que além de mim se dá/não se perdeu nem se perderá”.

Os dois cantam juntos um para o outro. É um contraponto”.

Você foi constrangido a gravar, em 1973, um depoimento em que negava que fosse militante político. Qual foi o peso deste depoimento na decisão de Geraldo Vandré de interromper a carreira ?

Vandré: “Nunca fui constrangido a declarar que não tive militância política. Nunca tive militância político-partidária. Nunca pertenci a nenhum partido. Nunca fui político profissional. Não fui obrigado a dizer que não era militante. Nunca fui militante político. Nesta contemporaneidade em que estamos, eu me lembrei de um professor de Filosofia que dizia: “O homem é um animal político”. Sou uma qualidade de animal político que não depende de eleição. Vamos estudar a diferença entre política e eleição ?”.

Que lembrança você guarda deste depoimento ? Você foi levado para uma sala do aeroporto de Brasília e gravou um depoimento em que – de certa maneira – renegava ….

Vandré (interrompendo) : “É um assunto que ficou muito confuso. Não me lembro exatamente. Gostaria de ver a declaração…”

Você gravou o depoimento quando voltou do Chile…

Vandré: “Gostaria de ver, porque houve montagens. Era gravação. O que foi para o ar não sei”

O depoimento criou espanto na época, porque – de certa maneira – era você negando a militância política…

Vandré: “Nunca fui militante. Se engajamento político é pertencer a um partido, nunca pertenci a nenhum. Nunca fui engajado politicamente”.

Você obrigado a gravar este depoimento ? Fazia parte do acordo para voltar para o Brasil ?

Vandré: “Queriam que eu fizesse uma declaração. Não me lembro o que foi que disse. Mas eu disse coisas que poderia dizer. O que eu disse era verdade. Não disse nada que não tenha querido dizer. A TV Globo deve ter isso. Procure lá…”

A gente procurou e não encontrou….

Vandré: “Pois é: somem com tudo. Que loucura essa…Por quê ? Veja se acha o vt do Maracanãzinho. É o que tem Tom Jobim. É o mesmo vt. A minha parte sumiu. Por quê ? Fizeram uma retrospectiva do Festival. Botaram o Festival no Maracanãzinho- Tom,Chico, todo mundo, Cynara e Cybele. Mas,na hora de botar o Geraldo Vandré, usaram um filme feito na Alemanha, em que eu estava de barba. Não é certo”…

Talvez tenham recolhido o filme…

Vandré: “Para mim, é muito difícil acreditar que a TV Globo tenha se desfeito do filme. Não acredito. Devem estar guardando muito bem guardado”

Só para esclarecer este episódio sobre o depoimento que você gravou quando voltou do exílio : que lembrança exatamente você tem ? Quem pediu a você para gravar este depoimento ?

Vandré: “Aquelas declarações foram feitas para uma pessoa que se me apresentava como da Polícia Federal. Fiz um depoimento aqui. Depois, disseram que eu tinha de ir para Brasília. Cheguei ao Brasil no dia 14 de julho. Dois meses depois, apareço como se estivesse chegando em Brasília. Aquilo foi uma manipulação. O depoimento foi gravado antes. Gravaram-me descendo do avião em Brasília. Tudo muito manipulado. É esta a história dos vts: normalmente, temos esta doença. Estou falando aqui. O que vai ser mostrado vai ser uma seleção que a estação vai fazer. Não vai ser o que estou dizendo. Isso é muito sério”.

Para encerrar o assunto: o depoimento teve um peso na decisão de interromper a carreira ? Você ficou incomodado com aquilo ?

Vandré: “Não. Eu estava chegando e vendo como estavam a coisas.Não tinha menor noção da realidade. Tive de passar por um processo de adaptação no retorno ao Brasil”.

O grande mistério que existe sobre Geraldo Vandré durante todas essas décadas é, afinal de contas, o que aconteceu com ele depois da volta do exílio: você foi maltratado fisicamente ?

Vandré: “Não.Não”

Se você tivesse a chance hoje de se dirigir a uma plateia de jovens num festival,o que é que você diria a eles ?

Vandré: “Vamos ter de dar um tempo aí, não é ?…” (rindo)

Um “tempo” de quantos anos ?

Vandré: “Não sei. Agora, vocês vão votar para presidente, deputado, senador. Estão ocupados com outras coisas. Estou por fora”.

Que papel você acha que vai caber a Geraldo Vandré na história da música popular brasileira moderna ?

Vandré: “Nunca fiz este tipo de avaliação”.

Que papel você espera ter ? Você se acha suficientemente reconhecido ?

Vandré: “Obtive o reconhecimento que procurei e quis”.

Você em algum momento se arrepende de ter interrompido a carreira ?

Vandré: “Não. Porque raramente me arrependo das coisas que faço. Calculo bem, reflito bem, meço bem : quando faço é para ficar feito mesmo. Não existe arrependimento não”.

Para efeito de registro histórico: você, primeiro, não se considera antimilitarista…

Vandré: “Não…”

Segundo: você não foi maltratado fisicamente durante o regime militar…

Vandré: “Não…”

Terceiro: você disse o que quis no depoimento que você foi forçado a gravar quando voltou do exílio…

Vandré: “E em quarto: há o Quarto Comando Aéreo Regional…Tenho uma canção para o “exército azul”, a Força Aérea…(ri e exibe o brasão da Aeronáutica, impresso numa espécie de cartão de visita que traz, no verso, a letra de “Fabiana“). A aviação é muito bonita. A loucura é a aviação. Porque a maior loucura do homem é voar. Conhece loucura maior do que esta ? Não existe”.

Como é que surgiu a fascinação de Geraldo Vandré pela aviação ?

Vandré: “Desde pequeno, desde criança”.

Você gostaria de ter sido aviador ?

Vandré: “É. Não fui aviador militar. Não sou piloto, mas – de certa forma – sou aviador, porque me ocupo de assuntos da aviação. Uma coisa é aviador, outra é piloto. Você pode ser piloto, co-piloto, rádio navegador, mecânico de bordo, médico aviador. Há vários caminhos – não necessariamente tem de ser piloto…”.

O fato de você ter composto uma música em homenagem à Força Aérea criou um certo espanto. Hoje, você se hospeda em hotéis da Aeronáutica, como este. Nós estamos num ambiente militar…

Vandré :”Relativamente, porque este é um instituto de direito privado…”

Houve alguma mudança na postura do Geraldo Vandré ou não em relação às Forças Armadas ?

Vandré : “O que houve foi o reconhecimento de uma parte da sociedade que nunca tinha tido oportunidade de saber realmente quais eram as minhas posições”.

Em que situação Geraldo Vandré voltaria a um palco hoje ?

Vandré:”Depende de onde. Tenho uma programação na qual investo meu tempo e minhas energias : gravar um disco no exterior, num país de língua espanhola. É minha prioridade. Depois, vou ver minha programação para o Brasil. Escrevi umas trinta canções originalmente em “americano de habla hispânica”. Quero gravar num país de música espanhola, com músicos de lá. Minha prioridade comercial é esta. Para o Brasil, por ora, o projeto é a canção da Força Aérea mesmo – e um projeto sinfônico. A canção se chama Fabiana porque nasceu na FAB – em sua honra e em seu louvor”.

Você, hoje, então prefere compor peças sinfônicas ?

Vandré: “Tenho estudado música. Compus uma série de estudos para piano – aproveitando da técnica de uma jovem pianista de São Paulo. Mas a música ganhou outras dimensões. Passou a ser física e matemática. Ritmos do coração. Fica mais complicado,mas, para mim, é música”.

Você tem planos de gravar a música que você fez em homenagem à FAB ?

Vandré: “Claro. Já fizemos uma apresentação numa festa da Força Aérea em torno das comemorações da Semana da Asa, em São Paulo, com um coral de trezentos infantes. Uma coisa muito bonita. Com o tempo, vamos ver quais são alternativas que se colocam”.

Você declarou algumas vezes : “Geraldo Vandré não existe mais….”

Vandré ( interrompendo) : “Não, não declarei. Eu disse que ele não canta no Brasil comercialmente. Apresentei uma canção para a Força Aérea do Brasil. Não canto comercialmente no Brasil porque os problemas todos que tive de enfrentar resultaram de especulações comerciais: vendas clandestinas, câmbio negro, tudo isso. Quanto mais se proibia,mais se vendia. A sociedade, às vezes, tem essa doença”.

Você canta “Disparada” hoje, em casa ?

Vandré : “Não. Faz tempo que não pego num violão. Tenho de voltar a estudar”.

Que instrumento, então, você toca ? Piano ?

Vandré :”Não. Não sou pianista. Toco de improviso alguma coisa”.

Pelo menos duas músicas que você compôs são conhecidíssimas até hoje: “Disparada” e “Caminhando”.

Vandré ( interrompendo) : “Pelo menos duas…”

Se você fosse escolher uma, que música você escolheria como típica da produção de Geraldo Vandré ?

Vandré: “Disparada” é mais brasileira, tem uma forma mais consequente com a tradição das formas da música popular : a moda de viola. “Caminhando” já é mais urbana. É uma crônica da realidade. É a primeira vez que fiz uma crônica. Deu no que deu. A realidade não estava muito querendo ser…”

Retratada…A obra-prima de Geraldo Vandré qual é ?

Vandré: “Todas são iguais. Para mim, são todas iguais. Isso de obra-prima é uma questão de seleção e de predileção do público, os meios de comunicação e os chamados formadores de opinião”.

Mas você deve ter uma predileção pessoal…

Vandré: “Não tenho. É tudo igual mesmo”.

As peças sinfônicas você compõe como ?

Vandré : “As melodias, algumas harmonias…Para escrever em notas convencionais, preciso da escrita de pessoas que estão muito mais afeitas a esta tarefa do que eu.Eu levaria anos para escrever uma partitura. Jamais escreveria como alguém que faz parte de uma orquestra, lê e escreve na hora, à primeira vista. Hoje,estou dedicado a preparar um poema sinfônico cuja abertura coralística será a Fabiana, a canção que fiz para a Força Aérea”.

Você hoje se animaria a fazer um espetáculo para o público brasileiro ?

Vandré :”Não.Para o público brasileiro, só uma coisa muito especial”…

Em que situação você voltaria a se apresentar no Brasil ?

Vandré: “Chegamos a cogitar de fazer uma apresentação da Fabiana no Clube de Aeronáutica. É um dos projetos de que chegamos a nos ocupar. Mas até agora as coisas ficaram postergadas, porque o clube vai entrar em reforma. Vêm aí as Olimpíadas Militares. O clube vai ter de se adequar”.

Qual é a grande inspiração que você tem para compor essas peças sinfônicas ? O que é que motiva você a compor ?

Vandré: “Nunca dependi muito da palavra inspiração. Escolhia os temas. O fundamental para mim é a memória que tenho do que ouvia no cancioneiro popular, as músicas de desde a minha infância”.

O público brasileiro ainda vai ter chance de ver Geraldo Vandré cantando “Caminhando” e “Disparada” no palco ?

Vandré: “Isso é profecia. Não sou profeta”.

O que é que levou você a fazer uma música em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira, você, que era tido nos anos sessenta como antimilitarista ?

Vandré: “Era tido. Por quem ? Isso deveria ser perguntado para os que a mim me tinham como antimilitarista.Não sou militarista. Mas também não sou anti. Todos os países soberanos do mundo têm suas forças armadas. O que é que devemos fazer com as nossas ? Entregá-las para outras pessoas ? Vamos fazer isso ? Acho que não!

Chamo de “Fabiana” porque nasceu na FAB. Costumamos dizer assim: uma servidora da FAB é “fabiana”. A letra diz : “Desde os tempos distantes de criança numa força,sem par, do pensamento teu sentido infinito e resultado do que sempre será meu sentimento/todo teu/todo amor e encantamento/vertente.resplendor e firmamento/ Como a flor do melhor entendimento/a certeza que nunca me faltou/na firmeza do teu querer bastante/seja perto ou distante é meu sustento/ De lamentos não vive o que é querente do teu ser no passado e no presente/Do futuro direi que sabem gentes de todos os rincões e continentes/que só tu saber do meu querer silente/porque só tu soubeste, enquanto infante, das luzes do luzir mais reluzente pertencer ao meu ser mais permanente”.

O refrão é, coincidentemente, um contraponto de “vem/vamos embora/ que esperar não é saber” : “Vive em tuas asas todo o meu viver/ meu sonhar marinho / todo amanhecer”.

Termina a entrevista. Já são quase sete da noite. O Grande Solitário da MPB caminha em direção à escadaria que dá acesso à ala de hóspedes do hotel que funciona no Clube da Aeronáutica. Parte sozinho. Vai em companhia do único habitante do Brasil que Geraldo Vandré criou para si: o próprio Geraldo Vandré.

Posted by geneton at 02:27 AM

setembro 17, 2010

EUGENE CERNAN

ÚLTIMO HOMEM A PISAR NA LUA DIZ QUE NÃO CONSEGUE “ACEITAR” A SUPOSIÇÃO DE QUE NÃO HÁ VIDA EM OUTROS PONTOS DO UNIVERSO. E MAIS: DIZ QUE,NA LUA, DESCOBRIU A MARAVILHA DA TERRA

A GLOBONEWS reexibe, nesta segunda, às 15:30, no DOSSIÊ GLOBONEWS ,uma entrevista com um nome importante da corrida espacial.

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O último homem a pisar na Lua : crença em alguma forma de vida extraterrestre

O que é que um astronauta que pisou na Lua pode fazer, depois de voltar ao planeta Terra ?

Pelo resto da vida, ele vai se tornar uma raridade : são pouquíssimos os seres humanos que tiveram o privilégio de pousar os pés em outro corpo celeste, fora do nosso planeta. A Terra tem sete bilhões de habitantes. Apenas doze viveram esta aventura.

O grande risco: depois de viver uma experiência tão extraordinária – a de enxergar a Terra como um belo e minúsculo ponto azulado flutuando no espaço -, um astronauta pode cair na tentação de encarar tudo o que acontece aqui como pequeno, banal e irrisório.

As turbulências que alguns dos astronautas enfrentaram depois de retornarem à “vida normal” são compreensíveis, portanto.

Em última instância, só eles puderam constatar, “ao vivo”, como é imensa nossa insignificância diante da vastidão do universo.

Tive a chance de gravar uma entrevista com um personagem que entrou para a história da corrida espacial : o último astronauta a pisar no solo da lua.

Eugene Cernan comandou a missão Apollo XVII, em dezembro de 1972. Bateu um recorde : passou 78 horas explorando a superfície da lua.

A entrevista foi gravada no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, dentro de um avião que estava exposto numa feira de aviação executiva.

Cernan faz aparições, nos EUA e no exterior, como uma espécie de embaixador da Bombardier, a fabricante canadense de aviões.

Faço uma pequena provocação ao homem: digo que o escritor britânico J.G. Ballard uma escreveu que o grandes mistério, na verdade, é o planeta Terra, porque a única coisa que os astronautas encontraram no espaço foi poeira.

Cernan dá uma resposta curiosa. Diz que foi ao espaço para descobrir a Lua, mas, ao olhar para nosso planeta, teve a sensação de que, na verdade, estava descobrindo a Terra. Anos de preparação para a viagem não diminuiram o espanto diante daquela visão: como é possível que esta esfera flutue, s0litária, no espaço, sem nada que a prenda ?

O ex-astronauta diz que viveu uma experiência indescritível : “Vi um pequeno pedaço do universo que inclui esta nossa Terra. A beleza era absoluta !”.

Um trecho da declaração do último homem a pisar na Lua:

“Eu discordo desse comentário (do escritor britânico), pois o maior dos mistérios não é a Terra em si, mas o universo que nos rodeia. O conceito de tempo, através do qual nós, como mundo, evoluímos…Quando fomos à lua, disseram: “Nós queremos descobri-la.Queremos explorar a Lua.” Mas, na verdade, nós descobrimos a Terra! A predominância e a maravilha que é a Terra quando vista da Lua. Vê-se a lógica, a razão de ser, a beleza, a ordem da Terra girando em um eixo invisível, sem estar presa a nada, mas,ainda assim, girando de modo que, a cada 12 horas, vê-se o outro lado. Eis o mistério da Terra! Como chegamos aqui, o que estamos fazendo, para onde vamos? É esta a beleza, é esta a descoberta. Isso nos ensina algo sobre nossa Terra, sobre onde vivemos”.

O ex-astronauta não viu, em suas viagens ao espaço, qualquer sinal de vida extraterrestre, mas não dá a mão à palmatória: diz que se recusa a acreditar que não exista outras formas de vida em outros pontos do universo:

“Se a gente pensar de uma maneira matemática e estatística: há milhares de sóis e planetas no universo.E tem de haver alguma forma de vida em algum lugar , talvez parecida com a que temos na terra, talvez diferente. Se acreditamos em um Deus que criou todo o universo, como é que você e eu podemos ser tão maravilhados com nós mesmos ou tão egoístas a ponto de acreditar que este criador não decidiu criar vida em outro lugar deste universo ? Não consigo imaginar que nós, na Terra, somos a única forma de vida em todo o universo. Não consigo aceitar! ”.

Posted by geneton at 10:27 AM

setembro 09, 2010

JONATHAN STERNE

PROFESSOR DIZ QUE DIVULGAÇÃO DO ROSTO DE BIN LADEN RESOLVEU “PROBLEMA” DO GOVERNO AMERICANO DEPOIS DO 11 DE SETEMBRO: O INIMIGO PRECISAVA TER UMA FACE

A Globonews reapresenta, neste domingo, ao meio-dia e meia, no DOSSIÊ GLOBONEWS, uma entrevista com um professor que analisou um aspecto pouco avaliado do 11 de Setembro (o programa terá reprise também na segunda-feira, às três e meia da tarde):

Um professor americano, naturalizado canadense, causou surpresa ao meio acadêmico ao escolher,como tema de estudo, um tema aparentemente inusitado: a voz e a imagem de Bin Laden, o terrorista mais procurado do planeta.

Diretor do Departamento de História da Arte e de Estudos em Comunicação da Universidade McGill,em Montreal, no Canadá, o professor Jonathan Sterne chama a atenção para um detalhe :

o rosto e a voz de Bin Laden cumpriram, no “imaginário” americano, um papel importante depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, porque “personalizaram” um inimigo que parecia abstrato: ninguém conhecia os terroristas que jogaram os aviões contra o World Trade Center e o Pentágono. Bin Laden “preencheu” esta lacuna.

O rosto foi intensamente divulgado. Já a voz mereceu restrições : o governo Bush chegou a apelar às redes de TV para que elas não divulgassem as mensagens gravadas por Bin Laden. Motivo: as mensagens supostamente gravadas por Bin Laden poderiam trazer códigos secretos endereçados a terroristas, uma suposição que o professor considera inteiramente infundada.

De qualquer maneira, ele defende uma tese interessante sobre a voz e o rosto do superterrorista ( o professor escreveu um trabalho intitulado The Enemy Voice / A Voz do Inimigo ).

O incrível, o inacreditável, o extraordinário é como existe tanta gente que, por ignorância, por desinformação ou por um puro e tosco antiamericanismo, ainda é capaz de acreditar que os Estados Unidos perpetraram o atentado contra Nova Iorque porque precisavam de um “pretexto” para invadir o Iraque, por exemplo. Deus do céu, Deus do céu, Deus do céu, socorrei nossos ouvidos. Do que é capaz a mente humana….Se o governo Bush quisesse invadir o Iraque, bastaria deslocar tropas para lá. Ponto.

Um trecho da entrevista:

Qual o efeito do que o senhor chama de “repetição infindável” do rosto de Bin Laden em livros,revistas, TV e até em camisetas ?

Jonathan Sterne : “O governo dos Estados Unidos, durante a administração Bush, esteve particularmente interessado em divulgar o rosto de Bin Laden, para sacramentar a imagem do inimigo. Os ataques do 11 de setembro de 2001 foram praticados por gente cujos rostos eram desconhecidos do público americano. Eram “abstratos”. O que havia eram aviões batendo em edifícios. A função do rosto de Bin Laden – portanto – foi o de atribuir a ele uma “persona”, mostrar o rosto do inimigo, aquele a quem nos opomos. Quando essa imagem entrou em circulação – em 2001 já vivíamos a era da Internet e as imagens já circulavam promiscuamente -, o rosto de Bin Laden começou a aparecer em muitos meios, porque, por um lado, as pessoas viam naquilo algum sentido. Mas havia também os que queriam faturar, como no caso do papel higiênico com a imagem de Bin Laden – que é certamente muito mais caro do que qualquer outro…”.

Posted by geneton at 10:27 AM

setembro 04, 2010

ZIRALDO

ZIRALDO LANÇA ALERTA AOS PAIS : DEIXAR FILHO SOZINHO NO QUARTO COM COMPUTADOR É IGUAL A DEIXÁ-LO “NA ZONA OU NO CAIS DO PORTO”. E MAIS: “A HUMANIDADE É DÉBIL MENTAL”

Aviso aos navegantes: a Globonews reapresenta nesta segunda, às três e meia da tarde, no programa ALMANAQUE, uma entrevista em que Ziraldo levanta temas que merecem ser discutidos.

Sem medo de polêmica, o autor de livros infantis recordistas de vendagem lança um alerta aos pais: deixar filho adolescente ou pré-adolescente sozinho no quarto com um computador equivale a deixá-lo “na zona”. Deslumbrado com as maravilhas da Internet, Ziraldo faz esta ressalva: “Não se deve deixar computador no quarto do filho de jeito nenhum! O computador tem de ficar num lugar onde todo mundo passa”. Motivo: o mau uso que se faz da Internet pode atingir crianças e adolescentes.

“A humanidade - diz ele – é débil mental”.

Trechos da entrevista:

Artistas precisam de reconhecimento alheio. Você, a caminho dos setenta e oito anos de idade, ainda persegue este reconhecimento?

Ziraldo:”Sou o rei da carência! Mas melhorei muito. Vou fazer uma revelação. Por que é que trabalho tanto? Por que é que não paro de trabalhar ? Fiz dez páginas para os trinta e cinco anos da Playboy. Fiquei até de madrugada desenhando. Minha mulher dizia: “Ziraldo,pare com isso! Ficar desenhando…Você não tem de provar nada…”. E eu: “Claro que não tenho de provar. Estou pelo prazer de fazer”.

“Mas aí faço uma “análise esquizofrênica” – que é a seguinte: acho que sou ótimo. Enquanto todo mundo não achar que sou ótimo, tenho de lutar para poder provar. “Você não está vendo que sou ótimo?”. Se disserem “você é mais ou menos”, eu tenho de fazer de novo.Só pode ser isso! Não sou workholic não.Gosto de fazer o que faço.Como diria Cervantes criando Dom Quixote: meu repouso é o campo de batalha”.

Você foi criticado recentemente porque disse que a internet é “um antro de débeis mentais”.Você mantém ou retira esta declaração ?

Ziraldo: “Não! Eu mantenho! O pessoal que se chateou na internet é o pessoal que considera os internautas um clube. Não existe um clube dos internautas.O usuário da internet é a humanidade inteira. Não se pode dizer: “Sou um internauta. Você me respeite…”. O que é isso ? Já é uma forma de debilidade mental! Confirma a minha tese”.

“A internet vai mexer mais com o mundo do que a imprensa – de uma maneira extraordinária, fantástica. Hoje, não há uma informação que você procure que não esteja na internet! É inacreditável, uma coisa absurda. Mas o mal uso que fazem da internet é o mau uso que a humanidade faz da vida. A humanidade não sabe viver direito! A maioria do ser humano quer comprar feito. Não cria nada”.

“Como dizia Bernard Shaw, o homem de bom senso aceita o mundo como ele é : só os loucos querem mudar o mundo. Logo, todo progresso depende dos loucos. Isso é uma frase irônica do Bernar Shaw, mas o mundo caminha por causa dos cinco por cento que estão preocupados com o próximo, com o mundo, com o futuro”.

“Você veja a quantidade de jornais que se vendem por dia, numa população de cento e oitenta milhões de pessoas.O número de jornais que se vendem é mais ou menos a média de quem está pensando. Já na internet qualquer um entra. Eu estou mobilizado com um pessoal fazendo uma campanha : você ir para cama dormir e deixar o filho adolescente ou pré-adolescente no quarto com a internet ligada é melhor deixá-lo na zona ou no cais no porto – a filha, inclusive! Porque a internet é mais perniciosa e mais perigosa do que um bandido que vai pegar você. Diante de um bandido, você pode sair correndo. E, ali,você não grita socorro ao pai”.

“Um dos capítulos desse trabalho do pessoal quer avisar ao mundo que não se deve deixar computador no quarto do filho de jeito nenhum! O computador tem de ficar num lugar onde todo mundo passa. Porque você não sabe com que companhia o seu filho está andando. Acontece que – de madrugada – metade do mundo está acordada”.

“A quem você deixou o seu filho entregue ? É alguém que você não sabe quem é. Então, a internet é perigosa. Qualquer informação que você busca lá é sensacional. A internet é fundamental para o mundo. Não posso viver sem ela um segundo.Mas, o uso que faz da internet é o mau uso que se faz da vida! Não existe a categoria do internauta. Não é um clube.É a humanidade. E a humanidade é débil mental! Cinco por cento salvam a humanidade. O que é isso ? Agora, vão dizer: “Ziraldo falou que nós somos débeis mentais…”. Vocês são mesmo!”.

Você não teme ser acusado de olhar principalmente para o lado ruim, não para o lado bom da internet ?

Ziraldo: “Acabei de falar com você : a maior dádiva que o ser humano recebeu é o chip. O dia em que ele saiu da válvula para o chip….A Galáxia de Gutemberg agora é a Galáxia da Internet. Tenho a máquina de escrever, mas tenho toda a parafernália de que preciso. Não se pode viver um segundo sem ela.Qualquer coisa que eu preciso encontro lá, na internet. Eu baixo música !”.

“Deus do céu, que coisa impressionante. Quero ver um quadro, vejo. Tudo o que tenho de livro…Tenho todas as enciclopédias que você possa imaginar, todos os dicionários.Se eu quiser desenhar um cavalo de corrida. Tenho pastas com recortes. Outro dia, eu estava precisei desenhar um camarada num periscópio para um cartum que fiz para a Playboy. Meus livros não tinham. Pedi: me dá aí o que tiver de periscópio. Veio tudo! O que é um periscópio,como funciona : em cinco segundos! Não há hipótese de eu ser acusado de achar que a internet é um mal. É um bem.Mas a humanidade cria o bem,a necessidade e,depois, o crime”.

Você acha que já se livrou da fama de machista ?

Ziraldo: “Ah, já. Na verdade, não é a fama de machista. Não há jeito de você tirar de suas vísceras a certeza de que mulher foi um ser feito a seu serviço. Elas é que botaram na cabeça da gente: as tias, a mãe,as avós, as moças que faziam enxoval de casamento…Sua posição de achar que direitos são iguais e capacidade igual tem de ter a mesma remuneração, toda essa consciência de como deve ser esta convivência perfeita, você chega a ela pela razão,não pelo instinto…”

“Parece a todo mundo que um camarada que, instintivamente, tem um gesto de dominação sobre a mulher é machista. Não. É assim mesmo. É perigoso você falar sobre isso como é perigoso falar sobre a homossexualidade. Ainda que você acredite que esta não é uma qualidade nem um defeito do ser humano, mas uma característica, vão dizer : “esta frase que você fala é homofóbica!”. Você não sabe o que dizer. Porque podem achar homofobia!”.

“Já escrevi sobre esta coisa de nomear mal algo que parece justo mas que pode se perder pelo nome.Casamento entre homossexuais se perde pelo nome. Casamentos, no conceito que nós temos, são feitos na igreja,ainda são cristãos entre nós. É aquela coisa de casamento na igreja com Cristo. É casar com alguém do sexo diferente para procriar, para fazer família. O casamento tem essa coisa arraigada”.

“Se dois homossexuais querem viver juntos, sejam mulheres ou sejam homens, têm todo o direito. Os dois têm direito a todos os benefícios de uma união equivalente ao casamento mas deveria se chamar “união legal”. Sou a favor de união legal de homossexuais. Claro! Total e completamente. Mas não chamem de casamento. Porque não é casamento! Dizem :”Você também ? Você também”. Querem casar, mas este é detalhe de um direito líquido e certo – o de viver junto. É uma escolha que você faz”.

“Toda esse negócio de nome errado é engraçado. Fiz uma cartilha sobre trabalho infantil. “Ser contra o trabalho infantil”. Disse: “Pelo amor de Deus, não façam este negócio de ser contra o trabalho infantil! “. Trabalho dignifica o homem! Você diz a um cara da roça,no interior: “Sou contra que o teu filho trabalhe…” E ele dirá assim: “Você quer que eu crie malandro ? “. Sou contra é a exploração de mão-de-obra infantil! É este o nome da coisa! Mas os que são favoráveis à luta contra o trabalho infantil não admitem. Querem botar: “Sou contra o trabalho infantil”. Mas aí complica”.

Você foi duramente criticado porque pediu e recebeu do governo indenização por ter sido perseguido durante o regime militar.As críticas ainda irritam você ?

Ziraldo: “Profundamente! Claro! Como é que vou explicar esta história ? Nenhum de nós – de nosso grupo – pediu esta indenização. O Sindicato dos Jornalistas naquela época era muito atuante. O filho de Nélson Rodrigues convocou o departamento jurídico do Sindicato dos Jornalistas para preparar,com auxílio do Marcelo Cerqueira e do Barbosa Lima Sobrinho – que tinha sido avaliador deste projeto – a relação de jornalistas que tinham tido jornais fechados. Elencou um monte e nós entramos. O Departamento Jurídico pediu que a gente anexasse documentos. Fomos até Niterói, para ver o que a polícia falava da gente. Pegamos todo o dossiê contra nós, a relação das prisões que tivemos, as bombas no Pasquim. Alguém montou tudo isso com a ajuda do Departamento Jurídico e foi entregue. E eu nunca mais falei disso na minha vida! “.

“Começou uma crítica- até de amigos da gente – muito violenta. Alguns de nós renunciaram a esta indenização. Mas eu não me interessei mesmo. Nunca perdi emprego por causa do golpe militar e da minha luta. Perdi as coisas que eu fazia :perdi a Turma do Pererê – a revistinha que eu fazia-, perdi O Pasquim,perdi o Cartum JS. Foram fechando as coisas que eu fazia, fora as prisões que a gente teve,fora as bombas no Pasquim,fora as ameaças”.

“Dezenove anos depois, recebo um telefonema dizendo: “Você vai fazer indenizado”. Ah,mas este negócio está rolando ? Falei: “Oh, que coisa boa…Se é um direito que tenho, manda vir”. O relator do meu processo descreveu um herói tão maravilhoso…Se você visse o relatório justificando minha indenização, eu não sabia que eu era esse herói…Fui aplaudido.Quando fui saindo, numa entrevista, perguntaram o que é que eu estava achando. Eu disse: “Ah, um bando de bundas moles estão falando mal da gente.Porque, na hora da briga mesmo, ninguém se comprometeu. Agora vêm chamar a gente de canalha!”. Eu disse: “Ah,manda esses caras….”. Virou manchete de jornal. Virei um “canalha”. Quero dizer a você o seguinte: eu tinha de receber um milhão e duzentos, porque o processo corre desde o dia em que ele entra na pauta. Como ganhei a indenização, eles teriam de me pagar todos os atrasados de dezenove anos. Não recebi. Ninguém recebeu”.

“Determinou-se que o que eu ganhava na época equivalia a ganhar quatro mil reais hoje. Então, há cerca de dez,doze meses recebo quatro mil reais por mês. Com mil de aposentadoria do INSS, sou um aposentado aos 78 anos de idade de cinco mil reais por mês (…)Eu mereço,eu mereço. Mereço até mais do que isso. Mas nunca pedi, porque não gosto de ficar pedindo as coisas. Mas,se me pagarem este um milhão de duzentos mil de atrasados, vou aceitar. Eu treriade devolver pro Tesouro Nacional. Não tenho nem como devolver.Não existe uma forma jurídica de devolver este dinheiro, a não ser que eu dê para uma instituição de caridade”.

Posted by geneton at 10:33 AM

agosto 24, 2010

SÉRGIO BRITTO

O DIA EM QUE O GÊNIO ORSON WELLES FOI PERSONAGEM DE UMA CENA DE SEXO NUM BAILE DE CARNAVAL NO TEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO ( E OUTRAS CONFISSÕES, REVELAÇÕES E HISTÓRIAS APIMENTADAS DO ATOR SÉRGIO BRITTO)

O ator Sérgio Britto não perdoa : fala.

Ainda bem.

Aos oitenta e sete anos de idade, ele poderia até ceder à tentação de dar por uma encerrada uma carreira que já se estende por seis décadas e meia – nos palcos, nas telas, nos vídeos. Mas, não. Permanece cem por cento ativo.

Além de atuar nos palcos, encontrou tempo para escrever um livro de memórias recém-lançado pela editora Tinta Negra : “O Teatro & Eu”. Num país em que figuras públicas vivem trocando deferências, ele dá nome aos bois: fala de desafetos, fracassos, derrapagens, arrependimentos. Em suma: a matéria de que é feita a vida.

Trechos da entrevista sincera que ele nos concedeu, para o programa “Dossiê Globonews”:

Por que você diz – que já trabalhou na emergência de um hospital – diz que todo ator deveria ser médico ?

“Num hospital, especialmente numa emergência, você vê a vida na dramaticidade diária, cotidiana, de uma maneira especial. Trabalhei na maternidade na Santa Casa. Mas o pronto-socorro era o foco principal. Tive uma experiência incrível. Vi,um dia, um homem entrar morrendo. Gritava.A mulher o agarrava e ele gritava: “Eu me suicidei! Vou morrer porque eu te amava e você me traiu!”.E ela: “Não morra! Não morra! Fui uma estúpida! Eu te enganei porque sou uma estúpida!”. O homem morrendo e ela o sacudindo…Tivemos de arrancar a mulher à força,porque ela não largava o cadáver. O homem já era um cadáver – ela continuava a sacudir. Uma coisa inesquecível. A gente não consegue esta verdade no teatro. Porque o teatro não tem de reproduzir a vida. Teatro é interpretação da vida – é representação”.

Sinceramente: você se envergonha de quê, nesta carreira de ator ?

Sérgio Britto: “Todo ator tem escolhas erradas. Escolhi duas ou três peças em minha vida que não foram nada boas. Exemplo: “Corações a Ponto de Explodir”. O título era bonito. Era uma peça homossexual. Todo mundo,na época, queria fazer uma peça homossexual,porque era moda ousar. Mas fui muito infeliz.Mas a peça era muito ruim.Dessa, eu me envergonho,me culpo e bato a cabeça na parede para dizer: “Que porcaria!”.

Há uma peça que diz mas não concordo ter feito: “A Prostituta Respeitosa” – de Jean Paul Sarte. Eu fazia o papel de um negro. Naquela época, não senti tanto. Depois é que fui pensar: “Meu Deus, eu pintei minha mão e minha cara de preto, para fazer o papel de um negro, num país onde o ator negro existe; onde existem tantos atores negros esperando uma chance!”.Hoje, depois que a coisa passou, senti uma certa vergonha. Mas era o tempo….”.

Quem foi o maior mau-caráter que você já encontrou no teatro ?

“Ah, esse é fácil: não existe ninguém que possa competir com ele. Carlos Imperial era um mau caráter perigoso. Era uma pessoa que tinha o prazer de fazer o mal, fazer o errado – e ainda se vangloriava de ter feito. Eu ia viajar para a Europa.Mas,antes de viajar, fiz um contrato para que Carlos Imperial ficasse no meu lugar no Teatro Senac, enquanto eu viajava. Mandei o contrato para ele – e viajei no mesmo dia. Quando voltei, disse: “Agora, Imperial, preciso ficar com o teatro,porque tenho uma peça para fazer”. E ele: “Ah, mas não vou sair”. E eu: “Como assim ? Há um contrato assinado!”. E ele: “Mas não assinei o contato. Você se esqueceu de me mandar o contrato a tempo de eu assinar e você receber de volta. Não assinei. Para eu sair, você vai ter de pagar um mês de minha produção inteiro,todos os meus atores, tudo o que gasto no teatro. Depois, eu saio”. O pior de tudo é a raiva: que idiota que eu fui…As pessoas da classe teatral diziam: “Ah, não,não fique contra ele: Imperial é ótimo…”. Por que ? Porque Carlos Imperial era importante como divulgador. E as pessoas se entregam aos divulgadores….”.

Em quem você teve vontade de dar um soco mas não deu ?

Sérgio Britto : “Em Ipojuca Pontes. Namorava Tereza Rachel e foi assistir a um ensaio. Nós estávamos no palco ensaiando. Sem me pedir licença, ele entrou na plateia com uma prancheta e uma caneta e começou a anotar. Fiquei quieto, para não prejudicar Tereza. Porque, se fosse brigar com ele logo no início do ensaio, eu iria criar uma situação muito desagradável.Quando acabou o ensaio, ele virou pra mim e disse:”Você não vai poder estrear amanhã. Anotei os erros aqui.

A peça está toda defeituosa…”. Eu disse: “Seu Ipojuca,você entrou na plateia e tomou notas sobre o meu texto sem me pedir licença. Eu não disse nada para não chocar Tereza ou prejudicar o ensaio. Mas agora…saia daqui, antes que eu te dê um soco na cara!”. E ele saiu.

Não é que ele tenha acreditado que eu daria o soco na cara.Nem eu ia dar. Mas é uma forma de se expressar. Ipojuca nunca me perdoou. Sempre procurou me prejudicar: quando o Centro Cultural do Banco do Brasil, o CCBB, estreou em 1981, ele conseguiu fazer com que eu não ficasse lá. Inventou tudo o que pôde. Inventou,até, que eu tinha falado mal da mulher do presidente do Banco do Brasil. Eu não conhecia o presidente do Banco. Não sabia o nome do presidente – nem o nome da mulher…Ipojuca inventou que eu tinha falado mal. Criou uma situação impossível. Tive de sair”.

Qual foi o grande fracasso da carreira de Sérgio Britto e o que é que você aprendeu com ele ?

“Não chegou a ser um fracasso meu, porque não entrei na organização inicial da novela – Supermanoela. Fui chamado para fazer um papel quando a novela já estava em mais da metade. Não sinto que pe um fracasso especial meu. Mas é a participação num fracasso especial. A novela era tão ruim que Marília Pera deixou de fazer televisão anos seguidos.Ficou apavorada com a má qualidade da novela. E esta foi a minha participação na pior porcaria da minha vida”.

Você diz,em suas memórias, que o ator Osmar Prado foi “uma praga, uma maldiçao” para você, durante a peça “De Getúlio a Getúlio”. Igualmente, você reclama do que chama de “poder destruidor” da atriz Beatriz Segall. Chegou a hora de fazer um grande acerto de contas ?

Sérgio Britto : “Beatriz teve problemas sérios comigo na peça “As Pequenas Raposas”. Em “De Getúlio a Getúlio”, Osmar Prado fazia o papel de um ator doente, completamente psicótico, que representava Getúlio Vargas. Os dois me criaram grandes problemas. Mas o tempo passou. Vejo dentro do processo do teatro. Não tenho nada contra Osmar Prado nem contra Beatriz Segall. Pelo contrário: prefiro me lembrar de uma fase muito boa da Beatriz, em quem eu via uma atriz muito disponível, uma atriz querendo acertar, pedindo mais ensaio. Do Osmar eu continuo a ver o talento que ele tem. Aparece em cada novela que ele faz! É um ator poderoso. Agora, não sei se o que há nele: uma vontade de destruir. Em “De Getúlio a Getúlio”, ele fazia um ator muito perturbado – que começa a assumir demais o Getúlio.Num momento, ele ficava falando de Getúlio. A cena era engraçada, porque, justamente, ele começa a falar e eu dizia: “Paulo (era o nome do personagem) chega ! Você está assumindo Getúlio”. Um dia, ele se vira para mim e diz: “Quem é você? É o fantasma do pai do Hamlet ?”.

Eu disse: “Não!”. Mas aí eu parei e resolvi responder a ele. É caco ? Vou soltar o meu : “Não. Eu sou o diretor Sérgio Britto – que quer te dirigir. Mas você quer dizer bobagem. Vou sentar naquela cadeira, vou deixar você falar a bobagem que quiser. Mas aviso: não vou achar graça!”. Você sabe que ele teve um ataque de riso ? Neste dia, ganhei de Osmar Prado”.

Qual foi a cena mais impublicável que você já testemunhou, dentro ou fora de um palco ?

“Nós estávamos no Teatro Municipal , num baile de carnaval. De repente, vimos Orson Welles agarrando e mordendo uma mulata, numa aflição louca. Não queria ver nada: agarrava a mulata, foi descendo, se ajoelhou. Nós vimos o que ia acontecer. A turma em volta foi fechando. Fez uma coisa tão fechada que Orson Welles desceu e meteu a língua na mulata. E nós o protegemos”.

Quem você viu domindo na plateia de uma peça ? E você já dormiu profundamente na plateia de algum espetáculo?

Ultimamente, tenho cochilado. Mas não tem sido culpa minha: os espetáculos é que andam muito ruins. Nada no Brasil anda muito bem. Por que é que o teatro seria privilegiado ? O teatro também não anda muito bem. Tenho visto espetáculos que me dão um pouco de sono. Cochilo. Mas dormir mesmo não. Mas Pierre Cardin dormiu. Estávamos no balcão.E ele ameaçou cair lá embaixo. Ficamos todos preocupados. Ao fim do espetáculo, ele foi falar com Bob Wilson. Tínhamos visto o espetáculo “Cartas para a Rainha Vitória”. E ele elogiou para Bob Wilson: “Que maravilha!”. O espetáculo durava seis horas. E Pierre Cardin: “Você nos manteve atentos por seis horas…”. Fiquei olhando a coragem de Pierre Cardin de mentir.Não precisava exagerar. Porque ele tinha dormido”.

Uma pergunta pessoal: por que você de repente tentou se matar ? Você já estava ali – jovem,ainda – fazendo o que todo ator faz, ou seja, se sacrificar para chamar a atenção dos outros ?

Sérgio Britto: “Naquele dia,eu tinha ido ao baile do High Life. Apagavam a luz. Ficava tudo escuro. Eu era um rapazinho. Uma mulher lá aproveitou a escuridão, avançou em mim e me comeu.Eu estava meio bêbado. Estava num hotel de Copacabana. A família tinha ido à praia. Fiquei sozinho. Quando a família saiu, eu me levantei, peguei uma lâmina e cortei os pulsos. Mas não pensei: “Ah,quero morrer. Que desespero…Vou me exibir…”. Não. Havia em mim alguma coisa que estava querendo se libertar. Eu queria me libertar de quê ? Posso não ter raciocinado na hora,mas,logo depois, eu sabia do que era: eu queria fazer teatro, mas a família estava me empurrando para a medicina. Eu estava estudando medicina porque eles queriam, não porque eu queria. A primeira imagem dessa vontade de sair dessa prisão foi cortar os pulsos”.

Você já namorou homens e mulheres,mas recusa o rótulo de bissexual. Prefere ser chamado de homossexual. Por que esta diferenciação ?

Sérgio Britto : “Se uma pessoa tem as duas opções sexuais na sua vida, esta negócio de bissexual é ridículo. Para quem transa com mulheres mas transa com homens, é lógico que a relação que não é a habitual e não é a esperada acaba por ser a mais importante. Não adianta negar. O bissexual vai negar. Aquele que tem uma vida dupla vai dizer : “Não,é assim mesmo:sou bissexual, gosto tanto de mulher quanto de homem”. Não é verdade. Pode gostar de mulheres, mas gosta mais de homens, porque, senão, não teria esta outra busca, esta outra forma de vida sexual. Não existe mistério. O que existe é o homossexual se defendendo com a palavra bissexual.Não quero que me chamem de bissexual. Quero que me chamem de uma pessoa que tem experiências em vários setores da vida sexual, já teve mulheres, já teve homens – e continua em aberto. Estou aí. Vamos ver o que é que dá”.

O grande dramaturgo Nélson Rodrigues disse que, se pudesse escolher um epitáfio, escolheria o seguinte; “Aqui jaz Nélson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”. Se você pudesse escolher um epitáfio, qual seria ?

Sérgio Britto : “Aqui jaz Sérgio Britto – que trabalhou em teatro sempre com muito prazer. Nem pensei : saiu”.

Posted by geneton at 10:36 AM

agosto 19, 2010

BETINHO

A CRÔNICA SECRETA DA GUERRILHA : UM BRASILEIRO DESEMBARCA EM CUBA COM DÓLARES ESCONDIDOS DEBAIXO DA ROUPA.MISSÃO: DEVOLVER O DINHEIRO AO GOVERNO DE FIDEL CASTRO. NOME DO BRASILEIRO: HERBERT DE SOUZA, O BETINHO

O nome do sociólogo Herbert de Souza voltou esta semana ao noticiário: treze anos depois de morto, foi oficialmente declarado anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Tive a chance de entrevistá-lo sobre um capítulo pouco conhecido da história da luta armada contra o regime militar:

O movimento que o ex-governador Leonel Brizola tentou organizar no exílio para combater os militares que tinham tomado o poder no Brasil em 1964 teve pelo menos um financiador – o governo de Fidel Castro – e um pombo-correio, encarregado de fazer as negociações sobre a ajuda financeira em viagens clandestinas para Cuba : o militante Herbert de Souza,o Betinho, famoso anos depois como lider da Campanha Contra a Fome.

O célebre ‘’Ouro de Moscou’’ na verdade era dólar de Cuba.

Betinho foi o primeiro dos exilados brasileiros a ir do Uruguai para Cuba em missão clandestina em busca do apoio do governo de Fidel Castro ao movimento que Brizola pretendia liderar contra o regime militar brasileiro.

Meses depois, já afastado do núcleo brizolista, Betinho terminou se envolvendo de novo com os dólares de Cuba. A Ação Popular (AP) – grupo a que Betinho pertencia – tinha desistido da guerrilha.

Resultado : Betinho voltou a Cuba com dólares camuflados pelo corpo, amarrados em cintas por baixo da roupa, porque queria devolver aos cubanos a parte que coube à AP no pacote de ajuda oferecida pela multinacional guerrilheira na época em operação em Havana.

A história da ajuda externa aos movimentos de combate ao governo militar no Brasil não foi cem por cento contada. Pela primeira vez, Betinho fala em cifras. Deixa no ar um tema para debate : neste depoimento exclusivo, diz que não vê problema ético algum em ter botado a mão nos dólares de Cuba, porque movimentos politicos de todas as tendências ideológicas recebem ajuda externa.

GMN – Como foi feita a viagem a Cuba para articular o apoio cubano à resistência ?

Betinho : ‘’Fui pedir o apoio cubano ao grupo liderado por Brizola, no Uruguai .Tive contato, em Cuba, com o comandante Piñero, o homem-forte desse esquema cubano de contatos com movimentos no exterior. Fui a Cuba para tratar do treinamento de brasileiros – e também do apoio financeiro de Cuba ao movimento. Fiz o primeiro contato. Brizola mandou emissários para dois lugares : para a China e para Cuba”

GMN-Por que você foi escolhido ?

Betinho : ‘’Tínhamos, no Uruguai, um ‘’Comando da Revolução’’, grupo que coordenava, junto com Brizola, as medidas da luta contra a ditadura no Brasil. Eu era um dos que integravam o grupo. Alguém de dentro do grupo tinha de ir a Cuba. Eu fui’’.

GMN – Há documentos secretos americanos que falam na ação conjunta de governos militares sul-americanos na perseguição a exilados no exterior. Você sentia que corria algum risco físico ?

Betinho : ‘’Algum risco a gente corria, porque nosso esquema era precário. Havia uma mala de fundo falso, usada para trazer dinheiro de Cuba. Depois, descobriu-se que essa mala era de um modelo só. Bastava alguém chegar ao Aeroporto para saber : lá vem a mala de Cuba..Era um esquema primário, tanto por parte de Cuba quanto de nossa parte. Fiquei envolvido nesse processo no Uruguai por onze meses’’.

GMN – Um relatório da CIA, divulgado há anos, diz que o grupo liderado por Brizola recebia ajuda de Cuba através de portadores que traziam ‘’dólares americanos’’. A CIA estaria se referindo a você ?

Betinho : ‘’Eu não trouxe o dinheiro. Só fiz o contato. Outros foram a Cuba e trouxeram. Não me lembro quem. Ou então Cuba entregava o dinheiro’’.

GMN- O próprio Brizola reconheceu, numa entrevista à TV em Porto Alegre, logo depois da volta do exílio,que houve uma ajuda de Cuba,’’modesta e pequena’’. Há versões desencontradas. Quanto era ?

Betinho : ‘’Eu nunca soube dessas quantias. Mas, pelo que conheco da época, milhão não era algo que estivesse ao alcance de Cuba. Porque Cuba tinha problemas de dinheiro, principalmente em dólar. Cuba tinha era a máxima boa vontade em ajudar. Brizola controlava esse dinheiro com minúcias de centavos. Porque era a subsistência do grupo. Tinha gente que estava no Uruguai por conta da chamada ‘’revolução’’ que iríamos fazer. Não tinham emprego. Brizola pagava alojamento e comida para uma turma’’.

GMN -Mas você não tratou de quantias com o comandante cubano para o grupo de Brizola ?

Betinho : ‘’A remessa do dinheiro já não foi feita comigo. Outros é que entraram no circuito. Se eu falar em valor, é um chute. Não tenho elementos. Mas eu chegaria quase a garantir que um milhão de dólares estava fora do alcance de Cuba. Não é que Cuba não tivesse o desejo de dar este apoio. Não tinha era dólar’’.

GMN – O que entrou,então,foi dólar de Cuba para os exilados no Uruguai…

Betinho – ‘’E muita economia, muita contribuição de bens do próprio Brizola. Porque ele tinha algum recurso. Não era uma pessoa pobre. Eu diria que foi pouco dinheiro que correu aí. Tão pouco que não deu margem a corrupção. Eram dezoito pessoas que iam fazer a guerrilha. O dinheiro era basicamente para passagens’’.

GMN- Quem trouxe, então, o dinheiro depois do primeiro contato que você teve em Cuba ?

Betinho – ‘’Emissários. Vinha tudo em mãos. Não se tinha acesso a banco nem conta na Suíça. Eram notas de vinte a cem dólares. Juntava-se tudo, punha-se numa mala de fundo falso. Mas nunca peguei numa mala dessas’’.
Que tipo de mensagem você levou para Fidel Castro ?

Betinho – ‘’Viajei do Uruguai para Cuba com uma carta de Brizola para Fidel Castro. Era uma carta simples : dizia que eu estava indo como emissário; pedia apoio. A carta era de uma página. Dizia : ‘’Prezado…’’. A palavra seguinte era recortada. Adiante,dizia : ‘’Nós estamos enviando o emisssário….’’. E vinha outro recorte. Todos os nomes e referências eram recortados e deixados em outro envelope.

O problema é que os dois envelopes iam com a mesma pessoa ! Quem por acaso interceptasse o emissário só teria o trabalho de encaixar as palavras recortadas no espaco correspondente. Ficaríamos desmoralizados pelo primarismo do nosso sistema de comunicação! Um código deve sempre ter algo a ser decifrado.O nosso não tinha : era só colar as palavras!”.

GMN: Quantas missões você cumpriu ?

Betinho : ‘’Voltei a Cuba não como emissário de Brizola, mas em nome da Ação Popular, para devolver dinheiro. Talvez eu tenha sido o único,na história humana….

A razão por que devolvi dinheiro a Cuba foi ideológica : nós, na AP, tínhamos feito a conversão ao maoísmo. Acontece que o maoísmo tinha uma diferença ideológica com a guerrilha. Como já não íamos usar o dinheiro de Cuba para fazer o treinamento de nossos militantes, a direção resolveu,então, que os dólares deveriam ser devolvidos.

Defendi esta posição : disse que tínhamos recebido o dinheiro para treinar. Se não íamos treinar, então seria desonesto gastar o dinheiro de Cuba com outra coisa. Voltei, então, a Cuba levando o dinheiro em cintos embaixo da roupa. Eram,se não me engano,vinte mil dólares.

Os cubanos ficaram totalmente surpresos com a devolução! Tive um encontro com um auxiliar direto do comandante. Os cubanos ficaram me olhando, sem ter muitas palavras. Além de eu dizer que estava devolvendo o dinheiro – algo que jamais aconteceu lá – eu ainda dava as razões : ‘’Somos maoístas’’.

GMN – Houve casos de outros grupos que tenham devolvido dinheiro ?

Betinho : ‘’Tenho notícias de gente que fez o contrário : recebeu dinheiro da China mas armou uma empresa de táxi no Uruguai. A gente soube que aconteceu. Não ouvi falar de nenhum outro caso de devolução de dinheiro’’.

GMN – Como é que você chegava a Cuba ?

Betinho : ‘’Se a gente estava no Brasil, passava pelo Uruguai e ia para a Argentina. De lá, pegava um vôo – que passava por cima do Rio – rumo a Paris. Em seguida, Praga. Depois, Irlanda. Por fim,um pouso no Canadá, onde se pegava o vôo direto para Havana. Eram vinte e seis horas de viagem! “.

GMN – Você faria tudo de novo ?

Betinho : ‘’Faria por uma razão : naquele momento,havia duas atitudes possíveis. Uma atitude era dizer que o golpe era uma fatalidade que tinha vindo para ficar,não havia nada o que fazer, ’’vamos cuidar de nossas vidas’’. Houve gente progressista que tomou este caminho.

A outra atitude era dizer : temos de lutar! Era tudo uma decisão voluntarista de reagir,uma postura ética e democrática: querer acabar com a ditadura e fazer alguma coisa. Mas que experiência nós tínhamos ? Nenhuma! Nossa experiência era de política institucional. Trabalhamos com o Congresso, com mídia, com partidos politicos. Havia uma juventude que queria lutar. Era meio no grito’’.

GMN – Seu nome é sempre associado à etica. Como é que você julga a conduta ética, no caso da devolução do dinheiro ?

Betinho :’’A discussão que tivemos na AP na verdade tinha um fundo ético. Tínhamos mil razões para ficar com esse dinheiro. Nós estávamos precisando. O dinheiro foi dado para a Revolução ! Companheiros chegaram a defender essa tese. Diziam : a gente fica com o dinheiro, avisa a Cuba que vamos empregá-lo para a Revolução. E vamos,sim ! Respondi: ‘’Mas este dinheiro foi dado para determinada coisa – que não fizemos!. Além de tudo, estamos agora numa posição política diferente dos cubanos. Não é justo nem ético ficar com esse dinheiro’’.

O que pesou na decisão não foi a racionalidade política, mas a racionalidade ética. Como eu era da direção da AP,disse : ‘’Não tenho condições de ficar na coordenação se a gente pratica uma coisa dessas. Não aceito’’.

GMN : Qual é a importância que você dá, hoje,ao apoio cubano à resistência clandestina contra a ditadura militar no Brasil ?

Betinho : ‘’Cuba estava exportando para os outros movimentos a realidade cubana, assim como a China exportava a realidade chinesa. Não sabiam o que era o Brasil.

Cuba nos vendeu – e nós compramos ! – uma estratégia de guerrilha. Ora,guerrilha sem ampla mobilização popular é impossível ! Imaginamos uma consciência nacional anti-golpe e anti-militar. Em cima dessa consciência supostamente existente na sociedade brasileira, a gente daria uns tiros…Mas a maioria dos grupos que pregavam a luta armada nem arma tinha! Era tudo expressão de um desejo – que custou caro. Porque houve prisões, tortura, desespero, crise pessoal e familiar no meio de tudo’’.

GMN : Você vê hoje alguma ingenuidade na tentativa de organizar no Uruguai uma resistência ao regime militar brasileiro ou aquela era a única saída para o grupo,na época ?

Betinho : ‘’Sou tentado a escolher a segunda opção.

Em 1964, o golpe na verdade foi dado com ampla cobertura da mídia e da opinião pública. O confronto teria de ser feito a partir de uma iniciativa enérgica do próprio governo Jango, algo à la 1961, quando Brizola arrancou uma reação de coragem (N: Betinho se refere ao movimento liderado por Brizola depois da renúncia de Jânio Quadros para garantir a posse do vice constitucionalmente eleito, João Goulart).

Se Jango tivesse autorizado ações militares que foram propostas a ele em 1964, o golpe não prosperaria. Porque os golpistas eram tímidos. Eram quase que institucionais. Não tinham a experiência de 1930, quando houve arma, tiro e morte. Nem no Chile,onde o golpe foi avassalador. Aqui, eles iam fazer uma marcha. Tanto é que o golpe acabou tendo uma versão parlamentar’’.

GMN : Se alguem disser a você hoje que era errado receber dinheiro de Cuba para fazer guerrilha no Brasil ,que resposta você dá ?

Betinho : ‘’Digo : errado era fazer guerrilha. Uma revolução era essencialmente uma ação nacional. É preciso ter bases e recursos nacionais. De qualquer maneira,a história da revolução mundial é uma história de apoios internacionais,tanto do lado da esquerda quanto do lado da direita – e da social-democracia também !

Uns vivem ajudando os outros.Quero dizer que não tenho problema nenhum a esse respeito.O principal problema é político : um movimento que não conseguia levantar apoios nacionais – e passava a depender fundamentalmente de apoio externo – começava mal’’.

(Entrevista publicada no livro “Dossiê Brasil”, Editora Objetiva, esgotado)

Posted by geneton at 10:40 AM

agosto 07, 2010

ZIRALDO

ZIRALDO SOLTA O VERBO, DIZ POR QUE SE RECUSOU A PARTICIPAR DA “FLIPINHA” (“ODEIO DIMINUTIVO”) E LANÇA DESAFIO: QUER SABER SE A FLIP TERIA CORAGEM DE CONVIDAR AUTORA DE HARRY POTTER PARA “FLIPINHA”

O cartunista,escritor, artista gráfico e polivalente Ziraldo vai ser personagem de uma entrevista no ALMANAQUE - em breve,na Globonews. Mas, enquanto a entrevista não vai ao ar, ele esquenta os tamborins: diz por que se recusou a participar da “Flipinha”, a versão infantil da Festa Literária de Paraty:

“Já fui convidado uma vez. Com muita honra, fui. E achei ótimo ter ido à Flip. Mas,este ano, o que aconteceu foi o seguinte: me mandaram um convite para que eu fosse para a Flipinha. Primeiro, o seguinte: eu odeio diminutivo ! (Depois da publicação do post, Ziraldo entrou em contato para esclarecer que,na verdade, implica com diminutivos que transmitem ideia de redução). Escrevo para criança. “Flipinha” já é uma coisa que reduz o que escritor para criança faz. Odeio oficina. Odeio esse negócio de fazer oficina com criança. Não sou animador. Quero ajudar a transformar o Brasil num país de leitores. Quero participar desta festa: convencer as pessoas de que ler é mais importante do que estudar. Mas para essa coisa de ficar sentado com criança fazendo figurinha não tenho paciência nenhuma. O convite que me fizeram foi: venha para a “Flipinha”. Eu me lembrei da história de Aracy de Almeida. Era namorada de Fernando Lobo. Um dia, numa boate, ela passou diante de uma mesa em que estava Fernando Lobo – que a havia abandonado. Fernando Lobo disse: “Olá…”.Aracy parou e disse: “Não sou mulher de olá…”.

“Falo para o pessoal da Flip : “Não sou mulher de Flipinha!” ( imita voz de Aracy de Almeida). Convidem J.K. Rowling (autora de Harry Potter), que escreve para criança, para ver se ela vem da Inglaterra para a “Flipinha”! Vocês me respeitem. Convidem para eu ir para a Flip. Mas para “Flipinha” não vou. Disseram: “Mas você vai para a Jornada de Passo Fundo”. Eu disse: “Não. Nunca me convidaram para “Jornadinha”. Sempre me respeitaram: me convidam para a Jornada. Chego lá, falo para criança. Não faço oficina. Não convidam ninguém para “jornadinha”. Não existe. Isso é diminuir o escritor. Pelo seguinte: os escritores que escrevem para criança no Brasil são tão importantes – ou mais – do que a maioria dos escritores que escrevem para adulto. Temos Ana Maria Machado, Rute Rocha, Bartolomeu Campos de Queirós. Poderia citar aqui uma infinidade de escritores. O Brasil tem um elenco de escritores para criança mais importante do mundo. Antônio Skármeta, o autor de O Carteiro e o Poeta, veio conversar comigo aqui no Brasil: não conhecia um autor infantil chileno ! É inacreditável. Aqui, no Brasil, não. A gente convive e se respeita. Os organizadores vão chamar você – um escritor infantil que vende o que vendo de livros e tem a repercussão que eu tenho – para participar da “Flipinha”? Que “Flipinha” ? Não vou para “Flipinha”. É isso o que aconteceu”.

Posted by geneton at 10:45 AM

agosto 06, 2010

GILBERTO FREYRE

DO CADERNO DE ANOTAÇÕES : O RELATO DE UM PUNHADO DE ENCONTROS COM GILBERTO FREYRE, O BRASILEIRO QUE TINHA CORAGEM DE SE DECLARAR PUBLICAMENTE UM “GÊNIO”. E ERA.

Gilberto Freyre merece um monumento, pago pelos repórteres pernambucanos. A homenagem só não se concretiza por duas razões. Primeira : o homem já é incensado como o maior sociólogo já surgido na Terra de Vera Cruz. Não precisa de novos títulos. Segunda : onde é que repórteres mal pagos iriam desencavar dinheiro para financiar a construção do monumento ? Em todo caso, o monumento se justificaria, porque Freyre era um desses (raros) personagens em que os repórteres podiam apostar todas as fichas,sem medo de errar. Pule de dez : quem o procurava para uma entrevista voltava para a redação com uma declaração interessante -registrada no bloco de anotações ou preservada para a posteridade na fita cassete. Era tecnicamente impossível sair de mãos vazias de uma incursão pelo reino do Mestre de Apipucos.

Lá estava ele – repousado numa poltrona do Solar de Apipucos ou enfurnado no salão de tapete azul da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, pronto a ditar belas frases para os repórteres. Quando ditava uma declaração,metia na frase aqueles advérbios de modo surpreendentes;aqueles adjetivos que pareciam ter sido criados por ele. Gostava de discorrer sobre o “tempo tríbio” – um princípio tipicamente gilbertiano.O tempo não é só o presente.É uma interseção de passado,presente e futuro.

O MESTRE FALAVA
COMO ESCREVIA

O Solitário de Apipucos era um caso raríssimo de gente que fala como escreve. Quando transcreviam as declarações, os repórteres tinham a sensação de que ali estava um artigo do Mestre, escrito com todas as belas firulas de estilo que ele cultivava como poucos. Freyre era um dedicado jardineiro da Última Flor do Lácio. Como se não bastasse, fazia a alegria de editores com declarações que, hoje, seriam catalogadas no rol das crenças politicamente incorretas. Qualquer iniciado nos mistérios do jornalismo sabe que declaração politicamente incorreta sempre rende boa matéria. Um exemplo ? Gilberto Freyre dizia que a presença de analfabetos era saudável para a cultura brasileira. Porque só os analfabetos eram capazes de dar à cultura de um país um saudável toque primitivo. Enquanto o resto da humanidade dizia que o analfabetismo era um mal a ser erradicado, Freyre respondia que não,calma,não é bem assim. O analfabetismo eventualmente poderia ser saudável. Os militantes da Crença Politicamente Correta espumavam de raiva diante de tiradas como essa. Freyre parecia dizer,em resumo,que nada é tão simples quanto faziam parecer os esquemas mentais “politicamente corretos”.

Eu, mero Coletor de Declarações Alheias, fui personagem de um incidente jornalístico com o Mestre de Apipucos. Procurei-o na sala da presidência da Fundação Joaquim Nabuco para uma entrevista, na semana em que ele comemorava setenta e sete anos de vida, em 1977. O Mestre andava ressabiado com a imprensa. Tinha pegado uma briga com a revista “Veja”, por conta de inexatidões no texto de uma entrevista. Mas disse “sim” ao meu pedido. Estudante de Jornalismo, eu era repórter da sucursal de “O Estado de São Paulo”. Fazia eventualmente entrevistas para o finado “Jornal da Cidade”.

O GÊNIO INTERROMPE A
ENTREVISTA.QUERIA
CONSULTAR O DICIONÁRIO

Freyre me surpreendeu três vezes durante a entrevista. Primeiro, perguntou, textualmente : “Quais são os seus estudos ? “. Do alto dos meus vinte anos de idade, devo ter desapontado o Mestre ao informar que, àquela altura, meus estudos se concentravam no terceiro ano de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Em seguida, ao falar sobre o presidente americano Jimmy Carter,ele interrompeu a entrevista para pedir à secretária que trouxesse um exemplar do Dicionário do Aurélio. Depois de checar todos os significados da palavra “estonteado” , viu que este era o adjetivo ideal para definir as atribulações do presidente diante da política internacional.Olímpico,indagou ao repórter : “Viu como uso o dicionário ? “.

Vi,sim. A lição ficou. Devo ter matutado, intimamente: se o Mestre de Apipucos consultava o Dicionário assim sem a menor cerimônia, diante de visitas, o mínimo que eu deveria fazer dali para frente seria pedir socorro ao Pai dos Burros sempre que tivesse a menor dúvida sobre o significado de uma palavra no meio de uma frase. Thank you,Master.

A terceira surpresa viria adiante. Fiz uma lista de personalidades que o Mestre deveria definir em uma frase. Perguntei como ele definiria o arcebispo de São Paulo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns – uma figura que, na época, frequentava quase que diariamente as páginas dos jornais,na condição de um dos porta-vozes da oposição ao regime militar.Freyre me devolveu a pergunta : “Quem é mesmo ? “.

Somente um marciano recém-pousado às margens do Capibaribe não saberia dizer quem era o arcebispo de São Paulo. Freyre fez de conta que não sabia. Preferiu recorrer à ironia, com o ar mais inocente do mundo.Quem o visse fazer a pergunta pensaria que ele não sabia de verdade quem era Dom Paulo.

DESASTRE.O REPÓRTER OUVE MAL
A PALAVRA DE FREYRE

O desastre viria depois. Perguntei : “Qual o sabor destes 77 anos ? “.
O homem respondeu : “Eu quase não faço diferença entre 77 anos,67,57. Pela simples razão de que tenho uma tal saúde que preciso, a cada momento, dizer a mim mesmo: lembre-se de que é velho,porque não me sinto velho”.

A causa do incidente em que me vi involuntariamente envolvido foi a última frase. Freyre jura que disse que não se sentia “velho”. Ao transcrever a fita, entendi que ele tinha dito que não se sentia “bem”. Assim a entrevista foi publicada : com a palavra “bem” no lugar de “velho”.Vaidosíssimo,Freyre tremeu nas bases ao ler que teria declarado não estar se sentindo “bem”.

A ira do Mestre de Apipucos desabou sobre os ombros deste Coletor de Declarações Alheias. Abro o “Diário de Pernambuco” do domingo seguinte à publicação da entrevista – primeiro de maio de 1977. Eis o que o Mestre escreve, logo no primeiro parágrafo : “Concedi há pouco a jovem jornalista que me pareceu -e é – inteligente e de algumas letras, a entrevista que com muito empenho me solicitou.Entrevista gravada.Mas a gravação não é garantia absoluta de que o entrevistador apresente as palavras do entrevistado na sua exata e desejável pureza.Acontece a resposta do entrevistado à primeira pergunta desse simpático entrevistador não se apresentar de todo exato.(…)O que mostra que o tradutor de gravações,como outros tradutores,pode ser um traidor.Inexatidão que me faz pensar na força de preconceitos sobre os próprios jovens inteligentes.Um desses preconceitos o de a velhice ser fatalmente uma fase da vida de achaques e de dissabores”.

Freyre dedicou todo o artigo ao tema. Citou o exemplo de Picasso(“criativo e saudável” depois dos noventa), Pablo Casals, Bertrand Russel. Partiu da suposição – equivocada – de que eu, jovem, alimentava preconceitos contra velhos. Terminou dizendo que tinha ânimo de sobra para “viver,escrever, pintar, ler,beber um pouco de vinho,saborear uns tantos quitutes, ir a teatros”.

Tudo o que aconteceu,na verdade, foi a troca de uma palavra na transcrição da entrevista.Voltei a ouvir a fita. De novo,entendi que ele tinha dito que não se sentia “bem”. Mas preferi acreditar no que ele dizia no artigo. Gilberto Freyre deve ter dito mesmo que não se sentia “velho”.Pensei com meus botões : um desastre acaba de se consumar.Eu, repórter,acabara de perder para sempre um excelente entrevistado. Tive a tentação de concordar de uma vez por todas com o que dizia Carlos Drummond de Andrade : não adianta,a vida é um “sistema de erros”,um “vácuo atormentado”,um “teatro de injustiças e ferocidades”.

O INTELECTUAL MAIS VAIDOSO DO BRASIL
DIZ QUE É O “ÚNICO GÊNIO VIVO”
Resisti à tentação de escrever um artigo em resposta ao Mestre. O meu senso de ridículo me salvou. Quem era eu,o Famoso Anônimo, para peitar o Mestre de Apipucos ? Quem era eu,mero Coletor de Declarações Alheias, para desdizer o Autor de Frases Geniais ? Tomei uma providência longe dos olhos dos leitores.Fiz uma carta pessoal ao Mestre.Disse a ele que considerava estúpido qualquer preconceito contra velhos.Era fã de carteirinha de Bertrand Russel.Deixei a carta na antessala da presidência da Fundação Joaquim Nabuco. Zarpei. Bye, bye.

Passei a temer, intimamente, o dia em que fosse escalado para uma nova entrevista com o mestre Gilberto Freyre. O dia chegaria,cedo ou tarde. Chegou antes do que eu esperava ; a chefia de reportagem de O Estado de S.Paulo pedia que a sucursal do Recife ouvisse Freyre sobre a censura.Eu não podia fugir da tarefa. Lá fui eu, o cordeiro, para o matadouro. Freyre estava participando de uma reunião do Conselho Estadual de Cultura, num casarão antigo,ali, em frente ao Colégio Nóbrega. Fiquei na antessala, à espera de que o concílio dos intelectuais se encerrasse. Era o momento de abordar o Mestre de Apipucos.

Ei-lo : vestia um terno escuro. Andava ligeiramente vergado. Intimamente,esperei que ele se desvencilhasse com um muxoxo do repórter que lhe dera tanta dor de cabeça. Ou me desse uma bronca pública diante de seus pares. Que nada. A reação do Mestre foi surpreendente. Deu-me um abraço apertado. Disse-me ao pé do ouvido : “Estou fazendo a melhor impressão de você !”. O acordo de paz foi firmado ali. Como vampiro em busca de sangue, voltei a importunar o Mestre de Apipucos repetidas vezes.Queria declarações bombásticas. É o que todo repórter quer,quando procura uma celebridade. Não existem santos nesse metier. Guardo, em meus arquivos implacáveis, as gravações das entrevistas. Numa, ele confessou : tinha uma avó que morreu certa de que ele, o neto, era “débil mental”.Freyre chegou aos oito anos “sem saber ler ou escrever”.

Como “penetra” (ou, para usar um eufemismo, repórter), participei da festa dos oitenta e três anos de Gilberto Freyre, no Solar de Apipucos, no dia 15 de março de 1983. Recém-empossado,o governador Roberto Magalhães foi render homenagens ao mais ilustre dos pernambucanos.Freyre segurava uma taça de licor (devia ser de pitanga).

Resolvi tirar uma velha dúvida.Por que será que ele era tão vaidoso ? Todo mundo em Pernambuco comentava que não existia ninguém tão vaidoso quanto o Mestre de Apipucos,mas ninguém o abordava para perguntar,sem meias palavras,qual o motivo de tanta vaidade.

Freyre me respondeu,também sem meias palavras : “Eu me considero um gênio”. O repórter soltou fogos, intimamente, para comemorar a colheita de tal declaração. Adiante, embalado pelo ambiente de festa, Freyre diria que não existia nenhum gênio brasileiro vivo comparável a ele. Diante da insistência, citou dois mortos : Aleijadinho e Villa-Lobos.

Deve ter sido nossa última entrevista. A declaração de Freyre volta e meia é repetida. Ficou. Se houvesse justiça no mundo, nós, repórteres, deveríamos financiar a construção de um monumento ao Mestre de Apipucos. Poucos entrevistados terão produzido tantas declarações originais com tanta frequência.

O monumento teria o estilo das esculturas de Aleijadinho. Se fosse inaugurado ao som de uma Bachiana de Villa-Lobos, a festa estaria completa.Os três gênios – escolhidos a dedo pelo próprio Freyre – finalmente ficariam juntos por um momento.

Mas, ah, jamais haverá tal homenagem, porque a vida sempre foi e será um “sistema de erros” , um “vácuo atormentado”, “um teatro de injustiças e ferocidades” eventualmente povoado por personagens inesquecíveis.

Posted by geneton at 10:48 AM

julho 14, 2010

STEVE MCCURRY

NADA DE CELEBRIDADES – DIZ O MESTRE QUE CORRE O MUNDO EM BUSCA DE ROSTOS ANÔNIMOS

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A menina afegã : a foto mais famosa de Steve McCurry

Aviso aos navegantes : a Globonews exibe neste sábado, às 21:05, com reprise no domingo às 12:30 e na segunda, às 15:30, uma entrevista exclusiva com aquele que é apontado, com justiça, como um dos maiores nomes da fotografia do Século XX. Chama-se Steve McCurry. Americano. Sessenta anos. Autoproclamado “peregrino”, viaja pelo planeta em busca de rostos e paisagens marcantes. Vive com o pé na estrada, literalmente. Já tesmunhou guerras, já foi ameaçado de morte, já percorreu cenários remotos de países como Índia, Paquistão, Iraque, Irã, Afeganistão.

Quem avisa amigo é : Steve McCurry dá uma aula de fotografia na entrevista ao DOSSIÊ GLOBONEWS.

Adotou um princípio curioso : não faz a menor questão de fotografar rostos famosos. Prefere os anônimos.

E um dos rostos anônimos mais marcantes que Steve McCurry já flagrou é o de uma menina afegã que vivia num campo de refugiados no Paquistão, nos anos oitenta. A foto corre mundo até hoje.

Pergunta-se: as celebridades fazem falta a McCurry ? A resposta: não, não e não.

Ah, as “celebridades”….Precisam tanto de fotógrafos para sobreviver. E vice-versa. O resultado: a humanidade assiste ao perene desfile de peruas siliconadas (e outras variações do zoológico da fama) nas páginas das revistas expostas no varal das bancas. Mas, entre estas imagens, certamente não estará nenhuma produzida pelas lentes de McCurry.

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Steve McCurry: o fotógrafo que não fotografa celebridades ( Imagem: Jorge Mansur )

Pergunto ao homem – que esteve em São Paulo para participar da FotoFest,o Festival Internacional de Fotografia: por que ele prefere os rostos anônimos ? Gente anônima é mais interessante do que gente famosa ?

McCurry : “Fotografar celebridades e pessoas famosas é quase como um gênero próprio de fotografia, é como fotografar vida selvagem, natureza morta ou paisagens. Sou atraído pelas pessoas nas ruas - pessoas comuns, porque as pessoas comuns não estão familiarizadas com as câmeras. E têm mais paciência. Pessoas famosas tendem a querer ver suas fotos, querem ser maquiadas, querem tudo em cinco minutos,é tudo muito organizado. Querem atuar,de certo modo.

Quando vejo alguém na rua, digo: “Gosto do seu olhar, gostei do seu rosto, senti uma ligação. Posso fotografar você?” É tudo muito espontâneo. Costumo fotografá-las na mesma hora, no mesmo lugar. Não vamos a um estúdio. Geralmente, essas pessoas me dão o tempo de que preciso para tirar minha foto. Já as celebridades ou pessoas famosas já foram fotografadas um milhão de vezes.Para elas, ser fotografadas não é nada de especial. Quando fotografamos pessoas que não estão acostumadas, elas são mais vulneráveis,mais sinceras, não atuam. É mais divertido, é uma experiência mais autêntica. É isso: é mais autêntico”.

Qual será o segredo da foto da menina afegã ?

Ninguém melhor do que McCurry para explicar:

“A foto da menina afegã capturou a imaginação do mundo todo em parte porque é uma combinação de emoções diferentes. Em primeiro lugar,é uma menina muito bonita. Há sinceridade na foto.Você olha a foto: não parece uma pose, não parece que ela está tentando fazer uma expressão qualquer. É muito bonita, mas tem olhos muito intensos, olhos quase assustados. O olhar é um pouco perturbador. Não quero compará-la com a Mona Lisa – Leonardo da Vinci era um gênio,uma figura histórica -,mas a semelhança é que há uma ambiguidade na expressão. A menina não está necessariamente triste, não está necessariamente feliz. Por um lado, ela tem esse rosto bonito, muito sensual. Olhos lindos, lábios lindos. É muito jovem, tem 12 anos de idade…Mas a foto também tem esse elemento: é bonita, mas também é pobre. Há um buraco no xale. O rosto está um pouco sujo. Há um elemento de realismo,de verdade. É como se fosse arrancada da vida. Não está posando. Era a única foto que ela havia tirado na vida: a pela primeira vez ela foi fotografada. Olha para mim, o fotógrafo, com uma espécie de espanto: está um pouco intrigada, está curiosa. “Quem é esse homem? Por que não fala minha língua? Por que usa essa roupa engraçada? O que é aquela câmera?”.


Posted by geneton at 10:52 AM

julho 02, 2010

RICARDO ROCHA

EX-JOGADOR DA SELEÇÃO DIZ QUE BRASIL DEVE PENSAR “DUAS VEZES” ANTES DE PROGRAMAR FINAL DA COPA DE 2014 PARA O MARACANÃ. MOTIVO: A LEMBRANÇA DE 50

O ex-zagueiro da seleção Ricardo Rocha ( vestiu a camisa do Brasil na Copa de 1990 e no primeiro jogo da Copa de 1994, quando se machucou) entrou para a história do tetracampeonato como o grande “animador” do time. Depois da contusão, passou a atuar fora do gramado para “dar força” ao grupo. Virou uma espécie de psicólogo amador.

E é nesta condição que ele levanta uma lebre polêmica : em entrevista que concedeu ao locutor-que-vos-fala logo antes do início da Copa da África do Sul, Ricardo Rocha diz que pensaria “duas vezes” antes de programar a final da Copa de 2014 para o Maracanã. Motivo: se o Brasil chegar à final, a pressão sobre os jogadores e o técnico será monumental, diante da lembrança do que aconteceu em 1950. O Brasil precisava apenas de um empate contra o Uruguai para levantar o título . Fez um a zero. Inacreditavelmente, perdeu de dois a um. O silêncio da torcida brasileira entrou para a história do estádio.

O trecho da entrevista em que Ricardo Rocha dá o sinal de alerta:

Você estava dizendo antes da gravação que a grande preocupação não é a Copa de 2010,mas uma possível final no Maracanã, na Copa de 2014. O que é que você faria para preparar psicologicamente os jogadores do Brasil para esta possível final ?

Ricardo Rocha: “A gente já tem alguns problemas para 2014.O Brasil só vai jogar amistosos. Não vai disputar eliminatórias, porque é o país-sede. É ruim, porque nas eliminatórias você já sente como é que estão as equipes.Amistoso é diferente. Mas faz parte de quem faz a Copa do Mundo. O que penso ? Eu trocaria qualquer título do Brasil pelo título de 2014. Por quê ? Porque tivemos um insucesso em 1950. Aquilo marcou todos. Se a gente tiver outro insucesso em 2014….É claro que não penso nesta possibilidade, mas a gente tem de lembrar. Os jogadores de 2014 não terão jogado naquela época, claro. São outros. Mas é igual à gente: quando íamos jogar contra o Uruguai, todo mundo só falava em 1950. Eu dizia: “Meu amigo, não sou daquela época.Não joguei..”

É preciso fazer um trabalho psicológico forte. Teremos jogadores de muita qualidade, como Neymar, Ganso, Pato, Robinho ainda tem idade para ir a uma Copa do Mundo. Mas os jogadores experientes vão ser fundamentais. O próximo treinador tem de se preocupar com este trabalho psicológico. Quando acabar a Copa na África e a gente vir que a Copa vai ser mesmo aqui no Brasil, haverá muita lembrança de 1950, porque o Brasil perdeu. E perder novamente seria uma catástrofe geral para o futebol brasileiro. 2014 me preocupa até por causa da euforia do povo brasileiro – de achar que a gente vai ser campeão em casa. Não é assim ! Fico preocupado porque é uma Copa dentro do Brasil.E a primeira a gente perdeu”.

Você acha que é um risco manter a final da Copa do Mundo de 2014 no Maracanã – que foi palco da chamada “tragédia de 50″ ?

Ricardo Rocha: “Não é que seja um risco. Falo do que pode acontecer no dia desta final, se o Brasil for. Fico preocupado, sim, porque virão coisas negativas do passado. Adoro o Rio de Janeiro. Vivo aqui há doze anos. Minha cidade é o Rio,junto com o Recife. Eu pensaria duas vezes antes de fazer a final da Copa de 2014 no Maracanã. Se o Brasil chegar a esta final - e,se Deus quiser, vai chegar -, eu sei da pressão que haverá em cima de todos: os atletas, a comissão técnica, os dirigentes. Se Deus quiser, seremos campeões, mas eu pensaria duas vezes: eu não exporia o Maracanã num evento como esse. Por quê ? Porque o Maracanã já viveu a decepção de 1950. Pode ter outra ? Eu, particularmente, tentaria fazer a final em outro lugar. Mas já foi definido que será no Maracanã. O povo carioca é maravilhoso. Todo mundo vaiu incentivar. Mas, hoje, tenho esta dúvida sobre se faria ou não no Maracanã esta final, por tudo o que vai acontecer: se o Brasil for para a final, as lembranças serão muito pesadas em cima dos atletas e da comissão técnica”.

Posted by geneton at 11:05 AM

junho 30, 2010

PELÉ

CONFISSÕES DE UM REI: PELÉ DIZ QUE MARADONA PRECISA, PRIMEIRO, PROVAR QUE FOI O MELHOR DA ARGENTINA…

O Dossiê Geral promete – e cumpre. Eis a entrevista completa com Pelé :

Jornalistas entediados espalharam a versão de que Pelé derrapa quando fala. É mentira. Provocado, nosso monarca é perfeitamente capaz de premiar a curiosidade dos repórteres com confissões surpreendentes, cenas de bastidores, eventuais inconfidências.

Aqui, Édson Arantes do Nascimento, a versão terráquea da entidade Pelé, apontará, por exemplo, quais eram os dois únicos defeitos do Rei do Futebol.

Descreverá pressões sofridas para disputar a Copa do Mundo de 1974 pela seleção brasileira. Falará de uma cena inusitada ocorrida nos vestiários do Brasil,no intervalo da final da Copa do Mundo de 1970, no México.

Sociólogos de botequim juram que em algum ponto do inconsciente coletivo brasileiro reluz uma difusa nostalgia da realeza. Quando querem reconhecer os talentos e virtudes de alguém, os habitantes da República Federativa do Brasil tratam de conceder-lhe um título monárquico. Roberto Carlos virou “Rei da Jovem Guarda”. Uma expedição por qualquer cidade brasileira revelará um rol de majestades de todo tipo: Rei da Bateria, Rei do Churrasco,Rei do Mate, Rei dos Pneus. Mas ninguém encarnou tanto a palavra Rei quanto Édson Arantes.

Sessenta e nove anos depois da proclamação da República, o Brasil ganhou, na Copa do Mundo de 1958, um Rei que até hoje não perdeu a majestade (fiz um teste: desafiei Pelé a ir conosco até a Quinta Avenida, para ver por quanto tempo ele poderia andar na rua sem ser reconhecido. Três décadas depois de ter abandonado os gramados, Pelé precisou de apenas dezesseis segundos para ser reconhecido por um africano. Em questão de minutos, o tumulto estava formado: pedidos de autógrafo, espoucar de flashs, assédio de admiradores. Pelé teve de voltar para a van. Tinha passado incólume pelo teste do reconhecimento público – em Nova York). Que outra celebridade seria capaz de criar um alvoroço numa das principais avenidas da cidade que é tida como a capital do planeta?

Agora publicado na íntegra, sem qualquer corte, o depoimento do Atleta do Século ao Fantástico é um documento sobre uma das pouquíssimas personalidades que, durante um diálogo com um repórter, podem se dar ao desplante de se comparar, a sério, com gênios como Beethoven ou Miguelângelo. Pelé pode. Porque sabe que, no futebol, pode ter sido o que Beethoven foi na música – ou Miguelângelo na pintura.

Que outra celebridade pode se referir a si própria na terceira pessoa, como se Pelé fosse um mito há tempos desvinculado das miudezas do mundo real? Pelé pode.

O encontro foi marcado para o apartamento que Pelé mantém desde os anos setenta em Nova York. O “Rei” chega com o rosto semi-encoberto por um boné. É o truque que usa para tentar esconder uma das fisionomias mais reconhecíveis do mundo. O punho, machucado num jogo de tênis, estava enfaixado. Pelé pede licença para ir “lá dentro”. Volta de camisa trocada. Enquanto o cinegrafista prepara a câmera, ele lembra que, quando morava em Nova York, costumava jogar tênis com o jornalista Lucas Mendes. Confessa uma pequena frustração: não consegue ganhar nunca de Rivelino no tênis.

Diz que passou a se policiar para não ficar repetindo a pergunta “entende?” ao final de cada frase:

- “Percebi que sempre falava “entende”, em todas as entrevistas. Depois das gozações, comecei a me policiar. Perdi o hábito. Depois que me chamaram a atenção para esta mania, psicologicamente já eliminei a palavra “entende”. Mas de vez em quando escapa algum”.

A bem da verdade, diga-se que Pelé conseguiu atravessar a entrevista sem emitir um “entende ?” sequer.
O “Rei” se confessa, numa gravação preservada no Centro de Documentação da Rede Globo:

Você já passou um dia sem dar autógrafo?
Pelé: “Digo com toda honestidade: só quando não saio de casa. Em casa, ainda tenho de assinar cheques para fazer pagamentos.Depois desta fase de Pelé – ou seja, desde a Copa de 1958 – não me lembro de ter passado um dia sequer sem ter dado autógrafo. Não me lembro!”.
Qual foi o pedido mais absurdo que você já recebeu?

Pelé: “Já recebi tantos pedidos e tantas propostas… A gente recebe, no escritório, cartas com todo tipo de pedidos – desde ajuda financeira até apartamento, casa e carro… Mas o pedido mais complicado que recebi foi feito, na África, por um pai, que me trouxe a filha e pediu para que eu casasse com ela. Era uma garota de 15 anos!”

Que resposta você deu?

Pelé: “Eu disse que não estava preparado ainda para casar….”.
Você sempre fala de Pelé como se Pelé fosse outra pessoa. Isso não é delírio de grandeza de um “Rei”?

Pelé: “Talvez seja delírio de grandeza de um ”Rei”, mas, por outro lado, é até uma modéstia do Edson. Porque um novo Pelé, que todo mundo procura desde 1958, não vai aparecer. Dona Celeste e Dondinho, meus pais, fecharam a fábrica. O novo Pelé não vai aparecer, então.

Edson Arantes do Nascimento é o que sofre, é a pessoa. Já Pelé é o mito que não vai morrer. Vai ficar para sempre.

Édson morre : é uma pessoa normal, alguém que chora, tem sentimentos e sofre pelas coisas erradas. É esta a diferença que sempre tento fazer”.

Ninguém gosta de pensar em morte, mas, já que ela é inevitável, qual seria o epitáfio de Pelé?

Pelé: “Não tenho medo de morrer nem de falar sobre a morte. Mas acho que o epitáfio do Pelé seria “o eterno”.

Sinceramente: você tem inveja de quem?

Pelé: “Inveja não tenho de ninguém. Em todo este tempo em que viajei com o futebol, conheci grandes personalidades: reis, rainhas, políticos, atletas, artistas. Eu às vezes falava: “Eu poderia ser um Nelson Mandela, um Juscelino Kubitscheck, um artista…”. Fui abençoado pelo Papa várias vezes. Mas inveja nunca tive.

Quando eu era garoto, o jogador que tentei imitar, porque era minha inspiração na época de minha chegada ao Santos, foi Zizinho. Quando comecei, aos dezesseis, dezessete anos, Zizinho estava terminando a scarreira. Eu achava: “Um dia vou ser igual a Zizinho…..”

Você disse que gostaria de ter sido JK. Por quê?

Pelé: “Porque, dentro do pouco que a gente conhecia de política, Juscelino chegou com uma proposta avançada e decente para nosso país. A grande mudança do Brasil aconteceu com Brasília e com JK. Eu o admiro muito”..

Você se disfarça?

Pelé: “Já usei bigode. Uma vez, fui à China. Pus uma peruca afro, além do bigode, para ir a um restaurante. Havia lá um pessoal que falava português. De repente, vi o pessoal da cozinha chegando. Eu disse: “Alguma coisa deu errado….”. Um dos garçons terminou perguntando: “É Pelé? “. O professor Júlio Mazzei – que estava na mesa conosco – perguntou: “Como é que souberam? “. O garçom: “Ah, ele começou a rir. A gente reconheceu”.

Todo mundo já falou das qualidades do Pelé em campo, mas poucos foram capazes de apontar os defeitos. Para Pelé, qual era o grande defeito de Pelé dentro do campo?

Pelé: “Pergunta difícil ! Você perguntou para Pelé. Se tivesse perguntado para Édson….

Pelé corrigiu um defeito que tinha durante a carreira. Eu me lembro: o meu pai me dizia que jogador que é centroavante ou atacante tem que saber cabecear e chutar de esquerda e direita. Porque a bola – afinal- pode cair de qualquer um dos dois lados. Eu tinha uma dificuldade de esquerda. Mas fiquei treinando e batendo com a perna esquerda. Hoje há até quem ache que sou canhoto! Mas sempre fui destro.

E cabecear? Fico triste de ver jogadores profissionais que ganham uma grana danada mas não sabem cabecear, o que é um absurdo!.

O garoto não saber cabecear era um absurdo nos tempos do meu pai. Porque cabecear é um principio do futebol. Hoje existem profissionais, centroavantes, que não sabem cabecear.

Depois dessa correção, eu, como Edson, não sei se vejo muito defeito no Pelé como jogador.

Pelé podia ser menos forte num tipo de jogada, mas defeito acho que ele não tinha”.
Os dois pequenos defeitos de Pelé no início da carreira eram, então, não saber cabecear e não saber chutar com a esquerda?

Pelé: “Exatamente! Aprendi com meu pai. Aprendi a chutar com a esquerda depois que vim para o Santos. Ficava batendo bola depois dos treinos. Ficava batendo bola contra a parede. Pedia para os jogadores cruzarem a bola para que eu pudesse bater de esquerda. Fui, então, superando esta dificuldade”.

Quanto valeria hoje o passe de Pelé, se Pelé estivesse jogando?

Pelé: “Que pergunta! Hoje, tudo tem um valor, uma comparação. Se fôssemos fazer uma comparação com o que se paga hoje, se fizéssemos uma relação de custo e benefício, Pelé não teria preço. Porque não daria para pagar o tempo que Pelé jogou na Seleção Brasileira e no Santos – quase vinte e cinco anos de carreira, sem parar. Talvez desse para pagar a divída do Brasil….”.
Que valor se aproximaria do talento de Pelé, em preço de passe?

Pelé: “ Se fosse feita uma comparação com os atletas de hoje, Pelé seria acima de qualquer um. O jogador mais caro foi – o quê? – 35, 40 milhões de dólares. Pelo que falei, Pelé deveria valer uns 100 milhões de dólares por ano”.
É verdade que o governo militar quis forçar você a jogar a Copa de 74 pelo Brasil ?

Pelé: “´Forçar´ é uma palavra forte, mas eles tentaram me persuadir a voltar a jogar, porque havia um interesse grande em que o Brasil fosse bem na Copa do Mundo de 1974,na Alemanha. Nós estávamos numa fase política muito difícil, no Brasil.

Eu me lembro de que tinha dado uma entrevista para Ziraldo, em que eu dizia que tinha ficado sabendo das barbaridades e das torturas que tinham sido feitas naquele tempo – de 1971 a 1973. Indignado com aquilo, uma das decisões que tomei foi a de não apoiar e não esconder o que estava acontecendo. Porque, cada vez que o Brasil ganha uma Copa do Mundo, esconde tudo: a fome, o desemprego, a saúde, a falta de moradia. O povo se envolve na alegria, naquela coisa de “Brasil” – e esquece de tudo.

Eu não queria aquilo porque eu já tinha conhecimento de muita coisa: já tinha conversado com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque. Já tinha me encontrado com eles; sabia de coisas que estavam acontecendo. Tomei realmente esta decisão. Como eu ainda estava em grande forma – afinal, o Santos foi campeão em 1973 e fui artilheiro do campeonato – , houve uma procura da filha do general Ernesto Geisel, e políticos como Pratini de Moraes e Jarbas Passarinho. Falei com vários políticos na época: todos achavam que eu tinha de jogar. Mas minha decisão foi a de não jogar”.

Você estava em perfeita forma em 1974: poderia ter jogado a Copa do Mundo na Alemanha sem qualquer problema. Você não se arrepende de não ter jogado?

Pelé: “Não. A decisão de me despedir como campeão do mundo foi a mais certa que tomei. Tenho convicção de que, se hoje os garotos de nove, dez anos de idade ficam gritando o nome de Pelé, é porque eles têm Pelé como um campeão. Por isso, não tenho nenhum arrependimento de não ter jogado a Copa de 74”.

É surpreendente ver Pelé dizer que, com a vitória do Brasil numa Copa do Mundo, o povo se esquece de tudo. Você sempre teve esta visão crítica?

Pelé: “Sempre. Sou uma pessoa que o Brasil todo conhece desde 1958. As minhas batalhas pela educação. Tenho procurado passar para o povo minha indignação por não termos um país que dê o mínino de condições para o povo – educação, moradia e saúde. Todo mundo sabe de minhas brigas, desde o milésimo gol que venho falando. Nem sei o que falar. Quando começo a falar, fico emocionado. É uma tristeza saber que o Brasil ainda hoje vive o que vive. Fomos o antepenúltimo país em educação. Isso é triste para quem, como eu, vive viajando – e vê que, em países que não têm a mínima condição, o povo vive melhor que brasileiro”.
Se Pelé estivesse em campo, o Brasil teria perdido da Holanda em 74?

Pelé: “Talvez não! Mas futebol é detalhe: em questão de segundos um lance pode decidir uma Copa do Mundo. O Brasil foi surpreendido na Copa de 1974 porque a Holanda veio com uma proposta de jogo que ninguém conhecia. Nem digo que o Brasil tenha jogado mal. O que aconteceu é que a surpresa provocada pelo tipo de jogo da Holanda tornou tudo difícil para o Brasil.

Não sei se, se eu tivesse jogado, a Holanda jogaria diferente – diante da preocupação de estar diante de um Pelé em campo – ou um Tostão. Porque se estivesse um Pelé, um Tostão ou um Jairzinho em campo, a postura da Holanda seria defensiva. Não iria para o ataque daquele jeito. Mas é dificil dizer se o Brasil, afinal, ganharia ou não”. ( N: O Brasil foi eliminado da Copa de 1974 ao perder para a Holanda por 2 a 0, no dia 3 de julho de 1974, em Dortmund).

Intimamente, em algum momento você se sentiu co-responsável pela derrota do Brasil em 74?

Pelé: “Fiquei triste, sofri. Mas é claro que ,durante a Copa, sempre dava aquela “cócega”, aquela vontade: “Puxa, eu poderia estar aí”. Eu, que amo o futebol, vivi realmente esta situação. Houve momentos em que eu disse : “Eu poderia ter jogado, eu poderia estar em campo….”.

Qual foi o argumento que a filha do Presidente Geisel usou pra tentar convencer você a disputar a copa de 74?

Pelé: “ Como faz muitos anos, não me lembro de detalhes. Porque muita gente me ligou. O deputado Athiê Jorge Cury, presidente do Santos na época, me passou o recado de que eu ira ser chamado pela Amália Lucy Geisel , que,na época, uma espécie de secretária do pai. Por telefone, ela me disse que eu deveria pensar bem, porque seria bom para o Brasil. A conversa foi amigável, num tom que chamava a atenção para o benefício que o Brasil poderia ter para o Brasil se eu aceitasse voltar”.

Que argumento você usou para não aceitar?

Pelé: “Eu disse exatamente o que vinha dizendo para todo mundo: eu já tinha me despedido em 1972, numa grande festa. Quando ocorreu a festa de despedida, no Maracanã, se o Presidente da CBF na época e se o próprio povo insistisse para eu ficar, talvez eu tivesse mais sensibilidade para ficar. Mas, como todo mundo aceitou a festa, todos acharam, ali, que era um momento bom para a despedida. Não havia, então, razão para eu ficar”.
De todos os nomes que foram citados ao longo dos anos, quem realmente chegou perto de ser o sucessor de Pelé?

Pelé :“Desde que comecei a jogar, nomes vão aparecendo. Apareceram grandes e excelentes jogadores. Eu vi. Por exemplo: Di Stéfano, Beckenbauer, Bob Charlton, Zico, um excelente jogador.

Tivemos excelentes jogadores brasileiros,como Ronaldinho, Rivaldo. Há Maradona, Eusébio, Paolo Rossi, Sívoli. Poderia ficar aqui citando vários nomes.

Maradona foi a última polêmica de Pelé. Gostei muito de jogadores argentinos. Eu gostei do Sivoli , que jogou na Itália uma vez. Gosto de Di Stéfano, a grande figura do Real Madri. Maradona, primeiro, precisa ser o melhor da Argentina. Porque lá ainda há dúvida sobre se é ele ou o Di Stéfano. Precisaria aprender a chutar de direita e a cabecear, porque ele não cabeceava bem nem chutava bem de direita. Assim, eu poderia compará-lo com Pelé. Mas foi um excelente jogador. Tivemos também no Brasil Dirceu Lopes, Tostão, Garrincha – um jogador diferente- , e Didi…..”

De todos os brasileiros que você citou, quem chegou mais perto de Pelé como jogador?

Pelé: “Pela característica de jogo, o que chegou mais perto foi Zico. É aquela história que sempre falo: não adianta você querer procurar um novo Beethoven, um novo Hamlet .(aqui Édson se confunde ao falar de Pelé: certamente, ele queria citar William Shakespeare. Terminou citando Hamlet). Não adianta você querer procurar um novo Frank Sinatra ou Michelângelo, que pintava de cabeça pra baixo. Porque Deus faz mas, depois, quebra a fôrma. Podem até surgir outros melhores e diferentes, em outras épocas. Mas igual ao Pelé vai ser difícil”.

Qual é o segredo dos bastidores da Copa do Mundo que você nunca contou pra ninguém?

Pelé: “Quando você é um jogador com mais experiência, fica sabendo de coisas. Há um segredo que já é nem segredo, porque até Gerson já comentou. Aconteceu na Copa de 70. Eu tinha dado entrevista dizendo que a Copa de 1970 seria a minha última. Carlos Alberto, Brito, o próprio Gerson, todos nós queríamos ganhar aquela Copa do Mundo. A gente fazia oração, fazia de tudo, porque aquela Copa iria encerrar nossa carreira.

Nós sentimos, no intervalo da final contra a Itália, um cheiro de cigarro. Fomos no banheiro – eu e Carlos Alberto. Gérson tinha acendido um cigarro lá, o “desgraçado”! . Acendeu um cigarrinho. Disse: “Ah, eu estou muito nervoso. É para desabafar”. Depois, ouvi dizer que Félix também. Não sei se já foi levado a público. Era um negócio absurdo!. Mas, realmente, aconteceu. Gérson sabe. É um segredo que eu não tinha falado para ninguém, mas, graças a Deus, ganhamos a Copa”.

Você reclamou de Gérson?

Pelé: “Ali, na hora, quase saímos de porrada em cima de Gérson: “Oh, papagaio desgraçado, a gente aqui querendo ganhar a Copa do Mundo….”. E ele: “Mas estou nervoso….”. Gérson fumava mesmo antes. Nunca escondeu de ninguém.

Gérson terminou fazendo o gol. Deu também o passe para eu fazer aquele outro gol em que matei a bola no peito. A gente não sabia o que aconteceria no segundo tempo. Se soubesse, mandava Gerson fumar em todos os intervalos”.

Você, afinal, é pão-duro?

Pelé: “Isso é uma coisa injusta! . Tudo começou com uma brincadeira com Gérson e Zagallo. Os dois é que são pão-duro, mão de vaca: não abrem a mão nem para o cafezinho. É aquela história de nunca ter dinheiro trocado para o café. Então, estes sim, eram pãos-duros,na seleção brasileira.
Sempre reservado: não gasto dinheiro à toa, o que é diferente. Contaminaram até o meu filho, o Edinho, com esta história. Quando conversam com ele, ele diz: “O meu pai é muito pão-duro….”. Mas meu filho tem tudo! Não acredito que eu seja pão-duro. Pelo contrário”.
Em algum momento você já se sentiu discriminado por ser negro?

Pelé: “Graças a Deus, não. Nem em Bauru: o meu pai jogava pelo Bauru Atlético Clube, o clube da elite. Em Bauru, meu irmão chegou a comentar alguma coisa. Mas, durante minha carreira, nunca.

Tive uma certa preocupação quando estava para vir para o Cosmos. Naquela época ,Muhammad Ali etava muito bem, ele que tinha sofrido, antes, aquela discriminação. Vir para os Estados Unidos com o futebol era uma coisa nova. Quando chegou a hora de decidir sobre vir ou não vir, pensei: “…Mas será que vou ter problema de racismo ? Vão me usar para alguma coisa?” Graças a Deus, minha vinda foi um grande sucesso – uma vitória do Brasil, porque hoje em dia o futebol é um dos grandes passatempos do jovem nos Estados Unidos. Pelé – acho- é o grande ídolo americano. O know-how que o Brasil vendeu para os Estados Unidos foi o futebol com Pelé. Nem nos Estados Unidos tive problema de racismo, graças a Deus”.

“Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada….”
Você já se apaixonou por mulheres famosas?A paixão foi correspondida?

Pelé: “Nunca me apaixonei por mulheres famosas. As mulheres com quem me casei – primeiro, Rose; depois, Assíria – não eram famosas. Assíria é cantora evangélica conhecida, mas não é famosa. Quando eu jogava, existia muita onda. Se eu saía para jantar com uma artista, com uma cantora, todo mundo dizia que eu estava apaixonado.

Houve aquele caso de Xuxa. Disseram também que fui apaixonado pela Luíza Brunet. Conheci Luíza, por coincidência, junto com Xuxa. Naquela época, a gente fez um trabalho junto na revista Manchete, para escolher a modelo do ano. Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada…. Devia ter 16, 17 anos. Não houve nada de paixão”.
A atenção que Luíza Brunet chamou em Pelé não chegou a se transformar em paixão?.

Pelé :”Não chegou porque,logo em seguida, tive todo o namoro com a Xuxa. Fala-se muito no Brasil: disseram também que fui apaixonado por Vera Fischer- minha amiga. Nunca tivemos nada. Falaram de Gal Costa. Disseram que fui apaixonado por uma menina que foi Miss Brasil, Flávia Cavalcanti. Sou apaixonado pela Assíria”.

Você já se encontrou com reis, papas, estrelas de cinema, celebridades de todo tipo. Qual é a celebridade que você gostaria de conhecer, mas ainda não teve oportunidade?

Pelé: “Você falou uma coisa certa: nesta terra, conheci quase todas as grandes celebridades. Dos brasileiros, conheci Ayrton Senna, Emérson Fittipaldi, Éder Jofre. Por falar em Éder Jofre: uma das grandes figuras que não conheci ainda é Popó, o lutador. Aproveito para parabenizar o Popó pela garra e pela técnica. Popó é a figura do momento que não tive oportunidade de conhecer ainda”. ( A TV Globo promoveu um encontro entre os dois poucas semanas depois desta declaração)
Xuxa disse numa entrevista que os seus pés não eram bonitos. O que você não acha bonito na Xuxa?

Pelé: “Respeito –muito – Xuxa. É um exemplo pela batalha e pelo sucesso. Fico feliz de ter participado deste início. Não acho que Xuxa tenha nada feio”.

Qual foi o maior perna-de-pau que você já enfrentou?

Pelé: “Em trinta anos de carreira, já joguei contra tantos pernas-de-pau que fica até difícil me lembrar de algum nome”.

Você sempre teve fama de conquistador. Pelé já falhou na cama?

Pelé: “A fama de conquistador não é verdade. Sempre respeitei todo mundo. Graças a Deus, até hoje, onde chego as portas estão sempre abertas., o que não quer dizer que eu seja conquistador. O importante é respeitar as pessoas que me admiram, tratar bem as pessoas que me procuram. É o que faço com crianças, gente de idade, jovens , mulheres – bonitas, feias. Não acredito que esta atitude seja nenhum galanteio: é obrigação de qualquer pessoa tratar a outra bem, respeitar os outros. Por essa razão, sou respeitado em todo o mundo”.

Você acabou fugindo da pergunta…

Pelé: “Não estou fugindo. O que estou dizendo é uma coisa real. Além de tudo, não me considero nenhum galã. É respeitar quem me procura, tratar bem os outros e saber que vou morrer – como as outras pessoas : o respeito talvez faça com que as pessoas se aproximem de mim, sejam elas como forem”.
Você aguentaria hoje, passado dos sessenta anos, jogar por quanto tempo uma partida?

Pelé: “Não tenho dúvida de que o futebol de hoje é de muito mais pressão, muito mais corrido do que era antes. O condicionamento físico vem de acordo com a competição. Com cinqüenta anos de idade, joguei na Itália, com a Seleção Brasileira principal. Com sessenta anos, fiz a inauguração do Centro de Treinamento do Santos, com a garotada. Mas, no futebol atual, com este preparo físico que tenho hoje, não dava para fazer nem o aquecimento…”

Quais são os cuidados que você toma fisicamente?.

Pelé: “Sempre tive facilidade para manter o meu peso. Nunca deixei de fazer exercício. Sempre que posso, faço exercício em casa ou na praia. Cuido da minha alimentação. Quanto ao futebol, agora falando sério, é evidente que, se eu jogasse agora, estaria preparado. Por exemplo: com sessenta e dois anos da idade, se eu tivesse de fazer uma partida amistosa como fiz quando completei cinquenta anos, eu iria me preparar por dois, três meses. Jogaria. Com certeza: se conseguisse este tempo para parar e treinar, eu jogaria meio tempo. Mas não seria aquele Pelé que fazia gol de bicicleta. Não se pode exigir tanto: é o Pelé normal”.

Em nome de que causa Pelé entraria em campo hoje pra jogar meio tempo que fosse?

Pelé: “ Talvez para acabar definitivamente com uma guerra. Porque parar uma guerra o Santos já parou, nos anos sessenta. Depois, a guerra continuou. Ou para concretizar o desejo de Lula de acabar com a fome no Brasil. Penso que seria excelente fazer um jogo com a assinatura de “acabou a fome no Brasil” “.
Que reação você teria se visse hoje o Maracanã superlotado gritando o nome de Pelé e pedindo que ele entrasse em campo?.

Pelé: “Teria a mesma reação que tive na despedida, diante do Maracanã lotado, dentro daquela emoção: iria me despedir porque aprendi com seu Dondinho que parar no melhor da carreira é a coisa mais inteligente”. (N:Pelé se despediu da seleção brasileira em jogo no Maracanã, no dia 18 de julho de 1971, contra a seleção da Iugoslávia. O jogo terminou empatado: 2 a 2. Pelé deixou o gramado – chorando – sob o coro da torcida que pedia “fica, fica, fica” ).

Qual foi a grande mudança na vida de Pelé nestes últimos trinta anos?

Pelé: “ Tive mudanças, graças a Deus, para melhor. A vinda aqui para os Estados Unidos, a parte de educação e cultura. Amadureci como ser humano. Aprendi muito. Posso até dizer, por exemplo, que peguei o “Fantástico” no colo. O Fantástico era uma criança quando conheci o programa ( a primeira edição do Fantástico foi ao ar em agosto de 1973). Eu melhorei muito, aprendi muitas coisas : não parei.

Há coisas que falo com o orgulho. Fernando Henrique Cardoso disse que Pelé foi o Brasil que deu certo. Tenho muito ainda o que aprender”.
Por quanto tempo você pode andar nas ruas de Nova York sem ser reconhecido?

Pelé: “ Depende do lugar. Sem disfarce, é difícil. Em qualquer lugar, sempre vem um ou outro. Quando vou sair – por exemplo, para a Igreja Saint Patrick, para rezar – ponho óculos ou bonezinho. Dizem que vou disfarçado de Milton Nascimento. Mas quando saio de cara limpa, basta descer do carro: vai ter sempre alguém chamando”.
Você sempre soube administrar muito bem a carreira. Você tem idéia do tamanho da fortuna de Pelé, em dólar?

Pelé: “Nunca me preocupei muito em parar para contar. Quem pára para contar perde dinheiro – a coisa material. E a coisa material nunca foi muito importante em minha vida. Já a marca “Pelé” é uma das mais valiosas no mundo, sem dúvida nenhuma”.
Você tem idéia do valor desta marca?

Pelé: “Não tenho idéia do valor. Mas a marca “Pelé” hoje é de um valor inestimável”.
Você conhece um ator de cinema pior que Pelé?
Pelé: “Conheço muitos. O que não é justo é o pessoal fazer, na época em que eu filmava, comparações entre Pelé ator e Pelé jogador de futebol. É injustica. Pelé nasceu para jogar futebol. Ator ele estava aprendendo a ser. Mas poucos atores, com todo o nome que têm, foram dirigidos por John Huston, trabalharam e foram dirigidos também por Silvester Stallone, Michael Caine, Ipojuca Pontes. Trabalharam com Paulo Goulart, Stênio Garcia, Regina Duarte. É bom, não é? “.
Qual foi, afinal, o gol mais bonito que você já fez ?

Pelé: “O gol mais bonito foi contra o Juventus, na Rua Javari.(N: o jogo Santos 2 x 1 Juventus, pelo campeonato paulista, foi disputado no dia dois de agosto de 1959). Todo mundo fala. A descrição feita pelos jogadores que estiveram no dia do jogo, tanto do Juventus quanto do Santos, é maravilhosa. Infelizmente a equipe de Aníbal Massaíni não conseguiu achar imagens deste gol , depois de quatro anos de pesquisas sobre jogadas e momentos importantes da vida de Pelé para o filme “Pelé Eterno”. Há também o “gol de placa” , lindo ( marcado contra o Fluminense, no Maracanã, pelo Torneio Rio-São Paulo de 1961. Pelé driblou sete jogadores do Fluminense antes de marcar o gol).

Quanto ao gol da Rua Javari, eu me lembro de que três jogadores do Juventus foram “chapelados”. Quando Mão de Onça, o goleiro, veio na bola, também levou um chapéu. Fiz o gol de cabeça.

Todo mundo diz que criei o soco no ar na comemoração do gol. Não foi nada disso. O que aconteceu foi que, neste jogo em que fiz o gol, a torcida estava me perturbando. O Santos não estava jogando bem. Eu também não. Já o Juventus estava numa tarde boa. A torcida, então, ficou vaiando, vaiando, vaiando. Quando fiz este gol, fui para a torcida, desabafei, falei palavrão. Dei, então, um soco no ar. Porque tinha feito o gol mais bonito da minha vida”.
Quer dizer então que a origem do soco no ar na comemoração do gol foi um desabafo por este gol?

Pelé: “Exatamente! É esta a origem do soco no ar. Há quem diga que Pelé é tão pão-duro que até para comemorar o gol ele fica com a mão fechada…. Mas não é assim. O soco no ar, na verdade,foi para comemorar um gol que foi uma coisa maravilhosa. Se pudéssemos reconstituir este gol para os mais jovens, para que a nova geração não tenha nenhuma dúvida, seria maravilhoso”.
Aqui da varanda você tem esta bela vista de Nova York. Quanto tempo você passa aqui por ano?

Pelé: “Passo três meses por ano. Quando eu jogava com o Cosmos, tinha contrato com a Warner: ficava seis meses, a duração de uma temporada de esporte. A vista aqui é maravilhosa. Do topo do prédio, você vê o East River. Tive muita sorte de conseguir este lugar aqui no tempo que estava jogando no Cosmos. Agora, estou aqui para sempre”.

Onde você estava no dia do atentado de 11 de setembro de 2001?

Pelé: “Viajei na noite anterior. quando cheguei ao Brasil, pela manhã, soube do atentado pela televisão. Meu irmão, “Zoca”, tinha ficado aqui em Nova Iorque. Meu assessor também. Uma loucura: fiquei apavorado porque minha filha, que mora aqui, vivia perto do World Trade Center. Fiquei procurando saber e querendo me comunicar, mas, graças a Deus, com a família não aconteceu nada”.
Do que é que você mais gosta aqui em Nova York?

Pelé: “Tenho liberdade em Nova York. Vou ao supermercado, vou ao Central Park. Em algum lugar dá para ficar, especialmente se é dia de semana. Porque se é domingo ou feriado os lugares ficam cheios. O pessoal me descobre logo. A liberdade, esta coisa mais respeitosa do americano, é o que mais me cativa em Nova York”.
Com que frequência você vai à catedral rezar?

Pelé: “Sempre que estou em Nova Iork. Quando fiz o contrato com o Cosmos, eu cheguei aqui nos Estados Unidos; pedi a ela que me ajudasse, iluminasse meu caminho. Deu tudo certo, porque foi uma grande vitória. Agora, já me acostumei. Vou à Saint Patrick, para agradecer”.
Qual é o santo de devoção de Pelé?

Pelé: “Meu santo é Nossa Senhora Aparecida. Minha mãe sempre diz uma coisa engraçada: quando crinça, em Bauru, eu era tão levado que ela me entregou a São Benedito. Minha mãe pediu: “São Benedito, tome conta deste garoto!”.

São Benedito tomou conta bem”.

*Publicado no Livro das Grandes Reportagens ( Editora Globo, 2006)

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junho 29, 2010

PELÉ

O DESABAFO DE PELÉ NO OUVIDO DOS MARCADORES : “MAS VOCÊ PARECE MINHA MULHER ! NÃO ME DEIXA SOZINHO NUNCA!”

…E o Dossiê Geral apresenta : o Rei Pelé !

O blog publica esta semana, em dois tempos, dois depoimentos do maior jogador que já passou pelos gramados do planeta. O primeiro foi gravado em Londres, “clandestinamente”. O segundo é uma entrevista que o locutor-que-vos-fala gravou no apartamento de Pelé em Nova York.

Primeiro tempo:

Cena londrina: o “Rei” se trancou durante uma tarde inteira num pequeno estúdio de televisão em Candem Town, no norte de Londres, para fazer confissões sobre uma carreira até hoje inigualada. Quando o vídeotape começa a rodar, Pelé revela, por exemplo, qual foi a única vez em que suas pernas tremeram no gramado do Maracanã.

Adiante, confessa que, quando criança, sonhava com uma profissão que igualmente o levaria às alturas, mas não tem nada a ver com o futebol. Saudoso, dá o nome do jogador da seleção brasileira com quem se entendia, dentro de campo, apenas pelo olhar: uma cumplicidade muda que enlouquecia os adversários. Um dos gols mais bonitos marcou quando oficialmente já tinha se despedido do futebol: jogava pelo Cosmos de Nova Iorque.

O depoimento traz surpresas. Ao contrário do que todos pensam, o jogo “mais duro” da desastrada campanha brasileira na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966, não foi a derrota que eliminou o Brasil. Pelé fala com orgulho sobre o dia em que o Santos parou uma guerra na África. Diverte-se quando descreve a odisséia do juiz colombiano que foi enxotado do estádio para que Pelé, expulso de campo, voltasse a jogar.

Por fim, lamenta que jamais conseguiu saciar uma curiosidade: diz que até hoje se interessa em saber o que é que, afinal, significa o nome Pelé – a marca registrada do Brasil no exterior.

Pelé tinha chegado ao estúdio numa limousine branca de seis portas. Pouca gente sabia deste compromisso do Rei. Quem testemunha, por puro acaso, a chegada do “atleta do século” a este prédio de tijolos aparentes paga reverências: o porteiro do prédio não perde a chance de posar para uma foto ao lado do ídolo. Lá dentro, zelosas funcionárias tratam de cumprir ao pé da letra o papel universalmente destinado a assessores: o de atrapalhar até onde for possível o trabalho de repórteres.

O astro vai cumprindo pacientemente o que as assessores decidem. Só ensaia uma reclamação bem-humorada quando a responsável pela maquiagem insiste em espalhar um pó pelo rosto do “Rei” para evitar o reflexo das luzes: “Não precisa! Não precisa! Todo mundo me conhece….”.

Um grupo de crianças – comandado pela sobrinha de uma das funcionárias – leva bolsas, camisas e fotos para Pelé autografar. O “Rei” improvisa, então, uma curta aula de futebol: pergunta a cada um o que é mais importante na hora de chutar. Ouve respostas desencontradas. Trata de esclarecer : o mais importante num chute é a posição da perna de apoio:

- Se você vai chutar com a perna esquerda, a perna direita deve estar bem equilibrada. Parece fácil, mas nem todo mundo se lembra…

Os meninos ouvem a explicação, silenciosos e atentos. Vão ter o que contar quando chegarem à escola, no dia seguinte.

Gravado em seis fitas de vídeotape, em dezembro de 1995, o depoimento terminou se transformando numa espécie de autobiografia eletrônica do Rei. Pelé gravou o depoimento ora em português, ora em inglês. A gravação foi patrocinada pelo cartão de crédito que contratou Pelé como garoto-propaganda de luxo, o Mastecard.

Correspondente do jornal O Globo em Londres, escondo um gravador junto a uma das caixas de som do estúdio, sem ser notado pelos funcionários da produtora contratada para filmar a performance verbal do Rei.

Sem saber que um repórter brasileiro estava “grampeando” suas palavras, o Rei Pelé começa a falar, para público estrangeiro, sobre as façanhas do maior jogador de futebol de todos os tempos:
A OUTRA PROFISSÃO: “Quando eu tinha uns doze anos de idade, sonhava em ser piloto de avião. Ficava olhando os aviões passando por sobre os campos. Pensava comigo: “Um dia, vou ser piloto”. Hoje, tanto tempo depois, acho que tenho mais hora de vôo do que muitos pilotos…Mas meus primeiros pensamentos, quando bem jovem, eram dirigidos para o sonho de ser piloto”.

O DIA EM QUE O REI TREMEU: “Tive a felicidade de marcar 1.263 gols. Posso dizer que o gol mais importante, para mim, foi o que marquei na Copa do Mundo de 1958,na partida contra o País de Gales. Eu tinha dezessete anos de idade. O Brasil ganhou de um a zero. O gol foi meu. O Brasil, então, classificou-se para o final da Copa. O outro gol que foi importante, porque o mundo inteiro estava esperando, foi o milésimo, marcado de pênalti contra o Vasco da Gama, no Maracanã, em 1969. Todos dizem que gol de pênalti é fácil. Não é. Só é fácil quando o placar já foi definido. Numa final, ou quando todos estão olhando para você, não é fácil. Que eu me lembre, foi a primeira vez que minhas pernas tremeram no Maracanã, porque todos gritavam Pelé, Pelé, Pelé”. ( O milésimo gol foi marcado no Maracanã, às 23:11h do dia 19 de novembro de 1969, diante de 65.167 torcedores, em jogo que terminou com a vitória do Santos sobre o Vasco da Gama, por 2 a 1).

O MENINO QUE INSPIROU O MILÉSIMO: “Pouco antes de fazer o milésimo gol, eu tinha visto um menino de rua arrombando carros. Era um daqueles garotinhos de praia,em Santos. Eu disse a ele: “Não faça isso!”. O garotinho ainda brincou comigo: “Mas eu só estou roubando carros de São Paulo.Não são daqui de Santos,não….”. Reclamei: “Não pode ! Isso não é coisa de criança!”.

Uma semana depois, fiz o milésimo gol. A primeira coisa que me veio à cabeça foi pedir proteção às crianças. Comecei a jogar entre os profissionais aos dezesseis anos. Tinha – e tenho – ligação com as crianças. Chamei, então, a atenção da sociedade. Jornalistas disseram que era demagogia: o que eu estava querendo era “aparecer em cima das crianças”….
Mas a verdade é que eu já estava vendo o problema. Infelizmente, hoje, tanto tempo depois, a gente vê o problema da violência em todos os lugares, principalmente no Brasil. Tudo porque o governo e a sociedade não se preocuparam com a educação das crianças. Daquela época para cá, já se passaram trinta anos. Teríamos tido uma geração diferente,se fosse feita alguma coisa”.

O GOL AMERICANO: “Vi meus gols em vídeotape. Porque a verdade é que, na hora do jogo, a gente não vê. O gol de bicicleta que fiz pelo Cosmos de Nova Iorque foi um dos mais bonitos que vi, entre os que fiz. Igualmente, o gol que ganhou uma placa no Maracanã, contra o Fluminense.O gol de bicicleta foi um dos melhores. Em toda a minha carreira, fiz três gols assim: este pelo Cosmos, um no Brasil e outro na Europa”.

O MELHOR PARCEIRO EM CAMPO: “Joguei na Copa do Mundo de 1958 com um jogador que, para mim, era excelente, porque combinávamos muito bem: Garrincha. Era excelente jogar com Garrincha, porque ele ia à linha de fundo. Didi, no meio-de-campo, também foi um grande parceiro. Depois, tive em Coutinho, centro-avante do Santos, um excelente parceiro. Coutinho é que criou a tabelinha com Pelé. Por fim, na última Copa do Mundo que joguei, no México, tive um grande parceiro em Tostão. Era um jogador muito inteligente, sabia tocar a bola, sabia voltar: pelo olhar, ele já sabia para onde a bola ia. São estes os jogadores com quem mais me adaptei. Mas, em vinte e cinco anos de carreira, joguei com outros muito bons”.

A VITÓRIA MAIS DURA, EM 1966: “A partida contra a Bulgária,na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, terminou com vitória do Brasil por dois a zero,mas, para mim, este jogo foi mais duro do que contra Portugal – que nos venceu por 3 a 1. O que aconteceu comigo contra Portugal foi uma fatalidade ( N : Pelé teve de deixar o campo amparado,porque não conseguia andar. Desde o início do jogo, Pelé foi perseguido em campo pelo zagueiro Vicente ). É evidente em todo caso, que aquela falta foi cometida por trás. Hoje, aquele jogador português seria expulso, sem dúvida. Mas houve também problemas no jogo da Inglaterra contra a Argentina – partida dura e difícil – e na decisão entre Inglaterra e Alemanha. A copa de 1966 foi dura e violenta”.

O DESABAFO AOS MARCADORES: “VOCÊ PARECE MINHA MULHER!” : “Os treinadores adversários sempre diziam a um dos jogadores: “Você vai marcar Pelé”. Então, este jogador ficava o tempo todo colado comigo. De vez em quando, eu tinha de dizer a eles: “Mas você parece minha mulher! Não me deixa sozinho nunca!”. Eu tinha dificuldade para jogar assim. Pedia a eles:”Vá jogar um pouco! E aí então você me marca!”. Tínhamos esse tipo de discussão dentro de campo. Era problemático. De qualquer forma, em vinte e cinco anos de carreira, só tive duas contusões sérias. É um saldo positivo. Uma foi contra Portugal,na Copa de 1966. Fui atingido por trás. Da outra vez que tive um problema sério, me machuquei sozinho, ao chutar uma bola. Tive uma distensão grave. Agradeço a Deus por ter tido somente estes dois problemas sérios, em tanto tempo de carreira”.

O PREÇO DA FAMA: “Ser tão conhecido me traz uma grande responsabilidade. Você perde um pouco de privacidade, sem dúvida. De vez em quando, nas viagens, preciso usar um chapéu e um bigode postiço. Por outro lado, é bom saber que as pessoas gostam de mim. Sou uma das poucas figuras, no mundo, que podem dizer: “Tenho as portas abertas no mundo inteiro….”. Onde quer que eu vá – na África, na Ásia, na América do Sul – tenho uma grande responsabilidade. Não posso cometer enganos”.

A CRÍTICA AOS TREINADORES: “O treinador, primeiro, tem de fazer o papel de psicólogo; precisa atuar como um amigo do garoto em início de carreira. É como se ele fosse um irmão mais velho, mais do que um treinador de futebol. Independentemente de qualquer coisa, o treinador precisa ser um bom observador. O que vejo hoje, em quase todos os treinadores de divisões inferiores, infantis ou juvenis, é que eles querem impor uma maneira de ser, querem impor estratégias, querem que o jogador jogue feito uma máquina. As crianças não têm liberdade. Isso é ruim! Treinador de infantil e juvenil tem de dar liberdade ao jogador para que ele possa criar. Somente depois é que o treinador deve tirar os defeitos”.

1970: “EU NÃO SABIA SE RIA OU SE CHORAVA”: “Quando fui para o México, em 1970, já pensava em me despedir do futebol depois daquela Copa. Poder me despedir por cima, como campeão, foi maravilhoso. Eu não sabia se ria, se chorava, se pulava. A verdade é que todos os jogadores ali, como Gérson, Carlos Alberto, Félix, Brito e até Jairzinho pensavam em disputar no México a última Copa de suas carreiras. Das quatro Copas do Mundo que disputei, a de 1970 foi a melhor para mim. Não tive contusão, joguei todas as partidas. A seleção brasileira de 1970 foi a melhor de todos os tempos”.

HOJE, JOGADORES QUEREM DINHEIRO: “Quando comecei a jogar, entre 15 e 16 anos de idade, recebia algum dinheiro do Santos – que usava para ajudar minha família. Um ano depois, fui chamado para a Seleção Brasileira. Aos 17 anos, já estava na Copa do Mundo, na Suécia. Clubes estrangeiros começaram a me chamar, principalmente italianos e espanhóis. Alguns jogadores brasileiros se transferiram, como Didi ou Garrincha. Mas eu nunca quis deixar o Santos. Depois, ao longo de minha carreira, recebi outras propostas. Mas nunca quis jogar apenas pelo dinheiro. Fui jogar no Cosmos depois de abandonar o futebol porque queria promover o esporte nos Estados Unidos. Hoje, é diferente. Jogadores já não se ligam tanto aos clubes. Atuam um ano num lugar; no ano seguinte, em outro. Querem o dinheiro. É uma abordagem diferente.

Eu, pessoalmente, nunca quis sair do Brasil. O dinheiro que eu ganharia fora do país seria umas três vezes maior. Mas eu estava bem no Brasil, porque nunca joguei por dinheiro”.

UMA CURIOSIDADE QUE RESISTE: “Tento até hoje descobrir – na África, por exemplo – algo que me ajude a entender o que significa a palavra Pelé. Comecei a jogar futebol na rua quando tinha uns seis, sete anos. Meu pai era jogador. Um dos meninos que jogavam na rua com a gente, em Bauru, passou a me chamar de “Pelé”. Eu não entendia, porque o meu nome era Édson. Tinha orgulho do meu nome, porque Thomas Édison era um grande homem. Tinha inventado a lâmpada…Quando este menino começou a me chamar de “Pelé”, briguei com ele: “Meu nome é Édson! Por que é que você me chama de Pelé? “. Ninguém sabia o que Pelé significava. Fui,então, para a escola. O mesmo grupo de garotos passou a brincar comigo na sala de aula. Briguei com um deles. Peguei dois dias de suspensão. O meu pai foi chamado à escola. O professor disse que eu tinha brigado por causa do nome – “Pelé”. A escola inteira, então, começou a me chamar de Pelé, para gozar comigo. Eu detestava o nome “Pelé” no início. Hoje, gosto”.

O REI PÁRA UMA GUERRA: “Guardo até hoje com alegria o fato de ter estado na delegação do Santos durante uma viagem à África, em que pudemos dizer que paramos uma guerra por uma semana. Primeiro, jogamos numa ilha. Fizemos uma grande partida. Fiz uns três gols. Quando íamos sair para jogar em outra ilha, disseram que havia uma guerra lá.”Mas, se vocês forem, a guerra pára”. Isso foi uma coisa maravilhosa em nossa vida. O Santos,com Pelé, parou uma guerra na África – pelo menos, enquanto a gente estava lá. O ideal seria que tivéssemos parado a guerra para sempre”

O JUIZ É EXPULSO, PARA QUE PELÉ VOLTE A JOGAR: “Viajamos para jogar na Colômbia, numa época em que o Santos sempre ganhava. Tínhamos sido campeões do mundo interclubes por duas vezes. O estádio estava lotado. Houve, então, uma briga no meio-de-campo. Eu, Eu,Coutinho e Doval estávamos juntos. Os dois eram negros, parecidos comigo. Tinham o mesmo porte físico, tudo igual. Armaram a confusão. O juiz não viu direito quem foi. Eu estava tentando resolver a briga quando o juiz decidiu expulsar um jogador de cada lado. E me expulsou! Eu disse: “Mas eu não estava brigando!”. O juiz respondeu: “Não quero saber!”. Então, saí de campo. De repente, já no vestiário, ouvi um barulho, uma confusão do lado de fora. A polícia chegou. Vieram me chamar: “Volta!”. Eu disse que não poderia voltar, porque tinha sido expulso. E eles: “Volte, porque o juiz é que vai sair. Quem vai apitar o jogo é o bandeirinha. Você vai jogar!”. Voltei. O juiz é que foi expulso….”. ( O jogo contra o Millionarios, no estádio El Campin, terminou com a vitória do Santos por 5 a 1).

OS MAIORES : “É difícil dizer, porque joguei contra grandes jogadores. Mas poderia citar George Best – que seria um grande jogador, se não fossem os pequenos problemas de cabeça que teve. Atuei contra Bob Charlton, excelente jogador. Igualmente, Cruiff, Eusébio,Beckenbauer, Bob Moore. Di Stefano e Puskas foram excelentes. Tivemos uma boa fase de Maradona.. Nestes últimos tempos, foi o jogador que apareceu melhor. Um pouco antes, tivemos Zico. Alguns dos melhores foram estes”.

OS GRANDES MARCADORES: “Nunca foi fácil jogar, principalmente na minha situação, eu que era sempre marcado homem a homem. Tive marcadores que admirava, como Passarela, Nilton Santos,Beckenbauer e Bob Moore. O italiano Fachetti também foi um bom marcador”.

A VIDA EM VÁRIAS FRENTES: “Tenho a base ( financeira) que obtive no futebol. Toda vez que há eleição no Brasil, alguém me oferece: quer ser candidato a presidente? Digo que não. Não quero fazer política diretamente.Quero ajudar, mas não como presidente. De vez em quando, me oferecem a possibilidade de ser candidato a presidente da Fifa. Não sinto que deva”.

O DESCANSO DO REI: “Gosto de passar meu tempo livre com meu violão – fazendo música. Tenho algumas gravadas. Gosto também de fazer música para crianças. Outra coisa que gosto de fazer, quando tenho tempo de relaxar, é pescar. Vou pescar no barco de um amigo. Ou então me recolho a meu sítio, no interior de São Paulo, onde existe uma lagoa. Lá, passo uma semana, dez dias, depois de um ano inteiro de trabalho. Volto relaxado”.

O DESTINO: “Meu pai era jogador. Quando eu via meu pai jogando, pensava: “Um dia, vou ser igual a ele”. Mas nem sempre ele ganhava. Quando meu pai perdia, chegava em casa inseguro. Pensei: tenho de me preparar para não perder nunca- e ganhar sempre. Nasci para jogar futebol. Deus me deu esse destino”

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junho 18, 2010

JOSÉ SARAMAGO

RELATO COMPLETO DE UM ENCONTRO COM SARAMAGO : “PARA QUE TUDO ISSO ? VOU MORRER SEM ENCONTRAR A RESPOSTA. CREIO QUE NINGUÉM NUNCA ENCONTROU”

José Saramago morreu. O Dossiê Geral pede licença para republicar o relato de um encontro com o homem:

A ficha que a gente preenche quando chega a um hotel sempre pergunta qual é a nossa profissão.

Se dependesse de mim, eu escreveria : “agente provocador”.

Imagino a cena de um filme B de décima-oitava categoria: o gerente da espelunca - com camiseta branca, barriga estufada e um lápis encaixado atrás da orelha - tiraria o cigarro de palha da boca, cuspiria de lado e me perguntaria, com voz fanhosa e entonação de personagem mal dublado de filme de TV : “Quer fazer o favor de dizer o que diabo significa “agente provocador” ? Alguma piadinha de mau gosto, por acaso ? Sinto muito, forasteiro, mas não temos vaga. É melhor você ir andando, se ainda estiver pensando em salvar a própria pele ! O último agente provocador que passou por aqui virou banquete para as águias daquela montanha. Get out of here, coiote!”.

Vou. Sem tiroteio, sem cenas de ação, sem pancadaria no saloon, sem cavalos em fuga, o filme B termina sob as vaias da plateia. Não poderia ser de outra maneira.

Mas, como todo filme deve ter uma ponta de verdade, o locutor-que-vos-fala declara que sim, se pudesse, escreveria as palavras “agente provocador” no espaço destinado à profissão. Afinal de contas, que outras coisas úteis um repórter pode fazer na vida, além de cumprir o papel de agente provocador diante dos entrevistados ? Poucas. Pouquíssimas.

De vez em quando, a tática da provocação pode dar resultado. Ou seja: pode levar o entrevistado a produzir declarações interessantes.

Dou um exemplo aos senhores jurados. Quando fui entrevistar José Saramago, o escritor que permaneceu fiel ao Partido Comunista Português independentemente das mudanças da paisagem política, comuniquei ao meu demônio-da-guarda: “Vou dar uma cutucada no bicho. Vou insinuar que ele é um dinossauro político. Quero ver o que ele diz”. Meu demônio-da-guarda se limitou a expelir um daqueles suspiros com cheiro de enxofre e a rir uma risada de bruxa de desenho animado, como se dissesse: “Você vai levar uma patada. Quero ver!” (a bem da verdade, diga-se que, tempos depois, o “dinossauro político” e “comunista de carteirinha” Saramago escreveu um artigo criticando pela primeira vez a rigidez de penas impostas pelo regime cubano a dissidentes. A lembrança do encontro com Saramago me veio quando li, neste fim de outubro, a notícia de que o homem acaba de lançar um novo romance – “Caim”, uma espécie de acerto de contas com Deus).

De fato, Saramago reagiu com alguma irritação à nossa provocação. A entrevista estava salva. Num gesto de cortesia, o português laureado com o Nobel de literatura ainda citaria o nome de três escritores brasileiros a quem ele concederia – de bom grado – o prêmio.

Ei-la:

O senhor é até hoje filiado ao Partido Comunista Português. Não tem medo de ser visto como um animal político em vias de extinção?

(O espírito de porco que quiser irritar o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago já sabe o que fazer : basta chamar o homem de dinossauro político. Quando ouve a insinuação político-zoológica, o cordato Saramago imprime um tom incisivo à resposta)

Saramago: “Há muitas coisas em vias de extinção que deveriam preocupá-lo mais : profissões que se acabam, culturas que desaparecem, línguas que perdem sentido porque já não têm ninguém que as fale, um planeta que estamos destruindo. Deixemos lá os dinossauros políticos. Porque acontece uma coisa curiosa : é preciso ter cuidado com a expressão “dinossauro político”. Pode chegar o momento em que, tal como acontece com os dinossauros autênticos, os estudiosos andem à procura dos ossos dos dinossauros políticos, para tentar reconstituí-los tal como eles teriam sido. Talvez um dia se venha a necessitar dos ossos dos dinossauros políticos que nós somos para que se entenda o que acontecia no mundo”.

( Minha tática de agente provocador funcionou : quando se sente confrontado, o dinossauro Saramago reage com um punhado de frases afiadas,o que não deve ser difícil para quem se notabilizou como exímio esgrimista das palavras)

Usa-se no Brasil a expressão “comunista de carteirinha”. O senhor anda com a carteirinha do Partido Comunista Português ?

Saramago: “Não ando com ela. Tenho cartões e carteirinhas de várias e várias instituições com quem mantenho relações. Não ando com as carteirinhas de todos. Mas pago a minha cota ao PC”.

O dirigente comunista Álvaro Cunhal entregou ao senhor uma carta que não deveria ser aberta. Que segredo essa esse ?

Saramago : “Álvaro Cunhal na verdade escreveu uma carta que nunca li, porque a carta só me seria entregue se ele não tivesse sobrevivido a uma intervenção cirúrgica a que foi submetido na União Soviética. O que sei é que ele escreveu cartas que seriam entregues a vários destinatários se ele não tivesse sobrevivido. Não é o Terceiro Segredo de Fátima : ele próprio me comunicou, depois, ter dito, na carta, que esperava que eu nunca saísse do Partido Comunista Português. Não saí. Não sairei. Em todo caso, a carta nunca me foi entregue”.

Independentemente do apelo que seria feito nessa carta, jamais lhe passou pela cabeça a idéia de largar o Partido Comunista ?

Saramago: “Não tenciono efetivamente – para usar a expressão que você usou – “largar” o Partido Comunista, a não ser que ele me largue. Quero dizer : se amanhã o Partido se transformar em outra coisa, como aconteceu com a maioria dos partidos comunistas europeus, posso não reconhecer o Partido a que aderi. Nesse caso,é possível que eu saia. Mas espero que não aconteça”.

Por que é que o Prêmio Nobel de Literatura não gosta de falar de literatura ?

Saramago : “…Mas eu nunca disse que não gosto de falar de literatura! O que disse foi que cada vez menos me interessa falar no assunto.Não é que não goste.Se é meu trabalho,como é que não iria gostar ?
Quando se publica um livro, ou por qualquer outro motivo, ligado ou não ligado a mim, falo de literatura, evidentemente. O que acontece é que considero que os problemas do mundo não se esgotam na literatura. São tão graves e tão importantes que, se tenho a oportunidade, até quando trato de literatura trato de abordá-los. Não é dizer que não gosto de falar de literatura”.

O senhor já disse que o Brasil é um país de luzes e sombras. Aos olhos do mais famoso escritor português de hoje,qual é a grande luz e qual é a grande sombra que o Brasil projeta ?

Saramago: “Uma pergunta dessas não é fácil de responder. Países de luzes e sombras de uma maneira ou de outra todos o são. O que digo em relação ao Brasil é que o país poderia ser, pelas riquezas naturais e pelas características do povo, um país em que as luzes predominassem. Não digo que as sombras é que predominam. O que quero dizer é que as sombras poderiam ser menores e menos graves”.

Se o senhor fosse fazer hoje o papel do escrivão Pero Vaz Caminha,quinhentos anos depois, qual seria a primeira frase que escreveria sobre o Brasil ?

Saramago : “Depende do lugar onde eu desembarcasse. Se desembarcasse em Copacabana, quando se arrebentaram os esgotos nas praias no Rio de Janeiro, diria ao rei Dom Manuel que aqui não poderia viver ninguém, porque o lugar cheira mal .Se, pelo contrário, desembarcasse numa praia limpa, coberta não de índias despidas, mas de lindas moças quase despidas, diria que aqui é um sítio para viver, uma terra linda. Se, no entanto, começasse a encontrar as favelas, diria : “Mas o que é que se passa aqui ? Eu julgava que os índios viviam de outra maneira!”.

O senhor ainda se sente “como uma Miss Universo”, com a agenda atolada de compromissos depois do Prêmio Nobel ?

Saramago : “Fiquei com a sensação de que as agendas de uma Miss Universo e a de um escritor premiado eram bastante parecidas. Mas hoje posso dizer que não se parecem em nada. As obrigações e responsabilidades de uma Miss Universo duram um ano. Haverá, então, outra Miss Universo ,não só com a coroa na cabeça, mas também com o dever de fazer tudo aquilo que a predecessora fez. Mas,no meu caso – eu, que, não sei se feliz ou infelizmente, não pareço em nada com a Miss Universo – as obrigações não cessaram pelo fato de em 1999 Gunter Grass ter ganho o Prêmio Nobel.

Diga-se que o Prêmio Nobel não impõe rigorosamente nenhuma obrigação. O sujeito chega lá, recebe o Prêmio e vai para casa. Depende da vontade do escritor o uso que ele fará do tempo – o emprego que fará de suas possibilidades de comunicação, se vai continuar a escrever, se vai ter contatos com os leitores.
Como o Prêmio Nobel foi atribuído a um escritor de língua portuguesa, é claro que minhas obrigações e responsabilidades se multiplicaram. Eu entendi que deveria assumi-las”.

Qual é o maior incômodo que um Prêmio Nobel enfrenta, além do fato de ser sempre importunado por jornalistas, como o senhor agora ?

Saramago: “Poderia responder que o outro maior incômodo é ser importunado por fotógrafos. Mas não. Incômodo não há nenhum. O que acontece é que se perde a invisibilidade depois que se ganha o Prêmio! É o pior. Evidentemente que é agradável ser reconhecido na rua e em qualquer parte, no aeroporto ou no restaurante. É agradável ver um leitor se aproximar para nos dizer uma palavra amável sobre o que leu. Em todo caso, não é que eu preferisse voltar ao anonimato, mas não há dúvida de que há momentos em que gostaria de me tornar invisível. Só não quero ser ingrato. Todos me tratam com tanto carinho e tanta atenção que qualquer palavra minha nesse sentido poderia parecer de algum modo uma ingratidão. Não é. Apenas que vez em quando sinto a necessidade de recolher-me à minha própria privacidade – que, enfim, já se perdeu”.

A que escritor brasileiro vivo ou morto o senhor concederia o Prêmio Nobel de Literatura ?

Saramago: “Não me importaria nada dar a eles o Prêmio, se fosse membro da Academia Sueca: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Sem nenhuma dúvida, eu, membro da Academia Sueca, atribuiria o Prêmio a qualquer um dos três. Mas não foi assim que aconteceu."

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Jorge Amado e José Saramago: o português daria o Nobel ao brasileiro (Foto: Site Fundação José Saramago)

O senhor tem uma visão essencialmente pessimista diante do mundo. O pessimismo é bom para a literatura ?

Saramago : O pessimista não é bom nem mau para a literatura, mas não tenho uma visão pessimista do mundo. Num momento como esse, pareceria, a mim, um pouco surpreendente que alguém se atrevesse a ser um otimista.Quem, diante do espetáculo oferecido pelo mundo em que vivemos, veja razões para ser otimista é uma pessoa que ou não percebe aquilo que se passa ou então faz de conta que não entende.O melhor, então, é deixarmos de falar em otimistas e pessimistas. Os fatos são os fatos. Não há otimismo ou pessimismo que faça com o que um fato deixe de ser um fato .A interpretação do fato é que pode variar. Mas o fato continua lá.

Penso que os fatos desse mundo, dessa vida, desse planeta, dessa sociedade humana são fatos suficientemente sérios e graves.Temos de enfrentá-los não para divagar sobre o otimismo e o pessimismo com que poderíamos considerá-los mas para pelo menos compreendê-los e, se possível, tentar resolvê-los”.

Mas há dois fatos que são aparentemente indiscutíveis no mundo de hoje. Primeiro : o fato “otimista” de que nunca tantas pessoas em todo o mundo viveram tão bem e tiveram acesso a tanta riqueza. O fato “pessimista” é que nunca foi tão grande a diferença entre pobres e ricos. Diante desse quadro, o senhor não tiraria nenhum motivo para enxergar o futuro com algum otimismo ?

Saramago : “Não. Se a parte negativa não existisse, então eu diria : uma vez que nunca houve tanta gente vivendo tão bem, pode-se presumir que, no futuro, haja ainda mais gente que vai viver igualmente bem. Mas, como você mesmo acaba de dizer, nunca foi tão grande a diferença entre os que têm e os que não têm .Tudo indica que a diferença vai ampliar-se. Não vem se reduzindo.

É evidente que há mais pessoas que estão vivendo bem. Mas também há mais pessoas vivendo mal. Como a população da terra vem se multiplicando, pode-se dizer que, se alguma parte vai se integrar à minoria que vive bem ou razoavelmente bem, muito mais gente vai se incorporar à parcela dos que vivem mal. Além de tudo,não se deve esquecer que há uma tendência para a pauperização das classes médias. Há uma parte mínima da classe média que ascende – e passa para o outro grupo. Mas há uma parte da classe média que vai se aproximando cada vez mais da parte desfavorecida.

Volto a dizer que não há pessimismo nem otimismo. Repito : os fatos são os fatos. Noto também que o problema já não é ter ou não ter. O problema – não menos importante – é saber ou não saber. É cada vez maior o número de pessoas que não sabem.Ou sabem mal aquilo que julgam saber. É cada vez menor o grupo de pessoas que detém todo o conhecimento – e de certa forma usa-o para levar o mundo para onde o mundo vai”.

Por que os escritores brasileiros são tão ausentes de Portugal e os escritores de Portugal tão ausentes do Brasil ?

Saramago : Pode-se pensar, por exemplo, que leitores de um país não dêem atenção suficiente àquilo que se publica no outro. Pode-se pensar que os temas que tratam os escritores de um país não interessam aos leitores de outro. Mas também se pode pensar que não há um trabalho de fundo para aproximar os dois. É certo que os escritores portugueses vêm aqui. É certo que os escritores brasileiros vão a Portugal. Mas há algo que se passa que não sei explicar. Temos de pensar no seguinte : o leitor também tem suas razões para preferir ou não preferir. Quero crer,no entanto, que seria bom se houvesse um trabalho contínuo de ajuda à edição – evidentemente, é preciso ver até que ponto tal ajuda é economicamente viável .O que é lamentável é que seja assim. Sou uma exceção. Eu próprio me pergunto por quê. Não sou capaz de dar uma explicação.

Talvez o que se devesse fazer seria perguntar aos leitores: por que não os interessa a literatura portuguesa? Por que não os interessa a literatura brasileira ? Como é que poderiam se interessar ? Por que os interessa um determinado autor – e não outro ? Fernando Pessoa é muito lido no Brasil. Cem anos depois, Eça de Queiroz também o é. Já Machado de Assis não é tão lido em Portugal como Eça de Queiroz é no Brasil. Faça-se um inquérito para que se chegue a alguma conclusão”.

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Saramago, Sebastião Salgado, Chico Buarque (Foto: site Fundação José Saramago)

O primeiro escritor brasileiro com quem o senhor teve contato deixou alguma influência na formação do senhor ?

Saramago: “Não posso jurar, porque foi há muitos e muitos anos. Mas o primeiro pode ter sido Raul Pompéia,com esse livro extraordinário que é O Ateneu. Você me pergunta se ficou alguma influência da leitura. Claro que não, porque eu era muito novo.Ainda não pegava essas coisas. O resto foi a aprendizagem. Uso essa palavra propositadamente ,porque o que houve comigo foi a aprendizagem de uma literatura escrita em minha própria língua, mas criada e imaginada em outro lugar – o Brasil ,com tudo o que para mim representou a descoberta não só dessa literatura,mas também das realidades sociais e culturais que estavam por trás dos livros”.

Uma crítica publicada numa revista brasileira sobre o livro “A Caverna” diz que “a literatura refinada de Saramago dessa vez dá lugar a um sermão”. O senhor acha que a denúncia das mazelas do mundo pode eventualmente comprometer a qualidade literária ?

Saramago : “Tenho que dizer que nunca comento qualquer crítica. É um princípio meu. Eu escrevo o que entendo;o crítico escreve o que entende. Comentários meus sobre uma crítica ninguém encontrará,em toda minha vida”.

Uma velha pergunta : o senhor escreve para fugir da morte ?

Saramago : “Não, porque ninguém foge da morte. É uma ilusão. O que pode acontecer é pensarmos – e devo ter pensado – que se escreve porque não se quer morrer. Parte-se do princípio de que a obra vai ficar ,não se sabe por quanto tempo. Hoje, não sou tão ambicioso. Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas”.

O senhor escreveu, no livro “A Caverna”,que as frases de efeito são “uma praga maligna”.Qual é a frase de efeito predileta de José Saramago?

Saramago :”Tento evitar,o mais que posso, as frases de efeito. Mas nem sempre consigo fugir à tentação de escrever uma. Só espero é que, se elas são só frases de efeito, as pessoas que as leiam ou as ouvem não as tomem demasiado a sério”.

Se o senhor fosse definir o Brasil numa só palavra, que palavra o senhor usaria ?

Saramago: “Como é que se pode definir numa só palavra ? Se pudesse usar nem que fossem duas palavras, talvez eu conseguisse. Dê-me três palavras…..”

Quais seriam,então, as três palavras ?

Saramago: “Eu definiria assim o Brasil: “Quando se decidem ?”.

Qual é a grande pergunta que o escritor José Saramago não conseguiu responder até hoje ?

Saramago : “A pergunta que não consigo responder é muito simples : para quê ? Para que tudo isso ? Vou morrer sem encontrar a resposta. Creio que ninguém nunca encontrou”.

Levada ao ar na Globonews, a entrevista com José Saramago foi publicada, na íntegra, no livro “As Grandes Entrevistas do Milênio”, recém-lançado pela Editora Globo

Posted by geneton at 11:14 AM

junho 09, 2010

JOÃO SALDANHA

DOCUMENTO / JOÃO SALDANHA MANDA LEMBRANÇAS : UM ENCONTRO COM O TÉCNICO QUE “INCENDIOU” A SELEÇÃO BRASILEIRA

A Globonews vem levando ao ar esta semana ( às 19:30, com reprise 7:30 e às 15:30 do dia seguinte) uma série de entrevistas que o locutor-que-vos-fala fez sobre os bastidores do futebol – aqueles lances que o torcedor não vê. O time de entrevistados do GLOBONEWS EXTRACAMPO é de primeira: Ricardo Rocha (Copas de 90 e 94), Carlos Alberto Torres (1970), Leão (74,78 e 86), Roberto Carlos (98,2002 e 2006) e Zico (1978, 82 e 86).

Um nome que invariavelmente é citado em época de Copa do Mundo: João Saldanha, o jornalista que, na pele de técnico da seleção brasileira, abriu o caminho para a conquista do tri-campeonato mundial.

Época de Copa de Mundo é o momento ideal de ouvir o que João Saldanha dizia. Tive a chance de entrevistá-lo.

Voilà :

Guardo em meus arquivos implacáveis a fita (precariamente gravada) de uma entrevista que fiz com um homem que entrou para a história do futebol brasileiro: o cronista esportivo desbocado que virou técnico da Seleção Brasileira. Nome: João Saldanha.

Não era uma figura de “meias palavras”. Ganhou fama de “desbocado”, o que pode ser visto como uma virtude, num país habituado à cultura do ôba-ôba. Assim que assumiu o posto, foi logo anunciando o time titular – imediatamente batizado pela imprensa como “as feras de Saldanha”. A situação de Saldanha no comando da seleção cedo ou tarde criaria desconfortos: era um comunista dirigindo a Seleção Brasileira sob uma ditadura militar.

Terminou batendo de frente com o governo – não por motivos políticos, mas, supostamente, por tentar ficar imune a ingerências indevidas. Telefonei num domingo à noite para a estação de rádio onde ele gravava comentários. Saldanha marcou o encontro para o dia seguinte, no início da tarde, na redação do Jornal do Brasil. Fiquei esperando pelo homem, na recepção. Quando ele chegou, foi direto ao assunto : não era de perder tempo falando sobre as fases da lua. A entrevista poderia começar um minuto depois, numa mesa da redação. Assim foi feito. O caminhar era ligeiramente torto. Usava a camisa por dentro das calças. Fumava.

Sete anos depois, morreria, em plena Copa do Mundo de 1990, na Itália, vítima de um enfisema pulmonar.
E agora, caros ouvintes, vai falar o homem que quer para o Brasil a alegria da geral do Maracanã, vai falar o homem que desagradou o ditador quando era técnico da seleção brasileira de futebol; vai falar o único convidado que teve coragem de ir jantar com o presidente João Goulart numa noite de exílio no Uruguai. A bola é tua, João Saldanha!”.

GMN : Ainda hoje correm histórias de que o afastamento de João Saldanha do cargo de técnico da seleção brasileira de futebol se deveu a motivos políticos. De uma vez por todas, para passar a limpo esse caso: é verdade?

João Saldanha: “De uma vez por todas para você! (em tom irritado). Afirmei e reafirmei e outras fontes metidas no meio também. Claro: na época fui convocado para a seleção brasileira no governo Costa e Silva. E Costa e Silva, estranhamente, morreu no meio do caminho. O governo mudou. Houve uma série de modificações na cúpula. E entrou o governo Médici – que, como precisava de uma frente bem ampla, resolveu usar a seleção, como vários governos usam até hoje. Inclusive o governo Figueiredo usa a seleção. Por exemplo: eu estou chegando da Europa, fui acompanhar jogos de uma seleção brasileira que não representava coisíssima nenhuma, por motivo algum. Nem a Europa dava bola. A não ser na cidade onde a gente estava, a outra cidade ao lado não sabia que a seleção brasileira estava jogando. Isso nunca aconteceu! É jogada política. Naquela época, também.

O presidente … Aliás, não chamo de presidente da República porque costumo chamar de presidentes os que foram eleitos; não os usurpadores do poder. Então, o usurpador do poder naquele momento era o senhor Médici – que desejava popularidade e quis fazer popularidade através da seleção. Não era um bom caminho. Eu não estava de acordo. Nós éramos apenas um time de futebol. Mais nada!

Quiseram impor a convocação de Dario – por sinal, um bom jogador.
Era de alto nível, mas não de tão alto nível como eram os jogadores de que a seleção precisava, como Pelé, um Tostão, um Dirceu Lopes, um Gérson, um Clodoaldo, um Rivelino, um Jairzinho. Embora Dario fosse um bom jogador do ranking brasileiro, não existia lugar para ele nessa turma.
Mas, como Dario era do Atlético Mineiro e o governo naquele tempo precisava uma barretada pra Minas Gerais, quiseram botar Dario à força. Recusei. Puseram para fora Toninho – do Santos – um grande goleador com quase novecentos gols, por causa de uma sinusite. Antônio do Passo e João Havelange diziam: “Pelo amor de Deus, convoque Dario, nem que seja pra ele nem mudar de roupa. Convoque pelo nome, porque vamos ficar bem com os homens e precisamos de dinheiro!”.

Não convoquei. Convoquei até homens de meio-de-campo. Neste momento, entrei num atrito desvantajoso”.

GMN: A pressão do general Médici para ver Dario na seleção brasileira era indireta, através de declarações, ou ele chegou a pressionar diretamente?

Saldanha: “Pressão direta se fazia através dos homens da CBD. Era indireta em relação a mim. A pressão direta era lá com os homens. Diziam: “Ou bota Dario ou sai fora”. Chegaram e me disseram: “João, não podemos agüentar mais! Faça isto!”.

João Havelange dizia: “Pelo amor de Deus, convoque Dario! Convoque pelo nome!” Se convoco Dario, tudo bem. Eu ia me avacalhar! Mas não tenho hábito de me avacalhar. Não me avacalhei. A seleção brasileira, felizmente, ganhou a Copa do Mundo no México, em 70. Se não, eu não poderia nem voltar para o Brasil (N: na época da Copa, João Saldanha já tinha sido substituído por Zagalo).

Quando eu ia sair do Brasil para o México, fui posto para fora do avião no Aeroporto do Galeão, embora tivesse passagem comprada, passaporte, tudo certinho. Tive de ir para o México. para ver a Copa, pelo caminho que Ronald Biggs, aquele ladrão de trem, fez. Fui parar em Port of Spain, via Pará-Paramaribo. Lá, vendem umas passagens estranhas de ida-e-volta, assim numa espécie de falso turismo, porque nem precisa de passaporte nem nada. Avião de vagabundo. Fui parar lá. De Paramaribo, não voltei. Comprei uma passagem com meu passaporte, tudo legal e fui para Port of Spain. Lá, peguei a Pan-American para a Guatemala e, só então, fui para o México. Cheguei três dias depois de quando tinha saído do Brasil”.

GMN: Que argumento usaram para evitar o embarque do senhor no Galeão?

Saldanha: “O argumento da força! Nenhum outro. É o argumento da ditadura. Porque a ditadura faz a lei: “A Lei sou eu”.

GMN: Não houve, então, explicação alguma?

Saldanha: “Não. Dizem: “Não pode ser; o senhor foi barrado”. Digo: “Mas estou preso?”. E eles: “Não”. Ora, eles já me puseram nu no Aeroporto do Galeão duas vezes. Uma vez em 1968, quando fui para o Uruguai e lá visitei amigos que eram exilados políticos. Um foi exilado para o Uruguai junto com meu pai, há coisa de quarenta anos. Casou, ficou por lá. Não era nem exilado! Era um homem que morava no Uruguai. Mas morava embaixo do apartamento de Brizola. Era Brizola no sexto e ele no quinto. Um nem via o outro!

Almocei também com João Goulart – que tinha convidado toda a imprensa para ir almoçar com ele. Ninguém foi. Havia uma mesa para trinta pessoas, mas ninguém apareceu. Só nos dois: eu e João Goulart.

Nós estávamos com uma seleção brasileira, em Montevidéu. João Goulart disse: “Vamos almoçar lá em casa!”. Nunca tinha visto João Goulart na vida; nunca tinha falado com ele. Mas, como eu tinha dito a ele que ia, fui. Aquela foi a primeira vez em que falei com ele, quando fui almoçar, uma conversa trivial. Quando voltei, me botaram nuzinho no Aeroporto, no Brasil. Arrancaram a sola do sapato, descoseram minha camisa, mexeram numa maleta vagabunda que eu tinha levado. Como eu só ia passar dois, três dias, não tinha levado bagagens. E me puseram nu. Fiquei lá horas e horas; cinco ou seis horas”.

GMN ; Nesta viagem, o senhor nem era ainda técnico da seleção, viajava como jornalista …

Saldanha: “Eu era jornalista da Rádio Globo e da TV Globo. Fui lá fazer a cobertura do jogo. Mas, como conversei com João Goulart, o presidente da República. . . Ele era presidente porque tinha sido eleito e foi posto para fora. O Estado não era ele e deu o que deu. Paciência. Tenho 40 anos de janela. Tiro esse troço de letra”.

GMN: O que é que ficou desse encontro com João Goulart, já que foi o primeiro?

Saldanha: “João Goulart no Uruguai nadava que nem peixe na água. Era um grande fazendeiro; o mais rico fazendeiro do Uruguai. Era de uma famosa firma de fazendeiros do Rio Grande do Sul. Sou gaúcho. Conheci a firma de nome. João Goulart tinha uma grande fortuna. Ia e vinha para o Brasil no dia que queria, num avião particular. Descia numa fazenda, no Brasil. Tinha uma fazenda em Goiás, Ilha do Bananal. Era um grande fazendeiro. Batemos um papo alegre e informal. Política? O que é que adiantava entrar em política? “Eu penso isso. . .” Não adiantava pensar! A ditadura estava no Brasil – como até hoje existe uma meia-ditadura. Eu é que te pergunto agora: vai ter eleição direta ou não? Aposto que não vai ter; você aposta que vai ter, sei lá! Por que é que se faz assim? Porque não temos Constituição nem lei nem nada “.

GMN: Ainda a respeito do problema do envolvimento do futebol com política: já apareceram dezenas de sociólogos e antropólogos para tentar explicar o fascínio que o futebol brasileiro provoca no povo. O futebol – afinal de contas – o que é que representa, fora do gramado, para o Brasil?

Saldanha: “O futebol é um ramo da arte popular. O Brasil é um país eminentemente pobre. Para o futebol, basta uma bola. O menino descalço pode jogar. Uma rua, uma bola de pano ou de borracha, uma bola qualquer e pronto: o menino joga. Como esporte de pobre, é evidente que o futebol tem uma transa bem maior com o Brasil do que com a Dinamarca … É só. É uma expressão da arte popular. Todo mundo tem necessidade de expandir a vocação artística em qualquer coisa. Há cantor de banheiro às dúzias e jogador de futebol aos milhões. Poucos, entretanto, conseguem atingir o estrelato”.

GMN; O que é que o senhor diz das teorias de intelectuais que dizem que o futebol no Brasil é um fator de alienação do povo?

Saldanha: “É errado. Futebol não é alienação nem nada: é lazer. E lazer faz parte da vida. O homem precisa -para viver – de casa, comida, roupa; são indispensáveis ao ser humano. Para manter essas coisas, precisa de trabalho. Para viver, precisa de lazer. Precisa caminhar, passear, namorar, se divertir e tudo o mais. O futebol é um lazer que tem uma expressão de arte, como o tênis.

O futebol tem dois aspectos: um, daquele que o pratica – o artista; outro, daquele que o vê – é o torcedor no lazer. O Brasil é um país pobre e tropical, o que permite que este esporte seja praticado o ano inteiro, o que não é o caso da Suécia, norte da Europa nem Inglaterra nem o norte da França, onde não se pode jogar porque faz frio. Mas no Brasil pode-se jogar o ano inteiro- inclusive no Rio Grande do Sul – o lugar mais frio. Lá na Europa não dá, por causa da neve e do gelo. Isso cria uma massa de milhões de admiradores.

Por outro lado, nossa formação etnológica e a etnográfica deu, coincidentemente, ao brasileiro, condições para a prática do futebol. Os músculos flexíveis e aquecidos naturalmente são da nossa própria formação biológica. O negro veio da África como uma das raças mais primitivas: só tinha os braços e as pernas … Você vai dizer: “E o índio?”. O índio já não é primitivo; é anterior ao primitivismo… Então, nossa formação, essa etnologia toda nos permite os músculos e a vivacidade para executar bem esse ramo da arte. Veja bem que digo vivacidade. Nada tem a ver com outro ramo importante da vida que é a cultura. Nós somos paupérrimos em cultura, embora riquíssimos em esperteza e vivacidade. Quando Euclides da Cunha disse “o sertanejo é antes de tudo um forte”, ele deveria ter dito “o sertanejo é antes de tudo um esperto”. . . Não é tão forte não, porque morre cedo”.

GMN: Durante a época do técnico Cláudio Coutinho, a imprensa publicou matérias que falavam na “militarização dos esquemas de trabalho na seleção “. Isso aconteceu?

SaIdanha: “Claro que aconteceu. Quando fui convocado, chamaram também Coutinho, Bonetti e uma série de militares. Tentaram impor um esquema militarista de vigilância e segurança, algo policial. Depois, de fato, quando fui posto para fora, havia seguranças, leões de chácara da seleção. Eram esquemas de homens armados com metralhadoras e o diabo a quatro. E foi ridículo na Argentina, onde deram rajadas de metralhadora num barulho de fundo de quintal que nada mais era do que uma cadela no cio e um monte de cachorro atrás. . . Gritavam:”Pára! Pára! Pára!”. A cadela não entendeu e eles metralharam…. Houve um monte de coisas ridículas assim. Isso ainda existe. Dentro de vários clubes existe este esquema policial. É um derivativo do próprio sistema.

É um sistema policial em que qualquer terceiro escalão aí, qualquer sub-gerente de finanças do subnitrato do pó de mico tem dois, três seguranças. Você olha, vê três homens do tamanho de um armário guardando um cara e, quando você vai perguntar quem é, dizem: “Ah, é o caixa não sei de onde”. . . Bolas! Isso faz parte do sistema – que parece, e felizmente – vem melhorando. Não sei. Ainda estou em dúvida se vamos ter eleições diretas ou se vão ser eleições palacianas de bolso de colete “.

GMN: Quem é o maior responsável pela conquista do tricampeonato mundial de futebol: João Saldanha – que deixou o time pronto – ou Zagalo – que completou a festa?

Saldanha: “Os responsáveis são: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson, Jair, Pelé, Tostão e Rivelino. A minha participação: foi coincidente. Tive a felicidade de encontrar no Brasil uma fertilidade tamanha de jogadores que me obrigava a deixar Ademir da Guia, Edu e outros cracões sem possibilidade de serem convocados. Quem é que eu ia botar para fora, para chamar Ademir da Guia? O Gérson? Rivelino? Clodoaldo? Tostão? Pelé? Quem? Não tinha jeito”.

GMN: Ainda se compram juizes e jogadores no Brasil?

Saldanha: “Só em nível bem apodrecido de fim de carreira é que acontece. O fator corrupção vem desde os mais altos escalões da vida nacional até os mais subalternos. Futebol não é exceção, porque é uma parte da vida social brasileira. O que existe na vida social brasileira existe no futebol também. O tóxico, o homossexualismo e a corrupção existem em proporção igual”.

GMN: Pelé foi sacana quando não apareceu na morte de Garrincha?

Saldanha: “Não, porque Pelé aí ia ser um agente funerário: qualquer jogador que morresse, ele ia ter de comparecer. Pelé até se manifestou da maneira mais simpática, porque estava lá longe, com uma série de compromissos. Tinha de pegar um avião e vir correndo ao Brasil, sem nem saber a hora, o dia nem coisa nenhuma? Se fosse assim, seria um ato demagógico. Não sei, porque eu não estava nem presente. Não fui.
Garrincha era um amigo meu. Fomos companheiros de clube anos e anos. Amigo íntimo, amigo de problemas os mais íntimos. Não pude comparecer nem ao enterro nem à missa nem coisa nenhuma, porque eu não estava no Brasil. Vontade não me faltou- se bem que, particularmente, não goste de enterro. Não tenho vocação de agente funerário. Prefiro a imagem dos amigos vivos.

Pelé foi apenas sincero. Ia vir da caixa-prego para chegar ao Brasil? Então, não seria enterro de Garrincha; seria a vinda de Pelé. Acontece um bocado em enterro de vedetes. Outro dia, durante quarenta e oito horas, no velório de Clara Nunes – que foi velada mais do que o comum – houve um desfile e um show de exibicionismo podre e sujo. A morte seria mais respeitada. . . A morte, não: a vida. A morte…. Morreu, dane-se, acabou, para mim…. Então, a vida seria mais respeitada com uma saudação póstuma, uma manifestação de tristeza através de um pronunciamento discreto, coisas que não são chocantes.
Mas não: a morte de uma vedete hoje em dia é um show de televisão, uma palhaçada. Pelé fez bem em não parti- cipar de palhaçada”.

GMN: Os críticos de Pelé dizem que ele é um gênio dentro do campo e um desastre fora, pelas coisas que ele diz, etc. O senhor – que foi técnico de Pelé – o que é que diz da figura de Pelé fora do campo?

Saldanha: “Concordo em parte. Dentro de campo, Pelé foi um gênio, o maior que conheci. Fora do campo, é um homem comum. Querem que ele seja fora do campo o que ele foi dentro do campo. Isso talvez não seja compatível. Digo francamente, porque não tenho nenhum problema com jogador e ex-jogador nenhum. Nunca tive. Sempre os tratei com respeito e exigi respeito. A vida particular de cada um? Só me preocupava uma coisa: se joga bem, entra no time. Mas, se é homossexual, se é ladrão, se é isso ou aquilo, não sou nem nunca fui crítico de moral para dizer. Sempre entendi que eles fazem parte de uma sociedade tal qual ela é e não tal qual eu desejava que fosse.

Claro que eu desejaria que fosse uma sociedade boa e eles fossem bons em tudo. Não são. Paciência. Não conheci Pelé fora, uma vez ou outra comemos juntos e batemos papo à toa. Toda vez que a gente se encontra é aquilo: “Como vai, chefe?” – ele me chama de “chefe” e eu chamo “ôi, negão”. É papo informal sem maior intimidade.

A crítica que se faz a Pelé traz um bocado de inveja. Um crioulo no Brasil que fica rico é “besta”. Mas com branco rico não existe problema. Paulo César dá uma resposta boa quando perguntam por que é que todo crioulo rico pega logo uma loura. E aí ele diz: “Vamos inverter a posição: por que é que toda loura pega sempre um crioulo rico?”. Então, pombas, vamos ser realistas e enfrentar a vida com a naturalidade que ela tem. Pelé só deve ser tratado como um grande gênio de uma arte popular. O resto não é um problema social, positivamente”.

GMN: Como é aquela história da miopia famosa de Pelé, antes da Copa?

Saldanha: “Pelé, a meu ver, nunca teve problema de vista. Ele enxerga mais do que nós”.

GMN: Como é que surgiu, então, aquela história?

Saldanha: “Ah, não foi minha! Aquela história deve ter surgido dentro do SNI … Quem tinha problema de vista na seleção era Tostão e, ainda assim, fiz Tostão ser convocado à força. Quando ele foi se operar em Houston, no Texas, eu convoquei só vinte e um – e não vinte e dois jogadores, porque sabia que na operação de Tostão havia mais charlatanismo e publicidade do que propriamente uma lesão.

Quanto a Pelé, não tive nenhum problema. Os retrospectos estão aí. Todas as partidas em que fui treinador ele jogou. Nunca fiz um pronunciamento daqueles sobre a vista de Pelé por duas razões. Uma é que seria injusto: sou leigo e não entendo. Nós só tínhamos uma preocupação quanto à boa visão: com os goleiros. Dos goleiros, a gente exige que tenham uma visão igual aos exames que são feitos com os aeronavegadores, os pilotos de aviação. Quanto aos demais jogadores, o campo visual é tão vasto que nós nunca nos preocupamos. O importante é que enxerguem a bola. E Pelé enxergava!

A segunda razão é que não sou burro. Se eu vejo o cara jogar e ser o melhor jogador do mundo, eu vou dizer “não”? Nunca ele foi barrado por mim. Ao contrário: eu o defendia. Houve uma época em que Pelé não era tão querido nem tão publicitário. Era um simples jogador do Santos. E o Santos não “vendia” em São Paulo. Quem vende lá é Palmeiras, é Corinthians, é São Paulo. O Santos, não. É um time de cidade pequena. Então, ele não era bem visto lá.

A onda não era em cima de mim: era em cima de Pelé. Eu e Pelé já conversamos sobre essa coisa e rimos. Digo: foi um troço torpe. Desafio qualquer um que jamais tenha lido ou ouvido de mim qualquer coisa a esse respeito! “Nós tivemos vários jogadores homossexuais da melhor qualidade.Craques que dormiam com homem” Não sou idiota. E por que eu iria fazer algo tão gratuito, se ele não me devia nem eu a ele? Somos bons amigos”.

GMN: A torcida até hoje não engoliu aquela derrota de 3 a 2 para a Itália na Copa do Mundo de 82 na Espanha, os famosos três gols de Paolo Rossi – nem jamais vai engolir. A culpa foi do técnico Telê Santana, foi dos jogadores ou foi de Paolo Rossi?

Saldanha: “Nós jogamos doze copas do mundo. Ganhamos três. A proporção é de uma para quatro. Nossa chance ali na Espanha foi aquela. Nós poderíamos ganhar, mas este é um julgamento subjetivo. Se tivéssemos um time melhor – que contasse com alguém que soubesse jogar pela direita, não tivesse um goleiro tão frágil e tivesse um ataque mais poderoso… Isso tudo são conjecturas subjetivas. Nós não somos obrigados a ganhar todas as Copas do Mundo. É bom que o brasileiro saiba que ele não é absoluto. É bom que o brasileiro saiba que lá fora há times tão bons quanto os nossos – e às vezes melhores. É bom que o brasileiro saiba que a Europa se atrasou perante nós por causa de uma guerra que dizimou quase toda a juventude entre 15 e 45 anos. Isso não se refaz com decreto-lei nem com planos qüinqüenais. É preciso esperar que nasçam outros, formem-se e reaprendam.

A Europa teve grandes prejuízos com a Guerra, o que nos permitiu um avanço enorme. Quando pegamos a Europa em 58 e 62, ela estava, exatamente, num período de decadência esportiva, porque lhe faltou a juventude que tinha morrido na guerra. E foi uma vantagem que nós tivemos.
Nosso futebol, no entanto, é do melhor nível. Nós estamos na primeira turma do futebol mundial, junto com Alemanha, Itália e Inglaterra. Qualquer um dos quatro é primeira turma. Os outros vêm em segundo escalão”.

GMN; Tinha algum perna-de-pau na seleção brasileira de 82, na Espanha?

Saldanha: “Tinha vários “.

Quem são?

Saldanha: “Não gosto de citar. Não adianta nada. Deixe para o critério de cada um. Quando digo que tinha “vários” pernas-de-pau é que tinha mais de três (ri). Se não, eu diria: “Tinha dois ou três! “. Digo: tinha vários, mais de três, a meu ver. Mas, se digo três, acham que havia seis. Se digo cinco, acham que são três. É subjetivo. Havia jogadores ali que não têm nada a ver com seleção brasileira”.

GMN: O senhor conhece algum caso de jogador profissional que tenha sido prejudicado por ser homossexual?

Saldanha: “Nós tivemos vários jogadores homossexuais da melhor qualidade. Quem é que vocé chama de homossexual? O que faz papel de homem ou o que faz papel de bicha? Homossexual é o homem que transa com homem; é a mulher que transa com mulher. Homem que dorme com homem quatro, cinco anos, quem é a bicha? Não. Eu conheci vários craques que dormiam com homem há não sei quanto tempo. Foram vários – e craques! Não estou ligando. Como apreciador e crítico do futebol, deixo para o “Caderno B” – que aprecia o outro lado da coisa”.

GMN: Em que circunstância João Saldanha voltaria a ser técnico da seleção brasileira?

Saldanha: “Em nenhuma. Quando foi um desafio, eu topei. Deu certo, felizmente. Não perdemos e não atrapalhei. Eu saí oito dias antes da ida para o México. Não mexeram no time, as concentrações já estavam arrumadas. Nós chegamos dois meses antes da Copa ao México. Aliás, Copa no México é uma grande vantagem para nós – que podemos parar a vida do país e mandar um time para lá dois meses antes. Quando os europeus chegam, na véspera da competição, já estamos aclimatados e adaptados. Os europeus não.
Além de tudo, contávamos com um elenco maravilhoso. Para mandar 22 jogadores, tínhamos 40. Se eu errasse e, em vez de mandar Rivelino, mandasse Ademir da Guia, não era um erro. Era uma escolha. O nível era igual. O que sobrava de gente… Era uma época de ouro e de apogeu.

Não era vantagem nenhuma, não. Eu achava sempre que era uma barbada, pelas vantagens que nós tínhamos. O Brasil não perderia. Quando o nosso embaixador no México me disse: “Olhe, se não ganhar, você não volta para o Brasil”, eu disse: “Embaixador, é uma barbada… “. O embaixador João Pinheiro me chamou na Avenida Paseo de la Reforma, número 400, para me dizer: “Se o Brasil não ganhar, acho bom que você não volte para o Brasil”.

É que eu tinha dito que havia no Brasil três mil e tantos presos políticos e tinham sido assassinados mais de quatrocentos rapazes e moças, durante a ditadura Médici. Eu disse e saiu no “Observer” da Inglaterra; saiu no “Le Monde”, saiu em um monte de jornais de milhões de exemplares. O governo não gostou. Se o Brasil perdesse eu estava fuzilado (ri). Não voltaria. Não tinha importância: eram mais alguns anos fora do Brasil. Já passei vários e não era mal nenhum”.

GMN: A imagem do general Médici naquela época, com o radinho de pilha no ouvido para ganhar popularidade, incomodava João Saldanha?

Saldanha: “Devia incomodar a ele aquele rádio desligado. Pois, segundo as pessoas próximas, tratava-se de um rádio sempre desligado, o que era demagógico. Isso podia incomodar a ele, porque é chato ficar com o braço levantado fingindo que ouve rádio… E, francamente, não acho que seja atraente. Mas me incomodar, não. Eu estou pouco me incomodando. Não tenho nada pessoalmente com ele. Nem o conheço! Só o vi de longe. Não sei direito como é a cara. Nunca falei com ele nem ele comigo. Quando houve uma reunião em Porto Alegre com ele, chamaram a cúpula da seleção, mas não compareci.

Eu não teria prazer em apertar a mão de um homem que tinha matado vários amigos meus – ou mandado matar ou deixado matar. Não sei nem se foi ele que mandou ou deixou. O caso é que, coincidentemente, trezentos e tantos morreram naquele governo, o mais assassino da história do Brasil”.

GMN: Hoje, nem convocado ou numa situação especial o senhor voltaria à seleção?

Saldanha: “Não vejo no que eu possa acreditar. Prefiro o meu trabalho, em que me dirijo diretamente ao público e com ele converso. Eu iria ficar lá dentro: “Olhe, fulano, jogue aqui ou jogue ali…” “devia jogar fulano e não beltrano!”… É um troço opcional. Para que vou ficar me aporrinhando com essas coisas? Aqui está bom” (olha para a redação do ‘Jornal do Brasil’, no Rio, onde foi feita esta entrevista).

GMN: Mas a torcida sente falta de um técnico como o senhor – que chega e vai logo dizendo qual é o time titular…

Saldanha: “A torcida tem uma opinião internacional. Não pense que fui original, não. Fui um copista, um reles copista. O que fiz é feito em todos os países civilizados do mundo. Nenhum mistério: os homens que dirigem as seleções são homens civilizados; não vão morrer. . . A Inglaterra, desde a guerra até hoje, teve apenas três treinadores. A Alemanha – duas vezes campeã do mundo – teve dois treinadores até hoje, desde o tempo da guerra. E a guerra acabou em 1945! Teve três treinadores; um morreu. A Itália teve dois treinadores até hoje e foi três vezes campeã do mundo. A não ser esses paisezinhos da América do Sul e esses clubinhos aí que trocam de treinador todo dia …

Eu agora fui viajar, passei um mês fora e, quando chego de volta, vejo que mudou todo mundo. O Botafogo agora é um triunvirato; o outro é não sei o quê. . . é um troço ridículo – que expressa bem o sistema”.

Quem é o melhor jogador brasileiro hoje?

Saldanha: “É Zico”.

E Falcão? Também é um jogador completo?

Saldanha: “Um grande jogador. Mas como Pelé e Garrincha, não. Pelé e Garrincha são extra-série. Como Falcão e Zico tivemos muitos: muitos Zizinhos, muitos Gérsons, muitos Didis, Carlos Alberto, Djalma Santos, Nílton Santos, vários magníficos e notáveis jogadores. Só vi, como Pelé e Garrincha, talvez o Di Stéfano, um monstro sagrado. E depois, mais próximos, Puskas, Zizinho, Cruiff. Mas Pelé, Garrincha e Di Stéfano são os três extra-série. Vi Di Stéfano pela primeira vez em 50, 51; vi jogando dez, doze anos. Vi Pelé jogando dez, doze anos. Vi Garrincha uns quinze anos. Tenho opinião firmada e confirmada sobre eles: são monstros sagrados do futebol internacional. Formam na linha dos fora-de-série. Depois, você vem aí com trezentos: Antonioni, Ferrari, Beckenbauer, Shultz, Overheit, Rumenningue, Stanley Mathews…”

GMN: O senhor já disse que a Fifa – um órgão que reúne um número de países-flliados maior do que o da ONU – tem um papel de distensão política a nível internacional. O senhor pode dar um exemplo de como essa “distensão” funciona na prática?

Saldanha: “Ah, posso. A China era isolada do resto do mundo em matéria esportiva. O jogo de pingue-pongue – e aí não era a Fifa – deu uma certa abertura. Depois, em troca de Coca-Cola… São quase um bilhão de chineses. Se cada um tomar meia Coca-Cola por dia, são 450 milhões de Coca-Cola diariamente. Vende mais do que no Brasil no ano inteiro. Então, quando a Fifa botou a China no negócio, vendeu Coca- Cola. A Fifa tem mais facilidade de abertura do que os compromissos políticos, econômicos e de grupos dos países”.

GMN: Dizem as más-línguas que João Havelange foi intermediário da entrada da China na Fifa, porque era intermediário -também – da venda de Coca-Cola. É verdade ou delírio?

Saldanha: “Delírio não é. Mentira também não é. Coincidentemente, dizem que Havelange é representante ou diretor da Coca-Cola e, a um só tempo, presidente da Fifa. Não há mal nenhum. O que o sujeito não pode é ser ladrão. A China entrou e foi bom, porque o isolamento da China, não só esportiva, mas econômica e politicamente, como o de qualquer país, não é bom no contexto mundial”.
GMN: O centroavante Reinaldo – do Atlético Mineiro – diz que a estrutura do futebol brasileiro é fascista, porque beneficia, em primeiro lugar, os patrões. Quais são as propostas de João Saldanha para melhorar esta estrutura?

Saldanha: “Eleições livres e um governo democrático, porque essa estrutura é um reflexo do Brasil. Os desejos de Reinaldo coincidem com o meu. Pinochet fez igual no Chile. É a estrutura da América Latina – não digo que é fascista, porque nós não somos fascistas nem imperialistas. Nosso país não exporta capital. Somos apenas um país de ditadores, os famosos “ditadores da América Latina “. As coisas estão melhorando, há certas aberturas, mas aberturas dimensionadas e controladas.
Quando você pensa que pode dizer tudo, não diz. Determinadas coisas que eu quiser escrever aqui onde você está (N: redação do “Jornal do Brasil”) não saem. Não é que eles vão cortar; eu é que já nem ponho, porque sei que não vai sair. O que Reinaldo quer eu também quero”.

(Entrevista gravada no Rio de Janeiro, 04/07/1983)

Posted by geneton at 11:20 AM

junho 03, 2010

NÉLSON RODRIGUES

ESPECIAL / “AO CRETINO FUNDAMENTAL, NEM ÁGUA”: RELATO DE UM ENCONTRO COM O GÊNIO NÉLSON RODRIGUES (EM DIA DE JOGO DA SELEÇÃO BRASILEIRA !)

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O repórter de 21 anos diante do gênio: ao final da entrevista, um autógrafo num exemplar de "O Reacionário" (Foto:Wilson Urquiza)

Primeiro movimento : o encontro

Meu primeiro, único e último encontro com o gênio Nélson Rodrigues começou com uma dúvida devastadora : por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira ? Não é possível,deve ter havido algum engano – eu pensava “com meus botões”, enquanto caminhava pelas calçadas do Leme,na beira- mar,no Rio de Janeiro,em direção ao apartamento do homem.

Se Nélson Rodrigues escrevia aquelas crônicas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvio que ele não iria dar uma entrevista a um forasteiro pernambucano no exato momento em que a seleção brasileira entrava em campo,no Maracanã,com transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é que ele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguinte ? Não,deve ter havido um grande equívoco. É melhor que eu desista. Nélson não iria dar entrevista alguma num momento tão inoportuno. Ou iria ?

Mergulhado num poço de constrangimento, aperto a campainha.A entrevista tinha sido marcada por telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo, vejo a imagem de Nélson Rodrigues esparramado numa poltrona. Os pés estão fora dos sapatos . Não faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de mangas curtas. Pende na parede da sala uma foto emoldurada de Nélson Rodrigues em companhia de Sônia Braga e de Neville de Almeida – atriz e diretor da versão cinematográfica de “A Dama do Lotação” .

Quando a mulher avisa em voz alta que “o repórter de Pernambuco” estava na porta da sala, Nélson ergue os braços,agita as mãos,saúda o ilustre desconhecido com uma exclamação calorosa,como se reeencontrasse um amigo de infância : “Conterrâneo ! Conterrâneo ! “.

O cumprimento efusivo não afasta o temor de que Nélson tenha cometido um pequeno equívoco : ao marcar a entrevista para aquele horário,ele bem que pode ter se esquecido de que a seleção brasileira iria entrar em campo dentro de instantes. A hipótese pode parecer absurda, mas quem sou eu para menosprezar as possíveis excentricidades de nosso herói ?

Tento uma solução alternativa para escapar de um vexame : digo que posso voltar depois para gravar a entrevista ;não quero importuná-lo na hora do jogo. Teatral, Nélson Rodrigues repousa a mão direita sobre o peito,como se sugerisse uma pontada no coração. Olha para a televisão, pede à mulher : “Tirem o som desse aparelho ! Tirem o som desse aparelho !.O Brasil me faz mal ! O Fluminense me faz mal !”.

A mulher e a irmã de Nélson riem da cena teatral.Hiperbólico,épico,exagerado,o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de que acabo de me transformar em solitário e privilegiadíssimo espectador de um espetáculo teatral chamado Nélson Falcão Rodrigues,encenado pelo próprio autor.

A ordem de Nélson – “tirem o som desse aparelho ! “- é imediatamente atendida. O aparelho de TV fica mudo. A seleção entra em campo : Leão; Toninho,Oscar,Amaral e Edinho; Batista,Toninho Cerezo e Rivelino;Zé Sérgio,Nunes e Zico. Assim,este forasteiro se vê de repente na condição de coadjuvante de uma cena surrealista : diante de uma TV sem som que transmitia o jogo da seleção brasileira contra o Peru, o autor das mais brilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasileiro simplesmente tira os olhos do vídeo para responder ao interrogatório de um visitante que chegou em hora inconveniente,munido de um gravador e um bloco de anotações.

Improvisado como fotógrafo,o também pernambucano Wilson Urquisa vai flagrando,com uma velha Olympus,as poses teatrais de Nélson Rodrigues.Se houvesse justiça nesta República,uma lei deveria determinar que,depois de Nélson Rodrigues,ninguém deveria escrever sobre futebol no Brasil. Porque é extremamente improvável que um candidato a sucessor consiga igualar o brilho do texto deste pernambucano que passou quase toda a vida exilado no Rio de Janeiro.

A coleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia. Rui Castro organizou,para a Editora Companhia das Letras,um volume que reúne,sob o título de “Flor de Obsessão”,as “mil melhores frases” do homem. Se quisesse, reuniria três mil, como estas vinte :

“O brasileiro é um feriado “.

“O Brasil é um elefante geográfico. Falta-lhe, porém, um rajá, isto é,um líder que o monte”.

“Sou a maior velhice da América Latina.Já me confessei uma múmia, com todos os achaques das múmias”.

“Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes,ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf”.

“O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”

“Na vida,o importante é fracassar”

“A Europa é uma burrice aparelhada de museus”.

“Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar.O repórter mente pouco,mente cada vez menos”.

“Daqui a duzentos anos,os historiadores vão chamar este final de século de “a mais cínica das épocas”.O cinismo escorre por toda parte,como a água das paredes infiltradas”.

“Sexo é para operário”.

“O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História”.

“A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”.

“Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos”.

“As grandes convivências estão a um milímetro do tédio”.

“Todo tímido é candidato a um crime sexual”.

“Todas as vaias são boas,inclusive as más”.

“O presidente que deixa o poder passa a ser,automaticamente,um chato”

“Não gosto de minha voz.Eu a tenho sob protesto.Há,entre mim e minha voz,uma incompatibilidade irreversível”.

“Sou um suburbano.Acho que a vida é mais profunda depois da praça Saenz Peña.O único lugar onde ainda há o suicídio por amor,onde ainda se morre e se mata por amor,é na Zona Norte”.

“O adulto não existe.O homem é um menino perene”.

Fui testemunha ocular de uma verdade inapelável : Nélson Rodrigues era um cronista tão perfeito que nem precisava ver o jogo. O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores,os esquemas táticos,todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio. A Nélson Rodrigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de beques ou atacantes no retângulo verde. O relato dessas banalidades é tarefa que cabe aos “idiotas da objetividade” – estes pobres seres que só são capazes de enxergar a rala superfície dos fatos.

A missão que Nélson Rodrigues outorgou a si mesmo era outra : traduzir em palavras a dimensão épica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que,então,perder tempo com miudezas ? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV ? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru ? Para que saber se o meio-de-campo do Brasil estava ou não estava inspirado ?

- “Em futebol ,o pior cego é o que só vê a bola.A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana.Às vezes,num córner bel ou mal batido,há um toque evidentíssimo do sobrenatural”, ele escreveu uma vez.

Nélson Rodrigues preferia se ocupar de questões metafísicas – como,por exemplo,a inapetência de nossos escritores brasileiros em tratar do futebol.Numa de suas tiradas clássicas,reclamou :

- Nossa literatura ignora o futebol -e repito : nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral.

A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados em nossos jornais. Virou lugar-comum dizer que Nélson Rodrigues reclamava de que nossos escritores não sabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão. A implicância de Nélson era com literatos incapazes de cobrar um lateral. Mas, a bem da verdade, os que deturpam a queixa de Nélson não estão inteiramente errados : não apareceu ainda um escritor brasileiro capaz de bater um escanteio ou um lateral…

Alheio a esta fraqueza nacional,Nélson parece distante da disputa que se desenrola,ali,diante de nós,no vídeo da TV,entre a seleção brasileira e o escrete peruano. Faz ao repórter uma pergunta incrível : “Quem é o nosso adversário hoje ? “. Informo que é o Peru.

Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário.Quando Zico faz um a zero,aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo,Nélson interrompe a entrevista para inaugurar,aos brados,uma nova expressão exclamativa :

- Que coisa beleza ! Que coisa beleza !

Depois, pede à família : “Pessoal, com licença dos nossos visitantes, vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso”. Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que “fechar a máquina” significa desligar a televisão – o que, aliás, não foi feito.

Nélson dispara, então, um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho :

- Mas esses rapazes são uns gênios ! Uns gênios !

O repórter seria novamente surpreendido. Nélson já perguntara quem era “nosso adversário”. Agora,ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto : “Mas já houve dois gols ? “. Digo a ele que não : é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah,sim !”.

Teria dois outros motivos para vibrar : o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes – faria dois gols,aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo,para fechar o placar : Brasil 3 x O Peru. (Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nélson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver ? Eis :

- Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz.Mas não quero ter fantasias esplêndidas.O jogo Brasil x Peru,ontem,no Mário Filho,não assustou a gente.Diz o nosso João Saldanha : “O Brasil fez seu jogo,jogo brasileiro”. Vocês entendem ? Não há mistério.O brasileiro é assim.Quando um de nós se esquece da própria identidade,ganha de qualquer um.Outra coisa formidável : na semana passada,um craque nosso veio me dizer : “Nélson,é preciso que você não se esqueça : ao cretino fundamental,nem água”. O jogo foi lindo”.

O homem não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotas da objetividade” se encarregariam de registrar,nas páginas esportivas,o jogo real. Porque o jogo de Nélson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais ? “Aos cretinos fundamentais, nem água”. A lista de surpresas nessa tarde no Leme não se esgotaria aí.

Quando deu por encerrada a entrevista,Nélson pergunta ao repórter :

“E então,você me achou muito reacionário ? “.

Não,claro que não. Em seguida,pega o telefone,liga para a cozinha do Hotel Nacional,identifica-se e faz uma pergunta a um maitre provavelmente atônito :

- Companheiro,aqui é Nélson Rodrigues. Qual é o prato do dia ?

Ouve a resposta em silêncio,desliga o telefone. Recolhido ao sossego do lar,no fim de tarde de um feriado,já parcialmente debilitado por doenças que lhe encurtavam o fôlego, Nélson jamais se animaria a ir até o Hotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fez questão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê ?

As cenas que Nélson Rodrigues protagonizou nesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista. Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dispensa ao repórter um tratamento afetuoso : chama-me de “meu bem”. Alheio ao eventual cansaço de Nélson, estico a conversa até o limite máximo. Não quero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as tiradas do cronista inigualável.

A irmã do gênio é que, delicadamente, interrompe o questionário no instante em que Nélson fez uma pausa para engolir uns comprimidos.Ao autografar o exemplar do livro de crônicas “O Reacionário” – consultado durante a entrevista – Nélson Rodrigues oferece-me uma dedicatória dúbia : “A Geneton,amigo doce e truculento – Nélson Falcão Rodrigues”.

A entrevista foi gravada no dia 1 de maio de 1978. Ouço novamente a fita, releio a transcrição da entrevista. Confirmo que Nélson Rodrigues é um caso raríssimo de escritor que falava como escrevia. Só há outro caso : Gilberto Freyre. Transcritas, as entrevistas dos dois em certos momentos se assemelham aos textos que escreviam, o que é uma façanha : a linguagem falada normalmente é mais pobre que a linguagem escrita.Mas a regra – guardadas as naturais diferenças entre o que se fala e o que se escreve – nem sempre valia para os dois.

A entrevista foi embalada por citações ao livro “O Reacionário”, lançado por Nélson meses antes. Durante toda a entrevista, Nélson fez, repetidas vezes,citações a histórias e personagens descritos em “O Reacionário”.

De vez em quando, entre uma resposta e outra, ele mudava repentinamente de assunto; parecia afogado em divagações. Chegou a reclamar : “Eu estou tendo lapsos lamentáveis….”. Assim, frases de “O Reacionário” complementam,nesta entrevista,as respostas gravadas por Nélson Rodrigues.Os melhores momentos do diálogo improvável entre Nélson Rodrigues – o gênio que se intitulava “a flor da obsessão” – e o repórter intruso :

Segundo movimento : a entrevista

GMN : Quando foi que Nélson Rodrigues descobriu que nascera para escrever ?

Nélson : “A coisa é a seguinte : escrever para mim,muito mais do que uma decisão profissional,é um destino.Escrever é o meu destino ! Não é um caso de opção.Eu só tinha esta opção,uma vez que nasci assim”.

GMN : O senhor se considera um escritor por vocação ?Nélson : “Digo que,no meu caso,eu nem precisava de vocação,porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante ! Eu tinha de ser aquilo. Se você chegasse junto de mim e pedisse para eu ter outra profissão,podia até dar dinheiro para que eu tivesse outro destino,não seria absolutamente possível”.

GMN : O início foi com ficção ou com jornalismo ?

Nélson : “Eu estava no quarto ano primário na Escola Prudente de Morais. Uma dia, a professora – que mandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estampa,para que nós,alunos,fizéssemos em torno da vaca toda uma história – disse : “Olhem aqui : Hoje,vocês vão ter de escrever da próprio cabeça. Agora não é mais sobre a vaca pintada”. E então deixou que cada um de nós fizesse o seu drama,o seu projeto dramático.
Duas histórias tiveram o primeiro lugar.A do meu adversário era um a história de um daqueles magnatas que davam passeios.Ele descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito.E pronto.A minha foi inteiramente diferente.Eu fiz a história de uma moça que era uma fera.Quase uma dama do lotação.Um dia,o marido chega em casa mais cedo e,quando empurra assim (imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta) . Entra em casa,segura o amigo traidor e enfia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empatamos.O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma concessão ao convencional.Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista.Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobre adúltera que morreu de maneira tão melancólica.O traidor morreu também de maneira melancólica : direi,a bem da verdade,que a minha história causou um horror deliciado.Eu era,para todos os efeitos,um pequeno monstro.
Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter : esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça…”.

GMN : Para o senhor – que é considerado um mestre nesse ofício – o que é necessário para retratar, num texto teatral, o mundo desses personagens suburbanos das nossas cidades?

Nélson : “Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcionista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro chamamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Não é apenas uma facilidade, mas um destino” (pronuncia em tom dramático esta palavra)

GMN : A inspiração é uma entidade que existe para o senhor?

Nélson : “O negócio da inspiração é o seguinte : eu considero a inspiração,ao contrário de Valèrie, que só via a máquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisa que o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com a experiência”.

GMN :Dentre as peças que escreveu, qual a que o senhor considera como definitiva, como a obra acabada do dramaturgo Nélson Rodrigues?

Nélson : “O mais importante para mim,até o momento,é o dramaturgo. Volta e meia, me sinto muito perplexo diante de certas manifestações que me induzem ao teatro, embora o teatro tenha um defeito : tenho de vez em quando vontade de fazer certas experiências não teatrais dentro da área de literatura, mas sem ter nada de dramático”.

GMN : Dentre as peças já escritas,qual é a predileta?

Nélson : “ Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo que são todas as prediletas.Não tenho prediletas(ri). Todas são favoritas. Já pensei muito em querer discriminar qual a minha melhor peça, mas não sei”.

GMN : Que autores brasileiros de hoje o senhor considera como verdadeiros artistas do teatro?

Nélson : “Vou pular esta,porque tenho autores que são inimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Um autor que é um amigo tem todos os defeitos…”

GMN :O senhor diz sempre que “a admiração corrompe”. É o caso ?

Nélson :“É isso, é o caso. A admiração corrompe. O amigo que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa nenhuma, porque, ele próprio, não consegue se prender. Então,começa a fazer insinuações e etc…Como eu sinto, evidentemente, o nosso amigo, o inimigo, com a maior facilidade, então eu prefiro o inimigo” (ri).

GMN : Se o senhor fosse levado a fazer uma hipotética opção entre o teatro e o jornalismo, qual dos dois preferiria?

Nélson : “O teatro ! E não é um problema de qualidade intelectual não”.

GMN : O jornalismo brasileiro continua padecendo de objetividade? – que o senhor considera uma “doença grave”?

Nélson :“O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental”.

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Nélson Rodrigues se queixa, na entrevista: "Ninguém quer morrer, ninguém quer se suicidar" (Foto:Wilson Urquiza)

GMN : Quais foram as causas da ocorrência desse culto à objetividade que, no conceito do senhor, corresponde à falta de emoção?

Nélson : “Pois é, é esse o negócio (ri de novo). É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. Olhe aí (e mostra a crônica “A Desumanização da Manchete”):O “Diário Carioca” não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy-desk, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do “Jornal do Brasil”. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o “Jornal do Brasil” e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete”.

GMN : A ausência de um ponto de exclamação numa manchete faz falta ao leitor comum?

Nélson : “Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância,havia primeiro o “Correio da Manhã”, um jornalaço. E havia “A Noite” – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. “A Noite” era um jornal amado (acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava “A Noite” disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: “Morreu cantando” (a essa altura, Nélson Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer.
A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira”

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Nélson Rodrigues: "O bom do brasileiro é que, sem saber de nada, ele diz coisas horrendas" ( Fotos: Wilson Urquiza)

GMN : Que fatos ou situações brasileiras o senhor contemplaria com um ponto de exclamação numa manchete de jornal?

Nélson : (pensativo, com olhar distante) – “Deixe-me ver… O negócio é o seguinte: houve num desastre uma coisa atroz que foi uma explosão. Morreram seiscentos sujeitos, segundo as manchetes da ocasião. Todo mundo fazia coro… E outro caso de repórter que não era idiota da objetividade: o sujeito foi fazer a cobertura de um desastre de trem. Geralmente, em desastre de trem, morria gente pra burro. Agora, morre muito menos, não sei porque.Mas qual é o fato ? Deixe-me ver…Ah, o suicídio de Getúlio Vargas foi de uma brutalidade incrível. Uma coisa bonita é que foi uma coisa misteriosa, aí é que não entrou objetividade nenhuma. Morreu, então o cara passa a ser um deus. O que é que você pode fazer contra o cara? Deu um tiro no peito, ia ser deposto. E só porque ia ser deposto ele se mata.Veja só: no princípio da minha infância havia o pacto de morte. Havia sujeitos que se amavam tanto que já não suportavam mais o próprio amor. Então, o que fazia ele? Propunha à pequena o suicídio, um pacto suicida. Rara era a pequena que duvidava. O lindo era a vontade, o encanto com que esse par de amorosos se matava e cumpria o seu destino. Esse é que é o caso”.

GMN : Quer dizer então que na história recente do Brasil o suicídio de Getúlio Vargas seria o último grande fato que mereceria um ponto de exclamação do senhor numa manchete de jornal?

Nélson – “Olhe: quando eu digo merecer a manchete de jornal… (interrompe, olha para a televisão, comenta a iminência de um gol da seleção brasileira, distrai-se, retoma a conversa de um ponto anterior). Você compreendeu como é o caso? Antes de certo tempo aí, achavam que era uma coisa gravíssima o sujeito se matar, era uma covardia. E nem ele nem a menina acreditavam que isso fosse um defeito, o defeito de se matar: alguém ter o direito de destruir o próprio amor e o amor do outro. Mas os dois se destruíram. O sujeito achava que era uma maneira de coroar o próprio amor.
Agora, a nossa realidade está realmente muito pobre, muito vazia, sem um certo apelo dramático. Ninguém hoje quer morrer, ninguém quer se suicidar ! . Ali o sujeito só queria destruir o amor. E aí a sogra ia cuspir na morte do sujeito que lhe matara a filha”.

GMN : O senhor lê a chamada imprensa alternativa?

Nélson – “Alternativa o quê?”

GMN : A imprensa alternativa, esses novos jornais que têm surgido, o senhor lê ?

Nélson : “Eu leio de vez em quando mas não faço questão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal não é o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leio um jornal que não seja rigorosamente o jornal da véspera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do próprio dia. São fatos da véspera , figuras da véspera. O fato do dia não existe e ou só existe para rádio e as TVs. No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal. E assim o marido que matava a mulher e a mulher que matava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o dramatismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia, entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ou privada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de moda do que charleston, do que o tango”.

GMN :Não há nenhum fato do dia…

Nélson – “Pelo menos a gente tem essa impressão. O que nós chamávamos antigamente de furo não existe mais. Todos hoje acham que podem viver sem o furo, ao passo que, no meu tempo, quando eu era garoto, um furo de reportagem era tudo. Era o grande momento da carreira.Agora, para falar de manchete, outro fato formidável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São Francisco era o local próprio para o sujeito se manifestar. E quando havia muitos interessados em se manifestar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fizeram uma coisa qualquer com o chefe de polícia. E o chefe de polícia – que era um santo – assinou uma portaria proibindo os estudantes não sei de quê nem ninguém sabe. Tudo que houve foi por conta da falta de bossa, da falta de inteligência dos nossos queridos estudantes. E então os estudantes resolveram fazer um “enterro” do chefe de polícia – que era um velho general, sujeito que acreditava em honra, num tempo em que ninguém sabia o que era honra. O general era um santo homem e então achou que aquilo era brincadeira de estudante. E lá foi ele dizendo aos queridos investigadores que não queria machucar ninguém. Nada de bala, nada de punhal, dizia o nosso general. E no dia do “enterro”, os estudantes carregavam o caixão, todos levando uma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polícia, furiosos com a questão, simplesmente acharam de matar três estudantes. Aí foi aquela coisa tremenda. Houve então uma manchete, a manchete mortal da imprensa brasileira. Um jornal descobriu uma manchete fantástica (muda a flexão de voz, entusiasmado). A manchete quase derruba a presidência da República, a vice-presidência, o chefe de polícia imediatamente se demitiu, foi embora, não quis mais nada, achando-se culpado. Inventaram uma manchete que até hoje eu gosto de ouvir…”

GMN : Qual foi?

Nélson : “Era assim: “Primavera de Sangue” (pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quase derruba o presidente da República, o ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete. Quero dizer que, se você quiser, com uma frase bem trabalhada, você resolve o caso.”

GMN : De quando foi essa manchete?

Nélson : “Eu era garoto, tenho agora sessenta e cinco anos. E foi na altura dos meus dez anos. Agora, eu sei disso tudo pelas informações do pessoal. O cara que fez esta manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil réis. Só o Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião (ri)”.

GMN :O senhor se interessa por política partidária?
Nélson : “Eu não sou ninguém para dizer certas coisas, mas o bom no brasileiro é que ele, sem saber de nada, diz coisas horrendas”.

GMN : Quais são os políticos brasileiros que o fascinaram ou fascinam hoje? Existe algum nome que o senhor queira citar?

Nélson (Pausa de alguns minutos, ele está pensando) : “Num desses momentos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado, porque para achar um sujeito, poder dizer um político interessante… Eu acho que só Napoleão Bonaparte ! (ri)”.

GMN : O senhor já disse que um dos traços do caráter nacional é o fato de que o brasileiro adere a qualquer passeata. Quais seriam os principais traços do nosso caráter nacional?

Nélson : “O brasileiro é um tipo gozadíssimo. O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque, senão, cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério porque este negócio de viúva vocacional é um fato. Há realmente um repertório sensacional de casos. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Houve um tempo em que nem o Departamento de Pesquisa do “Jornal do Brasil” sabia quem era o brasileiro.Mas se um sujeito se apresentava como brasileiro, as pessoas de bem respondiam: “Não te conheço!”. E muitos duvidavam que o Pão de Açúcar ou o poente do Leblon fossem brasileiros. Olhe: houve tempo em que a mulher mais séria do mundo, mais digna, mais respeitável se deixava envolver por um poeta, se abandonava por um soneto. Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorou da minha tia Yayá. E se você perguntar “Qual foi o maior homem que você viu no mundo?”, eu acho que esse tio está no segundo ou terceiro lugar, porque o desgraçado, ele amava a minha tia Yayá. Ele já não precisava mais beber para estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso, fazia uma considerável economia de dinheiro… Em minha família houve um bêbado indubitável, foi este meu tio Chico. Como sujeito que bebe muito, ele durou pra burro. Morreu com oitenta e tantos anos, sempre bêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigo o meu horror ao bêbado. Mas ele me ensinou também uma série de coisas lindas. Por exemplo: o amor. Meu tio Chico me ensinou a amar. Embriagou-se em cada minuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante e depois. Yayá costurava para o casal não morrer de fome. Mas eu, menino, queria amar e ser amado como esse alcoólatra enlouquecido. Era um amor que hoje não existiria. A minha tia Yayá deu graças a Deus que ele tivesse se apagado. Agora ninguém ama mais, eis o que comecei a descobrir desde os treze anos de batalha. Você ponha aí: o meu tio Chico e sua bem amada Yayá. Era um negócio impressionante.”

GMN : Por que é que o senhor diz, desse jeito, que hoje ninguém ama mais ?

Nélson : “Meu bem, se a evidência objetiva e espetacular vale alguma coisa, o homem não ama mais. E não ama mais porque o nosso cenário se povoa de sujeitos que são débeis mentais absolutos. O sujeito já não acredita em amor, pra começo de conversa. Não acredita em amor. O sujeito acha que todo mundo é a mesma coisa, e apesar disto, se diz marxista. É uma coisa esterilizante que há na vida brasileira, sobretudo carioca. O carioca é esse sujeito fascinante só na base dos defeitos que tem. Arranja logo casamento e é uma besta. E todo mundo diz: “Oh, que coisa, que amor!”. E eu me lembro de uma menina grã-fina mesmo… Aliás, diga-se de passagem que eu não acredito na existência da grã-fina nem do grã-fino. Dou-lhes este nome. Mas é incrível esse negócio da mulher moderna (fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento). Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco feminina. Eu tive um cachorro, o nosso querido Boogie-Woogie, que ficava diante da minha casa amando sua querida cachorra. Ela ficava lá, digníssima, empinada, recebendo as homenagens. Os carros passavam e achavam o cachorro louco. E esse nosso amigo, o cachorro, era muito mais humano que a mulher dos nossos tempos. Elas se meteram a bestas”.

GMN : O brasileiro continua sendo um “Narciso às avessas que cospe na própria imagem”, como o senhor dizia?

Nélson – “Continua, continua !”.

GMN : Qual é o remédio para isso?

Nélson : “O remédio para isso? Nunca. Para isso não há remédio. Veja que o Brasil ganhou três vezes o campeonato mundial. Se ganhou três vezes, e se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo, tudo salvo. Ganhou três vezes no futebol, feito como esse ninguém teve e não se conhece isso.
O brasileiro tem virtudes. É bom fazer uma ressalva nesses defeitos que digo. Isso o torna extremamente simpático. Aquela volubilidade… O sujeito ora ama aqui, ora ama ali… Vai lá pra chegada do trem elétrico, vai arranjando os seus amores que, aliás, duram geralmente vinte e um dias, quando duram. Há pessoas que casam e lá na sacristia estão os convidados fazendo apostas sobre a duração daquele casamento. E você pode ficar sossegado porque aquele casamento está inteiramente liquidado antes do começo. Há amores, entendeu, que o sujeito traz consigo e realmente são sinceros. Mas evidentemente, não existe este amor, porque o nosso querido Brasil…Olhe: em 1958, quando o nosso querido Brasil voltou campeão da Copa, foi o maior futebol que jamais se viu…” Diga-se de passagem que eu considero o brasileiro o maior sujeito do mundo. O europeu já está esgotado. O europeu tem na casa dele pires de mil anos. Escadas de mil anos. Tudo é velho pra burro. Já com o brasileiro é inteiramente diferente. É como se ele estivesse sempre há quinze minutos do fato. Um negócio genial. (Nélson tinha mudado de assunto;volta ao futebol) Basta o sujeito passar quinze minutos assistindo a um jogo importante desses camaradas. Esses rapazes são uns gênios. Mas o sujeito pensa que isso não é importante e sai, nem liga. Mas quando o negócio vai se transmitir em forma de gorjeta, aí então o brasileiro é um feroz…”

GMN : O senhor diz também que a paisagem dos países desenvolvidos é triste sem imaginação…

Nélson : “É. Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, costumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. É trágica a falta de imaginação da paisagem no país desenvolvido. O desenvolvimento é burro, ao passo que o subdesenvolvimento pode tentar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida.O diabo é que o Burle Marx, no Brasil, faz o que nem o europeu faria lá. O nosso Burle Marx retira a flor da paisagem. Dizem que o Amazonas é a coisa mais gigantesca do mundo. O nosso Burle Marx só usa uma cor, a verde, e danem-se as outras cores. Fiz esta anotação e ele me disse numa entrevista dele que o teatrólogo Nélson Rodrigues, com certeza, não estava olhando para a paisagem, não viu outra cor, se não a verde. Fui espiar lá e, realmente, o único paisagista do Aterro do Flamengo é o Exército, porque acrescentou, ao Monumento dos Pracinhas, algumas flores, umas dezessete flores. O paisagista foi o ministro da Guerra. O nosso querido Burle Marx, a quem muito admiro, não pôs flores no Aterro, e com a maior tranqüilidade do mundo. Não precisa prestar atenção… O negócio das cores… (Nesta altura da conversa, ele ri e confessa: “Eu estou tendo lapsos lamentáveis…”).Você sabe o que é o sujeito fazer uma bobagem e negar a verdade? Se ele aceitar o erro, está bem. Agora, quando o sujeito fica impune… A impunidade faz de um São Francisco de Assis um canalha. Ele comete um ato e ninguém o prende, ninguém o ameaça, sequer.É este o caso de Burle Marx. Como ele está faturando cada vez mais, não liga por ter feito um jardim onde só existe uma cor e onde não tem uma violeta. Ele está cada vez faturando mais, e mais fiel aos seus erros, porque descobriu que o erro está muito mais perto do êxito. Já falei pra burro, agora você está satisfeito, não é? E vai querer continuar…”

GMN : Agora, uma explicação para as causas do rancor e da ironia feroz que o senhor cultiva diante de seus personagens, como por exemplo, “as verdadeiras grã-finas”

Nélson : “O que eu acho é que a gente diz “grã-finas” sem achar que elas tenham obrigação de agir como grã-finas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonieta podia dizer: “Ah, eu sou grã-fina…”. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácio e ela disse: “Se não tem pão, comam brioche”. Então, a Maria Antonieta é que poderia bradar: “E, portanto, eu posso dizer que sou grã-fina”. Ela derrubou um erro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina do mundo é a Maria Antonieta. De então para cá nunca mais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina paulista que é gorducha, porque tem dinheiro à beça para comer. E come. Mas não existe. A nossa querida grã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro, e está furiosa porque não tem, então assume diversas atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: ”Na minha casa, só as criadas vêem televisão”. As grã-finas não existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.”

GMN : E as “estagiárias de calcanhar sujo”?

Nélson : “Já as estagiárias têm uma existência feroz…(ri, acentua o tom de voz). Sobre nossa querida estagiária, eu vou te dizer o seguinte: é incrível. Meninas que não serviriam para babá nem poderiam entrar num cinema para ver filme francês ou meu próprio filme, a “ A Dama do Lotação”, fazem atitudes que os bocós consideram geniais.O que assombra na estagiária não é a sua graça pessoal, mais discutível, menos discutível, segundo cada caso. O que me assombra são as suas perguntas e repito: são as perguntas que tornam a estagiária um ser tão misterioso e absurdo como certas imagens de aquário. Uma dessas meninas irreais de redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster ou um santo ou, simplesmente, uma dessas velhas internacionais que embarcam em todos os aeroportos. E perguntar: “Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pílula?”Você veja: uma delas foi incumbida de entrevistar um milionário. Ligou para a casa do milionário, disse: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. Do outro lado, uma voz responde: “Dr. Fulano não está passando bem”. E a menina insiste: “Então, pergunta a ele se…”. Desligam e a estagiária disca novamente, não com o dedo, mas com o lápis: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. A pessoa diz, desatinada: “Minha senhora, o Dr. Fulano acaba de ter um enfarte. Enfarte, minha senhora, enfarte. A senhora quer que eu diga mais do que estou dizendo?”. E a estagiária: “Vai lá e pergunta a ele o que é que ele acha da pílula. Eu espero”.A família do enfartado toda se descabelando… o que, aliás, é raro, porque, no nosso tempo, a família chora muito pouco. O inimigo da morte – que é o clínico – dá logo um furioso calmante.
A estagiária então liga novamente. Dá sinal de ocupado. Continuou, com uma obstinação fatalista. E sempre ocupado. Uma hora depois, atendem. Era uma mulher que ou estava gripada ou chorando. A estagiária diz: “Por obséquio, eu queria falar com o Dr. Fulano”. Responde a voz feminina: “O Dr. Fulano acaba de falecer”. E a estagiária: “A senhora diz a ele que é só uma perguntinha”… e etc.Agora, há um dado que me parece essencial. As entrevistas das estagiárias têm uma virtude rara: nunca saem. Falo por experiência própria. Quase todos os dias, uma estagiária me caça pelo telefone. E eu falo sobre todos os temas e personalidades. Opinei sobre os Kennedy, João XXIII, o Kaiser, Gandhi. No dia seguinte, abro o jornal e vejo que não saiu uma linha. Mas uma coisa curiosa: não só as estagiárias. Profissionais da melhor qualidade estão seguindo a mesma linha. Posso dizer que a nossa imprensa criou o novo gênero de entrevistas que não serão publicadas nem a tiro”.GMN : O que é que o Recife significa para o senhor hoje?Nélson : “Eu gosto do Recife pra burro. Vim de lá aos cinco anos de idade. Fiquei lá até o ano de 1929. Você veja: me dá pena estar pensando no Recife e nunca ir lá. Tenho, em minha memória profunda, um apelo de pernambucano pelo Recife”.

GMN : O senhor não pensa em voltar?Nélson : “De vez em quando eu faço evocações……(Um dos textos de “O Reacionário” traz lembranças da cidade ) Toda a minha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir”.

GMN : O senhor não volta ao Recife porque tem medo de avião?

Nélson : “Acho chato viajar de avião, não quero voar, a não ser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil”.

GMN : Qual foi a última vez que o senhor esteve no Recife?

Nélson : “Em 1929. Tenho um sadio horror de avião”.

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maio 29, 2010

SHAUL LADANY

A INCRÍVEL HISTÓRIA DO HOMEM QUE ESCAPOU QUATRO VEZES DA MORTE (ERA UM DOS ATLETAS DA DELEGAÇÃO QUE FOI ATACADA POR TERRORISTAS PALESTINOS NAS OLIMPÍADAS DE MUNIQUE)

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Ladany : a capacidade de sair vivo de situações dramáticas
Os jornais noticiaram : o grupo terrorista Al-Qaeda teria anunciado o propósito de cometer um atentado na Copa do Mundo da África do Sul, durante o jogo Estados Unidos versus Inglaterra. É provável que o anúncio seja tão falso quanto uma moeda de trinta e cinco centavos. Ninguém precisa ser especialista em terrorismo para concluir que ataques terroristas de verdade acontecem sempre de surpresa.

Um dos mais espetaculares ataques terroristas dos tempos modernos aconteceu durante um evento esportivo planetário : as Olimpíadas de Munique de 1972.

Fiz uma entrevista com um atleta israelense que conseguiu escapar do ataque.

Voilà:

Quem? Um professor de engenharia chamado Shaul Ladany.

O quê ? Fará setenta anos de idade.

Onde? Em Israel.

O aniversário de um professor pouco conhecido dificilmente mereceria se transformar em notícia se não fosse por um detalhe: Shaul Ladany é personagem de uma das mais extraordinárias histórias de sobrevivência do Século XX.

A morte esteve no encalço de Ladany pelo menos quatro vezes. Por quatro vezes, Ladany escapou.

Primeira: judeu nascido em Belgrado, foi mandado para o campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, em 1944, quando tinha apenas oito anos de idade. Passou seis meses no inferno, cenário da morte 50.000 prisioneiros.

Segunda: pegou em armas para lutar pelo Exército israelense na Guerra dos Seis Dias – o ataque-surpresa feito por Israel, a partir do dia 5 de junho de 1967, contra Egito, Síria e Jordânia.

Terceira: maratonista, fazia parte da delegação israelense que foi atacada pelos terroristas palestinos da organização Setembro Negro no dia 5 de setembro de 1972 durante as Olimpíadas de Munique – um dos mais espetaculares atos de terrorismo da história moderna.

Quarta: um ano e um mês depois do pesadelo de Munique, participou da Guerra do Yom Kpur, provocada pelo ataque do Egito e da Síria contra Israel, em outubro de 1973.

Ladany : a capacidade de sair vivo de situações dramáticas

“O que eu sou? Um sobrevivente” – resume Ladany. Professor de engenharia industrial da Universidade Ben Gurion, em Israel, pai de uma filha, avô de duas netas, este sobrevivente estará pensando em quê, na noite do aniversário?

”Vivi uma vida turbulenta. Quando a família se reúne, sabe sobre o quê a gente fala? Você não vai acreditar, mas é sobre o Holocausto”, diz. “Infelizmente, tive também a experiência das Olimpíadas de Munique. São lembranças que me acompanharão enquanto eu estiver vivo. Vou pensar sobre Munique no dia dos meus setenta anos, com toda certeza”.

O terror bateu à porta da delegação israelense, na Vila Olímpica, em Munique, às quatro e meia da manhã de uma terça-feira. Oito homens mascarados invadiram o alojamento israelense: eram terroristas da organização Setembro Negro. Queriam chamar a atenção do mundo para a causa palestina.

O treinador de luta Moshe Weinberg, 33 anos, foi morto a tiros no momento da invasão. O levantador de peso Yosef Romano foi a segunda vítima. Os terroristas matariam outros nove atletas israelenses no aeroporto, dentro de dois helicópteros, em meio à desastrada operação armada pelo governo alemão para tentar abortar o seqüestro. Cinco terroristas também morreram.

Horas antes, toda a delegação israelense tinha ido ao teatro, para ver “Um Violinista no Telhado”, uma peça baseada nas histórias de um autor israelense, Sholon Aleichem:

- “Ali, vinte e sete anos depois do fim da guerra, um elenco judaico encenava uma peça de um autor judaico em solo alemão. Parecia um absurdo, porque eu ainda me lembrava da Alemanha da era nazista. O sentimento era de felicidade para todos nós. Tiramos fotos. Nem em nossos piores pesadelos imaginaríamos o que estava para acontecer horas depois”.

Ladany foi despertado por um barulho estranho no alojamento da delegação israelense, o prédio número 31 da Connollystrasse. Quando abriu a porta, na madrugada daquela dia cinco de setembro, viu um homem de pele morena e de chapéu no final do corredor. Era um dos terroristas, mas Ladany não sabia:

- “Notei que algo estava errado quando ouvi o diálogo deste homem com guardas que tentavam convencê-lo a deixar equipes de socorro da Cruz Vermelha entrar no alojamento. Quando alguém pediu que ele fosse “humanitário”, ele respondeu : “Não! Judeus não são humanitários”. Não tenho certeza se ele disse “judeus” ou “israelenses”. Ali, entendi imediatamente que algo terrível estava acontecendo.O terrorista não chegou a me ver”.

O ex-maratonista Ladany – que conseguiu se afastar do alojamento – critica até hoje o governo alemão. Diz que as autoridades desperdiçaram a chance de alvejar os terroristas palestinos porque não queriam que a Alemanha fosse palco de derramamento de sangue:

- Pareceu óbvio que o governo alemão não quis usar a Vila Olímpica – que simbolizava uma atividade pacífica – como cenário de uma operação antiterror. O governo queria mostrar ao mundo que ali estava uma Nova Alemanha – não a Velha Alemanha nazista”.

Ladany foi testemunha de uma cena cinematográfica. Aquartelado numa sala escura da Vila Olímpica, em companhia de colegas da delegação isralense, viu quando os terroristas conduziam os atletas seqüestrados para os helicópteros que os levariam para o Aeroporto. Ao lado de Ladany, um atleta que fora participar das competições de tiro ao alvo fez uma confidência:

- Vi os terroristas no momento em que eles chegaram ao centro da Vila Olímpica. As luzes os focalizaram. Vi os nove reféns.Um estava amarrado a outro. Ao meu lado, estava um colega da delegação israelense. Era atirador. O local onde estávamos era totalmente escuro. O meu companheiro disse: “Oh! Sem problema algum, eu poderia atirar agora nos terroristas!”.

Ladany voltou para Israel no avião que conduzia os corpos dos atletas israelenses mortos nas Olimpíadas:

- “ A bordo do avião, eu pensava: como um idéia tão bonita – um evento olímpico que deveria significar uma trégua e um momento de paz e alegria para todos – pôde se transformar no cenário de um massacre?. É inacreditável”.

O pesadelo de Munique voltou a ser notícia em todo o mundo com o lançamento do filme dirigido por Steven Spielberg. “Munique” descreve – com um ou outro toque de ficção – a operação secreta que Israel armou para eliminar, um a um, os terroristas palestinos que participaram do atentado:

Se fosse convocado, o ex-atleta e ex-soldado Ladany participaria da Operação Vingança ?

A resposta vem sem um segundo de hesitação:

- “Sim! Vou contar um fato: ali pelo final dos anos setenta, li um pequeno artigo num jornal dizendo que um dos terroristas envolvidos no massacre de Munique estava levando uma vida luxuosa no Líbano. Recortei a notícia. Em seguida, enviei o recorte para o Ministério de Defesa de Israel. A carta foi endereçada a Ezer Weisman – que viria a ser presidente de Israel, anos depois. Eu disse na carta que, em minha opinião, o longo braço da justiça israelense deveria atingir aqueles que cometeram o terrível massacre de Munique. Meses depois, recebi uma carta do Ministério da Defesa dizendo que minha carta tinha sido encaminhada aos “canais apropriados”. Não tenho ódio contra árabes, não tenho ódio contra muçulmanos. Mas quem comete atos terroristas deve ser punido”.

Ladany não cita nomes, mas o homem tido como um dos mentores do Massacre de Munique, Ali Hassan Salameh, foi morto num atentado armado por agentes israelenses no dia 22 de janeiro de 1979, numa rua chamada Verdun, em Beirute.

O filme “Munique” – dirigido por Steven Spielberg – foi criticado em Israel porque mostrava momentos de hesitação vividos por agentes israelenses encarregados de executar os terroristas envolvidos no ataque aos atletas. Ladany justifica recorre a uma lógica implacável para justificar a retaliação:

”Em primeiro lugar, não acredito que os terroristas tenham tido qualquer hesitação no momento de fazer o ataque. Em segundo lugar: não acredito que os agentes envolvidos na vingança – realizada para evitar a repetição de ataques terroristas – tenham tido qualquer hesitação também. Só lamento que inocentes tenham morrido também na operação vingança” ( Ladany se refere ao pior erro cometido pelos agentes israelenses: um jovem marroquino, chamado Achmed Bouchiki, foi morto com dez tiros à queima-roupa momentos depois de sair do cinema em companhia da mulher, grávida, no final da noite de sábado, 21 de julho de 1973, em Lillehammer, Noruega. Os agentes pensaram que ele era um dos terroristas de Munique. Bouchiki era inocente).

Aaron J. Klein, o autor de “Contra-Ataque”, livro lançado no Brasil, diz que os terroristas do Setembro Negro desembarcaram em Munique dispostos a cometer “um ataque sem precedentes, avassalador – um teatro de horrores que arderia na consciência coletiva mundial por gerações”.

O que Ladany diz dessas palavras?

“ Concordo. Agora, neste exato momento, quando você me faz esta pergunta, eu recordo os menores detalhes de Munique: parece que posso ver tudo de novo, como se tudo tivesse acontecido há poucos minutos. Há coisas em nossas vidas que são importantes demais para serem esquecidas”.

Posted by geneton at 11:34 AM

maio 18, 2010

CHICO BUARQUE

A MENTIRA DESLAVADA QUE CHICO BUARQUE INVENTOU PARA IMPRESSIONAR ESTRANGEIROS: DIZIA QUE TINHA SIDO RESERVA DE SÓCRATES NO TIMAÇO DO BRASIL NA COPA DE 82

Chico Buarque de Holanda um dia pegou um par de chuteiras, calção, camisa e foi se apresentar no campo de Juventus de São Paulo, na rua do Javari, 117. Pensou que ia ser aprovado com louvor, porque se considerava um craque. Viu que não é assim que a banda toca: o número de candidatos a uma vaga era desanimador. Como se não bastasse, os olheiros do Juventus concluíram que o tipo físico daquele adolescente não era apropriado aos gramados. O Brasil perdia, ali, um candidato a craque.

A jogada de Chico Buarque dera errado: iludido, achou que, se procurasse um clube pequeno, as chances de ser aproveitado seriam maiores do que se batesse às portas do Santos, Palmeiras, Corinthians e São Paulo. Que nada.

Teve de voltar ao violão. Mas, se tivesse a chance de escolher entre a bola e a música, certamente ficaria com o futebol. Não deu. O jeito foi criar uma espécie de carreira imaginária: em viagens pelo exterior, mentia descaradamente : nem faz tanto tempo, em passeios pela África, ele dizia a motoristas de táxi que tinha sido reserva de Sócrates no timaço do Brasil que disputou a Copa de 82. Os ouvintes da mentira deslavada exibiam um ar de compreensível incredulidade.

Já que o Brasil se prepara para passar um mês falando de futebol, o DOSSIÊ GERAL vasculha os arquivos implacáveis em busca do texto integral de uma (rara) entrevista que o locutor-que-vos-fala teve a chance de fazer com o ex-futuro craque do Juventus:

Quem tentar extrair do entrevistado Chico Buarque de Holanda circunvoluções teóricas sobre a Música Popular Brasileira ou sobre a Poesia ou sobre a Política certamente voltará para casa de mãos abanando. Porque Chico Buarque, tímido profissional, usará a timidez como escudo para escapar pela tangente. O homem não é dado a digressões – nem um pouco. Diante de jornalistas em geral, Chico é um caso clássico de Síndrome do Silêncio Compulsivo : em situações normais, prefere se calar. Só fala – provavelmente incomodado – quando enfrenta a rodada de entrevistas programadas pela gravadora para badalar um novo lançamento. Fora daí, o assessor de imprensa de Chico Buarque, Mário Canivello , trabalha dobrado para ir se livrando dos incontáveis pedidos de entrevistas. Estrela de primeira grandeza, Chico Buarque pertence à constelação de personalidades que despertam atenção em qualquer época, sob qualquer circunstância – não apenas quando lança um disco. Ninguém precisa ser psicólogo profissional para constatar que Chico Buarque dispensaria de bom grado essa honraria.

Fora dos palcos e estúdios, tenta levar uma vida que nem de longe lembra a de uma estrela. Observadores sortudos podem flagrar monsieur Buarque empenhado em fazer caminhadas solitárias pelo calçadão da praia do Leblon – cenário que escolheu para manter a forma desde que se mudou do Jardim Botânico. Volta e meia é personagem de uma cena tipicamente carioca,como esta, testemunhada pelo locutor-que-vos-fala : Chico Buarque chega sozinho para almoçar em um self-service do Jardim Botânico, o Fazendola. Como qualquer mortal, enfrenta a fila do caixa com a bandeja na mão. Depois, flana pelo salão em busca de uma mesa vazia. As testemunhas da cena cumprem com louvor o papel que lhes cabe : todo mundo faz de conta que Chico Buarque não é Chico Buarque. Deve ser um sósia. Assim, a estrela pode almoçar em paz, sem ser importunado por estranhos. Em outro território, certamente a presença de Chico provocaria compreensível alvoroço. Não aqui. A aparente indiferença faz parte do Código de Conduta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Quando já se dirigia ao portão de saída do self-service , Chico Buarque foi abordado pela primeira vez desde que chegou para o almoço. Quatro moças pedem autógrafo. O pedido é atendido em guardanapos.

Se um dia resolvesse escrever um livro de memórias – remota possibilidade que ele, no entanto, não descarta inteiramente – Chico Buarque teria assunto para encher mil páginas. Se quisesse, reuniria cenas incontáveis da convivência com gente que,como ele,virou mito. O que dizer da amizade com Garrincha no exílio,na Itália ? Chico serviu de motorista de luxo para o gênio das pernas tortas.Enquanto circulavam, Garrincha ia confessando uma surpreendente admiração por João Gilberto.

Nesta entrevista, Chico revisita cenas marcantes como as que viveu em companhia de Garrincha. Fala da primeira e única vez em que viu o então ditador Emílio Garrastazu Médici. Desmente um mito : o de que teria escrito os versos “você não gosta de mim,mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel. Diz qual é a música de outro compositor que lhe desperta um sentimento parecido com a inveja.

O poeta que prefere não falar vai responder, a partir de agora, a quarenta perguntas. São lembranças que poderiam preencher um capítulo do livro de memórias que, possivelmente, jamais será escrito.

Gravando !
GMN : Que música de outro compositor você daria tudo para ter feito ?

Chico Buarque : “Eu não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor.Mas existem músicas que amo.Gosto mais do que as minhas.Eu não gostaria de ter feito uma música alheia.É uma coisa que não me ocorre.Porque o maior prazer da música está exatamente no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa.Quando você ou repete nos shows, não vive a mesma sensação. Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro,então,sentir o prazer que sinto a cada composição minha,por menor que seja”.

GMN : Você poderia,então,citar uma música de outro autor que você inveja ?

Chico Buarque : “Um milhão de músicas.Não tenho uma preferida,mas agora que você falou,me bateu uma na lembrança : “Águas de Março” – de Tom Jobim. É uma música que eu não diria que gostaria de ter feito,porque é impossível que eu fizesse uma música dessa.É outra cabeça.Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação,assim como músicas de Noel Rosa,Cartola,Caetano Veloso,Gilberto Gil,Milton Nascimento. Recorro a um recurso : tenho parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio Tom.Ao me fazer parceiro,eu crio a música com eles.Ao fazer a letra para uma música alheia,eu estou me apropriando um pouco dessa música – que não é minha”.
GMN : Depois de fazer “Paratodos”,você passou anos sem lançar um disco com músicas inéditas.Disco de Chico Buarque agora é feito Copa do Mundo – só de quatro em quatro anos ?

Chico Buarque : “Pior ! Agora é de cinco em cinco. Os lançamentos vão se espaçando.O trabalho vai ficando mais difícil mas também mais prazeroso.Quando termina,você se sente cansado,mas satisfeito.As músicas saem,talvez,com menos espontaneidade,com mais intensidade” .

GMN : A que você atribui o espaçamento cada vez maior entre um disco e outro ?

Chico Buarque : “Talvez a música popular seja uma arte de juventude.Imagino que seja,porque o consumidor de música popular é,sobretudo,o adolescente,o jovem de vinte a trinta anos.Depois,começa a diminuir. Já o autor de música popular tende a ser mais seletivo com o tempo. Faz uma coisa ou outra,mas não com a exuberância que tinha aos vinte anos de idade. Quando você tem vinte anos,você tem um baú de música inéditas. Depois,as músicas vão escasseando.Você fica mais exigente.Chega,então,um tempo em que a gente começa a fazer música popular com o resto de juventude que se tem.Depois,o melhor a fazer talvez seja imitar Dorival Caymmi – que se recolheu aos seus pincéis e suas tintas.Talvez seja melhor procurar outro afazer,outra ocupação”.

GMN : Não é o que você vem fazendo nos últimos anos,com a dedicação cada vez maior à literatura ?

Chico Buarque : “A literatura é uma alternativa. Talvez eu tenha me inspirado em Caymmi ao pensar nisso : ter um recurso para continuar criando sem depender da juventude – que é o motor da música popular”.

GMN : Você diz que o futebol tem momentos de improviso e genialidade que nenhum artista consegue repetir.Mas em alguma de duas músicas você teve o sentimento de improviso que você só encontra no futebol ?

Chico Buarque : “É possível encontrar algo semelhante ao futebol no jazz, na música instrumental.Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador.De qualquer forma,há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente,vem uma idéia. Você se pergunta : de onde veio ? É o que acontece com o futebol : é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável”.

GMN : Que música ou que verso despertou em você,na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible ?

Chico Buarque : “Você vai trabalhando,trabalhando,trabalhando em cada música,até que há um “clique” : aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz” .É como se fosse algo que viesse de fora”.

GMN : Quando estava exilado na Itália,você teve contato com Garrincha.É uma página pouco conhecida da biografia de Chico Buarque. Vocês conversaram sobre futebol ou sobre música ?

Chico Buarque : “É óbvio que eu falava sobre futebol – e ele falava de música….Acontece também com Pelé – que adora música. Mas Garrincha era muito musical. Tive um contato maior com ele em Roma.A gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol. Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes. Gostava de João Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória,mais ingênua,talvez. Mas não ! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto”.

GMN :Que tipo de comentário ele fazia sobre João Gilberto ?

Chico Buarque : “Garrincha comentava gravações, se referia a detalhes, lembrava de como João Gilberto cantava uma determinada música. Para me mostrar,Garrincha cantarolava – não muito bem – mas mostrava que tinha a lembrança das músicas de João Gilberto.Referia-se à maneira como João Gilberto cantava as músicas. João é um inventor. Não é um compositor. Talvez seja mais do que compositor,porque inventa a partir de uma música alheia. E Garrincha falava exatamente disso : a maneira como João Gilberto cantava -talvez uma cantiga mais conhecida que ele tivesse reinterpretado,como “Os Pés da Cruz”. Garrincha salientava a maneira como João Gilberto reiventava um samba”.

GMN : É verdade que você dirigia automóvel para Garrincha na Itália ?

Chico Buarque : “Eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma.Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat.Era impressionante.As pessoas paravam na rua.Garrincha era muito popular.Isso aconteceu entre 1969 e 1970.Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo.Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962.Mas ele ainda era muito conhecido na Itália”.

GMN : “Se você pudesse escolher entre ser um grande nome da Música Popular Brasileira e um grande craque da seleção, qual das duas profissões você escolheria ?

Chico Buarque : “Nunca escolhi ser músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos quatorze, quinze anos de idade, quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão.Mas eu tinha essa ilusão,na época,com bastante segurança.Tornei-me músico um pouco por acaso. Devo dizer que o sonho de ser um craque
permaneceu na minha cabeça. Ainda hoje acredito que seja”.

GMN : Você chegou a tentar ser um jogador de futebol profissional ?

Chico Buarque : “Eu,que jogava tanto, um dia fui ao Juventus, na rua Javari,em São Paulo, para fazer um teste. Mas eram milhões de candidatos fazendo o teste….Comecei a perceber que ia não dar para mim. Depois de esperar,esperar e esperar,fui embora.Não cheguei nem a ser chamado para fazer o teste, porque acharam que eu não tinha físico para ser jogador”.

GMN : Mas por que você escolheu logo o Juventus para fazer um teste – e não um time grande, como o Palmeiras, o Corinthians ou o São Paulo ?

Chico Buarque : “Porque eu achava que,num time mais fraco,eu teria uma vaga na certa….(ri)”.

GMN : “Você,como especialista em futebol,jogador amador,técnico de um time de futebol de botão chamado Politheama,poderia escalar a seleção brasileira de tods os tempos de Chico Buarque de Holanda ? Qual é o grande time ?

Chico Buarque : “É impossível.A brincadeira de escalar times de diversas épocas é apenas uma brincadeira.Porque você não pode comparar o futebol que se joga hoje com o futebol que se jogava há dez anos.Imagine vinte anos ! A comparação é falsa. Não se imagina o que seria Garrincha hoje nem se imagina o que seria Romário há vinte anos.É uma comparação absurda”.

GMN : Você tem no futebol ídolos que não são tão populares quanto Pelé e Garrincha,como Canhoteiro, por exemplo….

Chico Buarque : “Canhoteiro,Pagão.Fiz uma música chamada “O Futebol” dedicada a uma linha utópica – Mane Garrincha,Didi,Pagão,Pelé e Canhoteiro. Temos nossos ídolos particulares,aqueles que a gente pensa que são só nossos,porque ninguém conhece.Pelé e Garrincha todo mundo da minha idade viu jogar.Quando eu morava em São Paulo,via jogadores como Canhoteiro e Pagão.Não havia televisão em rede nacional. O pessoal do Rio,então,não conhecia esses jogadores.Quando falo de Canhoteiro e Pagão,nem sempre conhecem,aqui no Rio.Outros ídolos aqui do Rio nem sempre eram conhecidos em São Paulo. Quando eu voltava para casa em São Paulo,depois de passar férias no Rio,por volta de 1955,antes da Copa,portanto,eu falava de Garrincha – e ninguém sabia quem era”.

GMN : Quando criança –ou adolescente- você era daquele tipo de torcedor que vai ver o jogador descendo do ônibus na porta da concentração ?

Chico Buarque : “Eu fazia isso tudo,porque morava perto do estádio do Pacaembu.Eu me lembro de ter visto a seleção de 1958 concentrada.Fui lá peruar,ficar com cara de bobo olhando para as “figurinhas”.Porque eu conhecia os jogadores dos álbuns de figurinhas- muito pouco de televisão.Não tinha televisão em casa.A gente não via futebol pela TV : ia ver no estádio. Eu via os jogadores de longe,durante os jogos.Ver de perto um jogador era um acontecimento”.

GMN : De qual dos jogadores que você viu de perto você guardou a lembrança mais forte ?

Chico Buarque : “De Almir,o Pernambuquinho – que ficou olhando para mim depois que entrou no ônibus. Eu estava ali de boca aberta,com cara de babaca, olhando os jogadores. Almir,então,começou a caçoar de mim. Depois de ter sido chamado na primeira convocação, num grupo de quarenta e quatro jogadores,Almir terminou nem indo para a Copa da Suécia”.

GMN : Você,ainda criança, viu a famosa seleção brasileira de 1950 jogar em São Paulo contra a Suécia,nas vésperas da grande derrota contra o Uruguai,no Maracanã. A derrota de 1950 deixou algum trauma em você ?

Chico Buarque : “Trauma não posso dizer que tenha deixado,porque eu tinha seis anos de idade.Mas me deixou assustado,porque ouvi o jogo pelo rádio.O Maracanã,”o maior estádio do mundo”,era um sonho na minha cabeça.Eu me lembro exatamente de que o locutor,chamado Pedro Luís,disse assim quando o Brasil fez um a zero contra o Uruguai : “Gol de Friaça ! Quase que vem abaixo o Maracanã !”. Eu pensei que o estádio viesse abaixo mesmo ! Pensei que o estádio estivesse caindo,com duzentas mil pessoas.Não prestei atenção ao jogo.Fiquei pensando no Maracanã tremendo com aquelas pessoas todas ali dentro”.

GMN : Quem levou ao estádio ,em São Paulo,para ver o jogo do Brasil contra a Suiça pela Copa de 50 ?

Chico Buarque : “Quem levou foi minha mãe, porque meu pai não gostava muito de futebol”.

GMN : O futebol tem uma presença enorme na vida do brasileiro,mas aparece pouco como tema de músicas. É desproporcional a relação entre a importância do futebol e a quantidade de músicas que tratam do tema. Por que ?

Chico Buarque : ”Não sei.O futebol é próximo da fita do brasileiro,assim como os jogadores sempre foram muito próximos dos músicos.Jogador de futebol tem mania de batucar,canta na concentração.Isso não é de hoje,existia já nos anos cinqüenta.Hoje,o pessoal de pagode se encontra com o pessoal da seleção para gravar”.

GMN : Se a gente for contar as músicas suas que tratam de futebol,vai ver que são poucas. Qual é a dificuldade em tratar de futebol ?

Chico Buarque : “Não é só música.Há pouca literatura tratando de futebol,há pouco cinema. Dá para entender por que há pouco futebol no cinema : é difícil reproduzir com imagens o que já é tão forte na vida real. Teoricamente,traduzir o futebol em palavras ou em música seria fácil do que em cinema.Prometo fazer mais umas duas ou três”.

GMN : Quando joga futebol,que posição você ocupa ?

Chico Buarque : “Jogo em todas.Mas sou mais de preparar o gol. Sou um centro-avante recuado”.

GMN : Por que é que você se apresentava como jogador da seleção brasileira numa viagem que você fez ao Marrocos ? Alguém desconfiou da mentira ?
Chico Buarque : “Quando você diz que é brasileiro no exterior,o pessoal começa a falar de futebol. É uma maneira de ganhar ponto com eles. Numa conversa com motorista de táxi, por exemplo, o assunto futebol logo aparece se você diz que é brasileiro. Então,eu assumia a identidade de jogador de futebol até que um estrangeiro disse : “Ex-jogador,não é ? “….Eu disse que tinha sido convocado para a seleção de 82 : tinha sido reserva de Sócrates”.

GMN : O pessoal acreditava ?

Chico Buarque : “Não !” (rindo)

GMN : Você quebrou o perônio e rompeu os ligamentos jogando futebol. Disse, então, que não estava conseguindo compor porque não sabe fazer música parado. Você só compõe andando ?

Chico Buarque : “Não apenas compor – eu também só sei pensar andando. Se você ficar parado,não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo.Se você tem qualquer problema,dê uma caminhada -porque ajuda,inclusive a ter idéias. Se a música ficou emperrada ou se a idéia para um livro não vem ,a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama.Eu não conseguia ter idéias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdido pela imobilidade”.

GMN : Você então associa o ato de andar ao ato de compor ?

Chico Buarque : “Associo o ato de andar ao ato de pensar,criar e compor”.

GMN : Você já teve o “estalo” para alguma música jogando futebol ?

Chico Buarque : “Fazer música jogando futebol não dá, porque durante a partida você fica empenhado em suas jogadas geniais.Mas caminhando tive a idéia de várias coisas.A verdade é a seguinte : você compõe com o violão,mas quando o momento em que o processo fica encrencado,você tem de sair andando. Não pode ficar parado,com o violão,a vida inteira. Então,para resolver impasses,o melhor é caminhar”.

GMN : Diz a lenda que você escreveu aquele refrão “você não gosta de mim/mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel – que tinha uma filha.Somente você pode tirar essa dúvida : é verdade ?

Chico Buarque :”Eu nunca disse isso.As pessoas inventam. O engraçado é que a invenção passa a fazer parte do anedotário. Nunca imaginei que pudesse fazer uma música pensando num general ! A gente não faz isso. Você pode fazer uma música com raiva de alguma coisa : acontecia na época da ditadura militar,porque,com a censura,a política interferia na criação,o que nos incomodava.Mas você não ia dedicar uma canção a um pessoa. Quando se falava “você”,não se estava referindo a um general.Era uma generalidade”.

GMN : Por falar em generais : o general Garrastazu Médici freqüentava estádios no tempo em que você sofria os horrores da censura. Alguma vez você cruzou com ele num estádio de futebol ?

Chico Buarque : “Vi uma vez,porque eu estava chegando ao portão que dá nas cadeiras do Maracanã.De repente,chegou uma turma de batedores,com sirenes,com a truculência que é um pouco própria de autoridades,mas na época,era muito mais acentuada.”Afasta todo mundo ! “. Médici desceu do carro.Fiquei vendo de longe aquele figura”.

GMN : Você já era famoso.Algum dos batedores do general reconheceu você por acaso ?

Chico Buarque : “Batedor não reconhece ninguém : não olha para a cara de ninguém na hora de sair abrindo espaço”.

GMN : Em 1978,você participou da campanha do então candidato ao senado Fernando Henrique Cardoso,em São Paulo. Numa declaração publicada em 1998 em livro,Fernando Henrique diz que você é um crítico repetitivo.Como é que você recebeu essa crítica ?

Chico Buarque : “Achei engraçado no começo. Mas não dei a importância que às vezes dão. Parece que fiquei ofendido.Não. É normal,é natural que um político tenha opiniões políticas até a respeito de artistas. Diz o que interessa naquele momento.É da natureza de um político.Fernando Henrique sabe o que diz e tem o direito de gostar de quem quiser.Nunca imaginei que ele gostasse de mim. Achei divertida e engraçada a ênfase com que ele gosta de uma pessoa e pode deixar de gostar.Mas é a opinião de um político.Fernando Henrique diz que não gosta mais de mim. Antes,gostava”.
GMN : É verdade que você tem um irmão alemão ?

Chico Buarque : “Eu tenho um meio- irmão alemão.Não sei se ainda tenho.Mas tive. O meu pai teve um filho alemão antes de se casar.Depois,perdeu de vista,porque voltou para o Brasil,onde se casou.Não se relacionou mais com a mulher nem com o filho que teve na Alemanha.A última notícia que ele teve foi durante a guerra. A mulher pediu que o meu pai enviasse documentos provando que não tinha sangue judeu até a segunda ou terceira geração.O meu pai providenciou.Depois da guerra,não teve notícias”.

GMN : Você chegou a procurar esse irmão ?

Chico Buarque : “Uma vez,quando fui a Berlim,tive a impressão de estar vendo um irmão sempre em alguma parte – alguém que pudesse parecer comigo ou com meu pai. Tive a impressão de que ele poderia estar ali. Não sei explicar o que aconteceu.Não se a mãe não contou a ele quem era o pai.A mulher pode ter mudado de nome depois de se casar de novo.Um pai alemão pode te-lo adotado.O engraçado é que sempre perguntavam ao meu pai – que era muito branco de pele : “Por acaso o senhor é filho de alemão ? “. E ele dizia : “Não.Sou pai de alemão”.

GMN : O seu pai disse, num artigo, que você, quando era estudante, gostava de desenhar cidades. Havia sempre uma fonte no meio da praça,nas cidades que você desenhava. Você,que já foi estudante de arquitetura,ainda hoje desenha ou imagina alguma cidade nas horas vagas ?

Chico Buarque : “Desenho cidades enormes,gigantescas,com fontes,com praças,com nomes,com ruas.Quando não desenho,penso.Sonho muito com cidades. Os meus sonhos misturam cidades que conheço.Também sonho com cidades que não conheço e com cidades que imagino.São as melhores de todas”.

GMN : Você batizou o seu time de futebol de campo de Politheama – que era o nome do seu time de futebol de botão. Que nomes você dá às suas cidades imaginárias ?

Chico Buarque : “Não vou contar.
As cidades têm nomes.Mas não posso nem pronunciar aqui.Vou passar vergonha” .

GMN : Por quê ?

Chico Buarque : “Porque são nomes que têm consoantes que nem existem.São idéias bobas”.

GMN : Você tem a fama – falsa- de tímido e a fama – verdadeira – de arredio.Você não é de estar todo dia nos jornais ou na televisão. Qual é o maior incômodo que a fama traz ? É o assédio dos fãs,a invasão de privacidade ou a curiosidade da imprensa ?

Chico Buarque : “Assédio de fãs,no meu caso,não existe,porque não ando cercado nem de óculos escuros. Ando naturalmente na rua. As pessoas não perturbam muito.Se você andar como uma pessoa qualquer,você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem,dizem “olá,Chico,tudo bem ? “.Não passa disso.Não vou dizer que é mau.É bom,é simpático,é gostoso.Não tenho nada contra”.

GMN : Mas a imprensa incomoda você de vez em quando…

Chico Buarque : “Quando quer,a imprensa incomoda” .

GMN : É por isso que você dá tão poucas entrevistas e fala tão pouco com os repórteres ?

Chico Buarque : “Eu falo bastante.Falo mais do que devia.Já estou falando aqui há meia-hora com você ! Mas é que não tenho tanto assunto.Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras coisas”.
GMN : “Se você fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda numa enciclopédia de música popular,qual seria a primeira frase ?

Chico Buarque(rindo) :”Êpa !. Não sei.Podia ser “ êpa”….

GMN : Com interrogação ou com exclamação ?

Chico Buarque : “Com interrogação.A primeira palavra seria : êpa ? “.

(Entrevista gravada em 1998)

Posted by geneton at 11:34 AM

maio 11, 2010

FRIAÇA

A PALAVRA DO ÚNICO JOGADOR QUE REALIZOU O SONHO DE TODO BRASILEIRO: MARCAR UM GOL NUMA DECISÃO DE COPA DO MUNDO DIANTE DE UM MARACANÃ SUPERLOTADO

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Friaça : um gol no Maracanã numa decisão de Copa do Mundo

O sonho de cem por cento dos jogadores brasileiros não é apenas o de disputar uma Copa do Mundo pelo Brasil: é o de marcar um gol numa final, diante de um Maracanã superlotado. Não pode existir alegria maior ( nem pesadelo, se o adversário for o Uruguai).

Somente um jogador cometeu a façanha de fazer o Maracanã delirar numa final : Friaça. A Copa de 2014 dará ao Brasil a chance de disputar uma final no Maracanã.

Tive a chance de entrevistar Friaça duas vezes.

O depoimento completo de Friaça foi publicado no nosso livro “DOSSIÊ 50′, lançado em 2000 pela Editora Objetiva. É a única reportagem que traz a palavra de todos os jogadores que entraram em campo para enfrentar o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950. Esgotado, o livro virou “raridade”. Mas pode ser encontrado em sebos:

“FIZ UM A ZERO NA FINAL DA COPA.ALI NÓS JÁ ÉRAMOS DEUSES”

Albino Friaça Cardoso tinha vinte e cinco anos, oito meses e vinte e seis dias quando realizou o sonho máximo de todos os jogadores brasileiros de todas as épocas: fazer um gol numa final de Copa do Mundo dentro do Maracanã superlotado. O gol sai logo no primeiro minuto do segundo tempo. O Maracanã enlouquece. Friaça também. “A emoção foi tão grande que só me lembro de uma pessoa que veio me abraçar: César de Alencar, o locutor. Quando a bola estava lá dentro, ele gritou: “Friaça, você fez o gol!”. Naquela confusão, ele entrou em campo e me abraçou. Nós dois caímos dentro da grande área”.

Louco de alegria, Friaça só se lembra com clareza do rosto de César de Alencar. “Passei uns trinta minutos fora de mim. Eu não acreditava que tinha feito o gol. Eu tinha potencial, mas estava ao lado de craques como Zizinho, Ademir e Jair. E logo eu é que fiz o gol”. Se o Brasil precisava apenas de um empate, então o jogo estava liquidado: a seleção ia ser campeã do mundo. “Ali, nós já éramos deuses”.

Friaça só não poderia imaginar que outras cenas inacreditáveis iriam acontecer ali – além da queda com César de Alencar dentro da grande área, numa explosão de alegria. Consumada a tragédia brasileira, diante da maior platéia até hoje reunida para um jogo de futebol, a dor da derrota desnorteou o autor do gol do Brasil.

“O trauma foi enorme. Vim para o Vasco. Fiquei, em companhia de outros jogadores, andando de noite em volta do campo, ali na pista. O assunto era um só: como é que a gente foi perder com um gol daqueles ?”.

Depois das voltas inúteis em torno do campo do Vasco na noite de domingo, Friaça pirou. “Só me lembro de que a gente subiu para o dormitório. Eram umas onze da noite. Troquei de roupa e me deitei. Não me lembro de nada do que aconteceu depois. Quando dei por mim, por incrível que pareça, eu estava em Teresópolis, no meu carro. Passei pela barreira, fui para um hotel. Quando me perguntaram: “Friaça, o que é que você quer?” Eu simplesmente não sabia onde estava. Só sabia que estava debaixo de uma jaqueira, no terreno do hotel. Não sei como é que saí com meu carro da concentração. Não sei como é que fui bater em Teresópolis. Um médico que era prefeito de Teresópolis é que me deu uma injeção. Comecei a saber onde é que estava uns dois dias depois. A a minha família,em Porciúncula,estava atrás de mim, sem saber onde é que eu estava. O pior é que eu também não sabia. De 64 quilos eu passei para 59”.

Quem tivesse a sorte de fazer gol pelo Brasil ganharia um terreno – era um dos prêmios aos futuros campeões do mundo. O artilheiro da finalíssima contra o Uruguai mereceria um prêmio extra – uma televisão, na época, um luxo para privilegiados. Quando finalmente descobriu em que país estava, depois do trauma da vitória do Uruguai, Friaça tentou receber o terreno e a televisão.

“A resposta que me deram foi: só se o Brasil tivesse vencido o jogo…”.

“Eu tinha confiança : a gente ganharia do Uruguai com facilidade.Cheguei a imaginar um placar de 2 ou 3 a 0 para o Brasil,pelo time que nós tínhamos e pelo time que o Uruguai tinha.A gente pode dizer que o Uruguai tinha um grande time,mas o Brasil era uma potência,uma força.O Brasil não pensava nem no empate.A gente não daria essa chance ao Uruguai.A verdade é que nós,os jogadores,estávamos tranquilos.A gente sabia que,se o time jogasse o que vinha jogando,dificilmente perderia.Se o tempo pudesse voltar,se o Brasil pudesse jogar dez vezes contra o Uruguai,ganharia nove.A seleção de cinquenta foi uma das maiores que o Brasil já teve.

A maior vingança que experimentei em minha carreira esportiva aconteceu um ano depois de nossa derrota na final da Copa de 50.O Vasco da Gama foi ao Uruguai jogar contra o Penarol. Ganhamos do Penarol – que tinha onze jogadores de seleção – dentro do Estádio Centenário.Repetimos a dose em outro jogo,aqui no Brasil.

Em 1950,nós estávamos engatinhando. Não estávamos preparados para ter um impacto tão grande quanto o que sofremos.O nosso time tinha um potencial muito maior do que o do time do Uruguai. O gol de empate do Uruguai,marcado por Schiaffino,teve um impacto grande sobre nosso time.Porque,até então,o jogo mais duro que tivemos tinha sido contra a Iugoslávia.Vencemos por 2 a 1,um jogo duro.

Diante dos outros,o Brasil jogava quase que a toque de música,como,depois,a seleção de 70.Era um time homogêneo.Quando o Uruguai fêz o gol de empate,sentimos um impacto.Há quem fale em Bigode.Mas fomos todos nós

Não houve falha na armação tática do time.Ainda ouço até hoje que Obdulio Varela deu um tapa em Bigode. Não deu.Eu estava lá ! Pude sentir todo o problema.Bigode –é verdade- tinha dado uma entrada violenta.Aliás,violenta,não : uma entrada dura.Houve o impacto do juiz. Neste momento, Obdulio entrou em cena para separar. Mas não houve nada.
O que aconteceu,no gol, adiante,é que Bigode foi batido numa jogada, porque Ghiggia era um jogador de alta velocidade. Se Bigode foi batido pela alta velocidade de Ghiggia, então teria de contar com a cobertura de outro jogador. Não posso ficar falando. Não é o caso de a gente crucificar A, B ou C.Mas não houve cobertura.Como não houve cobertura,veio aquele impacto. Schiaffino,no lance do primeiro gol do Uruguai,foi muito feliz,como Ghiggia.Basta ver que o próprio Ghiggia diz que pegou a bola mal no pé.Fêz o gol no contra-pé de Barbosa,o nosso goleiro.Pegou a bola quase que com o bico da chuteira.Resultado : a bola entrou entre a trave e a perna esquerda de Barbosa.

O que eu acho é que não houve uma cobertura certa no lance, já que se sabia que Ghiggia era um jogador de grande velocidade. Tinha pouco domínio de bola,mas era veloz.

Não acredito em falha técnica do treinador. Porque,desde o primeiro jogo,entramos da mesma maneira.Mas aconteceu o lance : Ghiggia recebia a bola e partia para cima de Bigode.Como era de alta velocidade,Ghiggia dava um chute lá pra frente e partia.Então,a cobertura era essencial.

Não estou crucificando ninguém.Mas estou dizendo o que faria : punha um jogador fazendo a cobertura.

Gravei bem o lance do meu gol contra o Uruguai,porque este é o tipo de coisa que a gente guarda.Eu tinha potência na perna direita,graças a Deus.Quando vi,Máspoli,o goleiro do Uruguai,tinha saído.Bati forte na entrada da área – do lado direito para o lado esquerdo.A bola entrou.O lance tinha nascido de uma combinação minha com Bauer.Assim : Bauer tocou para mim, eu toquei para o Zizinho – que tocou,na frente,para mim. Antes de entrar na área,bati na bola.Tive a felicidade de marcar !

Eu só tinha um pensamento : fiz o gol ! A única coisa que eu vi foi César de Alencar me abraçando.Caímos dentro da área.Passei uns trinta minutos fora de mim.Eu não acreditava: nós tínhamos craques como Zizinho,Ademir e Jair.Mas eu é que tinha feito o gol ! Em toda a vida,eu sempre fui muito frio, nunca tive medo de ninguém : eu era igual a todos. É uma das das vantagens que eu tinha -e tenho até hoje.

Quanto à recomendação que o nosso técnico fêz antes do jogo,é bom que se diga o seguinte : o que Flávio Costa não admitia a covardia,mas aceitava entradas firmes e duras,desde que fossem leais.Há uma diferença entre as duas coisas.Deslealdade é uma coisa,jogada dura é outra.

Se alguém pensou em tirar de campo um jogador como Obdulio Varela,foi bobagem.Porque Obdulio era um jogador vivo e manhoso : não ia cair numa dessas.Eu mesmo já passei por uma situação dessas. Gostava de jogo duro.Não cheguei a jogar quatro vezes no Vasco na mesma posição : ora era center-foward,ora ponta-esquerda,ora ponta-direita.ter four, ponta esquerda, ponta direita e gostava. Depois da Copa,joguei contra o Uruguai,como center-foward.Matias Gonzalez me disse : “Vou te botar pra fora da área !”.Eu disse : “Você me conhece ! Sou do estado do Rio ! Já joguei 4 vezes contra você.Vamos brigar até o fim do jogo.Você sabe que eu não corro do pau !”.

Antes do jogo,aquele assédio atrapalhou o descanso dos jogadores.Como era ano de eleiçãO,teve jogador que foi levado para passear.A seleção,então,não teve sossego,tranqüilidade.É por razões que eu digo que a seleção estava engatinhando,em 1950,porque não tinha uma vivência.Um exemplo: passamos quarenta e cinco dias em Araxá,sem comunicação alguma com nossas famílias. Depois que Paulo Machado de Carvalho e o falecido Geraldo José de Almeida foram para é que começamos a Ter contato.Acontecia o seguinte : nossas famílias não recebiam as cartas que a gente escrevia.

Não culpo Flávio Costa de jeito nenhum, porque ele era sozinho.Era Flávio Costa e Vicente Feola para tomar conta de vinte e cinco jogadores. Depois,ficaram vinte e dois.Hoje,existe uma comissão técnica.Mas quem fazia treinamento era Flávio Costa – tudo ele.A equipe era o roupeiro,dois massagistas,dois médicos e Vicente Feola,para ajudar.

Eu me lembro de lances que poderiam ter mudado a história do jogo.Eu era um jogador que tinha noção dos passes,principalmente os de perna direita. Houve um lance em que fiz um passe certeiro,para Ademir entrar de cabeça.Eu,naquele estado de nervos,tinha certeza de que Ademir,com a facilidade que tinha para jogar,faria o gol.Mas Ademir praticamente devolveu a bola para mim. A bola voltou na mesma direção ! Por aí,dá para ver o estado em que os jogadores do Brasil se encontravam,naquele momento,a dez,quinze minutos do fim da partida.Naquela altura,era tudo na base do “valha-me Deus”,porque ninguém entendia nada.

A gente tinha saído da concentração para o Maracanã às onze e quarenta e cinco.Chegamos ao estádio em torno de uma hora da tarde.Quando chegamos ao vestiário,encontramos colchão para todo mundo se deitar no chão.

Antes,quando a seleção estava concentrada no Joá,antes da mudança para São Januário,várias vezes tivemos de empurrar,em dia de treino,uma camionete enguiçada da Polícia Militar,uma daquelas que tinha a madeira pintada de amarelo e a lateria pintada de azul.
Durante a Copa,jogadores receberam camisa, corte de terno,relógios e lustres.Da Sexta para o sábado e do sábado para o domingo,dentro do bar do Vasco da Gama,na concentração em São Januário,eu assinei autógrafos como “capeão do mundo”.Assinei !

Tinha até comerciante envolvido.Hoje,jogador de futebol não faz um negócio desse se não receber uma importância. Mas eu assinei bolas,faixas,fotos,todo tipo de coisa.Já nem sei onde assinei…Quem fizesse o primeiro gol receberia um terreno,perto do Leblon.Quem fizesse o primeiro gol do Brasil contra o Uruguai iria ganhar uma televisão,uma novidade,na época.Fiz o gol.Nunca vi esse prêmio.Não ganhei terreno.Corri atrás,mas não adiantou nada.Quem ia dar os prêmios disse que não podia,porque o Brasil tinha perdido a Copa.A televisão ia ser prêmio de uma loja chamada A Exposição. Meu cunhado foi à loja,para saber do prêmio.Disseram : “Ah,não ! Só se o Brasil tivesse ganhado o jogo…”.

Logo em seguida,comprei uma televisão.

Durante a Copa,houve uma reunião entre os jogadores,para discutir a divisão de prêmios que eram oferecidos à seleção.Decidiu-se que ia se fazer um leilão dos objetos.Pelo seguinte : havia no grupo jogadores que não tinham condições físicas ou técnicas de jogar.Como não jogavam,corriam o risco de não receber prêmios.

Então,combinou-se com nossa “diretoria”,formada por Augusto,Nílton Santos,Castilho e Noronha,o seguinte : tudo o que cada um recebesse seria leiloado.Houve,então,uma pequena desavença sobre como é que se ia dividir um lustre de cristal,oferecido por uma loja.Flávio Costa entrou na discussão para acalmar o pessoal.

Mas o pior,para mim,veio quando o jogo acabou.Vim para o Vasco. Ficamos eu,Bauer, Rui e o Noronha andando em volta do campo,na pista do do Vasco. : é a momento mais duro que tive em minha vida.Dali,subimos para o dormitório.

O assunto era um só : como é que nós fomos perder com um gol daqueles ? Ficou aquela “conversa de bêbado”,sem fim nem começo.

Só sei que subi para o dormitório ás onze horas.Não me lembro de mais nada,não sei de mais nada. Quando eu dei por mim,estava em Teresópolis ! Uma pessoa do hotel me perguntava: “Friaça, o que é que você quer?” E eu nem sabia onde estava !.Só sei que estava debaixo de uma jaqueira,num hotel…Fui sozinho para lá.Não como é que pedi ao porteiro para sair,não sei como é que cheguei a Teresópolis.De manhã,o porteiro do hotel foi chamar o prefeito de Teresópolis – que eu conhecia.Tomei injeção,passei uns dois dias com ele. Honestamente,não sei o que eu tomei,mas fiquei apagado. Depois é que me refiz,comecei a saber onde é que eu estava e o que é que tinha feito.A minha família estava me procurando no Rio e em São Paulo,porque não sabia onde é que eu estava.Mas eu mesmo também não sabia ! Depois de chegar finalmente a Porciúncula,terra da minha família,eu me comuniquei com o Rio e com São Paulo.Eu tinha 64 quilos.Passei para 59.

Devo ter ido para Teresópolis porque sempre que tinha uma folga gostava de ficar quieto lá.Nunca gostei de confusão.Eu queria era tranquilidade.

O que vi no vestiário do Brasil,assim que acabou o jogo,foi só choro.Não se via outra coisa,a não ser gente se abraçando,chorando,lamentando.Os mais frios sofrem mais.Quem desabafa sente um alívio.quem não desabafa fica sofrendo.Nosso vestiário – desculpe a expressão – virou um cemitério.Era só gente se lastimando,como num velório.
Quando acabou tudo,eu pedia muito a Deus que eu jogasse outra vez contra o Uruguai.Terminei jogando – e ganhando,pelo Vasco : 3 a 1 em Montevidéu,2 a 0 aqui.
Não adiantava querer sonhar.Eu queria ir à forra.O Vasco chegou debaixo de cavalaria,mas ganhou.

Jogadores da seleção brasileira de 50 – que tinham condições de crescer na carreira – só regrediram depois da Copa.Antes,éramos deuses.

Nós,os jogadores,sofremos em todos os cantos,porque para onde a gente ia,ouvia só duas palavras : Obdulio,Uruguai ”

* Friaça morreu no dia doze de janeiro de 2009, aos 84 anos.

Posted by geneton at 11:38 AM

maio 10, 2010

NEWTON CRUZ

OS BASTIDORES DO REGIME MILITAR : GENERAL NEWTON CRUZ DESCREVE O DIA EM QUE SAIU DE BRASÍLIA PARA O RIO PARA DESMONTAR UM NOVO ATENTADO QUE MILITARES ESTAVAM TRAMANDO DEPOIS DO RIOCENTRO

Aos fatos : o ex-chefe da agência central do SNI e ex-comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, nos deu detalhes de uma operação secreta que ele protagonizou para evitar que militares radicais cometessem, no Rio de Janeiro, um novo atentado, depois do que tinha ocorrido no Riocentro.

Um detalhe: o próprio Newton Cruz ficou nacionalmente conhecido como “linha-dura”. Mas, neste caso, ele atuou para “apagar um incêndio”. Os autores do frustrado atentado cometido no Riocentro – militares ligados ao DOI do I Exército, no Rio de Janeiro - queriam dar uma nova demonstração de força contra a abertura política ( A entrevista completa do general foi exibida no DOSSIÊ GLOBONEWS no sábado. Vai ser reprisada neste domingo, às 17:05; na segunda, às 15:05 e na terça, às 11:05).

O general se deslocou de Brasília para o Rio, numa missão que, segundo ele, extrapolava suas atribuições, já que cabia a ele chefiar a agência central do SNI – não participar de um “empreitada” como aquela. O diálogo com dois dos homens que tramavam um novo atentado ocorreu num quarto de hotel do Leme, no Rio de Janeiro. O então chefe da agência central do SNI diz que fez uma advertência aos dois : se executassem o que estavam tramando, seriam denunciados.

Um bastidor : quando procurei o ex-chefe da agência central do SNI para uma entrevista, duas semanas antes do natal, a primeira resposta foi “não”. Cordial ao telefone, disse que já não queria se envolver em” confusão”. Aos 85 anos, viúvo, estava na casa da filha, na zona oeste do Rio. Enfrentara problemas de saúde. A audição já não era tão boa. Agradeceu o “interesse” mas, em outras palavras, pediu que eu batesse em outra porta. Não bati. Tentei de novo uma, duas, três vezes. Disse que ele tinha sido citado em outras entrevistas que eu tinha feito sobre o fim do regime militar. A última investida deu resultado. O general me disse :”Você é insistente !”. Respondi que sou, claro. Queria ouvi-lo. O tom firme da voz do general indicava que continuava “enérgico”. A entrevista ficou marcado para as onze da manhã de uma quarta-feira.

Houve momentos tensos. Com o calor na sala e o pequeno refletor usado pelo cinegrafista Evilásio Carneiro foram suficientes para que o general ficasse banhado de suor. A camisa ficou visivelmente molhada. A assistente de produção Rosamaria Mattos, estagiária da Globonews, fez as vezes de “maquiadora” : precisou enxugar a testa do general “n” vezes com lenços de papel. Houve momentos tensos, em que o general levantou a voz para marcar posições. Devolveu perguntas ao repórter. Recorreu à ironia quando achou necessário. A estagiária deve ter ficado compreensivelmente “assustada” com a entrevista. De qualquer maneira, eu estava apenas – e exclusivamente – para perguntar, não para fazer discursos, emitir julgamentos ou me exibir diante da câmera sob as vistas do general – que entrou para o “imaginário coletivo” como exemplo acabado do militar linha-dura. É o que tentei fazer.

Terminada a entrevista, a equipe desligou o equipamento. O cinegrafista, os dois técnicos e a assistente de produção desceram na frente. O general me acompanhou até a porta do elevador. Aquele silêncio constrangido que sempre acomete os que ficam diante da porta de um elevador foi quebrado pelo general que, para minha surpresa, depois de ter se exaltado tantas vezes durante a entrevista, começou a cantar uma velha canção : “Falam de Mim” ( a letra diz “falam de mim/mas quem fala não tem razão/ um rapaz como eu/ não merece ingratidão”). Quando cheguei à TV, recorri ao São Google, para descobrir de quem era a música. Era de um homônimo de Noel Rosa.

Vou confessar : meu primeiro pensamento foi “ah, meu Deus do céu, se a câmera estivesse ligada aqui eu ia fazer uma imagem antológica : Newton Cruz, o general linha-dura, cantando !”. A essa altura, o equipamento já estava desligado, no carro. Trocamos umas palavras. O general ficara satisfeito com a entrevista. Eu disse a ele o que sinceramente penso : “Como personagem jornalístico, o senhor me interessa tanto quanto, por exemplo, Luís Carlos Prestes, a quem, aliás, entrevistei várias vezes. Jornalista existe para fazer pergunta. Não faço “patrulhagem ideológica” nem no senhor nem em Prestes. Minha opinião pessoal não interessa. Quero sair daqui com uma notícia”. O general me disse que nunca tinha falado tão claramente sobre a operação que fez para desmontar um novo atentado que militares tramavam no Rio. Em resumo, ele me deu uma notícia : militares estavam tramando,sim, um novo atentado no governo Figueiredo.

Um dia depois, telefonei para checar dados. Perguntei se ele sabia o título da música que cantou para mim na porta do elevador, no fim da visita. Não, o general não sabia. Mas deve ter notado que, no fundo, o que eu queria era gravar a performance do general Newton Cruz cantando. Perguntou, sem meias palavras, se eu queria gravar ali, naquela hora, por telefone. É claro que sim. A gravação foi feita. O general “linha-dura” cantou de novo! A gravação da performance musical foi usada no final da entrevista levada ao ar pela Globonews : um diálogo marcado por momentos ríspidos terminou, quem diria, com Newton Cruz cantando.

Mas o que terminou com a música tinha começado assim:

Toca o telefone na agência central do SNI, em Brasília : um agente – que estava no DOI-CODI do I Exército, no Rio de Janeiro, avisa que um grupo estava indo para o Riocentro com uma bomba
Horas antes do atentado no Riocentro, o senhor recebeu um telefonema de um militar avisando que uma bomba iria explodir lá.Por que é que o senhor não se dirigiu imediatamente para o Riocentro?

Newton Cruz: “Não,não,não,não. Meu Deus do céu. Primeiro: o Riocentro é no Rio. Eu estava em Brasília. “Imediatamente” não podia ser, nem que eu viesse de avião. Não é nada disso. Eu estava no meu gabinete de trabalho, na Agência Central do SNI. Ficava até tarde. Trabalhava feito um desesperado. Trabalhava de noite. Não tirava férias. Não fazia nada. Cheio de papel. Sempre fui muito centralizador. Sempre fui responsável, eu,pessoalmente – e também garantir que cumpram aquilo que digo,como mando fazer. Eu estava no meu gabinete, já à noite, quando um oficial meu – da Agência Central do SNI – me disse: “Chefe, recebi um telefonema lá do Rio de Janeiro, de fulano de tal, analista de nossa agência, que disse o seguinte: tinha ido ao DOI do I Exército para fazer contato,saber se tinha alguma novidade e se informar…”. Somos órgão de informação. Era um homem da nossa seção de operações. “Quando chegou lá, ele se assustou, porque viu um grupo reunido cuja ideia era partir para o Riocentro. E ele ficou assustado.Falou: ”Como é isso?”. O oficial da agência do Rio de Janeiro tentou influenciar: ”Vocês não podem fazer isso, ir pra lá!”. E eles: “Mas nós vamos! ”. A ideia desse grupo não era matar ninguém: era moda aquele negócio de bomba em banca de jornal. Era pegar uma bomba – uma bombazinha – e jogar lá fora, nas imediações. Era um ato de presença: “Nós estamos aqui.Vocês estão aí, no evento de comemoração do primeiro de maio.Nós estamos aqui!”. Não era para matar ninguém. Era um grupinho. Não era nada comandado por ninguém de cima. Eram eles mesmos, por conta deles.

Quando este oficial soube, se assustou: “Não podem fazer isso lá”. Faz o seguinte: “Vai, mas joga a bomba mais afastada”. Ele avisou isso. E saiu com o grupo: foi junto, para assegurar a bomba fora, para não incomodar ninguém, porque eles estavam com gosto de sangue na boca. Sangue,não. Sangue nada: era jogar bomba. Eu falei: “Mas não há meio de parar?”. E ele: “Não,porque eles já saíram”. Quando eu soube, este grupo já tinha saído. E a bomba foi lançada meio afastada, na proximidade da casa de força. Não adiantava nada, porque se apagasse, o gerador daria eletricidade. Não ia incomodar ninguém. Ele agiu com a cabeça, para evitar. Muito bem. Eu não podia fazer mais nada. Paciência. Fui para casa. Quando cheguei em casa – e liguei a televisão – é que soube da bomba que tinha explodido. O que é que foi ? Os dois que foram lá – o capitão e o sargento – por conta própria, fora daquele grupo – para o estacionamento.E a bomba explodiu no colo do sargento. É o que houve”.

Quando soube que haveria um atentado no Rio centro, o senhor não deveria ter comunicado imediatamente até ao presidente da República ?

Newton Cruz: “Não,não,não…”

O senhor não considerou grave ?

Newton Cruz: “Falei com quem ? Com o meu chefe – o chefe do SNI,Octávio Medeiros – que tinha gabinete junto do Figueiredo. Eu – como chefe da agência central – não tinha nenhum contato direto com Figueiredo…”

Mas num situação dessas….

Newton Cruz: “Não tinha importância nenhuma…”

Poderia ter causado uma tragédia….

Newton Cruz: “Ele foi procurado por Medeiros – que disse a história a ele. Figueiredo soube o que aconteceu”.

Naquela noite ?

Newton Cruz: “Não sei se na noite. Porque a noite era de madrugada. Ou no dia seguinte, não sei. Para mim, tinha acabado. Transmiti para o meu chefe e acabou”

O senhor transmitiu para o general Octávio Medeiros antes ou depois de ver a notícia na TV?

Newton Cruz: “Depois da TV. Eu morava do lado de Medeiros. Nossa casa era junto uma da outra,na Península dos Ministros. Não podia fazer nada! Não podia fazer nada naquela hora ! Nada! Não tinha o que fazer ! Não tinha o que fazer. Não podia fazer nada! Não havia o que fazer”

O senhor se arrepende de não ter tentado fazer alguma coisa ?

Newton Cruz(levantando a voz): “Tentar o quê ?”

Telefonar para o general Medeiros para mobilizar…

Newton Cruz: “Medeiros ia fazer o quê ?”

Mobilizar alguém para interceptar…

Newton Cruz: “Interceptar quem ?”

Os militares que estavam indo para o Riocentro….

Newton Cruz: “Eles não sabiam de militar que estava indo para o Riocentro. Não sabia nem para onde eles foram. Não sabiam nem onde ia ser jogada a tal bomba. Era nas proximidades. Não sabiam onde era. Que história é essa ? É impossível. Nesta ocasião, nem celular havia….

E mais o seguinte: tempos depois, recebi a informação de que havia um grupo,no DOI, tentando fazer uma coisa parecida.Não era problema meu. Eu tinha só de informar.

O grupo ia fazer algo parecido onde ?

Newton Cruz: “Em algum lugar. Algo da mesma natureza”

Uma bomba num local público ?

Newton Cruz: “É….Não sei onde”.

O senhor deve saber. Não quer dizer ?

Newton Cruz: “Estou dizendo que não sei. Estou contando. Não conto pela metade. Conto tudo que sei. Quando conto, conto o que sei. Quando não quero contar, não falo. Então, falei: “Não é possível! Isso não pode!”.

Pela primeira vez, saí de minha função dentro do SNI: “Vou pessoalmente acabar com isso!”.Pedi à agência do Rio um encontro com dois elementos do DOI-CODI. Fui ao Rio de Janeiro e me encontrei num hotel “.

Onde foi ?

Newton Cruz: “O hotel ficava no Leme. Eu me encontrei com um tenente da Polícia Militar e um sargento (do Exército). Falei: ”Aconteceu isso assim assim em relação ao Riocentro. Eu tive informações de que vocês estão pensando em coisa parecida. Vou dizer uma coisa a vocês: vão lá e digam aos seus companheiros que vocês estiveram comigo e se acontecer qualquer coisa parecida com isso eu vou denunciar!” (levanta a voz). Digam a eles!”. Nâo houve mais nada. Acabou com bomba. Isso ninguém sabe”.

O general guardou silêncio sobre a reunião ocorrida num quarto de hotel no Leme, no Rio de Janeiro, com dois militares que estavam tramando o novo ataque
O senhor chegou a produzir algum documento escrito sobre esta ameaça de um novo atentado no Rio ?

Newton Cruz: “Não.Nunca falei sobre isso”

Chegou a produzir algum documento internamente no SNI ?

Newton Cruz: “Não.Porque, se eu fizesse, estaria sendo falso em relação aos dois que falaram comigo”.

Por que é que só agora o senhor decidiu fazer esta revelação ?

Newton Cruz: “Já falei na intimidade”.

Não: publicamente….

Newton Cruz: “Porque saiu agora. Não sei por quê. Ah, por quê ? Porque agora falei, de repente…”.

Quanto tempo depois do Riocentro haveria este outro atentado ?

Newton Cruz: “Eu estava na agência central do SNI até 1983. Se o atentado foi em 1981, foi logo depois…”

Como é que esta informação de que haveria um novo RioCentro chegou ao senhor ?

Newton Cruz: “Não vou dizer a você! Pronto. Porque acho que, profissionalmente, não posso dizer”

Mas é uma revelação grave que o senhor faz: a de que poderia haver um outro Riocentro no governo Figueiredo.

Newton Cruz: “Eu resolvi o fato. Falei do fato. Não posso falar sobre informante. Você, jornalista, fala o que um informante diz a você pedindo sigilo ?”

Não.

Newton Cruz: “Permita-me ser igual a você!”.

O senhor comunicou este fato ao presidente Figueiredo ?

Newton Cruz: “Com Medeiros (chefe do SNI), falei de minha ida ao Rio. Eu ia ao Rio e não vou dizer a meu chefe ? Eu disse!”.

Que cuidados o senhor tomou na hora de ter esta conversa no hotel ?

Newton Cruz: “Nenhum. Entrei no quarto, já preparado,sentei lá. Pedi um uísque para mim e um uísque para os informantes e conversei com eles. Pronto”.

Que reação esses dois oficiais tiveram quando o senhor disse que eles não poderiam cometer este ato ?

Newton Cruz :” Você pode tirar sua conclusão porque depois nunca mais houve bomba em lugar nenhum”.

Mas eles contraargumentaram ?

Newton Cruz: “Não. Ficaram quietinhos. Fiz cara feia para eles, certamente. Ficaram com medo de minha cara…”.

Que sensação o senhor tem por ter evitado este outro atentado ? É de alívio ?

Newton Cruz: “Fiquei feliz da vida, claro. Achei que tinha um propósito – e o propósito foi cumprido. Fiquei feliz da vida. A pergunta acho que não tem sentido ( irônico): ah, fiquei triste….Queria que acontecesse…Ora…”

Posted by geneton at 11:57 AM

maio 03, 2010

CARL BERNSTEIN

BERNSTEIN VOLTA A ATACAR : REPÓRTER DO CASO WATERGATE DIZ NO RIO QUE CULTO À CELEBRIDADE, FOFOCA E SENSACIONALISMO PRODUZEM RETRATO DESFIGURADO DA SOCIEDADE

O super-repórter Carl Bernstein – aquele que, ao publicar uma série de reportagens investigativas no Washington Post, em parceria com Bob Woodward, terminou provocando a renúncia do presidente dos Estados Unidos, Richard Nix0n – fez uma queixa, agora há pouco, no auditório da Escola da Magistratura do Estado do Rio: reclamou de que, nesta última geração, a principal função da imprensa – a de obter a “melhor versão possível da verdade” – foi deixada de lado. O que há, hoje ? “A predominância de uma cultura jornalística global que tem cada vez menos a ver com a verdade, a realidade e o contexto. Crescentemente, o retrato de nossa sociedade, produzido por esta mídia, é enganador. É um retrato sem conexão com o contexto real de nossas vidas; um retrato desfigurado pelo culto à celebridade, pela fofoca, pelo sensacionalismo, pela negação das reais condições de nossa sociedade, pela controvérsia fabricada – especialmente, na TV, mas também na imprensa escrita. Uma das grandes perguntas do Século XXI é se nós, no chamado mundo civilizado, podemos restaurar a nossa missão : a de obter a melhor versão possível da verdade”.

Como se dizia no tempo das cavernas, “falou e disse”.

Bernstein participou de um seminário que discutiu as ameaças ao livre funcionanento da imprensa – especialmente, na Venezuela, Argentina e Equador. O presidente da Globovision (Venezuela) não conseguiu visto para sair do país : terminou enviando um vídeo que foi exibido para a plateia. O presidente Chavez, como se sabe, declarou guerra ao grupo jornalístico.

(ver post anterior : reportagem completa sobre a penúltima viagem de Bernstein ao Brasil)

Posted by geneton at 11:49 AM

abril 26, 2010

CARL BERNSTEIN

ESPECIAL/CARL BERNSTEIN ATENÇÃO, ESTUDANTES DE JORNALISMO! EIS AS LIÇÕES DO REPÓRTER QUE DERRUBOU UM PRESIDENTE!

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Carl Bernstein é um repórter que consegue ser ídolo de repórteres. Não é por acaso: o homem é co-autor da série de reportagens que, em última instância, terminaram obrigando um presidente dos Estados Unidos a renunciar.

Ah,o sonho secreto de todo repórter : derrubar um presidente, seja lá de que for.

Quando Bernstein passou pelo Brasil, em 2007, para fazer uma conferência em São Paulo e se divertir no Rio de Janeiro, persegui a fera. Valeu a pena. Tive uma aula sobre jornalismo. O que ele disse – especialmente, sobre jornalismo investigativo – renderia um seminário.

Desta vez, pretendo dar férias a Mr.Bernstein. Já o importunei suficientemente. Mas, a quem interessar possa, eis o resultado da nossa Maratona Bernstein. O post é grande. Que seja assim. Porque é preciso tirar partido de uma conquista: a Internet derrubou a ditadura do espaço. A Bastilha que horrorizava repórteres ruiu. Já não há, diante de nós, um editor-açougueiro com uma faca afiada nas mãos e gosto de sangue na boca, disposto a cortar,cortar,cortar. Então, allons, enfans de la patrie. Le jour de gloire est arrivé: é hora de ter uma aula gratuita com Mr.Bernstein. Voilà :

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Quem ? Carl Bernstein e Bob Woodward. O quê ? Publicaram no Washington Post reportagens que levaram um presidente dos Estados Unidos a renunciar. Quando ? Entre 1972 e 1974. Onde ? Em Washington. Por quê ? Porque são repórteres puro-sangue.

Se o Quarto Poder existe, ei-lo , então: os cabelos estão cem por cento grisalhos; os olhos fixam com firmeza o interlocutor; o sorriso parece sincero e cativante; a mão esquerda exibe uma aliança; a barriga ligeiramente saliente clama por uma boa dieta. Nome da fera: Carl Bernstein. Se fosse dado a bravatas, Bernstein poderia bater no peito e dizer que, em parceria com Woodward, derrubou um presidente americano. Jamais alguém encarnou com tanta propriedade, portanto, o chamado “Quarto Poder”.

Quando o Washington Post começou a publicar insistentes reportagens sobre o arrombamento dos escritórios do Partido Democrata no Edifício Watergate, a dona do jornal, Katharina Graham, ficou intrigada com o desdém com que outros jornalistas tratavam do assunto. Perguntou ao editor-chefe Ben Bradlee:

“Se esta história é tão boa, cadê o resto da imprensa?”.

O arrombamento – ocorrido no dia dezesseis de junho de 1972 – parecia um caso policial sem importância. Mas a persistência dos repórteres do Washington Post expôs um escândalo: os arrombadores estavam, na verdade, fazendo espionagem política, a serviço de assessores do presidente Richard Nixon. A Casa Branca estava envolvida no jogo sujo.

O escândalo revelado pelos repórteres terminou obrigando o presidente a renunciar. Mas ali, no início de tudo, ninguém seria capaz de imaginar a dimensão que o escândalo alcançaria. O que havia eram apenas indícios, pistas, fumaça. O fogo apareceria adiante.

“Cadê o resto da imprensa ?”

Não se sabe. Mas, aos vinte e oito anos de idade, Carl Bernstein estava no território que é o habitat natural de todo repórter: a rua. Sob a bênção de Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres puro-sangue, buscava pistas que esclarecessem o arrombamento do Edifício Watergate, sede do Partido Democrata – que fazia oposição ao presidente Richard Nixon, eleito pelo Partido Republicano.

O fio da meada não demorou a ser descoberto: um dos arrombadores do Edifício Watergate trazia, no bolso, um pedaço de papel com a anotação “W. House”. Parecia ser a abreviação de White House, Casa Branca. E um nome: Howard Hunt.

Bob Woodward arriscou: deu um telefonema para a Casa Branca, para checar se por acaso existiria algum sr. Hunt entre os servidores. A telefonista disse que sim. Iria transferir a ligação. Ninguém atendeu no ramal. A ligação voltou para a telefonista – que informou a “Talvez o sr. Hunt esteja no escritório do sr. Colson”.

Tratava-se de Charles Colson, um dos principais assessores do presidente.

Washington Post 1 x Nixon 0.

A descoberta provocaria uma “nova descarga de adrenalina” na equipe do Washington Post– diria, tempos depois, o editor-chefe Bem Bradlee, ao descrever a cena.

Quando finalmente conseguiu falar com Hunt, o repórter foi direto ao assunto: “Como é que o nome do senhor foi parar numa anotação encontrada com os arrombadores do Edifício Watergate ?”.

O assessor de Nixon fez silêncio, antes de suspirar, desolado:

“Meu bom Deus…..”

Washington Post 2 x Nixon 0.

O caminho estava aberto para que o jornal estabelecesse uma ligação indesmentível entre o governo do presidente Nixon e os arrombadores que tentavam instalar equipamentos de escuta na sede do Partido Democrata, no Edifício Watergate.

Carl Bernstein juntou as duas pontas do fio que provocaria um curto-circuito fatal no governo Nixon: com ajuda de um investigador que estava trabalhando no caso por conta própria, descobriu que as notas de dólar – novas em folha – encontradas com os arrombadores tinham saído de um banco em Miami.

Próximo passo: descobrir se algum dos arrombadores tinha conta na agência. Tinha. Bernard Barker, um dos homens presos na sede do partido, tinha aberto não apenas uma, mas duas contas.

Cartada final: quem tinha abastecido esta conta ? Descobriu-se um cheque de vinte e cinco mil dólares, emitido por um certo Kenneth H. Dahlberg. Depois de uma nova e frenética busca nos catálogos telefônicos, os repórteres conseguem encontrar mister Dahlberg – que informa: como simpatizante de Richard Nixon, tinha recolhido doações em dinheiro para a campanha de reeleição do presidente. As doações foram transformadas em cheque, devidamente encaminhado ao chefe do Comitê de Reeleição do Presidente. Dali, o dinheiro foi parar nas mãos dos homens que tentavam espionar a sede do Partido Democrata. Washington Post 3 x Nixon 0. Placar final.

“Bingo!”, escreveria Bradlee.

O cerco tinha se fechado. A partir daí, em meio a uma crise política que se arrastou por dois anos, o Escândalo de Watergate engoliu o governo Nixon. Gravações de diálogos entre Nixon e assessores provaram que o presidente tinha conhecimento das operações de espionagem e sabotagem de adversários políticos. A Suprema Corte obrigou o presidente a divulgar as gravações.

O Senado abriu uma investigação que, fatalmente, levaria ao impeachment do presidente. Nixon convocou uma rede nacional de rádio e televisão para as nove horas da noite de de oito de agosto de 1974 para entregar os pontos: anunciou que, ao meio-dia do dia nove, entregaria o cargo ao vice-presidente Gerald Ford.

A dupla Woodward-Bernstein ganhou fama, dinheiro e reconhecimento. Em dois livros de sucesso internacional – “Todos os Homens do Presidente” e “Os Últimos Dias” – os dois descreveram a saga iniciada com a cobertura de um arrombamento que parecia banal.

Dirigido por Alan Pakula, o filme baseado no livro “Todos os Homens do Presidente” virou um clássico do cinema político. Os atores foram escolhidos a dedo entre o primeiro time de Hollywood: Dustin Hoffman encarnou Carl Bernstein nas telas. Robert Redford fez o papel de Bob Woodward.

O autor de um perfil biográfico de Bernstein notou que, em apenas dois anos, a vida do repórter sofreu uma transformação inimaginável. O anônimo repórter que, até então, se ocupava da cobertura de assuntos locais, como arrombamentos sem grande importância, viu-se transformado em modelo de um dos maiores atores do cinema: Dustin Hoffmann passou a freqüentar a redação do Washington Post para observar os maneirismos de Bernstein.

A dupla virou espelho de uma geração inteira de jornalistas. O chefe dos dois, Ben Bradlee, diz que, nos anos seguintes ao Escândalo de Watergate, se divertia com a voracidade demonstrada por jovens repórteres na redação do jornal. Inspirados pelo rigor que a dupla Woodward-Bernstein demonstrava na apuração de informações, os aprendizes voltavam da cobertura de um incêndio banal, num subúrbio remoto, dizendo coisas como “descobri que o chefe dos bombeiros era anti-semita!”.

Bradlee diz que a mitologia criada em torno dos dois repórteres teve um efeito positivo: atraiu para o jornalismo “jovens, brilhantes e talentosos homens e mulheres que poderiam ter se encaminhado para outras profissões”.

Ao contrário de Woodward – que, na vida pessoal, fez a opção pela discrição – Bernstein enfrentou turbulências pós-fama: teve problemas com álcool, torrou o dinheiro que ganhou com os livros e o filme sobre o escândalo, freqüentou as páginas dos tablóides como personagem de fofocas.

Três décadas depois de Watergate, no entanto, os dois exibem um fôlego admirável: não deixaram de ser repórteres. Permanecem produzindo.
Bob Woodward pediu e, surpreso, recebeu autorização para freqüentar os bastidores da Casa Branca porque queria documentar o que levou o governo Bush a intervir militarmente no Iraque, em nome do combate ao terrorismo. Resultado: o livro “Plano de Ataque”.

Bernstein lançou, nos anos noventa, uma alentada biografia do Papa João Paulo II, em parceria com um jornalista italiano. Em seguida, embarcou numa empreitada ambiciosa: a biografia da ex-primeira dama Hillary Clinton, lançada em 2007.

A grande lição que o repórter Bernstein dá pode ser resumida em poucas linhas: quando vai apurar uma reportagem, o repórter não deve cair, jamais, na tentação de fazer pré-julgamentos sobre fatos e personagens. Bernstein é claro e direto: os jornalistas devem reaprender a ouvir. É uma obsessão que ele cultiva. Diz que só obteve sucesso na investigação sobre o Escândalo de Watergate porque ouvia,ouvia e ouvia ( daqui a pouco, na entrevista, ele falará sobre esta virtude que todo repórter deve cultivar incondicionalmente). Ao contrário do que tantos jornalistas fazem, não se comportava como se fosse um político: não simpatizava, claro, com as tramóias armadas por integrantes do Partido Republicano nos bastidores do governo Nixon, mas tratou de cultivar fontes de informação importantíssimas entre os republicanos. É assim que se faz jornalismo. Bernstein é inimigo do jornalismo engajado.

O papel do repórter, diz, é e sempre será o de apurar os fatos com rigor para apresentar ao público “a melhor versão possível da verdade”. Numa apuração, todo detalhe é importante. Bernstein e Woodward poderiam cair na tentação de articular teses grandiosas sobre a renúncia de Nixon. Mas, não. Em “Os Últimas Dias”, eles apegam-se aos fatos: informam, por exemplo, que o presidente dormiu apenas três horas no dia em que anunciaria ao mundo que iria renunciar ao cargo. Ocupado na preparação do discurso que faria em rede nacional de rádio e TV, o presidente disparou um último telefonema para um assessor às 5 e 14 da manhã. Três horas depois, Richard Nixon estava de pé. O café da manhã, informam os repórteres, foi à base de cereal, leite e um suco de laranja. Milton Pitts, o barbeiro que há anos atendia a Nixon, recebeu às dez da manhã um telefonema da Casa Branca: o presidente queria que ele estivesse lá às dez e quinze. Pitts chegou na hora. Ficou sozinho com o presidente durante o tempo em que durou o corte de cabelo: vinte e dois minutos.

Terminada a sessão, Nixon estava pronto para o mais longo dos dias: pela primeira vez na história, um presidente americano renunciaria ao cargo. Os últimos dias de Nixon na Casa Branca foram registrados minuciosamente por Bernstein e Woodward nas 470 páginas de “The Final Days”. Os dois produziram o que o jornalismo faz: o primeiro rascunho da História.

Agora, ei-lo, numa passagem rápida por São Paulo e pelo Rio de Janeiro. Resolvo embarcar numa Maratona Bernstein, com um gravador, um bloco de anotações e uma câmera. Missão: importunar o repórter do Caso Watergate. A Maratona se dividiu em três frentes. Primeira: uma entrevista exclusiva com Bernstein – que desembarcara em São Paulo para fazer uma conferência na Câmara Americana do Comércio. Segunda: um encontro no Rio de Janeiro, a convite do próprio Bernstein, numa noite que reservaria pelo menos uma cena surpreendente. “O repórter que derrubou um presidente” empunhou uma guitarra para tocar clássicos do rock. Terceira: uma garimpagem de tudo o que ele disse na rápida expedição brasileira.

PRIMEIRA CENA: FRENTE A FRENTE COM A FERA
Uma velha pergunta: qual seria o primeiro conselho que você daria a um jovem repórter ?

“Seja um bom ouvinte! Penso que jornalistas se tornaram maus ouvintes. Com frequência, vão fazer uma reportagem a partir de noções pré-concebidas sobre o assunto, especialmente quando trabalham com câmeras. Fazem perguntas apressadas e vão embora.

Minha experiência me ensinou que o que eu pensava que a reportagem seria – tanto no caso de Watergate quanto no de Hillary Clinton, por exemplo – era muito diferente do que acabou acontecendo. Porque eu ouço as pessoas. Eu as respeito, sejam elas quem forem. A maioria de nossas fontes no caso Watergate era gente do Partido Republicano que trabalhava ao lado de Richard Nixon ! E eu os respeitava.

Penso que hoje há cada vez menos algo assim. Quando você se senta para ouvir um entrevistado, precisa dar a ele tempo para se explicar. Você termina aprendendo coisas incríveis! Quase sempre, é algo diferente daquilo que a gente esperava quando chega com a lista de perguntas.

Se você tivesse a chance de fazer uma última pergunta a Richard Nixon, que pergunta seria esta ?

” Perguntaria: por quê ? Para quê ?”
( Bernstein fica em silêncio, como se estivesse acalentando até hoje uma dúvida irrespondida: como é que um presidente que batia records de popularidade precisava espionar o partido adversário, num ano eleitoral ?).

Por que é você não vai agora para o Afeganistão, à procura de Bin Laden ? Qual a primeira pergunta que você faria a ele ?

“Não tenho idéia. Perguntaria: como é que você justifica a natureza bárbara dos seus atos contra gente inocente ? Penso que ele é um monstro”.

Você disse que “torrou” os três milhões de dólares que ganhou com os livros e o filme sobre o Escândalo de Watergate. Você diria que não soube lidar com a fama, naquele período ?

“Eu não era particularmente bom neste aspecto, no início de tudo. Precisa-se de tempo para lidar com este dinheiro….Mas gostei. Não tenho muitos lamentos a fazer sobre como o dinheiro foi gasto : com casas ou seja o que for….

O importante é : precisa-se de um tempo para se acostumar com a atenção que é dispensada a você e não ficar convencido. Hoje, espero que tenha adquirido alguma lucidez para não levar as coisas tão a sério e não exagerar…

A resposta é : o melhor é continuar a trabalhar.Continue escrevendo livros. Continue fazendo coisas para a TV. Continue escrevendo seus artigos. Não seja imodesto”

Como é que o senhor define a intervenção americana no Iraque ?

“É uma catástrofe, um desastre. É o resultado de um tipo de inabilidade e desonestidade por parte de George Bush. Os subterfúgios e informações que ele sabia que não eram exatos foram usados para convencer o Congresso e o povo dos Estados Unidos de que deveríamos entrar numa guerra que, na verdade, era mal-conduzida e ideológica.

É uma guerra que não nos protege contra o terrorismo, ao contrário do que aconteceu com a decisão – acertada – de lançar um ataque contra forças baseadas no Afeganistão.

Eu estive no Iraque. Visitei o país meses antes da primeira Guerra do Golfo. Não era um estado terrorista. Era um estado totalitário, um estado estalinista, um estado laico. Parte da dificuldade vem do fato de que George Bush tem demonstrado não apenas incompetência,mas falta de sinceridade e de honestidade. O Iraque tem sido uma catástrofe para nosso país e para as centenas de milhares de americanos e de iraquianos que têm sido mortos. O pior é que ele tem intensificado o terrorismo.

Além de tudo, Bush tem, no âmbito interno, enfraquecido princípios constitucionais e legais. A presidência de George Bush vai ser vista como, talvez, a mais desastrosa da moderna história americana. Precisaremos de décadas para nos recuperar de seus excessos e do que ele tem feito”.

Com outras palavras, você tem chamado Bush de “mentiroso”. Bush mente melhor ou pior do que Richard Nixon ?

“Não estou certo de ter usado a palavra mentiroso. Mas há uma história de inabilidades, inverdades e manipulação cometidas por George Bush, não apenas sobre a guerra, mas até sobre coisas tão básicas quanto um furacão.

O que aconteceu? Um furacão iria atingir Nova Orleans. Bush foi avisado por funcionários da área meteorológica diante das câmeras. Disseram que os níveis de segurança poderiam ser ultrapassados. Durante meses e meses, Bush dizia que não sabia que os níveis poderiam ser ultrapassados pela tempestade.

Bush é sui-generis, comparado com a história da presidência. Porque ele tem um desprezo pelos fatos e pela verdade que é diferente do de Nixon – que tinha uma grande capacidade intelectual, independentemente do que se poderia pensar sobre suas políticas ou sobre o tipo psicológico que ele tinha. Já George Bush trouxe para a presidência uma falta de habilidade, uma faltas de sutileza, uma falta de curiosidade e de preocupação com os fatos e com a vida real.

Bush tem uma visão fantasiosa sobre o que é o mundo. E também sobre o papel dos Estados Unidos. Ainda que sejamos uma superportência, o exercício de poderes numa condição dessas é um mecanismo delicado.

Não há sutileza ou delicadeza que Bush seja capaz de praticar”
Você compraria um carro usado de George Bush ?

“Sim. Porque ele entende de carros”

Repórteres gostam de expor a vida privada dos outros. O que é que você sentiu quando a imprensa publicou que você teve um caso com Elizabeth Taylor ?

“É verdade….” ( ri)

Isso é uma pergunta ou uma resposta ?

“Não chegou a ser um sacrifício ter conhecido Elizabeth Taylor – e também ver a notícia publicada. É um pequeno momento na vida.

Há um problema real quando jornalistas se intrometem na vida dos seus personagens: quando apuram informações que, na verdade, são irrelevantes para entender um assunto estão cometendo um excesso. Isso aconteceu comigo uma vez ? Aconteceu. Mas não vou ficar reclamando….

Só espero que eu consiga ver a vida inteira da maneira como vi – por exemplo – a vida de Hilary Clinton: tento ver quem ela é , quais são os valores que ela cultiva, assim como fiz com Bill Clinton – que também é personagem da biografia.

Olho para os fatos e tento mostrar o contexto e o peso de cada um, em seus vários aspectos. É tudo o que eu poderia pedir a quem fosse escrever sobre mim. Livros foram publicados sobre mim e Bob Woodward. Mas estamos esperando um que seja realmente bom.

Não aconteceu ainda. Gostaríamos que o livro “Todos os Homens do Presidente” fosse o texto básico. Mas a vida segue. Um dia alguém vai fazer a coisa certa. Certamente não será da maneira que nós pensamos que deveria ser. Mas penso que acontecerá. Não estamos numa posição de reclamar da maneira com que os jornalistas nos olham”….

Uma dúvida – e desculpe perguntar: Elizabeth Taylor não era velha demais para você ?

” Isso aconteceu há muito tempo. Aconteceu em minha juventude. E na juventude relativa de Elizabeth Taylor. É uma pessoa maravilhosa. É uma dessas experiências de vida que você fica satisfeito em ter”
Ter sido preso por estar dirigindo alcoolizado foi a coisa mais embaraçosa que você já fez em público?

“Não sei. Certamente, não foi. Fiquei feliz por ter sido apanhado, porque vi que era tempo de parar de beber. Faz vinte e dois anos que não tomo um drinque. Parei. Hoje, bebo Coca-Cola”

Qual foi a informação mais embaraçosa que você descobriu sobre a família Clinton ? É verdade que o presidente eleito Bill Clinton recebeu a visita íntima de uma ex-amante no dia em que ele estava seguindo para Washington para assumir a presidência ?

“Não estou preocupado com embaraços. Não estou interessado em algo assim. O objetivo de escrever um livro não é causar embaraço. É tentar entender o que a personagem do meu livro é. E como ela tem vivido a vida. Uma das coisas que tive grande cuidado em fazer foi não escrever um balanço sensacionalista da vida sexual de Bill Clinton. Não me preocupo tanto com algo assim.

O que me parece importante é o seguinte: desde jovem, Bill Clinton era visto – por muitos – como o maior talento político de uma geração. Hilary Clinton reconhecia este fato. Mas ela também sabia que o que ela chamava de “compulsão sexual” de Bill Clinton poderia fazer com que ele deixasse de ser politicamente viável. Hilary Clinton começou, então,a encobrir os efeitos dessas compulsões e a lidar com as consequências.

Isso se tornou uma grande preocupação para ela: que ele pudesse se tornar politicamente viável. Isso é que é importante. Mas saber se alguém o visitou um dia antes ou se ele viu alguém não é algo que realmente me interesse. Não é a questão”

( Em “A Woman in Charge”, Bernstein passa em revista os anos de formação da ex-primeira dama: “Hillary chegou à maioridade numa época nos Estados Unidos em que a sexualidade das mulheres, especialmente das jovens mulheres, estava passando por uma mudança profunda, em grande medida por causa da disponibilidade fácil da “pílula”. Desde o começo do romance com Hillary, Geoff Shields tinha consciência tanto do desejo dela por experiências sexuais “responsáveis” como da extraordinária seriedade de propósito, disciplina e foco. Que ela era “pessalmente muito conservadora” ficou óbvio desde o início da relação, que floresceu no auge da permissividade do fim dos anos 60 (…) Shields nunca ficou sabendo se ela fumou maconha (embora o cheiro de baseado pairasse nos halls de entrada do dormitório. Nunca a viu se exceder na bebida – e ela não era promíscua. Ainda assim, ela com certeza não era uma daquelas mulheres de Wellesley que eram consideradas “caxias” Gostava de festas e de dançar ao som de Elvis, Beatles e Supremes”)


Depois de entrevistar duzentas pessoas, trabalhar dezoito horas por dia por um ano e escrever seiscentas e quarenta páginas, o senhor pode definir Hilary Clinton em apenas uma frase ?

“Não. E é por esta razão que se escreve um livro – e se gasta tanta tempo. O que posso dizer é que ela é a mulher mais famosa do mundo e, provavelmente, a menos conhecida, em termos do que a realidade da vida tem sido para ela.

É por este motivo que passei sete anos trabalhando no assunto. O resultado foram seiscentas e quarenta páginas. É um lugar-comum dizer que alguém é complicado. Mas Hilary Clinton é – de verdade”.

Por que Hilary Clinton se recusou a dar entrevista você ? Isso é um caso de falta de confiança no repórter ?

” Não. Acontece que ela gosta de controlar a maneira como é vista. Disse-me que poderia se sentar para falar comigo. Mas, quando decidiu concorrer à presidência, desistiu da entrevista. É alguém que vive sempre tentando talhar a própria imagem. Não gosta da imprensa. Temos amigos em comum.

Hilary disse aos amigos: “Se vocês quiserem falar com Carl, falem. Depende de vocês”. Mas ela não chega a ser fanática por investigações independentes……

O desapreço de Hilary pela imprensa é um dos temas da biografia. É – de certa maneira – um subtexto. Em alguns casos, o desapreço é justificado. Em outros, é um caso de arrogância. Hilary Clinton conhece o meu trabalho. Nós nos conhecemos.

Se ela tivesse se sentado para falar comigo, o conteúdo básico da biografia não seria afetado, mas ela teria uma chance de dizer: “Carl, você deve ouvir fulano ou sicrano.Você perdeu este ponto. Você não entendeu bem o que aconteceu aqui. Deve encarar de outra maneira….” . Hilary poderia ter esta oportunidade.

Isso a ajudaria a complementar o retrato que eu estava traçando – de uma tal maneira que ela poderia ficar mais satisfeita com o resultado. Mas, ao mesmo tempo, os assessores de Clinton entendem. As resenhas sobre a biografia foram ótimas. Porque a biografia humaniza Hilary.

Penso que este lado humano é algo com o qual ela tem tido muitos problemas, especialmente porque os balanços que Hilary Clinton fez da própria vida – em textos e falas – deixam de fora boa parte da história”.

( Bernstein escreveria na biografia: “Em seus primeiros meses de Casa Branca, tanto Bill como Hillary foram alimentados à força com uma verdade impalatável: ao contrário de suas expectativas, não dava para comandar a capital tão facilmente como eles tinham dominado a política de um pequeno estado do sul. Bill amadureceu politicamente durante seus oito anos como presidente. Mas, no caráter, ele permaneceu basicamente o mesmo: ambicioso, narcisista, charmoso, brilhante, esperto, indisciplinado, incrivelmente capaz – e, com freqüência, uma decepção pessoalmente”)

O Washington Post escreveu que a eterna fascinação provocada pelo trabalho que você fez durante o escândalo de Watergate é como se fosse uma medalha que você jamais poderá tirar do peito; uma honra da qual você jamais poderá fugir. Você se incomoda em ser citado pelo resto da vida como um dos repórteres que, no fim das contas, acabaram com a carreira de um presidente americano ?

” As coisas são assim. É como um jogador de beisebol que será lembrado por uma jogada. Não é algo que me preocupe. Eu e Bob nos sentimos muito bem com o trabalho que fizemos na época e as oportunidades que tivemos desde então. Nós dois tivemos vidas plenas e maravilhosas, além de oportunidades que nos foram oferecidas. Posso estar aqui, por exemplo, para falar com gente maravilhosa, ver o mundo de uma maneira diferente da de outros jornalistas, talvez. Tivemos sorte. Aprecio realmente o lado sortudo de tudo. É bom”

Você e Bob Woodward venderam para a Universidade do Texas todas as anotações e documentos que vocês reuniram durante o escândalo de Watergate. Qual foi o preço ?

“Cinco milhões de dólares. Não sei como responder a esta pergunta, a não ser dizendo que nós queríamos ter a certeza de que todas as anotações e os registros do que fizemos ficassem protegidos e abertos a pesquisadores – se bem que há fontes que foram mantidas em sigilo. Era óbvio que o material tinha um valor histórico . Quando você vende um trabalho, como um livro, por exemplo, há um valor monetário envolvido. Tiramos partido desse fato. Mas obedecemos, espero, todos as questões éticas envolvidas”.

É este o preço da história ?

“Se ninguém tivesse oferecido dinheiro por estes papéis, nós os teríamos doado, de qualquer maneira. O importante era que eles ficassem disponíveis para a História. Há um mercado para itens de interesse histórico. Nós participamos desse mercado, assim como participaríamos com um livro ou algo que tivesse um aspecto comercial. Descobrimos que havia um mercado para documentos assim. Mas, ainda que não existisse, nossa intenção era,sempre,a de que os documentos ficassem protegidos e disponíveis”

Que tipo de pergunta inconveniente faria você encerrar esta entrevista agora ?

“Algo que eu achasse que tivesse a intenção de atingir meus filhos”

Um de seus filhos toca guitarra numa banda punk. Alguma vez ele vez alguma pergunta a você sobre Richard Nixon ?

“Em primeiro lugar, todos devem ir ao site My Space ponto com e procurar pela banda do meu filho, Max Bernstein. A banda é The Actual. É produzido por Scott Weiland – do grupo Velvet Revolver. É um grande músico. Fico orgulhoso , porque é meu filho. Também tenho orgulho do meu filho jornalista. Todos dois me perguntaram muitas vezes sobre Richard Nixon e sobre Watergate. Os dois têm uma saudável irreverência para levar a sério demais o trabalho dos pais”
Você é um ídolo – e um herói – para muitos repórteres. Quem é o herói de Carl Bernstein ?

“Quando eu tinha dezesseis anos de idade, fui trabalhar um belo e velho jornal que jjá nem existe, o Washington Star, como mensageiro. Havia um grande editor de assuntos locais, chamado Sid Epstein, que morreu há poucos anos. Falei no funeral. Sid me ensinou muito do que sei . Era um repórter e editor da velha guarda. Se eu pudesse citar o nome de uma pessoa, seria ele. (Sid Epstein trabalhou durante décadas no Washington Star – um jornal vespertino que circulou durante cento e trinta anos na capital americana, até fechar as portas, em 1981, em meio a uma crise financeira)
.
O outro seria I.F. Stone, que era um grande jornalista de esquerda. Era mantido fora da grande imprensa, mas vivia fuçando e persistindo. Sem ter grande acesso a fontes dos governos, ele usava fontes públicas de informação para obter a melhor versão possível da verdade. ( Jornalista independente americano, I.F. Stone (1907-1989) publicava por conta própria uma jornal que chegou a ter uma circulação de setenta mil exemplares nos anos sessenta. Fazia oposição à guerra do Vietnam. Conseguiu vários furos de reportagem)
H.L Mencken também”

Mencken escreveu uma vez um artigo contra os zoológicos! É o único jornalista do mundo que escreveu um artigo contra os zoológicos.

……..”Era um cínico profissional! Eu não faria coisas como as que ele fez, mas adoro lê-lo . (H.L.Mencken ( 1880- 1956), jornalista considerado iconoclasta, era conhecido por seus textos irônicos e pelas críticas ácidas que dirigia contra todo tipo de alvo. Chegou a escrever artigos contra os jardins zoológicos)
Há grandes jornalistas na geração anterior à minha, como David Halberstam, que teve um livro publicado nos Estados Unidos agora sobre a Guerra da Coréia (Premiado jornalista americano, autor de livros-reportagem sobre os barões da imprensa e sobre a Guerra do Vietnam, morreu em 2007, aos 73 anos, num acidente de carro, a caminho de uma entrevista. Deixou um livro inédito sobre a Guerra da Coréia, lançado postumamente).

E Gay Talese (Considerado um dos criadores do chamado Novo Jornalismo americano, marcado pelo uso de recursos literários em textos jornalísticos. Uma de suas reportagens mais conhecidas é um perfil do cantor Frank Sinatra) São jornalistas notáveis que também tinham ótimos textos. Não nos preocupamos tanto hoje – como deveríamos – com o texto. A maioria dos grandes jornalistas tinha excelentes textos.


SEGUNDA CENA: ANOTAÇÕES LIGEIRAS SOBRE OS BASTIDORES DE UMA COBERTURA: NUMA MADRUGADA NA URCA, O SUPER-REPÓRTER EMPUNHA UMA GUITARRA

Uma cena inesperada na noite do Rio de Janeiro: o repórter que derrubou o presidente dos Estados Unidos empunha uma guitarra de madrugada na Urca para tocar rock-and-roll.

Aconteceu diante de uma reduzidíssima platéia. Quando o concerto improvisado do repórter mais famoso do mundo acabou, o público era formado por exatamente seis espectadores, sentados diante da fera. Testemunhei a cena.

Ao final de uma recepção oferecida a ele por Ana Maria Tornaghi num casarão na Urca, Carl Bernstein – de passagem pelo Rio depois de fazer uma conferência em São Paulo na Câmara Americana de Comércio – surpreendeu a todos: pegou uma guitarra, cantou e tocou pérolas como “Sweet Little Sixteen”, “Love is Strange” ( música gravada por Paul McCartney no começo dos anos setenta), a bela “Goodnight, Irene” ( folclore americano, regravada “n” vezes por feras como Little Richard) , “Bye,Bye Love” ( aquela que diz “Bye bye, happiness /Hello, loneliness /I think I´m gonna cry”) e “Blue Sued Shoes” e “La Bamba”.
Bernstein já foi crítico de rock. Tinha vinte anos em 1964. Ou seja: é um legítimo representante da geração que dançou ao som de Elvis Presley. A bem da verdade, diga-se que, como cantor, Bernstein é um excelente repórter. Como instrumentista, dá para o gasto. Se tivesse tentado a carreira nos palcos, estaria hoje tocando num boate do Alabama. A família é chegada a música: um dos dois filhos de Bernstein, como se sabe, é músico numa banda “punk-rock” chamada The Actual. O outro seguiu a carreira do pai.
Quando acabou de tocar, o super-repórter disse-me: “Hey, você tem uma matéria!”.

Eu já estava ligeiramente constrangido: em São Paulo, tinha seguido os passos de Bernstein durante a conferência na Câmara Americana de Comércio. Acompanhei a entrevista coletiva. Gravei uma longa exclusiva. Tirei fotos. Pedi autógrafo num livro ( não é coisa que entrevistador faça normalmente com entrevistado. Mas, desculpe, Bernstein é meu ídolo profissional há séculos). Aqui no Rio, o assédio se repetia. Não seria hora de parar a “caçada” ? Minha porção chacal me soprou: não!

Satisfeito com o jogo de perguntas-e-respostas de nossa entrevista em São Paulo , o generoso Bernstein me fez, diante da câmera, o maior elogio que ouvi na minha vida profissional ( “é uma das melhores entrevistas que já dei para televisão”). Pensei comigo : ok, stranger, agora já posso ir morar num rancho em Santa Maria da Boa Vista.

Em seguida, pediu meus contatos: telefone, e-mail, celular. Perguntou se eu estaria no Rio nos próximos dias. Eu disse que sim. Pensei que o gesto de Bernstein fosse apenas uma daquelas cortesias que caem no esquecimento cinco minutos depois.

Sorte minha: não foi.

Três dias depois, quando abro o computador, o que é que pisca na tela ? Um e-mail de Carl Bernstein me convidando para um jantar. Dei uma saída. Quando chego em casa, nova surpresa: um recado na secretária eletrônica. Bernstein em pessoa. Por fim, quando pego o celular,outro recado do homem. Dois recados nos telefones, dois e-mails ( ele mandaria outro). O convite já não era um convite: era uma convocação.

Fui. Ganhei outro autógrafo, em que ele chama nossa entrevista de “terrific”. Brincalhão, faz uma ressalva : diz que tinha adorado a gravação da entrevista, mas quer ver como é que ela seria editada. Tranquilizo-o : pretendo usar a entrevista na íntegra, sem cortes, porque em TVs a cabo, como a Globonews, os entrevistados podem falar. Ficou de me passar um endereço, porque queria receber uma cópia da fita, em casa, em Nova York. Prometo, claro, despachar uma cópia em DVD. Juro por Nossa Senhora do Perpétuo Espanto que mandarei.

Próximo assunto: falamos sobre a última empreitada jornalística de Bernstein: a biografia de Hilary Clinton. Bernstein informa que a biografia já sai com uma primeira fornada de 250 mil exemplares.

O espírito de repórter de Bernstein se manifesta a toda hora: em meio à recepção, ele sai perguntando aos convidados quem é que gosta e quem é que não gosta da Catedral Metropolitana do Rio. Tinha visitado a Catedral. Ficou impressionado com a quantidade de gente que fala mal do prédio. “Você gosta da Catedral? Você gosta da Catedral”, é o que repete. Depois, a cada vez que é apresentado a alguém, repete em voz alta o nome do convidado.

A uma jornalista em início de carreira, Clara Passi , que aproveitou a chance para perguntar qual seria o primeiro conselho que ele daria a um iniciante, Bernstein respondeu: “O repórter precisa saber ouvir!”.

A mulher de Bernstein, uma loura altíssima, que dançou enquanto o marido tirava acordes da guitarra, disse que ele tem mania de fazer perguntas. Pudera. “Quando volto do supermercado, ele fica me perguntando o que é que comprei e onde fica a loja”, ela diz.

(Eu já tinha experimentado a fúria perguntadora de Bernstein. Terminada a gravação de nossa entrevista, ele fez um bombardeio de perguntas: “Quando vai para o ar? Como se escreve o seu nome ? É português ? Quando você vai voltar ? Onde é que você mora ? Como estará o tempo amanhã no Rio ?”).

Perguntar, perguntar, perguntar. Bernstein nunca quis fazer outra coisa na vida. Pouco importa que a situação seja banal, como esta.

As perguntas que ele fez obsessivamente terminaram obrigando um presidente dos Estados Unidos a renunciar ao cargo.

TERCEIRA CENA: O JORNALISTA QUE É ÍDOLO DOS JORNALISTAS COMBATE MITOS. DEZ OPINIÕES DE CARL BERNSTEIN

As palavras que o super-repórter pronunciou na passagem-relâmpago pelo Brasil servem de lição valiosíssima para jornalistas que, equivocadamente, defendem um jornalismo “engajado”.

Carl Bernstein virou sinônimo de jornalismo investigativo. Mas, surpresa, ele é o primeiro a se insurgir quando alguém se refere ao “jornalismo investigativo” como se fosse o Cálice Sagrado.
Gravando!
1
“Não acredito que o jornalismo investigativo seja diferente do resto do jornalismo. Todo bom jornalismo é o mesmo. Seja no esporte, na economia ou em qualquer área, fazer bom jornalismo é apresentar a melhor versão que se pode obter da verdade. Jornalismo é persistência, é ser um bom ouvinte, é respeitar quem você aborda, é ter tempo. O mito do repórter investigativo – que eu o Bob Woodward contribuímos involutariamente para criar – não é necessariamente uma boa coisa”
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2
“A história não se repete. Cada situação existe num contexto próprio. É errado ter uma visão nostálgica do Escândalo de Watergate ou do caso da divulgação dos Papéis do Pentágono. O melhor é tirar as lições que pudermos desses acontecimentos – e olhar para o nosso tempo”
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“Não acredito que o tempo de Watergate tenha sido necessariamente um tempo de alguma grandeza jornalística. A idéia de olhar para aquele tempo como uma época de ouro – que de fato nunca existiu – é, portanto, um grande engano”….
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4
“Não acredito que o papel da imprensa seja dizer às pessoas no que é que elas devem acreditar. Não acredito! O papel da imprensa é divulgar a melhor versão possível da verdade. Cabe a cada cidadão reagir. Em qualquer democracia, o cidadão pode – ou não – reagir da maneira que você espera. Mas o papel de um repórter não é o de se levantar e dizer: “É nisso que vocês devem acreditar”.
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5
“A imprensa dá a informação. Se o cidadão resolver votar em George Bush e reelegê-lo, como aconteceu, eu, pessoalmente, posso até não gostar, mas é assim que os cidadãos agiram! O que a imprensa não deve fazer é forçar o público a se comportar de uma determinada maneira”.

“É sempre muito fácil jogar na imprensa a culpa pela reação lenta e – algumas vezes – pela indesejável resposta política de um país ou um povo”…
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6
“Acontece o tempo todo. Sou parado na rua por gente que me pergunta: por que é a imprensa não informa sobre George Bush ? Olho para eles e digo: Vocês estão loucos? Como é que vocês acham que todos soubemos sobre as coisas terríveis que este presidente tem feito? Pela imprensa! Onde é que a gente soube tanto sobre do aquecimento global? Pela imprensa!”.
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7
“A imprensa frequentemente faz trapalhadas. Não somos diferentes de outras instituições – que refletem a cultura em que vivemos. Somos feito médicos, por exemplo. Você vai a um médico. Em dez por cento dos casos, você precisa sair do consultório para ficar melhor. Um pode lhe salvar . Trinta por cento dos médicos farão com que você possa se sentir melhor. Vinte por cento farão você se sentir um pouco pior. Outros vinte por cento farão com que você fique muito pior. E dez por cento vão matar você. Não acho que nós, jornalistas, sejamos diferentes. Somos diferentes num ponto: quando outras instituições falham, a imprensa precisa estar lá.Mas a imprensa não pode ter um tratamento especial. É tão capaz de cometer erros ou de praticar corrupção quanto qualquer outra instituição. Talvez um pouco menos capaz”.
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“A imprensa chegou atrasada no caso do Iraque porque não fomos suficientemente céticos no começo, no momento em que Bush decidiu ir para a guerra. Falhamos na hora de examinar aquela que foi, talvez, a mais desastrosa decisão tomada por qualquer presidência americana nos tempos modernos”.

9
“O presidente Nixon resistiu. Disse: “não,vocês não podem ter minhas gravações. Não me importo se vocês são o Congresso dos Estados Unidos. Não me importo se vocês são juízes. Não vou dar as minhas gravações” ( Bernstein refere-se às célebres fitas que registravam tudo o que era dito nas audiências do presidente com assessores, na Casa Branca. As fitas eram gravadas com o conhecimento do presidente, mas terminaram usadas contra ele) . E o que aconteceu? A Suprema Corte dos Estados Unidos – inclusive juízes que Nixon tinha nomeado e de quem esperava apoio – votou por nove a zero ao decidir que o presidente dos Estados Unidos estava sujeito a lei, tal como você e eu.

Nixon teve de dar as fitas. O que ocorreu,então? As fitas mostraram que o presidente dos Estados Unidos era culpado por ter conspirado, por ter desrespeitado a Constituição dos Estados Unidos e por ter atingido princípios democráticos. Houve uma investigação que resultaria no impeachment do presidente. O presidente disse : “Não saio. Vocês terão de me levar a julgamento!”.

Mas, antes até da votação do impeachment, senadores e deputados republicanos, integrantes do partido do próprio presidente, liderados por Barry Goldwater, um senador corajoso, um grande conservador, o homem que é de fato o moderno inventor do movimento conservador dos Estados Unidos, foram à Casa Branca para dizer a Nixon: “Não vamos apoiá-lo. Se o senhor não deixar o poder voluntariamente, vamos votar pela condenação. O senhor será o primeiro presidente a ser condenado e forçado a deixar o poder” .

Nixon desistiu. Neste caso, as instituições funcionaram, não porque o país inteiro desde o inicio estivesse pronto para entender o que tinha acontecido e o que o caso envolvia, mas porque cada elemento do sistema – a imprensa, a justiça, o Congresso – fez o que devia. Em alguns casos, fazer este trabalho exigia atos corajosos de indivíduos”
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“Nós reportamos os fatos. O sistema funcionou. Mas, para o sistema funcionar, é preciso que a imprensa esteja empenhada em conseguir a melhor versão possível da verdade. É aí que reside a responsabilidade da imprensa!. Não é pegar corruptos , mas obter o que chamo sempre de a melhor versão possível da verdade. O que é ? É contextualizar. Não é apenas se ocupar de corrupção. É reportar sobre as condições de uma cultura. E pôr os fatos num contexto. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, é escrever sobre pobreza endêmica – que é uma parte da corrupção. O trabalho da imprensa não é derrubar governos. É procurar pela melhor versão possível da verdade dentro de uma determinada cultura – com toda a vibração, com toda a dificuldade, com toda a alegria e toda a miséria aí incluídas. Que seja esta a nossa agenda jornalística”.

Se esta história é tão boa, cadê o resto da imprensa?” . A pergunta da senhora Graham foi devidamente imortalizada na página 364 da excelente autobiografia de Ben Bradlee, “A Good Life”.

( Ao final da minha Maratona Bernstein,divago, solitário, “com meus botões”: quem já passou quinze minutos numa redação pode apostar, sem margem de erro, onde estava “o resto da imprensa”. É pule de dez: é muitíssimo provável que o “resto da imprensa” estivesse fazendo o que, incrivelmente, a esmagadora maioria dos jornalistas faz nas redações. Ou seja: dar de ombros para o que é notícia; inventar pretextos risíveis para não publicar uma reportagem; pontificar com patética auto-suficiência sobre todo e qualquer assunto. Paulo Francis dizia que o melhor jornal é aquele que não é publicado. Bingo!

É um fato cientificamente demonstrável: o maior, o mais nocivo, o mais intransigente, o mais pretensioso, o mais impermeável, o mais destrutivo, o mais indefensável inimigo do Jornalismo é….o jornalista! Não existe outro.

Diante de tal quadro, um leigo que entrasse por engano numa redação espicharia as sobrancelhas para cima e deixaria o queixo pender dois centímetros para baixo, para transmitir aos passantes um ar de espanto. Mas ninguém prestaria atenção ao espanto do leigo. Pelo seguinte: a desfaçatez de jornalistas que se julgam intérpretes iluminados da mente do público é algo que faz parte da natureza da profissão .

Um belo dia, o jornalista simplesmente se declara, diante do espelho, porta-voz dos interesses e da curiosidade desta abstração chamada “leitor” ou “telespectador”. Bota a faixa imaginária no peito, passa um pente no cabelo, apruma o andar, sobe a rampa e lá vai ele assumir o mandato de presidente plenipotenciário da opinião pública.

Reinam nas redações leis que, aos olhos de um leigo, podem soar absurdas. Exemplo: o concorrente divulgou a notícia “x” ou fez uma reportagem sobre o assunto “y”? Divulgou. Então, a notícia ou a reportagem – que o jornal iria publicar ou a TV iria levar ao ar- vão para o lixo .

O JNJ ( Jornalista Nocivo ao Jornalismo) age como se o leitor e o telespectador fossem maníacos de hospício que lêem todos os jornais, vêem todas as emissoras de TV, ouvem todos os programas de rádio e acessam todos os sites. Parece que o tal leitor ou o tal espectador vão se dar ao trabalho de comparar, página a página, matéria a matéria, tudo o que o jornal, a revista ou a TV publicaram. Não vão. Nunca se deram ao trabalho. Jamais se darão. Querem apenas se informar. Mas JNJ comporta-se como se os leitores e telespectadores fossem maníacos.

Loucura.

Qual o resultado deste catálogo de insanidades? As reportagens precisam enfrentar uma corrida de obstáculos nas redações antes de chegarem às mãos e aos olhos de Sua Excelência, o Público! Parece exagero, mas é a mais cristalina verdade. Jornalista Nocivo ao Jornalismo, portanto, é o que faz jornal (ou revista ou TV ou rádio) para jornalista, não para o público. Passa a vida erguendo barricadas contra o que o jornalismo pode ter de vívido e interessante. É capaz de – entre outros inumeráveis absurdos – sonegar impunemente uma informação ao leitor ou ao espectador apenas porque um veículo concorrente tratou primeiro do assunto.

Jornalistas puro-sangue são os que acendem velas para Nossa Senhora do Perpétuo Espanto (a santa inventada por Kurt Vonnegut). Humildemente, pedem à santa padroeira que não lhes tire, jamais, a capacidade de encarar a vida como se estivessem vendo tudo pela primeira vez. Porque a capacidade de olhar para os fatos da vida como se estivessem vendo tudo pela primeira vez é o que distingue um jornalista puro-sangue de um jornalista burocrata, exterminador de reportagens. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto deveria, portanto, reinar , soberana, em todas as redações. Porque o bom repórter jamais perderá a capacidade de exercitar um saudável espanto diante dos fatos e personagens. É desse saudabilíssimo espanto e desse saudabilíssimo interesse que nasce a matéria-prima do jornalismo: a reportagem.

Diante de um assunto interessante, um personagem atraente, um fato que merece ser contado, o Jornalista Nocivo ao Jornalismo saca a arma e imediatamente pergunta: “Por que publicar?”. O jornalista de verdade, é claro, perguntaria: por que não ?Fim da divagação ).
Termina a Maratona Bernstein. Dali a poucas horas ele deixaria o Brasil. Se teve a chance, certamente deve ter perguntado a algum transeunte no corredor do aeroporto: “E você ? O que é que acha da catedral ?

*A íntegra da entrevista foi publicada em DOSSIÊ HISTÓRIA (Editora Globo)

Posted by geneton at 11:49 AM

abril 03, 2010

LEÔNIDAS PIRES GONÇALVES

CONFIRMADO : EXÉRCITO DEU DINHEIRO A PRESO POLÍTICO EM TROCA DE INFORMAÇÃO ESTRATÉGICA SOBRE PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL

O Exército pagou, em dinheiro, a um dirigente do Partido Comunista do Brasil,o PC Do B, em troca de informações sobre onde se realizaria uma reunião em que os dirigentes discutiriam a Guerrilha do Araguaia. O PC do B atuava na clandestinidade durante o regime militar.

O que era até hoje tido como uma suposição foi confirmado pelo general que autorizou pessoalmente o pagamento. “A ideia foi minha” – disse o general Leônidas Pires Gonçalves – que chefiou o DOI-CODI do I Exército no Rio de Janeiro entre março de 1974 e janeiro de 1977. A declaração do general foi feita em entrevista a este repórter, levada ao ar pela Globonews , no programa DOSSIÊ GLOBONEWS.

(Aqui, o vídeo completo : http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1556374-17665-337,00.html )

Repassadas ao II Exército, em São Paulo, as informações obtidas pelo I Exército, no Rio, resultaram na invasão da casa onde estava reunido o Comitê Central do PC do B, na rua Pio XI, 767, no bairro da Lapa, em São Paulo, no dia 16 de dezembro de 1976, uma quinta-feira. Três dirigentes morreram na operação – que ficou conhecida como “Massacre da Lapa” : Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Baptista Franco Drummond.

Durante a entrevista, em que levantou a voz e se exaltou algumas vezes, o general Leônidas Pires – que ocupou o posto de ministro do Exército durante o governo Sarney – chamou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de “fugitivo”, palavra que ele usa para se referir a todos os que saíram do Brasil durante o regime militar.

As palavras do general são um documento porque retratam o que um militar de alta patente tem a dizer sobre um período conturbado da história recente do Brasil.

Trechos da entrevista, gravada a propósito dos 25 anos do fim do regime militar:

O senhor foi chefe do temido DOI-CODI do I Exército durante dois anos e dez meses. O senhor sabia da existência de tortura a presos políticos ?

Leônidas Pires: “Nunca houve tortura a preso político na minha área. Desafio alguém que tenha sido torturado durante este período ( N: o general chefiou o DOI-CODI durante o período em que foi chefe do Estado Maior do I Exército, entre março de 1974 e janeiro de 1977). Está feito o desafio! A história de tortura…Você vai me perguntar se existiu. Costumo dizer: a miserável condição humana leva a isso. Mas, com medo da falada tortura, eles eram grandes delatores. Grande delatores. Um do Comitê Central ( do PC do B) delatou toda a turma para o meu esquema de segurança no Rio de Janeiro”.

O que o senhor diz é uma acusação grave: pagou a um integrante do comitê central do Partido Comunista para delatar seus companheiros. Quem pagou ? O senhor ?

“Não: a organização. Nunca me contactei pessoalmente com nenhum subversivo. Não era minha missão. Minha missão era dirigir o órgão que faz isso”.

De quem foi a ideia de pagar ?

“A ideia foi minha! Fui adido militar na Colômbia (N: de julho de 1964 a novembro de 1966). Aprendi que,lá, eles compravam todos os subversivos com dinheiro. Quando propus ao DOI-CODI me disseram: “Não, mas general….”. Mas ele foi preso e mostrou o dia em que haveria a reunião em São Paulo numa casa na Lapa. Deu o dia e a hora, por 150 mil, entregues à filha dele,em Porto Alegre”. (O general não cita o nome do dirigente, mas o livro “Combate nas Trevas”, lançado ainda nos anos oitenta pelo historiador e ex-militante comunista Jacob Gorender, registra que a colaboração de um integrante do PC do B com o Exército “deu à reunião um final de catástrofe”).

Houve outros casos em que o DOI-CODI pagou a prisioneiros em troca de informação ?

“Estou falando de um DOI-CODI, o meu, no Rio de Janeiro: de 1974 a 1977”

O único caso foi este ?

“No meu, sim…”

O senhor faz uma acusação que é de extrema gravidade. Um integrante do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil teria recebido dinheiro para dar informações ao Exército…

“Deu, por 150 mil ( N: a moeda, na época, era o cruzeiro). Mandei entregar! Quando digo “eu”, a gente fala funcionalmente. Como disse: nunca falei com um subversivo”.

O dinheiro que foi entregue a este integrante do Comitê Central do Partido Comunista em troca de informações, segundo o senhor diz, saía como do I Exército ? Existia uma “caixinha” ?

“Que caixinha nada! Um serviço de informações tem verba oficial para cumprir a missão”.

Mas as informações que ele passou, segundo o senhor diz, em troca de dinheiro, resultaram em mortes….

“Resultaram. Claro. Resultaram. Porque ninguém se entregou quando chegamos lá. Nós, não.O caso foi entregue a São Paulo. Temos áreas delimitadas de operação. São Paulo chegou lá e deu ordem de prisão. Foram recebidos a bala. E quem começa a guerra não pode lamentar a morte. É duro de ouvir? É duro de ouvir ? Quem começa a guerra não pode lamentar a morte. Nós não começamos guerra nenhuma. A bomba no Aeroporto dos Guararapes foi o primeiro sangue que correu no Brasil. Confirmou-se que a bomba foi feita pelo pessoal da AP ( N: uma bomba explodiu no saguão do Aeroporto dos Guararapes, no Recife, no dia 25 de julho de 1966. Um almirante e um jornalista morreram na hora. O atentado foi cometido por dois militantes da AP, a Ação Popular). Guerra é guerra. Guerra não tem nada de bonito – só a vitória. E nós tivemos. A vitória foi nossa. Porque esta país caiu na democracia que nós queríamos”.

Que orientação o senhor dava aos seus comandados no I Exército ?

“Eu disse assim: “A missão que estamos fazendo é para exercer com nobreza. Nós estamos aqui para defender os interesses do Brasil! Não estamos aqui para defender os interesses de ninguém nem pessoalmente!. Segundo: não somos bandidos! Somos soldados de luta! Por isso, dou a seguinte orientação a vocês: se vocês entrarem num aparelho lutando, alguém levantar o braço e vocês atirarem num homem de braços abertos, vocês vão se ver comigo! Porque nós não somos bandidos! Mas, se você está na luta e achar que o indivíduo deve morrer, atire pra matar! ”. Eu dava esta orientação como estou dando a você agora aqui. Depois, dava instruções de comportamento individual na hora da confrontação. Era uma maneira simples: para ficar ao alcance do soldado, é que fiz esta imagem: “Não cometam arbitrariedade : na hora de dar chocolate, não se dá tiro. E, na hora de dar tiro, não se dá chocolate!”.

Alguns dos seus comandados atirou para matar ?

“Tenho absoluta certeza de que, na luta, muitos morreram e muitos mataram. Mas na atitude de soldado! Porque o soldado é o cidadão de uniforme para o exercício cívico da violência. É no mundo inteiro, historicamente. Quer guardar a frase ? Se você vai me perguntar se soldado mata, vou ter de achar graça…”.

O senhor chegou a chefiar o DOI-CODI no Rio durante o regime militar e foi o primeiro ministro do Exército depois da redemocratização. O senhor admite que a tortura é uma mancha na história recente das Forças Armadas no Brasil ?

“Eu acho que ela, lamentavelmente, ocorreu. Mas, para ser uma mancha, ela foi muito aumentada por nossos antagonistas para justificar algumas coisas que eles fizeram e achavam que tinham o direito de fazer. Hoje, todo mundo diz que foi torturado para receber a bolsa ditadura. Não tem cabimento. Já gastamos dois bilhões e oitocentos milhões nisso. É essa a resposta que você quer ?”.

O senhor já chamou a cassação de mandatos e a suspensão de direitos políticos de medidas “altamente civilizadas”. Baseado em quê o senhor chama de civilizadas medidas que são obviamente uma violência política ?

“Porque elas são históricas. Cassação é a denominação nossa para o ostracismo na Grécia e do banimento em Roma. São civilizadas porque têm dois mil anos de atuação. Nós ainda fizemos de uma maneira mais doce do que faziam os romanos e os gregos, porque não afastamos as pessoas do lugar onde moravam. E eles afastavam”.

Mas os exilados foram obrigados a sair do Brasil…

“Não se esqueça do seguinte: não tivemos exilados no Brasil.Tivemos fugitivos. Pode ser dura a minha palavra, mas não acho que tivemos exilados no Brasil. Não houve um decreto de exilar ninguém. Depois, os que fizeram algumas coisas e quiseram ir embora, nós os consideramos banidos. Quiseram ir embora para aqui, para lá, para acolá. Pegaram um avião e saíram por aí”.

O senhor chama de “fugitivos” os exilados, alguns célebres, como Miguel Arraes, Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes. Não é uma injustiça ?

“Não, não acho que seja injustiça. Porque a palavra exilado também não serve para eles. Exilado é alguém que recebe um documento do governo exigindo que se afaste. Tal documento nunca houve. Como é que você quer tachá-los,então ? Dê uma sugestão! A minha sugestão é : fugitivos…”

Historicamente são exilados….

“Que negócio é esse de historicamente ?”

O senhor também chamou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de fugitivo, entre outros exilados…

“Só ele não! Todos eles, inclusive ele! Todo mundo que foi embora sem ser expulso do Brasil considero fugitivo. Sem exceção. Fugitivos! O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e todos os outros são, para mim, fugitivos. Porque se eles tinham uma ideia – e esta ideia era confrontada e fizeram alguma coisa que merecesse – deveriam enfrentar a justiça, porque seriam respeitados”

O governador Miguel Arraes, por exemplo, foi deposto, foi confinado na ilha de Fernando de Noronha e seguiu para o exílio…

“Sim,mas foi embora porque quis ! Poderia ter voltado a Pernambuco e ter ficado em casa”.

Deposto ?

“Mas qual é o problema ?”

Todo !

“Não é todo não! Que ele enfrentasse,como deposto, legalmente, as coisas. Faria o proselitismo – e não sairia correndo para o mundo. Assim aconteceu com os outros: saíram todos correndo. Ninguém quis ficar aqui. Alguns foram se preparar militarmente para fazer a confrontação. Onde ? Em Cuba, na Albânia, na Rússia..Quanto ao caso específico que você cita, o de Miguel Arraes: ele não foi fazer isso. Ele se deu muito bem fazendo seus negócios. É um homem de sucesso de negócios. Não acho. Você insiste nisso! Esquece que,para ser exilado, precisa ter um documento que provoque o exílio”.

Mas,na prática, não havia condições para o exercício da política naquela época…

“Fique,então, aguardando no país. Não precisa ir embora. Por que fugiu do Brasil? Com medo de outras sanções ?”

O senhor considera que o ex-governador era um fugitivo ou um perseguido pelo regime militar ?

“Primeiro, ele merecia as punições que recebeu, pelas atitudes que tomou….

Não num regime democrático…

“…Mas a gente também se antecipa aos que querem fazer algo. O que é que ele queria fazer do Brasil ? Nós temos um grande orgulho de nosso faro! Depois, olhe o que aconteceu na Rússia, em todos os países de origem comunista, aquela mortandade. Vocês nos acusam, os da esquerda”…

Não sou representante da esquerda…

“Você tem um laivozinho, tem um laivozinho…Vocês esquecem quantos milhões matou Stalin, quantos milhões matou o Khmer Vermelho, quantos mil matou Fidel Castro nessa ilha: dezessete mil. Outra coisa : exilado geralmente é o homem que sofre restrições. Os homens que foram para o Chile: eu bem que queria tirar o curso que eles tiraram lá. O senhor Fernando Henrique era professor universitário, coma vida muito bem organizada. Vivia sem nenhuma restrição financeira, só para dar um exemplo. Exilado é uma coisa. Quem vai voluntariamente – e gosto de chamar de fugitivo – é outra. Não faça confusão. A sua convicção sobre exilado precisa acabar!”

Mas não é convicção minha. É um fato histórico!

“Não é fato histórico não senhor! Fato histórico se houvesse uma lei fazendo o exílio. O fato histórico foi forçado pela mídia batendo no mesmo tambor: bam-bam-bam-bam-bam-bam….”

Se não eram exilados, por que é que o governo militar promulgou uma Lei da Anistia permitindo que eles voltasssem ? Se não existiam exilados, para que uma Lei da Anistia ?

“Acontece o seguinte: eles estavam assustados. Nós dissemos para eles: podem vir, não há perigo nenhum. Mais do que fugitivos, eram assustados. Sempre pergunto: alguma coisa tinham feito para ir embora!”.

Posted by geneton at 12:06 PM

março 31, 2010

MARIO QUINTANA

“O PROLETÁRIO É O SUJEITO EXPLORADO FINANCEIRAMENTE PELO PATRÕES E LITERARIAMENTE PELOS POETAS ENGAJADOS”.PALAVRA DE MÁRIO QUINTANA

E eis que emerge de meus Arquivos Implacáveis uma entrevista com um poeta solitário : Mário Quintana. Tinha humor e leveza. Grau de pretensão e empáfia : zero.

CINCO VERSOS DE MÁRIO QUINTANA (Alegrete, RS, 1906):

1. “Ai de mim/Ai de ti, ó velho mar profundo/Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios”.

2. “A vida é um incêndio/nela dançamos, salamandras mágicas/Que importa restarem cinzas/se a chama foi bela e alta?/Em meio aos torós que desabam/cantemos a canção das chamas!/Cantemos a canção da vida/na própria luz consumida…”

3. “Um poema como um gole d’água bebido no escuro/Como um pobre animal palpitando ferido/Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna/Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema/Triste/Solitário/Único/Ferido de mortal beleza”

4. “Da primeira vez em que me assassinaram/perdi um jeito de sorrir que eu tinha/Depois, de cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha…”

5. “Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!/Ah! Desta mão, avaramente adunca,/Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!”

E VINTE E TRÊS RESPOSTAS:

Qual deve ser o primeiro compromisso da agenda da vida de um poeta?

QUINTANA: “O primeiro compromisso deve ser: não parar de poetar. Não parar de viver intensamente”

O senhor diz que gosta de fazer projetos a longo prazo, para “desafiar o diabo”. Que último desafio o senhor lançou?

QUINTANA: “O último desafio foi uma viagem – gorada – a Paris. O próximo, já em execução, é aprender a falar inglês. Eu era apenas tradutor de francês da Editora Globo. Aprendi, sozinho, a língua inglesa numa gramática, para traduzir. Mas apenas lia o que estava escrito, sem saber a pronúncia. Agora, estou lidando com um curso de inglês da Inglaterra por meio de fitas cassete. O primeiro tradutor de Virginia Woolf no Brasil fui eu. A tradução foi bem recebida pela crítica”.

O escritor Erico Verissimo dizia que “Quintana é um anjo que se disfarçou de homem”. O senhor tem algum reparo a fazer à observação?

QUINTANA: “Tenho. Sempre desejei ser exatamente o contrário: uma espécie de diabo”

Qual a grande compensação que a poesia dá a quem a escreve?

QUINTANA: “Minha grande compensação é ter, às vezes, conseguido pegar a poesia nuínha em flor. Mas é difícil! (ri)”

Críticos já notaram que o senhor tem uma preferência especial pelas reticências. É verdade que prefere as reticências aos pontos finais?

QUINTANA: “Considero que as reticências são a maior conquista do pensamento ocidental, porque evitam as afirmativas inapeláveis e sugerem o que os leitores devem pensar por conta própria, após a leitura do autor”

O senhor diz que, ao escrever, “pergunta mais do que responde”. Qual a grande pergunta que o senhor não conseguiu ver respondida até hoje, aos oitenta e dois anos?

QUINTANA: “O essencial é a gente fazer perguntas. As respostas pouco importam”

Se a poesia, segundo suas palavras, “é uma loucura lúcida”, todo bom poeta deve ser necessariamente louco, ainda que lúcido?

QUINTANA: “Creio que é na Bíblia que foi escrito que todos nós temos um grão de loucura. O poeta deve ter esse grão de loucura, mas não necessariamente estar num grau de loucura”

O senhor já se confessou simpático à restauração da monarquia no Brasil. Que cargo gostaria de ocupar no Brasil governado por um Rei?

QUINTANA: “É claro que nenhum! Eu não desejaria ser o Poeta da Coroa. A melhor receita para fazer um mau poema é fazê-lo de encomenda”

Além de poeta, o senhor é tradutor de obras clássicas, como vários volumes de Marcel Proust. Que semelhança pode existir entre o trabalho de tradução e o ofício da criação poética?

QUINTANA: “Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estréia desse autor na literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim”

O senhor já chegou a trabalhar simultaneamente na preparação de cinco livros. Em algum momento da vida se sentiu tentado a deixar de escrever?

QUINTANA: “Sempre estou escrevendo, em prosa e em verso.Venho trabalhando em quatro livros. Cinco é demais! Nunca pensei em deixar de escrever, porque é a única coisa que sei fazer na vida”.

Qual o grande medo do poeta Mario Quintana hoje?

QUINTANA: “Tenho medo de dizer”

O senhor, segundo notou o autor de um artigo publicado pela revista ISTOÉ, “nada tem: nem casa, nem mulher, nem dinheiro, nem família”. Tanto desapego foi escolha pessoal ou aconteceu à revelia do que o senhor desejou ?

QUINTANA: “Catastrófico o autor, para mim desconhecido, dessa coisa publicada na ISTOÉ. O certo é que elas não tiveram tempo…E agora, no fim da picada, acho preferível a solidão sozinho à solidão a dois. Quero a solidão sozinho!”

(Enclausurado num quarto de hotel em Porto Alegre, Mario Quintana tinha uma mania: escrever a mão textos que, só depois, eram datilografados pela secretária Mara Cilaine, guardiã do poeta)

O senhor já declarou que “o proletário é um sujeito explorado financeiramente pelos patrões e literariamente pelos poetas engajados”. Em algum momento, o senhor acreditou que a poesia poderia mudar o mundo ?

QUINTANA: “Para mudar o mundo, caberia ao poeta candidatar-se a vereador, a deputado ou a outro cargo assim- e não fazer poemas que as classes necessitadas não têm tempo de ler. Ou não sabem ler. É verdade que Castro Alves influiu na abolição da escravatura. Mas acontece que Castro Alves era genial. Já nós temos apenas algum talento….”

O senhor é autor de uma sugestão original: a nação lucraria se pudesse escolher livremente os ministros – e não apenas o presidente. De onde nasceu essa constatação ?

QUINTANA: “Não me lembro de ter feito tal sugestão. Mas agora gostei! O povo poderia influir mais diretamente no Executivo – que não ficaria só com o presidente e seus amiguinhos…”

O senhor escreveu que a poesia é a “invenção da verdade”. Conseguiu inventar todas as verdades que queria através da poesia ?

QUINTANA: O que meu cérebro lógico pensa não é exatamente o que pensa a parte não lógica do cérebro. Além da mera geometria euclidiana, existe a geometria não-euclidiana. Isso parece meio confuso, mas me faz lembrar uma verdade que escrevi um dia: a poesia não se entrega a quem sabe defini-la”.

Aos oitenta e dois anos, o senhor é otimista ou pessimista diante do destino do homem neste fim de século?

QUINTANA: “Sou otimista. Há mais liberdade de expressão e mais comunicação. Não há, como nos meus tempos de menino, aquela proibitiva divisão entre as faixas etárias”

Num livro lançado há exatamente quarenta anos, Sapato Florido, o senhor escreveu que “os verdadeiros poetas não lêem os outros poetas. Os verdadeiros poetas lêem os pequenos anúncios dos jornais”. Qual foi, então, o melhor anúncio que o senhor já leu?

QUITANA: “Não sei se foi o melhor, mas o mais divertido foi este: “Alugam-se duas salas para mulheres bem-arejadas”. Ler os pequenos anúncios, em todo caso, é pôr-se em contato com as necessidades do povo”

Saber que “o vôo do poema não pode parar”, como o senhor diz em “O Vento e a Canção”, é um consolo para quem escreve?

QUINTANA: “Para quem escreve, saber que o vôo do poema não pode parar é sinal de que a vida continua deslizando, apesar dos solavancos”

O poema “No Meio do Caminho”, escrito por Carlos Drummond de Andrade no final dos anos vinte, foi ridicularizado e bastante criticado quando surgiu. O senhor, no entanto, incluiu o poema entre os que gostaria de ter escrito. De que maneira o senhor reagiria às críticas que foram feitas ao poema?

QUINTANA: “Quando alguém pergunta a um autor o que é que ele quis dizer, um dos dois é burro…”

Se “os caminhos estão cheios de tentações”, qual a grande tentação do poeta Mario Quintana hoje ?

QUINTANA: “Os caminhos continuam cheios de tentações. Mas…..cabem,aqui, reticências”

Os jovens poetas sempre esperam ensinamentos dos mais experientes. Se um poeta de vinte anos pedisse um conselho a Mário Quintana, que resposta o senhor daria a ele ?

QUINTANA: “Que ele não exigisse conselho de ninguém – e seguisse o próprio nariz”

Quem – ou o quê – atravanca o caminho do senhor hoje ?

QUINTANA :”Ah, a popularidade!”

E sobre a Academia Brasileira de Letras ?(N: Quintana foi derrotado nas três vezes em que tentou entrar para a Academia). O senhor não quer dizer nada ?

QUINTANA: “Não. Nem para dizer que não pretendo falar”

(Entrevista gravada em 1988. Quintana morreu em 1994)

Posted by geneton at 12:09 PM

março 25, 2010

H.L. MENCKEN

O QUE É QUE UMA CRIANÇA PODE APRENDER “OBSERVANDO UM LEÃO VELHO E SARNENTO RONCANDO NO FUNDO DA JAULA” ? (COM A PALAVRA, H.L.MENCKEN, O JORNALISTA QUE COMBATIA ATÉ OS JARDINS ZOOLÓGICOS)

Senhoras e senhores: o Dossiê Geral tem o prazer de passar a palavra para H.L.Mencken, o jornalista que conseguia escrever contra até jardins zoológicos: “O Livro dos Insultos de H.L. Mencken” ganhou uma nova edição. Mencken morreu em 1956. Era da linhagem de Paulo Francis. Vasculho a estante: localizo um exemplar da primeira edição, lançada no Brasil faz vinte e dois anos. Grifei vários trechos. Fala, Mencken:

1. “Educativo é avó! Mostre-me um guri que tenha aprendido alguma coisa valiosa ou importante observando um leão velho e sarnento roncando no fundo da jaula ou uma família de macacos disputando amendoins. Ganhar alguma instrução útil de tais baboseiras é palpavelmente impossível. Nenhuma descoberta científica de qualquer valor, mesmo para os próprios animais, saiu até hoje de um zoológico. O tipo de sujeito que gosta de passar o tempo contemplando um camelo babar, araras matraqueando ou um lagarto comendo moscas é exatamente o tipo de sujeito cuja debilidade mental deve ser combatida, não estimulada”.

2. “Todo ator é um sujeito vazio de ideias; é artificial; é ignorante; é preguiçoso; é absurdamente adulado; tem os modos de um garçom ou de um ginecologista da moda”.

3. “O que chamamos de progresso, disse Havelock Ellis, é apenas a substituição de um aborrecimento por outro aborrecimento. A ideia é tão óbvia que já deve ter ocorrido, de vez em quando, até a algum ministro de Estado”.

4. “Um jovem de dezessete anos que não seja um poeta será apenas um jumento, seu desenvolvimento foi paralisado antes mesmo do seu estágio como girino. Mas um homem de cinquenta anos que continue a escrever poesia é um infeliz que nunca passou intelectualmente da adolescência”.

5. “Todos os homens verdadeiramente sensíveis lutam poderosamente pela distinção e pelo poder, isto é, pelo respeito e pela inveja dos seus semelhantes, pela admiração de uma interminável série de carcaças portando aminoácidos em rápida desintegração. E para quê ? Se eu soubesse, certamente não estaria escrevendo livros neste infernal verão americano; estaria exposto numa sala de cristal e outo – e as pessoas pagariam dez dólares para me contemplar através de buraquinhos”.

6. “Todo governo é composto de vagabundos que, por um acidente jurídico, adquiriram o duvidoso direito de embolsar uma parte dos ganhos de seus semelhantes”

7. “O jornal americano médio, especialmente o chamado de primeira linha, tem a inteligência de um pastor batista, a coragem de um camundongo, a informação de um porteiro de ginásio, o bom gosto de um criador de flores artificiais e a honra de um advogado de porta de cadeia”

8. “Quando martelam diariamente que todo político é um patife, todo serviço público é dirigido por escroques e todas as operações de Wall Street têm como objetivo garfar as pessoas comuns, os jornais estão bastante perto da verdade, para qualquer propósito prático”

9.”Talvez o homem seja uma doença localizada do cosmos – uma espécie de eczema ou uretrite pestífera. Existem, é claro, diferentes graus de eczemas, assim como há diferentes graus de homens. Sem dúvida, um cosmos afligido por uma infecção de Beethovens jamais precisaria de um médico. Mas um cosmo infestado por socialistas, escoceses ou corretores da Bolsa deve sofrer como o diabo”.

10.”Política consiste numa sucessão de asneiras, muitas das quais tão idiotas que existem apenas como palavras de ordem ou demagogia, não podendo ser reduzidas a qualquer declaração lógica”

11. “A fé pode ser definida em resumo como uma crença ilógica na ocorrência do improvável”

12. “Um metafísico é alguém que, quando você lhe diz que dois vezes dois são quatro, ele quer saber o que por entende por vezes, o que signfica dois, o que quer dizer são e por que isto dá quatro. Por fazerem tais perguntas, os metafísicos desfrutam um luxo oriental nas universidades e são respeitados como homens educados e inteligentes”.

13. “O homem detesta os parentes de sua mulher(…) De todos eles, a sogra é obviamente a mais repugnante, porque ela não apenas macaqueia sua mulher, mas também porque antecipa o que sua mulher provavelmente se tornará. Aquela visão, naturalmente, lhe provoca náuseas”.

14.”A pintura, a escultura, a música e a literatura, se exibirem algum conteúdo estético ou intelectual, não são para multidões, mas para indivíduos selecionados, quase todos sofrendo do fígado”.

15.”Duvido que a arte de pensar possa ser ensinada – pelo menos, por professores do segundo grau. Não é adquirida, mas congênita. Algumas pessoas nascem com ela. Suas idéias fluem com clareza e elas são capazes de raciocínio lúcido. Quando dizem alguma coisa, esta é instantaneamente reconhecível; quando a escrevem são luminosas e convincentes. Eu diria que essas pessoas constituem cerca de 1/8 de 1% da espécie humana. Os demais filhos de Deus são tão incapazes de pensamento lógico quanto de esquiar na lua. Tentar ensiná-los será uma empreitada tão presunçosa quanto tentar ensinar a uma pulga os Dez Mandamentos. A única coisa a fazer com eles será transformá-los em PHDs e mandá-los escrever livros sobre estilo”.

Posted by geneton at 12:06 PM

março 15, 2010

CORONEL KURT PESSEK

CORONEL REVELA DETALHES DO PLANO SECRETO ARMADO PARA PROTEGER TANCREDO NEVES (E EX-MINISTRO LAMENTA: POR QUE O CONGRESSO NÃO DEU POSSE A TANCREDO NEVES NO HOSPITAL DE BASE DE BRASÍLIA?)

A Globonews reexibe,nesta segunda, às onze e meia da manhã e às cinco e meia da tarde, no programa GLOBONEWS ESPECIAL, uma reportagem sobre os bastidores da transição do regime militar para o civil.

Aos que nasceram ontem: o dia 15 de março de 1985 marca, tecnicamente, o fim do regime militar. Faz exatamente vinte e cinco anos que João Batista Figueiredo, o último dos generais a presidir o Brasil, deixou o Palácio do Planalto. Ou seja: faz vinte e cinco anos que o regime militar acabou. Quem deveria ter asssumido a Presidência era o ex-governador de Minas, Tancredo Neves, eleito por um colégio eleitoral no dia 15 de janeiro de 1985. Mas quem tomou posse foi o vice-presidente eleito, José Sarney. Horas antes da posse, Tancredo foi internado às pressas no Hospital de Base de Brasília,com dores abdominais. Os médicos decidiram operá-lo imediatamente. Trinta e oito dias depois, Tancredo estava morto.

A passagem do regime militar para o civil foi marcada por intensas articulações de bastidores.

Um plano cinematográfico chegou a ser desenhado, em segredo, para proteger o candidato Tancredo Neves contra eventuais investidas de militares insatisfeitos com a transição. Eram minoria, mas inspiravam temor.

O GLOBONEWS ESPECIAL traz um depoimento de um coronel que tinha a função de abastecer o staff de Tancredo com informações recolhidas, em sigilo, junto a militares. O coronel Kurt Pessek se encarregou de armar um plano para tirar imediatamente o candidato Tancredo Neves de Brasília caso houvesse alguma escaramuça militar. O coronel decidiu que, caso houvesse uma situação de risco, Tancredo seria levado para o gabinete do então senador Severo Gomes – que tinha uma saída que dava para o estacionamento do senado. De lá, Tancredo seria levado para a rodovia que dá acesso a Unaí, onde um pequeno avião, pilotado pelo deputado Jorge Vargas, estaria à espera do candidato, para levá-lo a Uberlândia. Por fim, Tancredo seguiria,num avião maior, para Porto Alegre. Motivo: quem comandava o Exército no sul, na época, era o general Leônidas Pires Gonçalves – que já tinha aderido à candidatura Tancredo Neves à presidência. Terminou escolhido ministro do Exército.

Trechos do depoimento do coronel Kurt Pessek ao locutor que vos fala:

“Estabeleci uma rede para saber : se uma tropa saísse de um quartel, se fosse decretada prontidão na região, se houvesse qualquer movimento militar dentro daquele quadro, ou discursos de generais como Newton Cruz que, naquela época, não estava achando graça nenhuma naquela mudança para a democracia, vamos assim dizer. Se ele dissesse alguma coisa, nós desencaderíamos o plano de tal como que pegasse todo mundo de surpresa”.

“Não avisamos nada.Nem ao comandante do Batalhão nem a Porto Alegre.Por que não avisamos? Porque não queríamos de jeito nenhum que alguém soubesse”.

“Tancredo Neves ficou em dúvida sobre certos detalhes. Mas ficou satisfeito com o fato de Jorge Vargas ser o piloto do avião. Estava em dúvida sobre como é que iríamos chegar ao local. Ficoui preocupado como é que ele iria sair do Congresso. Porque todas as vezes em que ele andava tinha um cortejo atrás. Tancredo não poderia sair sem estar com um disfarce.O que ficou em dúvida foi que alguém propôs de comprarmos uma peruca para disfarçar. Achei que bastaria um chapéu,porque Tancredo não iria botar aquela peruca nunca!”.

“Os informantes eram militares – que atuando,ainda,na ativa. A maioria eram paraquedistas. Mas havia também uma minoria de não paraquedistas – que nos davam as informações sobre as tendências. Eu sabia perfeitamente como estavam as idéias nos quartéis com respeito à assunção de Tancredo”

“Nós geralmente nos encontrávamos na estação rodoviária ou no supermercado. Ficava um carrinho ao lado do outro. Os carrinhos ficavam cheios. Depois, nós os largávamos lá. Conversávamos bem à vontade. Ninguém ligava. Talvez pensassem que estávamos discutindo o preço do filé mignon. Uma reunião num lugar mais reservado – ou até mesmo num bar ou num botequim – poderia chamar atenção. Tínhamos o cuidado de não falar nada no telefone e nos encontrarmos sempre nos lugares onde houvesse mais gente,como rodoviária às seis da tarde. O principal cuidado era tudo fosse falado: não havia nada escrito. Nem podia haver. Tínhamos o máximo cuidado de só falar com Tancredo, diretamente”.

“Ninguém imaginaria que alguém viesse matar Tancredo Neves. Não havia essa hipótese. O que havia era a probabilidade de uma mudança do status quo. Qual era o status quo ? Tancredo vai assumir, o governo passa a ser civil. A ideia era esta: a salvaguarda do programa em si: ele vai assumir,sim,vai para o Rio Grande do Sul e vem escorado,aí sim.Tudo dependeria do general Leônidas”.

O presidente eleito diz ao ministro: partido forte no Brasil é o PFA, o Partido das Forças Armadas
Nossa expedição a Brasília, para gravar depoimentos para o GLOBONEWS ESPECIAL, se completou com uma entrevista com um personagem que viveu os bastidores da transição: o ex-ministro Ronaldo Costa Couto. Vinte e cinco anos depois da “mais longa das noites” – aquela em que o presidente eleito, inacreditavelmente, foi levado a um hospital, o ex-ministro lamenta: diz que toda a perplexidade e todas as dúvidas que paralisaram o país naquela noite poderiam ter sido evitadas se o Congresso tomasse uma providência simples: bastaria que uma comissão do Congresso Nacional empossasse Tancredo Neves no cargo de Presidente da República no próprio Hospital de Base. Assim, as dúvidas sobre, por exemplo, quem deveria assumir perderiam razão de ser. Não seria preciso consultar juristas na madrugada nem discutir o texto de artigos da constituição. Para todos os efeitos, Tancredo Neves estaria empossado presidente.

Trechos do depoimento de Costa Couto:

“Não tomei conhecimento desse plano de fuga ( o ex-ministro fala do plano armado pelo coronel para retirar Tancredo de Brasília, caso fosse preciso). Mas soube depois. Tancredo era um homem prevenido. Tinha realmente de tomar essas precauções.Tomei conhecimento o tempo todo dos cuidados de Tancredo com tudo o que se referia à segurança e às Forças Armadas”

” O presidente eleito temia,sim ( uma reação militar). A candidatura Tancredo Neves atravessou campo minado. Tancredo era gato escaldado. Dizia: desde o Movimento tenentista – lá nos anos vinte – parte das Forças Armadas mostra essa disposição intervencionista.Uma postura de salvadores da pátria. Isso é um perigo. Brincava: “Sempre houve no Brasil vários partidos. Mas um dos mais fortes é o PFA. Perguntei a ele: “PFA?”. E ele: É o Partido das Forças Armadas!” Doutor Tancredo cuidou com extremo zelo para que a candidatura chegasse a bom termo. Mas houve armadilhas e minas. Em algumas, quase pisamos. Havia golpistas - geralmente, radicais de direita. E continuistas – que queriam esticar o mandato do general João Figueiredo”.

“Doutor Tancredo temia muito os radicais. Sempre me dizia: “Cuidado com os radicais: os de direita, os de esquerda e até os de centro”. Dentre todos,o que mais preocupava Tancredo era Newton Cruz, comandante militar do Planalto. Achava o general Newton um homem inteligente, corajoso,mas um tanto destemperado. Tancredo sempre lembrava na votação da emenda Dante de Oliveira,em abril de 84: o general fardado,com quepe e tudo, batendo com uma vara nos carros de Brasília. Tancredo achava aquilo uma demonstração de destempero.Dizia que um general destemperado poderia alterar o curso desse processo histórico: “Temos de administrar muito bem, temos de ter extremo cuidado com isso”.

“Houve um encontro secreto de Tancredo Neves com o presidente Figueiredo – de que não posso falar. O encontro foi tão secreto que só me lembro que foi em Brasília. Uma troca importante de informações Neste caso,só no momento oportuno vou falar. Recebi um pedido de que mantivesse a discrição.E não abro mão de fazê-lo.Dei minha palavra. Vou cumpri-la”.

“Fica claro que Tancredo, no Hospital de Base de Brasília, tinha energia, tinha vontade, tinha condições de ser empossado em 15 de março de 1985. seria a solução mais simples, mais objetiva e mais tranquilizadora.O vice-presidente Sarney certamente não se oporia. Naquele momento, ele mostrou desapego ao caso. Ulysses Guimarães, naquele momento, fez a mesma coisa. Isso tranquilizaria, inclusive, o próprio Tancredo,que estava muito inseguro em relação ao futuro político,não apenas em relação à saúde. Teria evitado problemas enormes, como, por exemplo, aquela perplexidade na noite de 14 para 15 de março, quando o mundo todo começou a prestar atenção para o que acontecia no Brasil, aquela tragédia grega sem igual. Todo mundo perplexo: quais serão os rumos da Nova República ? O que é que vai acontecer com Tancredo internado ? Tudo poderia ter sido evitado”.

“Infelizmente, não nos ocorreu. Infelizmente, não. O momento era de perplexidade e de susto. A gente não tinha informações ainda de como iriam reagir as Forças Armadas, como iria se comportar o presidente Figueiredo. Havia perplexidade e informações desencontradas. Começou a circular, no meio popular, a informação de que Tancredo havia sido assassinado. Circulou também que ele tinha levado um tiro. E por isso, ele tinha sido hospitalizado. Era este o clima,era este o ambiente. Por que o Congresso não credenciou uma comissão para empossar Tancredo Neves no próprio hospital ?. Teria sido a grande solução”.

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março 10, 2010

JANET LEIGH

A VÍTIMA DO ASSASSINATO MAIS CÉLEBRE DO CINEMA PASSOU A VIDA COM MEDO DE CHUVEIRO. O CULPADO : MR. HITCHCOCK

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Quantas das cenas dos filmes premiados este ano com o Oscar vão ser lembradas daqui a meio século ? Nenhuma.

A “cena do chuveiro” de Psicose assusta platéias há exatamente meio século. O filme de Hitchcok nasceu “clássico do suspense”.

O locutor-que-vos-fala teve a chance de entrevistar a vítima do assassinato mais célebre do cinema: Janet Leigh.

Direto dos arquivos implacáveis do Dossiê Geral, a entrevista completa:

Um banho de chuveiro num hotel de beira de estrada. Somente a mão de um gênio poderia transformar um gesto tão banal em sinônimo de medo, suspense, terror, mistério, agonia. Alfred Hitchcock, o “mestre do suspense”, conseguiu.

A cena do assassinato do personagem interpretado por Janet Leigh em “Psicose” já foi escolhida por críticos franceses como “a mais memorável” da história do cinema. Filmada em setenta ângulos diferentes durante sete dias, a sequência do chuveiro dura apenas quarenta e cinco segundos, mas rendeu quatro décadas de fama a Janet Leigh , uma atriz de sorte que parece estar sempre no filme certo na hora certa.

Quando o Los Angeles Times resolveu fazer a lista das cinquenta melhores produções de todos os tempos, descobriu que Janet Leigh é a única atriz que aparece em três dos filmes mais votados : “Psicose” (Alfred Hitchcock), “Touch of Evil” (Orson Welles) e “The Manchurian Candidate” (John Frankenheimer).

“Psicose” chegou às telas em junho de 1960. A fascinação exercida por esse clássico do suspense é tanta que até hoje, nos encontros de Janet Leigh com fãs e jornalistas, “Psicose” termina sempre se transformando em assunto principal. Não há como escapar: Janet Leigh será sempre Marion Crane, a vítima de Norman Bates, o psicopata interpretado com brilho por Anthony Perkins.

Aos 68 anos de idade, ex-mulher de Tony Curtis, com quem formou um dos mais badalados casais de Hollywood, mãe das atrizes Jamie Lee Curtis e Kelly Curtis, Janet Leigh resolveu escrever, em parceria com Christopher Nickens, um livro sobre a saga que viveu sob o chuveiro.

Lançado na Inglaterra pela Pavillon Books, o livro se chama, como não poderia deixar de ser, “Psicose”, (Psycho). Afastada das telas, Leigh pretende fazer carreira como romancista. Mas dificilmente a Janet Leigh romancista se livrará da sombra de Marion Crane.

Nesta entrevista , Janet Leigh revela que o filme que a consagrou também lhe trouxe ameaças que até hoje se repetem – na vida real. Hitchcock não imaginaria roteiro melhor.

GMN: Você ficou famosa como personagem da cena do assassinato no chuveiro em “Psicose”. Quando entra no chuveiro você ainda hoje se lembra da cena?

JL.: “Mas eu não tomo banho de chuveiro…”

GMN: O motivo é o filme?

JL.: “Sim: Eu nunca tinha imaginado, antes, o quanto ficamos vulneráveis quando estamos no chuveiro. Ficamos completamente vulneráveis! Eu nunca tinha pensado neste detalhe- até ver a cena do chuveiro na tela. Hoje, prefiro não tomar banho de chuveiro. O fato de eu não poder ver o que se passa do outro lado da cortina enquanto estou tomando banho me incomoda. Prefiro usar a banheira. Ainda assim, quando estou na banheira gosto de ficar olhando para a porta. Se tomar banho de chuveiro for a única alternativa, num lugar onde não exista banheira, eu então deixo a cortina aberta. O chão fica todo molhado, mas pelo menos eu posso ver o que se passa em volta…
Para dizer a verdade, durante a filmagem da cena do crime do chuveiro não fiquei assustada, talvez porque tudo é feito aos poucos, em meio a várias repetições. Quando vi a cena editada, na versão final do filme, é que senti todo o horror daquele grito. Era como se eu estivesse sentindo cada golpe daquela faca. Fiquei aterrorizada.”

GMN: É verdade que ainda hoje você recebe cartas e telefonemas ameaçadores?

J.L.: “É verdade. Gente estranha me manda cartas dizendo: ‘Quero fazer com você o que Norman Bates fêz com Marion no chuveiro.’ São ameaças sinistras. É terrível. Um chegou a mandar uma fita descrevendo o que queria fazer. Ainda hoje preciso de vez em quando trocar o número do meu telefone. Um dos autores de ameaças me telefonava perguntando: ‘Posso falar com Norman?’. Eu respondi: ‘Deve ter sido engano.’ A voz do outro lado insistia: ‘Não é engano. Não é do Motel Bates?’.”

GMN: Você levou a sério alguma dessas ameaças?

J.L.: “Uma vez, chamei o FBI. Um diretor amigo nosso, Mervyn Le Roy, estava nos visitando logo depois de fazer um filme sobre a história do FBI. Resolvi mostrar a ele as cartas. Imediatamente ele me sugeriu que o FBI fosse avisado. Agentes vieram à minha casa. Dois dos autores de ameaças terminaram localizados. Os agentes disseram que é difícil saber quando é que uma ameaça dessa representa um perigo real ou quando não deve ser levada a serio.”

GMN: Uma das lendas que correm sobre “Psicose” diz que Alfred Hitchcock mandou abrir de repente a torneira de água fria durante a filmagem da cena para obter de você uma expressão de espanto…

J.L.( interrompendo): “Não, não, não. Não é verdade. Pelo contrário: Hitchcock fez questão de que a água ficasse na temperatura correta, para que eu não sentisse desconforto. Sou uma atriz. Posso demonstrar medo numa cena. Não preciso de água fria…”

GMN: Qual foi o grande problema que você enfrentou na hora de fazer a cena no chuveiro?

J.L.: “Hitchcock queria que eu usasse lentes de contato para que, nas imagens em close, logo depois do assassinato, eu parecesse realmente morta. O oculista, no entanto, disse que as lentes só ficariam prontas em seis semanas. Não daria tempo de esperar. Tive de fazer tudo sem lente de contato.”

GMN: O que é que mais lhe chamou a atenção em Hitchcock durante a filmagem?

J.L.: “Fiquei impressionada com o fato de que ele jamais olhava através do visor da câmera. Perguntei por quê. Hitchcock me respondeu: ‘Não preciso olhar através do visor. Já sei onde a câmera vai ficar; já sei quais as lentes que vou usar. Então, posso saber exatamente como é que a imagem vai aparecer’.
A verdade é que ele sabia de tudo tão bem que nem precisava olhar através da câmera .
Houve também uma cena de bastidores que me impressionou. Hitchcock queria gravar um som que sugerisse uma faca ferindo o corpo. Um assistente trouxe para o estúdio vários tipos diferentes de melão. Passou, então, a cortar cada um com uma faca. De costas para o assistente, sem olhar em nenhum momento para trás, Hitchcock escolheu, pelo som de faca, qual era o tipo de melão que deveria ser usado…”

GMN: Você trabalhou com grandes diretores, como Hitchcock e Orson Welles. Que comparação fez entre os dois?

J.L.: “Tive sorte de trabalhar com talentos tão fantásticos quanto Orson Welles, John Frankheimer e Fred Zinemann. Trabalhei com os melhores. Orson Welles e Hitchcock eram o oposto um do outro. Os dois eram gênios, mas Orson Wells era mais espontâneo e improvisador, ao contrário de Hitchcock, um diretor que planejava cada take com detalhes.”

GMN: “Psicose” representou, para você, o sucesso internacional mas também um drama: você recebeu a notícia de que seria a última vez que trabalharia com Hitchcock. Por quê?

J.L.: “O que aconteceu foi que devido ao grande sucesso de “Psicose”, o próprio Hitchcock me disse que, se voltássemos a trabalhar juntos, não importa quanto tempo depois, o público imediatamente relacionaria o novo filme a “Psicose”. Isto afetaria então, o novo filme que estivéssemos fazendo.
Eu queria trabalhar de novo com Hitchcock. Mas penso que ele estava absolutamente certo ao apontar esse risco.”

GMN: Um jornal inglês publicou há pouco que você tinha abandonado a carreira porque já estava cansada da “hipocrisia” de Hollywood. É verdade?

J.L.: “Não sei de onde tiraram esta idéia. Diminuí o ritmo de trabalho porque achei que esta seria uma atitude justa para com meu marido e minhas filhas. Passei a aceitar apenas tarefas que pudessem ser cumpridas em pouco tempo.”

GMN: Tanto tempo depois , você ainda responde a perguntas sobre a cena do assassinato no chuveiro. Você compararia esta cena com que outra, na história do cinema?

J.L.: “Não consigo pensar em outra cena que venha imediatamente à lembrança como algo tão chocante. Não consigo pensar em nenhuma. Houve, é claro, outros momentos memoráveis em filmes, mas esta cena parece ser aquela que o público se lembra- em estado de choque…”

GMN: Você teve uma carreira de sucesso, mas é sempre lembrada como a Marion Crane de “Psicose”, assim como Anthony Perkins será sempre lembrado como Norman Bates. O fato de ser lembrada por apenas um filme- e particularmente por uma cena- lhe traz algum incômodo?

J.L.: “Em nosso ofício, trabalhamos duro para criar imagens. Ser parte de uma imagem que vai ficar para sempre é algo notável. Fico orgulhosa. “Psicose” é um filme que já dura 35 anos. É o sonho de todas as atrizes.”

GMN: Você visitou o Brasil no início dos anos sessenta. Que lembrança guardou dessa viagem?

J.L.: “Visitei o Brasil duas vezes. A primeira foi em 1960. Percorri seis cidades, numa visita organizada pelo USIS, o serviço de divulgação dos Estados Unidos. Depois, participei de uma entrega de prêmios cinematográficos. Uma vez, quando estávamos a caminho da inauguração de um centro para a juventude, cruzamos com um grupo que ensaiava para o carnaval, num subúrbio do Rio de Janeiro. Todo mundo estava dançando na rua. Pedi que nosso carro parasse. Gosto de dança e de música. Começei a dançar. Um homem- que estava ali, no meio da rua- começou a dançar sem olhar para o meu rosto. Quando a música acabou, ele, quase ajoelhado, me olhou atentamente. Somente aí é que exclamou: Mas é Janet Leigh!…”
(Entrevista gravada em 1995. Janet Leigh morreu em 2004, aos 77 anos).

Posted by geneton at 12:15 PM

fevereiro 26, 2010

LÊDO IVO

UM IMORTAL DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS DISPARA SEUS PETARDOS: O CALOR E A PAISAGEM EXUBERANTE “ATRAPALHAM” O BRASIL. E MAIS: LITERATURA BRASILEIRA É “PAISAGÍSTICA, COSMÉTICA E DESESPIRITUALIZADA”

Um imortal da Academia Brasileira de Letras, o poeta e escritor Lêdo Ivo, lança farpas e “chuta o balde” em entrevista exibida no DOSSIÊ GLOBONEWS ( com reprise na segunda-feira, às três e meia da tarde). A entrevista foi gravada num ambiente solene : a sala de reuniões da Academia, no centro do Rio. Mas o escritor – de 86 anos – não se furtou a disparar seus petardos.

Lêdo Ivo defende uma tese original: diz que a exuberância da paisagem atrapalha o Brasil, porque faz com que o brasileiro viva voltado para fora, em detrimento da “vida interior”. O resultado se faz sentir na literatura brasileira:

“É claro que a exuberância da paisagem atrapalha. Veja o problema amazônico : a paisagem no Brasil sai pelo ladrão. Isso se reflete na literatura brasileira. É um literatura muito paisagística, muito cosmética. É raro, no Brasil, um escritor do tipo de Machado de Assis, um “tatu” literário, que sonda as almas. Uma das funções da literatura é o estudo da condição humana. Você não pode fazer uma literatura cosmética, só de fora. Você tem de dazer uma literatura “de dentro”. Isso falta ao Brasil! É um país que tem uma literatura muito desespiritualizada, uma literatura muito de superfície”

O escritor aponta outro “mal” brasileiro: o calor – que não favorece, em nada, a reflexão :

“O calor excessivo não ajuda a reflexão. Os escritores europeus produzem, em geral, nos meses de frio. Baudelaire anseia pelo frio para escrever seus poemas! Aqui no Brasil, o calor atrapalha muito”.

Lêdo Ivo pede passagem:

*”Não consigo passar da página três de nenhum livro de teoria literária, porque não sei em que língua são escritos”.

.”Um livro de três mil exemplares no Brasil já é um best-seller”

.”O sistema de de difusão cultural no Brasil mudou. Já não temos críticos literários. Quando surgi, havia críticos como Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins e Wilson Martins – que me reconheceram. Pude sair do anonimato e me tornar uma figura pública. Hoje, o “juiz literário” do poeta é o repórter do segundo caderno”.

*”Antes,vinha gente de Minas Gerais para ver Olavo Bilac passar na avenida. Hoje, ninguém vem nem de Nova Iguaçu para ver um de nós passar pela avenida Presidente Wilson!”

*”Noto que os jovens poetas não têm o senso da tradição literária. Não leram Dante, não leram Skakespeare. Não é culpa deles apenas. É culpa do sistema educacional ! As escolas começaram a privilegiar o presente, como se o Brasil tivesse começado na Semana de Arte Moderna !”.

*”Desde que, na ditadura militar, se substituiu o estudo da gramática pela chamada “comunicação e expressão”, as novas gerações começaram a falar muito mal. É uma linguagem padronizada – e, às vezes, de grunhidos…”

Lêdo Ivo chama de “babaca” um nome importante da literatura brasileira. A palavra “babaca” foi usada numa chamada levada ao ar pela Globonews. Resultado: o poeta foi informado de que já se fizeram até apostas para descobrir quem é o alvo do ataque. Amigos telefonaram para Lêdo Ivo perguntando se era verdade que o “babaca” seria Machado de Assis. Houve quem fizesse outro palpite ousado: o “babaca” seria Joaquim Nabuco. Ou Guimarães Rosa.

Não: o escritor chamado de “babaca” por Lêdo Ivo é Oswald de Andrade, um dos pais do Modernismo brasileiro. Por quê ? Ora, porque ele era “chato”, disse, sucintamente, o poeta.

Aqui, o vídeo da entrevista:

http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1509163-17665,00-ACADEMICO+LEDO+IVO+DIZ+QUE+A+PAISAGEM+EXUBERANTE+ATRAPALHA+O+BRASIL.

Posted by geneton at 12:24 PM

fevereiro 22, 2010

MOURA CAVALCANTI

DELÍRIOS NO PLANALTO CENTRAL DO BRASIL : O DIA EM QUE UM PRESIDENTE BRASILEIRO QUIS ANEXAR UM VIZINHO!

A crise institucional aberta pela renúncia do presidente Jânio Quadros terminou frustrando um plano que, se executado, ganharia, com certeza, um lugar de destaque numa antologia mundial dos desvarios politicos : o presidente queria anexar a Guiana Francesa ao território brasileiro, numa operação militar de surpresa – uma investida no estilo da frustrada anexação das Ilhas Malvinas pela Argentina, em 1982.
A invasão das Malvinas deflagrou uma guerra entre Inglaterra e Argentina. Qual teria sido a reação internacional a uma aventura expansionista brasileira na Guiana Francesa ? Jânio Quadros chegou a convocar, para uma audiência secreta em Brasília, o governador do Amapá, Moura Cavalcanti, um político que, anos depois, durante os governos militares, ocuparia o Ministério da Agricultura do general Garrastazu Medici e o governo de Pernambuco, por eleição indireta.

Moura Cavalcanti estava disposto a cumprir a surpreendente determinação do presidente : afinal, tinha sido nomeado para o cargo de governador do Amapá pelo próprio Jânio Quadros. Ordens sao ordens.

Alem de dar a ordem a Moura Cavalcanti, o presidente passou, diante do governador, uma mensagem por rádio para um comandante militar, com a orientacao textual :

-Estudar a possibilidade de anexar ao Brasil a Guiana Francesa – se possível,pacificamente.

‘’Eu me recordo dos termos com exatidão ‘’- disse-me Moura Cavalcanti, numa entrevista gravada no Recife. Já abalado por uma doença renal que o materia meses depois, Moura Cavalcanti descreve, com detalhes, a cena surrealista que presenciou em Brasília, como testemunha e personagem, num dia de 1961:

GMN – Que ordens o senhor recebeu do presidente Jânio Quadros, em Brasília, em relação à Guiana Francesa ?

Cavalcanti : ‘’Quando o presidente Jânio Quadros analisou o processo de venda de manganês para os países estrangeiros, me deu a seguinte ordem : ‘’Defenda os interesses nacionais acima de qualquer outra coisa. A propósito : eu acho que chegou a hora de resolver definitivamente isso. Por que não anexarmos a Guiana Francesa ao território brasileiro ?’’.

GMN – Que reação o senhor teve ao receber esta ordem ?

Cavalcanti : ‘’Uma reação violenta. Primeiro,o seguinte : não tinha estrutura para agir como um conquistador. Não tinha sonhado em conquistar terras, nas minhas andanças por Macaparana(N: terra natal do ex-governador,em Pernambuco). Quando muito, tinha pensado em aumentar o meu engenho…Andei de um lado para o outro;f iquei confuso, evidentemente.E Jânio Quadros me disse : ‘’Sente aqui !’’. Eu me sentei junto ao telex. E ele passou um telex a um militar que, me parece, era o chefe do Estado Maior das Forcas Armadas’’.

GMN – Que comentário Jânio Quadros fez sobre o plano ?

Cavalcanti : ‘’Jânio Quadros me disse : ‘’Um país que dominar do Prata ao Caribe falará para o mundo !’’. O presidente olhou o pequeno papel que tinha nas mãos, com a ordem. Olhou o mapa do Brasil, imenso, na parede. Balançou lentamente a cabeca, antes de dizer que um país que fosse do Prata ao Caribe seria respeitado e dominaria o mundo’’.

GMN – Por que é que esta ideia do presidente não se realizou ?

Cavalcanti : ‘’Porque Jânio Quadros renunciou dias depois. A conversa com Jânio ocorreu em agosto de 1961, às vesperas da renuncia’’.

GMN – Como é que seria feita,na prática, esta anexação ?

Cavalcanti : ‘’A anexação da Guiana Francesa começaria com uma visita de Jânio Quadros à Amazônia. Uma esquadra chegaria ao cais do porto, no Amapá’’’.

GMN – A principal motivo da anexação seria econômica ?

Cavalcanti : ‘’O presidente queria evitar a saída de minérios do território brasileiro. A saída de minérios era uma coisa incrível. Uma parte saía através da Guiana; outra através do nosso porto’’.

GMN – Que outra orientação ele deu ?

Cavalcanti : ‘’Janio falou muito sobre o disciplinamento do trânsito dos minérios’’.

GMN – O senhor estava disposto a cumprir a ordem do presidente ?

Cavalcanti : ‘’Eu estava disposto a cumprir o que ele desejava’’.

GMN – O projeto, então, só nao se realizou por causa da renúncia ?

Cavalcanti : ‘’A minha parte eu cumpriria ! (silêncio).Em um mês,eu criei uma Polícia Militar’’.

GMN – Como seria feita a anexação ? Através da abertura de uma picada na selva ?

Cavalcanti : ‘’Cabia a mim a abertura da picada, até Oiapoque. (N:onde havia uma base militar brasileira e uma base militar francesa). Vi a queda das castanheiras.Quando recebi a orientação do presidente, fui para a fronteira. Consegui, com uma base americana que ficava localizada no Caribe, um helicóptero.

Eu me lembro que um assessor me dizia : ‘’Se esse helicóptero cai na floresta amazônica, vai dar manchete ! Helicóptero cai e morre governador e secretário !’’.

GMN – Quando o presidente Jânio Quadros falou sobre a anexação da Guiana,só estavam no gabinete o senhor e ele ?

Cavalcanti : ‘’Só estávamos eu e ele- o presidente. Antes,ele não me disse que eu não levasse ninguém nem me pediu para que eu não falasse. Disse, apenas, que o assunto seria secreto’’.

GMN – Que outras pessoas souberam desta conversa,na época ?

Cavalcanti : ‘’Cordeiro de Farias ( n: marechal) soube; Golbery do Couto e Silva soube,José Aparecido de Oliveira, tenho a impressão, soube’’

GMN – O ministro das relações exteriores, Afonso Arinos, estava presente ?

Cavalcanti : ‘’A este encontro meu com o presidente, ele não estava presente. Mas, como ele dizia que os ministros eram ministros de verdade, Afonso Arinos deve ter sabido’’.

GMN – Como é que o senhor avalia este episódio hoje ? Que importância este plano teria para a história do país ?

Cavalcanti : ‘’Hoje, nós estamos diferentes’’.

GMN – Mas,na época, a anexação poderia ter acontecido ?

Cavalcanti : ‘’Poderia ! Poderia ter acontecido.E seria aceito pela França. A base francesa tinha um coronel que vivia bêbado. Era um batalhão de elite – que foi para dentro da selva. A gente via que eles tinham desejo que aquilo acontecesse. A anexação seria uma operação militar.Uma estação de rastreamento seria criada’’.

GMN – Depois que recebeu a notÍcia da renúncia do presidente, o senhor se sentiu aliviado diante da perspectiva da invasão da Guiana ?

Cavalcanti : ‘’Tive um sentimento de perda. Eu pensava que o caminho era aquele.Pode ser orgulho meu’’.

(Entrevista publicada originalmente no livro Dossiê Brasil)

Posted by geneton at 12:27 PM

fevereiro 17, 2010

RUBEM FONSECA

O DIA EM QUE PERSEGUI RUBEM FONSECA, O NOSSO J.D.SALINGER : O ESCRITOR QUE DETESTA REPÓRTERES

Uma idiossincrasia une o escritor brasileiro Rubem Fonseca ao americano J.D.Salinger : o horror a entrevistas.

Não são os únicos, é claro. A galeria das celebridades brasileiras que dedicam aos repórteres um silêncio de pedra inclui João Gilberto, Dalton Trevisan, entre outros.

Há casos de gente que, depois de décadas tratando os repórteres a golpes de silêncio, resolve abrir a guarda. É o que aconteceu com o Carlos Drummond de Andrade já octogenário.

Cumpri o meu papel de abelhudo: tratei de importuná-lo por telefone, já que ele, em situações normais, era alérgico a contato pessoal com repórter. A tática deu certo. Gravei uma extensa entrevista com o autodenominado Urso Polar. Tive o descaramento de fazer setenta e seis perguntas. O poeta respondeu a todas. Dezessete dias depois, estava morto. Sem querer, a entrevista virou um testamento.

A íntegra da entrevista foi publicada no livro “DOSSIÊ DRUMMOND” – que ganhou, não faz tempo, uma nova edição da Editora Globo.

Eu me arrisco a dizer que o DOSSIÊ é um bom começo para quem quer conhecer o maior poeta brasileiro. A falsa modéstia não me impede de dizer que Paulo Francis dedicou quase uma coluna inteira ao livro. Disse que aquela entrevista de Drummond foi a melhor que tinha lido.

Já tratei da entrevista telefônica aqui:

http://g1.globo.com/platb/geneton/2009/09/07/grande-poeta-e-pessimo-profeta-drummond-se-confessa-ao-telefone-sou-uma-pessoa-terrivelmente-corajosa-porque-nao-espero-nada-de-coisa-nenhuma/

Do alto de minha jaula de dinossauro, digo aos jovens repórteres: não se impressionem com quem vive dizendo que entrevista por telefone não funciona. É claro que se deve tentar o contato pessoal. Mas, quando o telefone é a única saída, por que não usá-lo desbragadamente ? Basta ter um equipamento que garanta uma gravação de boa qualidade. Se eu achasse que entrevista por telefone não funciona, não teria colhido o último grande depoimento de Carlos Drummond de Andrade.

Por falta de vocação para exercer tarefas realmente importantes, sou, desde a tenra idade de treze anos, um caçador de declarações alheias. Belo destino…

Tentei arrancar uma entrevista com Rubem Fonseca longe de casa, em Paris. A tarefa foi parcialmente bem-sucedida. Consegui gravar um depoimento em que ele falava na primeira pessoa.

(Vou fazer uma confissão inconfessável: tenho uma certa simpatia pelo mutismo de escritores e artistas que fogem de repórteres. Se eles querem que suas únicas declarações públicas sejam as obras que produzem, por que não ? Não há entrevista de Drummond que consiga reproduzir a beleza, a contundência e a tristeza de versos como os de “Consolo na Praia”, por exemplo. Tenho certeza de que seria impossível reproduzir em entrevista uma declaração tão definitiva sobre a postura diante da vida quanto a que ele fez nos versos belíssimos de “A Máquina do Mundo”).

Mas… entrevistas podem servir, claro, para lançar luzes sobre a personalidade de quem cria. Podem contribuir para agitar a pasmaceira ou provocar iluminações. É o suficiente. Eis, portanto, o outro lado da moeda: os que se fecham no mutismo perdem uma boa chance de ter um contato que pode ser, sim, produtivo com o leitor (ou ouvinte ou telespectador).

Fim das digressões.

Voilà minhas anotações sobre o escritor que, diante de um repórter, prefere ficar mudo:

Cena 1

Rio de Janeiro, 2005

Os detetives dos livros de Rubem Fonseca são espertíssimos. Notam tudo. Quem navegou deliciado pelas páginas de um livro como Bufo & Spalanzanni certamente se surpreendeu com a argúcia dos investigadores criados pela imaginação de Fonseca. Mas lamento informar que o próprio Rubem Fonseca não é tão atento : não notou que eu segui seus passos sorrateiramente pelas ruas do Leblon. Fonseca nem desconfiou. O criador não é tão arguto quanto suas criaturas.

Faz pouco tempo: Rubem Fonseca estava na fila do Supermercado Zona Sul, na rua General Artigas. Sozinho. Anônimo. Silencioso. Usava um boné, não para se proteger do sol – porque já eram sete da noite -, mas certamente para se resguardar da investida de algum leitor inconveniente ou, pior, algum repórter intruso, como eu. O horror, o horror, o horror.

Pensei: vou fazer uma foto de Rubem Fonseca, a “Greta Garbo das letras”, o homem que devota um consistente horror a repórteres e fotógrafos. O problema é que minha máquina – amadora – estava em casa. Resolvi acompanhar, à distância, a caminhada de Fonseca pelas ruas, na saída do supermercado. Quem sabe? Se ele passasse em frente ao meu apartamento, eu teria trinta segundos para correr, pegar a máquina lá dentro e voltar para a rua, a tempo de eternizar o flagrante num disquete.

Rubem Fonseca saiu do supermercado, entrou à direita na General Artigas, dobrou à esquerda na Ataulfo de Paiva e seguiu, anonimamente feliz sob a lua do Leblon. Guardei uma distância prudente: fiquei sempre a uns dez passos do homem, para não perdê-lo de vista. Não perdi.

Rubem parou diante de uma banca. Bela imagem: o homem célebre e solitário contemplava as manchetes dos jornais pendurados na banca como se fossem roupas num varal. Mas lamento informar que perdi a foto perfeita. Não deu tempo de ir buscar a máquina.

O homem sumiu de vista, entrou à direita na rua General Urquiza, caminhou em direção ao mar do Leblon. O repórter ficou a ver navios.

É tudo o que Rubem, o fugidio, sempre quis.

Cena 2

Londres, 1997

Quando cruza o Atlântico para falar a platéias estrangeiras, Rubem Fonseca se torna extraordinariamente falante, brincalhão, nada tímido. O Rubem Fonseca que enfrentou uma platéia de leitores – a maioria, brasileiros – num salão do Royal Festival Hall, às margens do rio Tâmisa, em Londres, em junho de 1997 – era o oposto da fera inacessível que ele parece ser.

O palco parecia a materialização de uma miragem: ao lado de Fonseca, outra celebridade arredia, o suposto tímido Chico Buarque de Hollanda, lia trechos do livro que acabara de lançar em terras inglesas.

Temeridade: quando foi concedida à platéia o direito de abordar as estrelas, perguntei o que é que Chico Buarque achava dos críticos que o consideravam um “intruso” entre os escritores. Rubem Fonseca tomou as dores. Não deve ter gostado da pergunta. (anotei: ele vestia um paletó marrom claro, sem gravata. A barba branca e grisalha e a cabeleira rala davam-lhe um ar de ancião). Tirou o charuto da boca e disparou :

- Quero dizer que Chico Buarque sempre foi um escritor – a vida inteira. E é um poeta. Noventa e nove por cento dos críticos elogiaram os livros de Chico. Somente um crítico o tratou como um ”outsider”. Somente um! Nós, escritores, consideramos Chico Buarque um escritor. Em nome de todos os escritores, quero dizer que temos orgulho de ter Chico Buarque entre nós !

Lá fora, os dois ofereceram autógrafos aos leitores. Quando chegou a minha vez, Rubem Fonseca me brindou com uma exclamação que soou algo irritada (“Qual é, oh cara?”). Depois, escreveu no meu exemplar do livro de Chico Buarque:

- Chico é um grande escritor. June,1997.

Guardei a relíquia.

Cena 3

Paris, 1987

Quase, quase, quase. Como diria Geraldo José de Almeida, o locutor da Copa de 70, “por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo”. Quase que consegui uma entrevista com Rubem Fonseca. De passagem por Paris, eu soube que ele iria participar de um debate sobre cultura brasileira num auditório do Centro de Cultura Georges Pompidou. Peguei o gravador.

Eis a fera diante de mim, num corredor que dá acesso ao auditório: de gravata, suéter vermelho, sobretudo azul. Faço formalmente, em nome do povo brasileiro, um pedido de entrevista (os repórteres passam a vida na ilusão de que estão falando em nome das multidões). Rubem Fonseca responde com um sorriso malicioso: “Sou tímido” – o que, obviamente, é mentira. Faço nova investida. “Nem sonhar” – ele decreta, para desconsolo do autor do pedido. Pousa a mão sobre meu ombro, faz uma concessão : “Por que é que você não escreve sobre o que ouviu?”. Parcialmente recompensado em minha teimosia, ligo o gravador assim que ele começa a falar.

De volta ao Brasil, transcrevo, vírgula por vírgula, as palavras da esfinge e encaminho tudo a Zuenir Ventura – grande amigo de Rubem. Dias depois, Zuenir me diz que Rubem Fonseca tomou um grande susto quando viu que o que tinha dito lá em Paris, a nove mil cento e quarenta quilômetros do Leblon, tinha rendido cento e quarenta linhas – um raríssimo depoimento de nossa Greta Garbo na primeira pessoa do singular.

Os principais trechos :

“Nasci em Juiz de Fora. Lá, aos dois meses de idade, eu tinha uma babá que me levava para passear de tarde. Mas, na verdade, ela ia ver o namorado, o lanterninha do cinema. Ela me sentava, ia namorar e eu via sessões atrás de sessões. Aos três anos, eu já tinha visto vinte mil horas de filme. Fui crescendo. E disse assim: “Quero fazer cinema!”. Eu deveria fazer cinema. Mas, quando eu tinha oito anos, me deram uma máquina de escrever. Fiquei com aquela máquina de escrever dentro de casa e querendo fazer cinema. Era difícil…”.

“As pessoas me dizem assim: “Ouvi dizer que você lê um livro por dia!”. É verdade. Mas vejo três filmes por dia! Vejo um filme atrás do outro”.

“Sou um cinéfilo que foi condenado a escrever. Uma vez, Arnaldo Jabor me disse: “Eu queria ser um romancista!”. E eu: “Vamos trocar? O que eu queria era ser cineasta!”.

“O que o bom diretor de cinema pretende é pensar de uma maneira criativa. Como romancista, sei que o romance cedeu o lugar como manifestação artístico-cultural de massa. Já se disse que Theodore Dreiser (romancista americano, autor de “Uma Tragédia Americana”) cedeu lugar nas salas de aula a George Pabst, o grande diretor. É ótimo, é interessante que aconteça. O problema é que, hoje, parece que as pessoas não têm paciência de ficar vendo um filme durante duas horas, sem que haja um intervalo comercial no meio. O Pabst foi substituído pelo anúncio do Creme Ponds! É uma coisa séria”.

“O problema principal – e o único que existe nessa coisa de o cinema substituir a literatura – é que a literatura tem mais significados. Do ponto de vista polissêmico, a literatura é superior ao cinema. Vou explicar. Cito um grande filme de um grande cineasta: São Bernardo – de Leon Hirzmann. Todos temos uma grande admiração por Leon Hirzmann, grande cineasta. Quandi vi São Bernardo, eu tinha uma idéia sobre o personagem principal, criado por Graciliano Ramos. Minha mulher tinha uma idéia sobre o personagem. Cada pessoa que tivesse lido o livro tinha uma idéia. Criava o personagem junto com Graciliano Ramos. Isso é a polissemia da literatura. Mas,no grande filme do grande Leon Hirzmann, o personagem era Othon Bastos. Se eu fosse ver o filme pela segunda vez, era Othon Bastos. Era sempre Othon Bastos! Da segunda vez que li São Bernardo, o personagem já era outro, no livro”.

“Há uma crença de que fazer um roteiro de cinema é mais fácil do que fazer um romance. Não é absolutamente verdade. É fácil fazer um mau roteiro de cinema. Você pode fazer um roteiro com facilidade. Mas fazer um bom roteiro de cinema é tão difícil quanto escrever um bom romance”.

“Um dia, depois de ter escrito alguns livros e ter visto mais cinema, fui fazer uma tradução de um livro de Joseph Conrad chamado “The Nigger of Narcissus”. Há, no prefácio, uma frase que não consegui esquecer: “My task is to make you hear. My task is to make you feel. And, above all, to make you see. That`s all. And everything”. Minha tarefa é fazer você ouvir. Minha tarefa é fazer você sentir. E,acima de tudo,fazer você ver. Isto é tudo. E é muito”.

Posted by geneton at 12:27 PM

fevereiro 05, 2010

CHRISTOPHER KENNEDY LAWFORD

UM KENNEDY LEVANTA A VOZ PARA PEDIR O FIM DO EMBARGO AMERICANO CONTRA CUBA

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Com o tio, John Kennedy : infância em "berço de ouro"
A atribulada biografia de um Kennedy : entrevista exclusiva será reexibida neste domingo ao meio-dia e meia, com nova reprise na segunda, às 3 e meia da tarde,no DOSSIÊ GLOBONEWS.

Você é um Kennedy. O pai, Peter Lawford, é ator em Hollywood. Você se acostuma a conviver, em casa, com gente como Marylin Monroe e Frank Sinatra. Elizabeth Taylor leva você para tomar banho de piscina. Um tio, JFK,é presidente dos Estados Unidos. A tia é a mulher mais famosa do mundo: Jaqueline Kennedy. Outro tio, Robert Kennedy, é senador. Aos olhos dos outros mortais, são supercelebridades. Para você, não: são apenas parentes, amigos, visitas.

O que é que o futuro reserva para você ? Fama, poder e fortuna, é óbvio – diria uma cigana esperta, sem fazer o menor esforço. Não há como dar errado. Se quiser, você pode fazer carreira política: basta brandir o sobrenome célebre numa campanha eleitoral. Se prefrir, pode brilhar nas telas de cinema. O pai se encarregará de fazer todos os contatos necessários para que as portas se abram.

Mas, não. A “vida real” é capaz de desfazer o que as cartas das ciganas dizem. Roteiros previsíveis raramente se confirmam.

Primeiro, você recebe a notícia de que tio célebre – John - foi abatido a tiros numa praça em Dallas, ao meio-dia e meia do dia 22 de de novembro de 1963. Depois, já adolescente, você lê no jornal que o “tio Bob”, o senador Robert Kennedy, tinha sido atingido pelos tiros de um imigrante jordaniano num hotel em Los Angeles, n0 momento em que comemorava uma vitória nas eleições primárias para escolha do candidato do Partido Democrata a presidente dos Estados Unidos, nas eleições de 1968. Você pensa: “Ah, de novo, não”. O pai, viciado em bebida, tinha saído de casa.

Três meses depois do assassinato de Robert Kennedy , você começa a usar drogas. Tinha virado um adolescente “revoltado e assustado”.

O resultado: em pouco tempo, você usa drogas pesadas. Vai ao fundo do poço: chega a pedir dinheiro a transeuntes, numa estação ferroviária, em Nova York, para comprar droga. Ninguém seria capaz de imaginar que ali estava alguém com o sobrenome Kennedy.

Você termina pegando Hepatite C. Nem sabe dizer como: deve ter sido através de uma seringa contaminada. Consegue se livrar do vício. Hoje, é pai de três filhos. Viaja pelo mundo fazendo campanha de esclarecimento sobre a doença. Dá esperança aos portadores. São milhões.

Como você é um Kennedy, não deixa de tratar de política, é claro. Não poderia. Resolve, então, erguer uma bandeira surpreendente : diz que os Estados Unidos devem suspender, já, o embargo comercial imposto a Cuba, um castigo que já dura meio século. O embargo, você diz, é ineficiente. Pode ter tido alguma utilidade política um dia. Hoje, só serve para mostrar que os dois grandes partidos americanos, o Democrata e o Republicano, viraram reféns de uma tropa de exilados cubanos que perderam tudo na Revolução Cubana. Num gesto que, em outros tempos, seria inimaginável, você desembarca em Cuba para um encontro logo com quem: com Fidel Castro, em pessoa, o homem que um dia seus tios tentaram,em vão, desalojar do poder.

Você é afirmativo: diz que os Estados Unidos devem suspender o embargo a Cuba “amanhã” . Motivo: enquanto durar o embargo, o próprio governo de Cuba terá uma bela chance de demonizar os EUA e usá-lo como desculpa para seus próprios erros. O embargo comercial não é bom nem para o povo cubano nem para o povo americano. Chegou a hora de suspendê-lo – é o que você diz, numa extensa entrevista que gravou para o DOSSIÊ GLOBONEWS.

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Um Kennedy pede o fim do embargo contra Cuba : chegou a hora

Você fala com a desenvoltura e a simpatia de um Kennedy em campanha. É bem articulado. De vez em quando, solta uma frase bem-humorada para pontuar uma observação. Pergunto: por que diabos você não segue a carreira política ? O sobrenome Kennedy ainda pesa: já seria meio caminho andado. Você diz que não, não pensa em se candidatar. Chegou à conclusão de que mudar “qualquer coisa” nos EUA é uma tarefa extremamente difícil. Ao contrário do “tio Ted”, capaz de conviver e argumentar exaustivamente com quem lhe fazia oposição, você diz que não teria paciência para tanta negociação ( o “tio Ted” é o senador Edward Kennedy – a quem você se refere com a reverência quase filial). Mas, para não fugir do figurino clássico dos candidatos a político, você deixa no ar a possibilidade de um dia tentar a carreira política.

É assim. Quase nada acontece de acordo com o figurino que os ingênuos imaginam.

Você se chama Christopher Kennedy Lawford. Assim que acaba a gravação para o DOSSIÊ GLOBONEWS, você diz que gostaria de receber,depois, uma cópia da entrevista editada. Oferece um exemplar autografado do livro que publicou sobre a batalha contra a hepatite. A caminho do elevador, faz uma confidência: diz que de vez em quando fica espantado com o nível de desinformação de repórteres americanos que o procuram.

Uma cena inesquecível: criança, ele viu a mulher “mais famosa do mundo” sem roupa. Era Jacqueline Kennedy

Você vem de uma família que vive sob os holofotes da imprensa. Sempre foi assim. Os Kennedy já foram chamados de “a família real americana”. Não por acaso, a chamada “imprensa sensacionalista” não perde uma chance de falar de um Kennedy, especialmente os que, como você, já se envolveram em “escândalos” , como o vício em drogas, por exemplo. Você diz que não lê jornais sensacionalistas nem vê programas de fofocas na TV. Torce para que o público um dia fique entediado com a fofocagem sobre as celebridades. Fica assustado quando vê que casais famosos negociam a venda de fotos de filhos recém-nascidos. Se alguém, em décadas passadas, dissesse que fotos de bebês seriam vendidas por milhões, seria chamado de louco, diz você, com ar ligeiramente desolado.

Em um livro autobiográfico que lançou nos Estados Unidos, mas que não chegou ao Brasil, você cita uma cena marcante : o dia em que, sem querer, via a tia famosa, Jacqueline Kennedy, nua:

“Uma noite, enquanto meu primo John dormia, procurei por minha tia Jackie para saber se eu poderia telefonar para casa. Chamei-a, mas não obtive resposta.Fui ao quarto, ouvi o barulho de chuveiro ligado no banheiro. Aproximei-me da porta,para ver se ela estava lá. A porta estava entreaberta. Pude ver que ela estava se preparando para tomar banho e fazendo seus exercícios diários. Fiquei na porta, hipnotizado. Era a primeira vez que eu via uma mulher daquela maneira. Eu tinha dez anos de idade. Estava tendo uma experiência que provavelmente todo homem termina tendo. Mas a mulher que eu estava vendo ali era possivelmente a mais famosa do planeta. Vê-la daquela jeito transformou-me: deixei de ser o garoto que eu era para me tornar algo mais. Passei a ser o dono de um segredo sobre a mais reclusa das mulheres – minha tia Jackie”.

Posted by geneton at 12:51 PM

janeiro 29, 2010

PETE BEST

QUEM É “O HOMEM MAIS AZARADO DA HISTÓRIA DA MÚSICA” ? RESPOSTA : PETE BEST, O PRIMEIRO BATERISTA DOS BEATLES

A Globonews exibiu, DOSSIÊ GLOBONEWS, uma entrevista exclusiva com o “homem mais azarado da história da música” : Pete Best, o ex-baterista dos Beatles. http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1470456-17665,00-EXBEATLE+PETE+BEST+REVELA+HISTORIAS+DE+BASTIDORES+DA+BANDA.html

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John Lennon, George Harrison, Paul McCartney e Pete Best: The Beatles!

Quem deu o telefonema foi Paul McCartney. Os Beatles iriam viajar para uma série de apresentações em clubes noturnos de Hamburgo, na Alemanha. Pete Best gostaria de fazer parte do grupo como baterista ? A resposta: sim.

Paul McCartney era, à época, um músico (quase) anônimo de Liverpool. Pete Best, idem. Os Beatles ensaiavam seus primeiros passos. John Lennon e George Harrison já faziam parte do grupo. Nem de longe imaginavam que iriam se tornar ícones da cultura pop do Século XX.

O resto,como se diz, é história. De agosto de 1960 a agosto de 1962, Pete Best foi um Beatle. Era o baterista do grupo. Terminou dispensado sem maiores explicações. Quem deu a ele a má notícia foi o empresário Brian Epstein. Os ex-companheiros de banda preferiram escapar do constrangimento. A demissão de Pete Best se tornou um dos “mistérios” da música pop. Nunca apareceu uma explicação convincente.

Pouco tempos depois de sair do grupo, Pete Best viu os Beatles se tornarem sucesso mundial. Terminou tentando o suicídio, “sem razão”, como diz. Mas qualquer psicólogo amador seria capaz de apontar o motivo: o enorme sentimento de perda. Não por acaso, Pete Best chegou a ser apontado como o homem mais azarado da história da música,por ter saído dos Beatles às vésperas da consagração do grupo como a maior banda já surgida na música pop.

Quase meio século depois de ter recebido o telefonema de Paul McCartney, eis Pete Best diante do locutor-que-vos-fala, para gravação de uma entrevista. Hoje, comanda a Pete Best Band. Faz excursões pelo mundo. Em qualquer parte, haverá sempre um punhado de beatlemaníacos em busca de uma foto ou um autógrafo de um ex-beatle.

Ter saído dos Beatles significa, para Pete Best, o que a derrota para o Uruguai significou para os jogadores da seleção brasileira de 1950: uma marca para o resto da vida. Todo e qualquer contato com Pete Best termina, inevitavelmente, enveredando pelo agosto aziago de 1962: ali, ele perdeu o prêmio grande da loteria. Não há como não tocar no assunto.

Tive a curiosidade de tentar descobrir como é que o personagem de uma perda desta magnitude convive com o (inevitável e imorredouro) sentimento de frustração. Logo no início da entrevista ( a terceira que fiz com ele – de 1985 para cá ), constato que Pete Best construiu uma explicação duradoura para compensar a frustração : em vez de cair na lamentação pura e simples, diz que, independentemente do que pode ter acontecido, ele é, para todo o sempre, parte da história da “maior banda” de todos os tempos. Para ele, é o que conta. É verdade. Ponto final.

Pete Best é um grande personagem jornalístico. Porque a história dos perdedores pode ser – e é – tão fascinante quanto a dos vitoriosos.

Tive a chance de entrevistar, na segunda metade dos anos oitenta, os onze jogadores que perderam a final da Copa do Mundo de 1950 para o Uruguai, no Maracanã, na maior tragédia da história do nosso futebol. Os onze perderam,igualmente, a chance de conhecer a glória, a fama, a fortuna. Eram onze Pete Best . A exemplo de Pete Best, os menos amargos trataram de construir, também, um belo consolo: diziam que, para eles, o que importava era que a Seleção de 1950 foi a primeira a conquistar um título de importância para o futebol brasileiro – o vice-campeonato mundial de futebol. Um dia, seriam reconhecidos. Se passassem o resto da vida lamentando o gol de Ghiggia, enlouqueceriam.

Pete Best foi ao “fundo poço”. Fechou a porta e abriu o gás, em casa, em meados dos anos sessenta, mas foi salvo pela mãe. A cada vez que alguém fala do dia em que saiu dos Beatles, ele trata de se defender, com uma explicação que parece convincente.

Como se fosse um desses gurus de autoajuda, ele nos diz que o importante não é exatamente o que aconteceu, mas a maneira como cada um escolhe olhar o passado, este velho monstro inapagável.

A lição de Pete Best pode ser útil, utilíssima.

Feita esta constatação, declaro solenemente encerrada minha carreira de pseudo-conselheiro.

Posted by geneton at 12:51 PM

janeiro 26, 2010

GENERAL ERNESTO GEISEL

O DIA EM QUE O BLOGUEIRO GRAMPEOU O GENERAL ERNESTO GEISEL, NA BUSCA (FRACASSADA) POR UMA ENTREVISTA

Crianças, favor prestar atenção : quem nasceu ontem talvez nem saiba, mas 2010 marca os vinte e cinco anos do fim do regime militar. O último general a governar o país deixou o Palácio do Planalto em 1985. Chamava-se João Figueiredo. O penúltimo presidente do ciclo dos generais chamava-se Ernesto Geisel.

Pausa para um relato da perseguição particular que movi em busca de uma mísera frase do general:

Confesso o fracasso: o máximo que consegui arrancar do general Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979), no primeiro e fugidio contato que tive com ele, foi uma declaração de duas palavras. É impossível escrever uma entrevista decente com uma declaração de apenas seis letras. Frustração. Meu plano dera errado. Ernesto Geisel passara a um metro de onde eu estava, no canteiro de obras da Barragem de Carpina, na zona da mata de Pernambuco, no dia 20 de agosto de 1976.

O general-presidente chegaria de Brasília às nove e meia da manhã, pegaria um helicóptero no aeroporto militar para inspecionar a construção da barragem no interior do Estado e retornaria imediatamente ao Recife, para participar daquelas solenidades chatas de “assinatura de convênios” no Palácio do Governo.

Por uma questão de logística, a maior parte dos repórteres ficou no Recife, à espera de que o general voltasse da rápida peregrinação ao canteiro de obras, no interior. Os compromissos mais importantes da agenda estavam previstos para a capital.

Cheguei ao canteiro de obras logo cedo, no início da manhã, docemente embalado pela ilusão de que poderia, quem sabe, arrancar uma mísera frase de um presidente que não queria conversa com jornalista.

Devidamente credenciado, desembarquei no canteiro como repórter da sucursal Nordeste do jornal O Estado de S.Paulo. O terreno estava quase livre de concorrentes. Se o general me concedesse a graça de uma declaração, eu sairia dali com uma manchete exclusiva no meu gravador. Tudo o que o homem dizia era notícia: cada palavra que o general pronunciava valia ouro no mercado jornalístico.

A chance de abordar o Grande Mudo da República estava ali, ao alcance da mão. Era só partir para o ataque e correr para o abraço. Ilusão. O general passa por nós com aquele porte imperial que o marcava. O estrabismo de Ernesto Geisel causava uma sensação incômoda a quem o encarava: não se sabia exatamente para quem ele estava olhando.

O general me encara ao passar pelo pequeno grupo de repórteres presentes. Tento dirigir-lhe a palavra. Em vão. O quarto dos generais- presidentes do regime militar pronuncia, então, a única frase dirigida a um jornalista naquela manhã. As seis letras fatais: “Bom-dia”. Sem dar tempo a qualquer réplica, segue em frente. Fracasso, fracasso, fracasso.

O Brasil vivia um tempo em que os repórteres tentavam decifrar, nas feições dos generais, uma pista sobre o que eles estavam pensando. A escassez de declarações era tanta que até aquele lacônico “bom-dia” do general aos repórteres acabou publicado nos jornais – foi o que O Globo fez, ao noticiar, na edição de 21 de agosto de 1976, a passagem do general Geisel pelo canteiro de obras da barragem.

O GENERAL GEISEL ATENDE À LIGAÇÃO.
DO OUTRO LADO DA LINHA, GRAMPEIO O TELEFONEMA. MAS A TENTATIVA DE ENTREVISTA FRACASSA
Tempos depois, voltei a caçá-lo, quando ele já era ex-presidente. Em companhia do cinegrafista, fico de plantão, numa manhã de 1991, na entrada do estacionamento do prédio em que o general dava expediente como presidente da Norquisa, empresa da área de química fina, na praia de Botafogo, no Rio.
Lá vem o carro. Os vidros estão levantados. Dá para distinguir, no banco dianteiro, a silhueta inconfundível do ex-presidente. Aponto o microfone para o vidro. Geisel desconhece olimpicamente a abordagem. Nem se dá ao trabalho de ouvir o repórter.

Próximo lance: corremos para a entrada do elevador, no saguão do prédio, para nova tentativa. Geisel se aproxima, em companhia da filha. Os dois estão de braços dados. O general caminha com um pouco de dificuldade. Eu e o cinegrafista Edison Santos nos aproximamos, mas somos providencialmente barrados por um segurança. Geisel pega o elevador. Dessa vez, nem bom-dia.
Não entregamos os pontos. A entrevista é a última que morre. O equipamento, (câmera e luzes) fica retido na portaria, mas sou autorizado a subir até a sede da Norquisa, para me explicar com a secretária do ex-presidente. Nada feito. A secretária diz que o general não ficara à vontade nem quando foi chamado a posar para fotos de uma publicação interna da empresa.
Se o general erguia um muro invisível em torno de si para rechaçar contatos pessoais, quem sabe se pelo telefone ele não baixaria a guarda? Consigo o número do telefone da casa do general, num sítio em Teresópolis.

Obviamente, o empregado que atende não passa a ligação para o ex-presidente. Faço novas tentativas. Um dia, eis que ele, o Grande Mudo, atende a ligação. Assim que o general diz “alô”, começo a gravar o telefonema. Faço um “grampo” preventivo: dali poderia sair uma boa declaração.

Surpreendentemente afável para quem tinha fama de inacessível, Ernesto Geisel explica por que não daria entrevista. Recorro a um argumento que pode dar resultado: uma entrevista poderia, quem sabe, dar origem a um livro sobre o governo Geisel.

Guardo a fita do “grampo” em meus arquivos implacáveis. Assim o general reagia, quando ouvia um pedido formal de entrevista:

(…) Olhe aqui: por enquanto, não dou entrevista. Não dou nada sobre o meu governo. Quanto às coisas do meu governo, estou me reservando para escrever umas memórias. Você pode entrevistar os ministros. Procure os ministros. Você tem o ministro Reis Velloso, o Simonsen, o Nascimento Silva, o Silveira – das Relações Exteriores… Todos estão aí.

É indispensável ter pelo menos um depoimento curto do senhor…

Eu sei, mas olhe aqui: vários jornalistas, amigos meus, inclusive, querem entrevista. Sempre digo a eles que não. Digo: “Quando der alguma coisa, darei em primeiro lugar a vocês, que são meus amigos”. Mas tenho recusado sistematicamente. Que você queira escrever um livro, muito bem! Se você quiser me mostrar depois o que você escreveu para eventualmente eu apontar coisas que precisam ser retificadas, estarei pronto a fazê-lo. Isso você pode fazer. Terei muito prazer em colaborar no sentido de mostrar coisas que, talvez, não estejam muito certas ou estejam diferentes. Mas eu responder a questionário e dar entrevista… Não dou. Não é pelo fato de ser você. É como uma regra, como conduta minha.

Uma pergunta: o senhor já vem escrevendo um livro?

Estou escrevendo algumas coisas.

Já tem idéia de quando termina?

Ah, não… essas coisas a gente vai fazendo muito devagar…

O senhor concorda que há um grande interesse de todo mundo sobre aquela época…

Não. Não, não creio, não. Agora há outros problemas…

Fico na esperança de que o senhor mude de idéia um dia…

Faça isto: procure os ministros, fale com eles. Depois, se quiser, mostre um projeto de livro. Poderei retificar, se for o caso. Possivelmente não haverá nada para retificar. Mas, se houver alguma coisa, estarei pronto para colaborar dessa maneira. Mas não para responder questionário ou dar entrevista propriamente. Não quero fugir da linha de conduta que tenho adotado.

E se a gente fizer uma gravação…

Não, não, não, não. Porque aí fico mal com os outros, que são meus amigos, aos quais sempre recusei.

Termina a abordagem telefônica. Ouço o rumor da torcida imaginária bradando um “uh…”, aquele som intraduzível que as arquibancadas produzem quando a bola bate na trave. Quase, quase. Como diria o locutor da Copa do Mundo de 1970, “por pouco, pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo…”
Um gesto de Geisel dá a medida da extrema reserva que ele impunha a si mesmo nos contatos com repórteres: entre 1984 e 1986, o ex-presidente teve cerca de 20 conversas gravadas com o jornalista Elio Gaspari. Eram amigos há anos. Gaspari conversava com o general, mas ia para casa de mãos vazias: Geisel ficava com as fitas.

Somente depois da morte de Geisel as gravações foram entregues ao jornalista pela filha do general, Amália Lucy. As 12 fitas, cada uma com 90 minutos, foram fundamentais para Gaspari traçar o perfil definitivo do ex-presidente, no livro A Ditadura Derrotada – O Sacerdote e o Feiticeiro, lançado pela Companhia das Letras em 2003.

Procurei, então, os ex-auxiliares diretos do presidente Geisel. Gravei depoimentos dos ex-ministros Azeredo da Silveira (Relações Exteriores), João Paulo dos Reis Velloso (Planejamento) e Armando Falcão (Justiça). Os três descreveram cenas dos bastidores do governo Geisel para o livro que jamais escrevi. Uma sucessão de desencontros empurraria para o mausoléu dos projetos irrealizados a entrevista exclusiva com o general.

Pergunta-se: o ex-presidente disse que tinha escrito “algumas coisas”. Onde foram parar estes rascunhos de memórias ?

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Com um gravador-tijolo nas mãos, o blogueiro espreita o general-presidente: única declaração que ele deu foi um "bom dia"

Posted by geneton at 12:55 PM

janeiro 21, 2010

FERREIRA GULLAR

O POETA BRASILEIRO SE PERGUNTA, DIANTE DO PALÁCIO DE LA MONEDA: “CADÊ O DRAMA HUMANO ? FALTA O FOGO, A LUTA POR UM MUNDO MELHOR!” (NUM POEMA, ELE JÁ TINHA PERGUNTADO:”ONDE ESCONDESTE O VERDE CLARÃO DOS DIAS?"

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Quem avisa amigo é : a Globonews exibiu, no DOSSIÊ GLOBONEWS , um belo e sincero depoimento do poeta Ferreira Gullar sobre duas experiências marcantes que viveu no Chile. ( aqui: http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1460870-17665-337,00.html )

Em resumo: um poeta brasileiro – que também era militante político – desembarca no Chile, no início dos anos setenta, para viver uma experiência que tinha tudo para ser historicamente fascinante: pela primeira vez, o país era governado por um presidente socialista que chegara ao poder pelo voto direto. Exilados brasileiros apostavam que uma primavera estava nascendo ao pé da Cordilheira dos Andes. O Eldorado dos militantes políticos ganhava um novo nome : Santiago do Chile.

O poeta era Ferreira Gullar. O presidente era Salvador Allende. A experiência terminou em tragédia: as Forças Armadas bombardearam o Palácio de La Moneda no dia 11 de Setembro de 1973. Allende saiu do Palácio sem vida ( há controvérsias sobre se teria cometido suicídio ou se teria sido morto, o que não faz tanta diferença). A Junta Militar, comandada pelo general Augusto Pinochet, instalou uma ditadura que, como se sabe, não brincou em serviço. Há relatos de cenas tétricas: helicópteros pousavam no gramado do Estádio Nacional para recolher presos que, em seguida, desapareciam. Nem sempre se sabia para onde eram levados. Pelo menos cinco exilados brasileiros estão até hoje desaparecidos.

O Chile acaba de eleger um empresário bilionário – Sebastián Piñera – para a presidência da República. O homem faz fortuna com a implantação de cartões de crédito no país. Nestes últimos anos, a economia do Chile foi frequentemente apontada como “a mais próspera da América do Sul”.

Traumatizado pela experiência que viveu no país, Ferreira Gullar passou décadas sem voltar ao Chile. Quando finalmente voltou, teve sentimentos “contraditórios”. Nesta expedição de volta ao cenário das turbulências que testemunhou no início dos anos setenta, o poeta Ferreira Gullar contemplou, por exemplo, a fachada do Palácio de La Moneda. Pegou um táxi para visitar a rua onde vivera.

Descobriu que a paisagem é absolutamente indiferente ao que a gente sente. As cidades, diz ele, são feitas de “pedra”. Não se contaminam com as lembranças, dramas, aventuras, alegrias, tragédias e vitórias de cada um. A memória é algo pessoal e intransferível – que cada um carrega dentro de si, até o dia do apagão final. Fora deste território feito de lembranças, o que há é a paisagem, com seus palácios, edifícios, ruas, becos e avenidas, gloriosamente indiferentes aos nossos espantos.

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Um trecho da entrevista que Ferreira Gullar nos concedeu para o DOSSIÊ GLOBONEWS:

“Estava lá o mesmo palácio onde Salvador Allende foi assassinado e diante do qual fiquei tantas vezes em manifestações políticas. Não havia mais nada. Era aquele silêncio. Eu, então, senti saudade daqueles tempos. Agora, tudo está tranquilo, mas falta o fogo, a luta pelo mundo melhor e pela transformação! A gente nunca está contente”.

“De repente, estou de novo diante daquele prédio – e não ficou nada do que aconteceu lá. O porteiro que me recebe não sabe quem sou nem sabe que morei ali. A escada é a mesma, os degraus são os mesmos. Mas não têm nenhuma marca de mim ou do que aconteceu. Da mesma maneira que diante do La Moneda, falei assim: mas cadê aquelas coisas que aconteceram aqui ? Cadê a tragédia ? Cadê o drama humano ? Apagou tudo! Por um lado, tudo bem: o Chile agora é muito mais feliz do que naquele momento. Mas é uma coisa contraditória. Porque a gente vê que nós, na verdade, é que carregamos as coisas conosco”.

“Fui ao prédio onde morei, na avenida Providência. Era diferente. Não reconheci. A sensação que dá é essa: as paredes, as ruas não guardam nada da gente. É como se nada tivesse acontecido ! Está tudo em minha cabeça. É tudo memória minha. As paredes, os prédios, as ruas são indiferentes ao que a gente faz, ao que a gente pensou, sofreu e chorou. Tudo se apaga”.

Ferreira Gullar é um poetaço. Vai fazer oitenta anos em setembro.

Um trecho do belo “A Vida Bate” :

“Alguns viajam:

vão a Nova York,

a Santiago do Chile.

Outros ficam

mesmo na Rua da Alfândega,

detrás de balcões e de guichês.

Vista do alto,

com seus bairros e ruas e avenidas,

a cidade é o refúgio do homem,

pertence a todos e a ninguém.

São pessoas que passam sem falar

e estão cheias de vozes

e ruínas.

És Antônio ?

És Francisco ?

És Mariana ?

Onde escondeste o verde

clarão dos dias?

E passamos

carregados de flores sufocadas.

Mas, dentro, no coração,

eu sei,

a vida bate.

Subterraneamente,

a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,

sob as penas da lei,

em teu pulso,

a vida bate.

E é essa clandestina esperança

misturada ao sal do mar

que me sustenta

esta tarde

debruçado à janela de meu quarto em Ipanema

na América Latina”

Posted by geneton at 01:04 PM

janeiro 18, 2010

PAULO FRANCIS

SE SOUBESSE FALAR, O BEBÊ PAULO FRANCIS TERIA PERGUNTADO, NA MATERNIDADE : “POR QUE NÃO ME CONSULTARAM SE EU QUERIA VIR PARA ESTA JOÇA?”

A LEMBRANÇA:

Quando Paulo Francis entrou na redação do Fantástico, para uma “visita de cortesia”, produziu em torno si uma onda de silêncio que misturava curiosidade e reverência. O homem era uma estrela. Mas, “humildemente”, veio agradecer o destaque o programa tinha dado, na véspera, à entrevista que fiz com ele.

Ok : desde já, quero confessar ao distinto júri que sei do risco que corro ao usar a expressão “humildemente” num parágrafo que trata de Paulo Francis. As duas entidades, graças a Deus, eram incompatíveis: Francis e a humildade. Uma não se misturava com a outra. Eram como água e óleo.

A referência a um lampejo de humildade em Francis deve produzir frouxos de riso em quem teve o privilégio de conhecê-lo. Mas, em nome da verdade factual, devo dizer que, sim, ao visitar a redação do Fantástico Francis teve um gesto de humildade. Ou seria gentileza ? Cravo nas duas alternativas. A imagem pública de “lobo hidrófobo” não combinava com o Paulo Francis no trato pessoal: um gentleman.

Paulo Francis tinha acabado de lançar um excelente livro memorialístico sobre o golpe de 1964, “Trinta Anos Esta Noite”. Eu tinha gravado uma longa entrevista com ele numa praça escondida nas proximidades do Jardim Botânico. Procurávamos um lugar razoavelmente silencioso para a gravação. O sucesso da busca foi parcial: crianças brincavam nas redondezas. As babás ficaram indiferentes à presença de Francis, mas pelo menos trataram de vigiar os passos de fedelhos que brincavam na praça ( um trecho da entrevista foi usado no recém-lançado filme de Nélson Hoineff sobre Francis. Lá pelas tantas, o “lobo hidrófobo” cita meu nome. Eu tinha pedido a ele que fizesse uma pequena caminhada, porque precisávamos gravar imagens para ilustrar a matéria. Francis ergueu a cabeça, encarou o céu, me chamou e fez piada debochando da pose de intelectuais pomposos).

Três anos depois, um ataque cardíaco fulminante matou o mais polêmico,o mais lido e o mais provocativo jornalista brasileiro, na manhã do dia quatro de fevereiro de 1997, em Nova York. A morte : lástima, lástima, lástima. Francis estaria em pleníssima atividade, aos oitenta anos de idade, se tivesse chegado a este 2010. Lástima, lástima, lástima. Dizer que “Paulo Francis faz falta” virou um enorme lugar-comum. Mas é uma verdade puríssima: o texto de Francis faz uma falta imensa ao jornalismo brasileiro.


Uma vez, ele escreveu: “Nossa imprensa: previsível, empolada, chata: como é chata, meu Deus…”. Em cem por cento dos casos, o que Francis escrevia escapava da chatice generalizada. Vivia reclamando de que era preciso criar no Brasil uma tradição: a de uma “prosa clara e instruída”. É o que há em outras culturas: a tradição de uma prosa clara e instruída, uma atividade que, no Brasil, tinha poucos cultores. Aqui, pensam que escrever difícil é escrever bem. Ledíssimo engano.

A contribuição que Paulo Francis deu para a criação de uma prosa jornalística “clara e instruída” ainda não foi devidamente avaliada. Onde é que estão os acadêmicos – que não tratam de demonstrar “cientificamente” esta herança ? É uma tarefa facílima. Ninguém precisava concordar com uma vírgula do que ele dizia. O importante é como ele dizia.

Livros como “O Afeto Que se Encerra” e “Trinta Anos Esta Noite” deveriam ser leitura obrigatória nas escolas de jornalismo – pela clareza cristalina, pela fluência absoluta, pelo ritmo agradabilíssimo do texto. É o que vale. Os dois foram relançados faz algum tempo. O que é que vocês estão esperando antes de devorá-los ? ( Uma vez, perguntei a ele como é que ele – que, quando criança, alegadamente exibia um ar de cão hidrófobo – se definiria na maturidade. Francis respondeu: “Que tal lobo hidrófobo” ? )

A PROMESSA:
Conhecer gente famosa é uma desgraça. Conviver com um ídolo é pior ainda.
Por dois motivos. Primeiro: por medo de falar uma grande tolice diante do guru, a gente se cobre de constrangimento quando conversa com ele. O encontro pode ser o mais banal, o mais trivial possível. Mas a gente termina medindo cada frase.

Fiz o cúmulo: cheguei a me refugiar uma vez numa sala lateral de uma redação, para não envenenar à toa a convivência com o guru. Mas ele, esperto, foi até o meu esconderijo: “Você se escondendo!!!”. Retribuí a gentileza com um riso amarelo.

Segundo motivo por que conhecer gente famosa é uma desgraça: a gente fica se policiando para não cometer, diante de amigos, estranhos ou desconhecidos, o pecado horroroso do “name-dropping” (a mania de ficar citando nomes célebres no meio de uma frase, para dar a ilusão de importância….).

Os dois motivos me impediram de escrever um texto na primeira pessoa sobre dez anos de contatos pessoais e profissionais, em redações no Rio, em Londres e em Nova York, com o meu ídolo, Paulo Francis. Fiz pelo menos três gravações com ele. As anotações sobre esta convivência estão feitas. Falta organizá-las.

Feitas as contas, resolvi quebrar o constrangimento. Não posso deixar que o medo do “name-dropping” me condene a guardar na gaveta as cenas que testemunhei ou as frases que ouvi. Como diria o ex-ministro, “às favas os escrúpulos….”. Pretendo, em breve, produzir um documento sobre Paulo Francis, a estrela máxima do jornalismo brasileiro das últimas décadas. É a única coisa de útil que um jornalista pode fazer: dividir com os outros a memória do que viu e ouviu. O resto é empulhação – ou perda de tempo, este recurso natural não renovável.

Quando o assunto é Paulo Francis, considero-me um grande devedor. Os maiores elogios que recebi na vida foram feitos por ele, repetidas vezes, na coluna Diário da Corte. Quem não gosta de ser elogiado que atire o primeiro Prozac. Um desses textos virou prefácio do “Dossiê Drummond”, livro em que publico a última grande entrevista do poetaço. Fora das páginas de jornal, fui alvo de pelo menos uma demonstração de extrema generosidade que Francis praticou sem qualquer interesse.

Em nome dos teclados de São Gutemberg, prometo à minha dezena de leitores: os fãs, os órfãos, os detratores de Paulo Francis ganharão um presente que estou, aos poucos, garimpando. Que ninguém se assuste, porque não cairei na tentação de parir um tratado sobre o homem. Praticarei o exercício básico do jornalismo: publicarei o que vi e ouvi. Ponto. Reproduzirei diálogos entre Francis e grandes feras. Vai ser minha maneira de retribuir os presentes que ganhei. A retribuição virá em forma de livro. Era projeto para 2008. Não cumpri. 2009 passou. Tentarei 2010, se o diabo assim permitir.

Por falar no capeta, pergunto: o que diabos vocês estão fazendo aí? Por que não saem voando para conseguir uma cópia de “O Afeto Que se Encerra” ? A Editora Francis lançou uma nova edição, não faz tempo. É um dos melhores livros de memórias já lançados no Brasil.

PÍLULAS, GARIMPADAS NO “AFETO QUE SE ENCERRA”:

“Jornalista político e cultural, opino sobre isso e aquilo o tempo todo. Mas jornalismo, mesmo ensaístico, é dipersão de energias na vida do próximo, em coisas exteriores à ilha em que vivo e na qual um psicanalista amigo, Borsoi, descobriu uma catedral, meu superego: ajoelho, rezo e cumpro”

“Divago. Tanto falo do resto que não me sobra tempo para saber o que penso de mim. Às vezes me ocorre, desagradavelmente, que conheço melhor a cabeça ( o título é de cortesia) de Jimmy Carter do que a minha. E só sei o que penso quando passo para o papel”.

“Boa parte da ilegibilidade da literatura e imprensa brasileiras se deve ao asneirol filológico ensinado nas escolas. “Custa-me crer” é a vovozinha. Rubem Braga ou Millôr Fernandes valem “n” Aurélios”.

“A cabeça se libertou de simplificações e paliativos, das certezas de manual. Examina e se auto-examina constantemente. É meu inferno e delícia, minha única justificativa plausível de alegar que evoluí dos macacos”.

“Sei apenas que nasci, presumo que pelos processos convencionais, não existindo na ocasião o bebê de proveta e ou Garotos do Brasil. E fui, jovem, a cara do meu avô alemão, Paul Heilborn, na mesma idade, o que exclui, provavelmente, a hipótese de adoção. Dando crédito à versão oficial, não é verdade que ao me baterem na bunda eu dissesse “Cogito ergo sum”, ou, segundo o vulgo, “um Black Label nas pedras”. Se me manifestei, à parte o que Shakespeare chamava sentimentalmente de “the most piteous sound”, o som mais digno de pena, o nhenhém do desgraçado do bebê, teria sido na linha de “por que não me consultaram se eu queria vir para esta joça ?”. A última frase de As Memórias Póstumas de Brás Cubas é minha opinião da paternidade”

“Quis ser escritor desde li Crime e Castigo, aos 14 anos de idade. Eu era um revoltado contra a ordem social, família, colégio padres. Tolstói, antes de morrer, disse que não se sentia diferente de menino, aos 8 anos. Nem eu, agora ( fim das semelhanças entre nós). Foi aos 8 anos que comecei a perceber a ambivalência, a ambiguidade, a falsidade do que me pregavam. Uma cacetada emocional me levou a essa precocidade crítica. Não importa. Nos tornamos o que somos. Me fechei em mim mesmo, perplexo, rancoroso, engatinhando sarcasmos”

“Morremos uma vez só. Felizmente, porque nascemos diversas. A primeira é a menos dolorosa”.

“Desejo boa sorte aos que gostam de política e às novas gerações, ou remanescentes da minha, que caiam na realidade. Quanto a mim, procuro recriar em literatura o que experimentamos, o grupo que me fez, saciando o último desejo infantil que me resta. Jornalista, continuo atirando no escuro de onde saem as feras, esperando acertar algumas”.

Posted by geneton at 01:08 PM

janeiro 05, 2010

GAY TALESE

LEMBRANÇA DE UM ENCONTRO COM O GURU DOS JORNALISTAS: O DIA EM QUE GAY TALESE ASSINOU MINHA “BÍBLIA”

“A humanidade só será feliz no dia em que o último editor for enforcado nas tripas do penúltimo” foi a sentença que o meu demônio-da-guarda me soprou, nítida e clara, ao pé do meu ouvido esquerdo, no exato instante em que ouvi o cultuadíssimo jornalista Gay Talese fazer uma confissão sobre os bastidores do jornalismo.

A confissão: uma reportagem que ele fez, nos anos setenta, sobre o encontro de Fidel Castro com Cassius Clay, em Cuba, foi descartada por nada menos de dez publicações diferentes. Dez!

É possível imaginar a cena: uma dezena de editores entediados deve ter passado os olhos sobre o relato escrito por Talese antes de vomitar uma desculpa qualquer para justificar a recusa.

Editores açougueiros cometem atrocidades todos os dias em todas as redações do planeta. Mas o caso da reportagem escrita em Cuba é uma daquelas aberrações que fariam um recém-formado desistir imediatamente da profissão.

Não é para menos. Tratava-se de uma reportagem escrita por um dos maiores nomes do jornalismo do Século XX sobre duas figuras míticas: o boxeador que entrou para a história por ter nocauteado um punhado de adversários imbatíveis e o comandante de uma ilhota que cutucava com vara curta a superpotência americana. Gay Talese, Cassius Clay e Fidel Castro. A camarilha de editores deu o veredito: não. Um dos argumentos que usaram: o texto estava grande. Precisava ser reduzido. Talese disse que não. Não poderia reduzir.

Os burocratas da profissão são exatamente assim: passam a vida inteira querendo provar que o público leitor detesta ler. Assim, todo e qualquer texto deve ser imediatamente trucidado. Ah, como são pateticamente pretensiosos…

Depois de três décadas e meia de observação, posso declarar diante do tribunal a única certeza que adquiri nesta profissão: o maior inimigo do Jornalismo é o jornalista. Não existe outro. Ponto. Parágrafo.

O resultado da investida do exército de editores burocratas foi este: o relato da expedição cubana de Gay Talese só chegou às mãos do público quando foi incluída num livro, anos depois.

Talese – um jornalista quase sexagenário na época da recusa – confessou, candidamente, que sentiu uma lufada de humilhação agitar suas florestas interiores ao ser brindado pelos editores com dez pontapés no traseiro.

Pergunta-se: quem é capaz de recordar o nome de um desses texticidas (assassinos de textos) que jogaram a reportagem de Talese no lixo ? Ninguém. Foram engolidos, um por um, pelo esquecimento.

Já Gay Talese sobreviveu.

Ei-lo agora, tanto depois, narrando suas desventuras numa noite tecnicamente cálida na Cidade do Rio de Janeiro.

A confissão de Talese sobre o pesadelo que sofreu na mão de editores foi feita diante de uma fauna de tietes, curiosos, estudantes, aspirantes e dinossauros do jornalismo, reunida numa sala de cinema que fazia as vezes de palco de conferência no Instituto Moreira Salles, na Gávea. O jornalista Arthur Dapieve cumpriu com garbo o papel de mestre de cerimônia.

Quem conseguiu uma vaga na plateia ouviu um dos pais do New Journalism dizer que, lá no início da carreira, nos anos cinqüenta e sessenta, dava predileção a personagens anônimos, ao invés de cortejar os famosos.

Não por acaso, uma das primeiras reportagens que escreveu tinha como personagem central o redator de obituários do New York Times, um jornalista que vivia esquecido, numa mesa no canto da redação, ocupado em ruminar seus mortos.

Talese não teve dúvida em transformar um jornalista em notícia, o que quebrava um dos mandamentos da profissão (“jornalista só é notícia quando morre”). Não é verdade. Ao retratar o redator de obituários, Talese mostrou que jornalista que escreve sobre morte pode ser notícia, sim. Basta que tenha a sorte de atrair a atenção de um repórter inspiradíssimo, como ele.

A reportagem de Talese sobre um redator de obituários chamado Alden Whitman é um clássico imbatível do jornalismo. Pode ser lida no livro “Fama e Anonimato”, relançado no Brasil pela Companhia das Letras.

Estudantes, amadores, profissionais, correi: o que estão esperando antes de devorar o texto de Talese sobre o “mister Bad News”?

Um repórter burocrata diria que não, um mero redator de obituários não “rende matéria”. Talese dá uma lição perene: personagens anônimos podem ser,sim, fascinantes, extraordinários, comoventes. É uma regra universal. Tudo depende – única e exclusivamente – da sensibilidade do repórter.

Ao falar sobre a gênese da célebre reportagem sobre Frank Sinatra, igualmente clássica, Talese fez outra confissão: disse que nunca se sentiu atraído a escrever sobre gente famosa. Preferia lançar seus faróis sobre gente anônima, o que parecia uma “contradição”. Afinal, o jornalismo se alimenta da fama.

Não por acaso, quando recebeu de um editor a tarefa de escrever sobre Frank Sinatra, Talese teve a tentação de recusar a encomenda. Imaginou: que pergunta Frank Sinatra já não tinha respondido um milhão de vezes?

(Neste exato momento da fala de Talese, meu demônio-da-guarda entra em cena novamente, para sussurrar uma confissão ao pé do meu ouvido direito. Diz que, se tivesse a chance de interpor uma ressalva às palavras de Talese, declararia, solenemente: “Ah, não,oh guru do Novo Jornalismo, permita-me um momento de petulância: ao contrário do que Vossa Excelência diz, haverá sempre uma maneira de perguntar o que não tinha sido perguntado. Não há celebridade que não possa ser confrontada. Mas… quem sou eu para discrepar?”. Feito este exercício de autocrítica, meu demônio-da-guarda recolhe-se a um silêncio reverente).

Hoje, Talese pode dizer que, por sorte, Frank Sinatra não quis lhe dar uma entrevista. Assim, o caminho ficou livre para que o repórter transferisse todas suas atenções para o entourage de anônimos que cercavam o ídolo dos palcos.

O homem que fazia o papel de double de Frank Sinatra – um personagem chamado Johnny Delgado – parecia, aos olhos de Talese, tão fascinante quanto o original. Talese descreve a cena em que viu se aproximar um vulto que ele jurava ser Sinatra em pessoa. Não era. Quem se aproximada era o dublê.

É bola na rede, gol de Talese: sem que tenha sido a chance de interrogar o objeto principal da reportagem, Talese produziu uma reportagem definitiva sobre mister Sinatra. Bingo.

Talese faria outra confissão – que arrancaria suspiros de espanto da platéia: não usa a internet como instrumento de trabalho. Diz que a “tecnologia” da internet pode ser usada, por exemplo, para confirmar uma data. Mas não pode substituir, nunca, o contato “olho no olho” com a realidade. Repórter deve ir para a rua.Não pode passar o dia contemplando o retângulo luminoso de um monitor.

Neste instante, lembrei-me de uma máxima de Joel Silveira, grande repórter da linhagem de Talese: a “víbora” Joel dizia que não existe nada mais triste do que ver um repórter contemplando o teclado de uma máquina de escrever na redação, enquanto os assuntos, todos, estavam lá fora, na rua, à espera de quem pudesse descobri-los.

Por princípio, Talese diz que, ao retratar seus personagens, não gravava nem fazia anotações : preferia observa-los com toda a atenção. De volta ao hotel, à noite, redigia o que tinha visto.

Ao fazer este relato, lanço da mão da “técnica Talese”: não estou recorrendo a gravações nem anotações. Tento reproduzir – de memória – o que acabei de ouvir. Já se disse que a memória guarda o que interessa. O resto some no abismo do esquecimento.

Guardei – de memória – estas lições do guru do New Journalism. Há outras. Prometo: voltarei ao assunto, em breve ( Em nome de São Gutemberg: que outra coisa pode fazer um repórter, além de passar adiante o que viu e ouviu?).

Terminado o pronunciamento, mister Talese se dispôs a assinar autógrafos .

( Pausa para um registro bibliográfico: raríssimamente peço um livro emprestado. Dos pouquíssimos que pedi, o único que não tive a chance de devolver ao proprietário foi justamente um título de Talese: a primeira edição de “Fama e Anonimato”, lançada no Brasil nos anos setenta, pela editora Expressão e Cultura, com o título de “Aos olhos da Multidão”. Era a Bíblia de quem cultuava as pérolas de papel que Talese produziu, como o perfil do redator de obituários ou a reportagem sobre Frank Sinatra. Um colega jornalista, chamado Luiz Edmundo Monteiro, me emprestou o exemplar, no final dos anos oitenta. Depois, se mudou para o Paraguai. Jamais tive a chance de reencontrar o dono do exemplar – que ficou comigo esses anos todos. Hoje, ao me dirigir para o Instituto Moreira Salles, levei o livro que um dia, antes de ser relançado, era tratado como relíquia. A capa, frágil, ameaça se romper).

Sentado numa mesa, com os óculos na ponta do nariz, Talese veste-se como um dândi (sempre fez questão de cultuar paletós, jaquetas, coletes, sobretudos, sapatos, meias e lenços elegantes). Simpático, estende a mão para pegar o exemplar em ruínas.

Digo a ele:

- O senhor pode assinar a minha Bíblia?

Talese ri:

- É sua Bíblia ? Mas parece meio velha…. (agora, ele manuseia a capa puída).

- É velha, mas funciona…

O guru ri de novo, assina, agradece.

Termina o rapidíssimo diálogo sobre o meu devastado exemplar de “Aos Olhos da Multidão” , minha Bíblia jornalística, meu Evangelho Para Repórteres Segundo Gay Talese.

Eu poderia ter dito a ele que acendo uma vela para “Aos Olhos da Multidão” e outra para uma entidade inventada por Kurt Vonnegut : Nossa Senhora do Perpétuo Espanto.

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Se tivesse tido tempo de se manifestar, meu anjo-da-guarda finalmente levantaria a voz para interferir no diálogo, como se fosse um estudante ingênuo num comício de DCE : “Ah, com licença, oh guru do New Journalism, eu me arrisco a acrescentar que, se o Vaticano estivesse preocupado em combater as calamidades jornalísticas, deveria nomear Nossa Senhora do Perpétuo Espanto padroeira universal e plenipotenciária dos jornalistas. Porque só são dignos de povoar as redações os jornalistas que fazem da profissão um culto diário à Nossa Senhora do Perpétuo Espanto: são aqueles que tentam a todo custo não perder a capacidade de olhar a vida – e os personagens que a povoam – como se estivessem vendo tudo pela primeira vez. Em resumo: os que se recusam a perder a capacidade de se espantar. Somente assim, poderão narrar – da maneira mais atraente possível – a marcha dos fatos e dos personagens, anônimos ou famosos, que movem a máquina do mundo. Os que não são tocados por este espanto pertencem à triste linhagem dos que jogaram no lixo o que o senhor, Mister Talese, escreveu sobre Cassius Clay em Cuba. Já os que cultuam Nossa Senhora do Perpétuo Espanto serão sempre capazes de descobrir, em personagens como o redator de obituários, histórias que, claro, merecem ser contadas. Sempre mereceram !”.

Mas não, não houve tempo de falar com Gay Talese sobre velas, redações, obituários e espantos nem de ouvir as perorações de anjos e demônios da guarda.

A fila dos que buscavam um autógrafo se estendia pelo pátio do Instituto. São dez e meia da noite. Hora de pegar a Bíblia e bater em retirada.

Posted by geneton at 01:15 PM

dezembro 21, 2009

LINCOLN GORDON

O DIA EM LINCOLN GORDON FALOU SOBRE DOIS TEMAS EXPLOSIVOS. PRIMEIRO: OS ESTADOS UNIDOS QUERIAM QUE O BRASIL PARTICIPASSE DA GUERRA DO VIETNAM. SEGUNDO: A CIA FINANCIOU A CAMPANHA DE CANDIDATOS SIMPÁTICOS AOS EUA

Repórteres são seres bípedes pagos para incomodar os outros.

Pois bem: incomodei o sossego do ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, na última viagem que ele fez ao nosso país. Não me arrependo (Gordon morreu em Washington, aos 96 anos, neste dezembro).

Tive a chance de fazer duas entrevistas com ele. O homem era, claro, um baú inesgotável de histórias sobre um dos períodos mais conturbados da vida política brasileira: o início dos anos sessenta.

A primeira gravação foi para a TV: os pontos mais importantes da entrevista foram ao ar no domingo seguinte, no Fantástico. Gordon já era um octogenário,mas citava datas e nomes com uma precisão invejável.

Arrisquei: perguntei se teria tempo de me receber no dia seguinte, um sábado, para uma nova gravação. Teria,sim. Gordon estava com a tarde livre. Lá fui eu, sem a parafernália do equipamento de TV, mas com meu velho gravador cassete. A segunda entrevista deve ter se estendido por cerca de três horas. O mês: novembro. O ano: 2002. Um dia, prometo, a entrevista será publicada na íntegra.

Eis uma pequena mostra do que colhi na Maratona Gordon:

Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil durante o golpe militar de 1964,guardou segredo durante anos sobre os bastidores do dia em que o governo americano tentou fazer com que o Brasil participasse da Guerra do Vietnam.

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”Não contei esta história no meu livro”, diz Gordon, autor do recém-lançado “A Segunda Chance do Brasil a Caminho do Primeiro Mundo”. Ao final de um depoimento gravado durante três horas ininterruptas no quarto 904 do Hotel Glória, no Rio, o ex-embaixador revelou detalhes inéditos sobre o dia em que entrou no Palácio do Planalto,em nome do presidente Lyndon Johnson, para pedir ao marechal Castelo Branco que o Brasil se engajasse numa guerra no sudeste asiático. Lincoln Gordon volta esta noite aos Estados Unidos,depois de cumprir um périplo por São Paulo,Rio de Janeiro,Brasília e Recife.

“Eu tive de manter segredo sobre o assunto na época” – explica Gordon.”Se o que aconteceu fosse divulgado,poderia criar um problema – mais sério para o Brasil do que para os Estados Unidos. O caso seria politicamente ruim para os dois países”.

Aos 89 anos de idade, este ex-professor de Economia da Universidade de Harvard e ex-subsecretário de Estado para Assuntos Latino-Americanos parece disposto a comprar uma briga com historiadores que,segundo ele,estão traçando um retrato distorcido sobre a postura que Castelo Branco – o primeiro presidente do regime militar – assumia diante dos Estados Unidos. O ex-embaixador diz que o fracasso da tentativa americana de atrair o Brasil para a guerra do Vietnam é uma prova de que os militares que assumiram o poder no Brasil não recebiam ordens dos Estados Unidos :

- Textos históricos esquerdistas ou anti-americanos descrevem Castelo Branco como se ele vivesse dizendo “sim,senhor”,”sim,senhor” e “sim,senhor” aos Estados Unidos.Um exemplo sempre citado é a concordância do Brasil em enviar militares brasileiros para participar da intervenção na República Dominicana,em 1965.Mas o que aconteceu em relação à Guerra do Vietnam é um exemplo de que Castelo Branco não era uma mera marionete dos Estados Unidos !.Agora,estou pronto a divulgar detalhes a respeito do caso,como uma demonstração de como Castelo Branco governava – avalia Gordon,no depoimento gravado.

Autor de “Presença dos Estados Unidos no Brasil” e “O Governo João Goulart : As Lutas Sociais no Brasil”,o historiador Moniz Bandeira contesta os argumentos de Gordon :

- O marechal Castelo Branco sempre foi considerado,sim,um títere dos Estados Unidos,não apenas por historiadores brasileiros,mas também por historiadores estrangeiros,como Ruth Leacock,autor de “Requiem for Revolution” ou Jan Black – que chegou a dizer que Castelo Branco proclamou a dependência do Brasil.O que Lincoln Gordon quer fazer agora é embelezar o golpe,é fazer maquiagem de 1964.

O ex-embaixador diz que o apelo para que o Brasil participasse da intervenção militar na República Dominicana foi feito a Castelo Branco pelo emissário do presidente Lyndon Johnson – o ex-ministro Averell Harriman,numa audiência testemunhada também pelo então ministro das relações exteriores brasileiro,Vasco Leitão da Cunha :

- O ministro nos disse que o envio de tropas brasileiras deveria ser feita dentro de uma ação latino-americana endossada por dois terços dos votos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Castelo Branco nos disse,então, que este detalhe faria uma vasta diferença para o Brasil.
Gordon reconstitui,assim,as palavras que ouviu de Castelo Branco :

- Castelo Branco me disse : ”Há quem pense em países vizinhos que assumi o governo ilegalmente – num típico golpe de estado latino-americano.Eu estou tentando restaurar a lei na democracia brasileira.Quero agir da mesma maneira no plano internacional.Então,diga ao Presidente Johnson que entendo o desejo americano,estou pronto a enviar tropas brasileiras para a República Dominicana,mas a decisão deve ser tomada por dois terços dos votos da OEA”.

O sucesso do esforço para envolver o Brasil na intervenção na República Dominicana – onde os Estados Unidos temiam o surgimento de um Estado marxista – abriu caminho para que,meses depois,os americanos jogassem outra cartada : e se o Brasil concordasse em participar da Guerra do Vietnam ?.

- Recebi um telegrama de Washington dizendo que a Guerra do Vietnam estava se tornando uma preocupação cada vez maior – diz Gordon. A Guerra tinha relação com a nossa moral – inclusive no plano internacional. Víamos o quadro como parte da guerra fria. O Brasil tinha mandado médicos para a Guerra da Coréia.Teve uma participação positiva.Agora,pedia-se algo parecido.

O segredo que o ex-embaixador guardou os termos do diálogo com o presidente brasileiro é compreensível : o episódio é a crônica de um fracasso. Gordon saiu do Palácio de mãos vazias. O ex-embaixador americano diz, hoje, que intimamente tinha dúvidas sobre a conveniência do pedido para que o Brasil se envolvesse no conflito no Vietnam :

- Eu tinha minhas reservas sobre se aquela atitude era a certa.A situação estava instável. Não me agradava a idéia de jogar gasolina na fogueira dos que diziam que o Brasil repetia “sim,senhor” aos pedidos dos Estados Unidos. Antes de ir para a audiência com Castelo Branco,cheguei a enviar um telegrama para Washington em que disse que,no caso brasileiro,não era uma decisão sábia fazer o pedido.Meu conselho não funcionou.O meu governo me mandou tentar.Eu fui. Apresentei o pedido a Castelo Branco o mais gentilmente possível….

Quando desembarcou no Palácio do Planalto,às vésperas do Natal de 1965,o embaixador tinha uma boa notícia a dar e um pedido incômodo a fazer ao presidente brasileiro.A boa notícia : o presidente Johnson autorizara a concessão de um empréstimo de 150 milhões de dólares ao Brasil.O pedido incômodo : diante da decisão de ampliar para 400 mil o número de soldados americanos mobilizados na “defesa do Vietnam do Sul” contra os comunistas do Vietnam do Norte,o governo Johnson queria saber se poderia contar com a ajuda do Brasil no esforço de guerra no sudeste asiático.

Depois de ouvir as explicações do embaixador americano,o presidente brasileiro avaliou a repercussão que o engajamento brasileiro no Vietnam teria no país :

- Castelo Branco me disse que, no caso do Vietnam, haveria uma resistência muito maior no Brasil. A participação não seria aceita rapidamente.Adiante, ele me disse :”Não sei como os meus companheiros de farda se sentirão,mas sei que haverá restrições no meio militar” .O que Castelo Branco fez foi me dizer “não” de uma forma gentil. Eu disse que a participação brasileira poderia até ser simbólica,porque o uso de tropas exigiria treinamento.Os combates eram travados em condições peculiares no Vietnam – com bombardeios aéreos e operações navais.
O ex-embaixador garante que “o que nós,os Estados Unidos,estávamos tentando era que o chamado mundo livre demonstrasse,o mais amplamente possível,que a operação era legítima”.

Gordon diz que os termos do diálogo com o presidente brasileiro foram preservados como “segredo de Estado”.Os Estados Unidos – obviamente- não tinham o menor interesse em divulgar um pedido que foi recusado pelo Brasil :

- Não queríamos divulgar o pedido,principalmente porque ele foi rejeitado – relata Gordon. Eu bem que tinha dito antes que seria melhor não fazer este pedido ao governo brasileiro. Mas fiz – de qualquer maneira. Previ que seria difícil. O pedido foi recusado. Quando mandei um novo relatório a Washington,não escrevi nada na linha do “eu não disse ? “. Mas Washington viu que a previsão que eu tinha feito estava certa.Os Estados Unidos desistiram.

A divulgação das circunstâncias em que se deu a recusa poderia provocar reações pouco simpáticas ao Brasil entre representantes da chamada “linha-dura” americana. Não se deve esquecer que,nas eleições de 1962,conforme cifras citadas pelo embaixador,a CIA tinha derramado no Brasil “cinco milhões de dólares” para ajudar a eleger deputados,senadores e governadores hostis a João Goulart.O próprio Lincoln Gordon se declara autor da idéia de mobilizar uma frota que se dirigiria ao Brasil para abastecer,com armas e petróleo,facções anti-Goulart,em caso de uma guerra civil. Por sugestão dos adidos militares da embaixada, um submarino seria despachado para o litoral de São Paulo, com armas que seriam entregues de mão beijada aos conspiradores que queriam ver Goulart no olho da rua. Não houve necessidade de deflagrar a operação.O submarino nem chegou a ser mobilizado.Quando os militares se instalaram no Poder, o socorro financeiro ao País não tardou a chegar. Os Estados Unidos tinham boas razões para se sentir credores de gestos de simpatia do novo regime.

Gordon se esforçou na época para evitar que o gesto de Castelo Branco recebesse uma indesejada publicidade,porque poderia criar embaraços políticos :

- Se o que aconteceu fosse divulgado, a “linha-dura” americana poderia dizer : “Meu Deus,estamos dando toda a ajuda ao Brasil.E eles não podem enviar nem ao menos médicos para o Vietnam ?!”.

“DINHEIRO DA CIA NA ELEIÇÃO BRASILEIRA FOI UM ERRO”
O ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil não se recusa a tocar em temas que,a cada vez que são discutidos,provocam controvérsias de todo tipo – como,por exemplo,o dinheiro que o governo americano derramou no Brasil para tentar influenciar o resultado das eleições brasileiras de 1962.

A CIA – afinal – deu ou não deu dinheiro a candidatos simpáticos aos Estados Unidos nas eleições de 1962 no Brasil ?

Gordon : “Demos.Definitivamente.Com o passar do tempo,considerei que este foi um erro de nossa parte.Nós estávamos,na época,influenciados pelo que tinha acontecido na Itália logo depois da guerra : historiadores acham que o apoio aos anti-comunistas italianos – inclusive com dinheiro e propaganda – foi o que tornou impossível a vitória eleitoral dos comunistas”.

Quanto a CIA gastou no Brasil ?

Gordon : “A minha estimativa é de que foram cinco milhões de dólares ( N: a preços de 2002,30 milhões de dólares – ou cerca de 100 milhões de reais). Mas não se produziram resultados importantes,porque o Congresso que foi eleito em 1962 não foi diferente do Congresso anterior. Miguel Arraes- por exemplo- se elegeu governador em Pernambuco,o que foi um fato mais importante do que qualquer mudança no Congresso”.

Quem recebeu a ajuda ?

Gordon : “Houve um grupo de candidatos – geralmente,à direita do centro,simpatizantes dos Estados Unidos”.

O senhor pode citar nomes ?

Gordon : “Não me lembro.Nunca vi a lista. Eu não estava envolvido no processo. Era uma ação da CIA. Um dos objetivos seria suprir literatura sobre a economia liberal,para contestar a enorme quantidade de literatura de esquerda.O governo cubano – e,possivelmente,o governo russo – estavam fornecendo dinheiro para publicação de material no Brasil”.

Qual foi a participação dos Estados Unidos na queda do presidente João Goulart ?

Gordon : “A participação ativa foi zero.Mas,especialmente depois do comício do presidente Goulart na Central do Brasil,houve vários contatos,inclusive entre o adido militar da embaixada,Vernon Walters e o marechal Castelo Branco,em que se demonstrou o interesse numa oposição”.

É verdade que o senhor disse ao presidente John Kennedy,ainda em 1962,que talvez fosse preciso “destituir” o presidente Goulart ?

Gordon : “Eu disse que existia,a longo prazo,a possibilidade de que os acontecimentos evoluíssem até o ponto em que esta alternativa deveria ser considerada. Numa reunião na Casa Branca,a 30 de julho de 1962,um assessor de Kennedy,Richard Goodwin,disse : “Talvez devêssemos pensar em golpe num futuro próximo”. Eu disse : “Não.É fora de questão”. Nem eu nem o presidente John Kennedy tomamos a sugestão de Goodwin a sério,naquele momento.
A melhor solução seria manter a Constituição : que Goulart fosse mantido na Presidência até as eleições presidenciais previstas para 1965.Minha preferência era esta – até Goulart fez o Comício da Central do Brasil,quando vi que Goulart não chegaria até 1965. O melhor seria que Goulart,pacificamente,sem ações militares,sem golpes janguistas ou golpes anti-janguistas,fosse até o fim do mandato”.

Como surgiu a idéia de mobilizar uma frota americana que seria deslocada para o Brasil em 64 ?

Gordon : “A minha idéia foi que,na eventualidade de uma tentativa de derrubar João Goulart,um grupo militar brasileiro poderia ser contestado por outro grupo militar. Eu imaginei que poderia haver uma divisão do país – com militares em lados opostos. Numa tal eventualidade,os Estados Unidos evidentemente teriam uma preferência pelo lado anti-esquerdista,pelo lado anti-João Goulart.Naquele momento,considerei,então,a possibilidade de que uma frota armada,com a bandeira americana visível no litoral brasileiro,teria um resultado desencorajador para o lado pró-Goulart e encorajador para o lado anti-Goulart”.

Posted by geneton at 01:31 PM

dezembro 12, 2009

FERNANDO COLLOR

COLLOR DIZ QUE, QUANDO ESTAVA NA PRESIDÊNCIA, RECEBEU PROPOSTAS DE “POLÍTICOS” PARA FECHAR O CONGRESSO NACIONAL E CONFIRMA: PARTE DAS SOBRAS MILIONÁRIAS DA CAMPANHA PRESIDENCIAL FOI USADA PARA FINANCIAR CANDIDATOS EM 1990

O locutor-que-vos fala passou os últimos dias mergulhado na Operação Collor. Primeiro, viajei a Brasília para gravar uma entrevista exclusiva com o ex-presidente. Depois, mergulhei numa ilha de edição para preparar o DOSSIÊ GLOBONEWS – que será reprisado neste domingo às cinco da tarde e na segunda-feira, às sete da noite. Ao todo, foram vinte e quatro horas de edição. Ao contrário do que almas ingênuas possam supor, fazer TV dá um trabalho desgraçado.Ponto.Parágrafo.

O ex-presidente faz revelações na entrevista. Diz, por exemplo, que recebeu propostas para fechar o Congresso Nacional e divulgar dossiês secretos sobre adversários – dois gestos extremos para tentar escapar do impeachment.

Descreve como surgiu a ideia de bloquear parte dos saldos das contas correntes e das contas poupança de milhões de brasileiros,uma medida de impacto fortíssimo logo no primeiro dia de governo: tudo surgiu quando Collor, ainda não empossado, presenciou uma troca de ideias entre dois economistas sobre qual seria a maneira mais rápida de estancar a inflação. Os economistas eram Mário Henrique Simonsen e André Lara Resende.

Adiante, diz, com todas as letras, que parte das sobras da campanha presidencial de 1989 foi usada para financiar a campanha de candidatos que apoiavam o governo nas eleições de 1990.

O Fernando Collor de 2009 – um senador de sessenta anos de idade – faz críticas ao Fernando Collor de 1989, um presidente eleito com quarenta anos: diz que simplesmente não se deu conta de que, num regime como o brasileiro, “um presidencialismo de coalização”, é impossível governar sem o Congresso Nacional. Collor tratou mal deputados e senadores. Resultado: quando estourou a crise que terminou lhe custando o mandato, os parlamentares lhe deram o troco. Funciona assim.

O ex-presidente confirma: já terminou de escrever mas não pretende publicar agora o livro-bomba que,segundo ele, provocará “impacto” na política brasileira. O livro “Crônica de um Golpe” traz a versão de Collor sobre a crise política que terminou no impeachment.

Num site hospedado fora do Brasil, Collor publicou um pequeno trecho do livro. Lá, ele diz, por exemplo, que o então deputado Ulysses Guimarães, um dos comandantes do PMDB, de início ofereceu-lhe apoio, porque não via o impeachment como uma saída para a crise. Mas, logo depois, teria mudado de posição, porque foi informado de que,com o afastamento de Collor, o vice,Itamar Franco também deixaria o poder. A Presidência da República seria, então, ocupada por um nome eleito pela Câmara dos Deputados para cumprir o restante do mandato. De acordo com a versão de Collor, Ulysses teria, enxergado,aí, a chance de se tornar presidente. Passou,então, a apoiar o impeachment. Menos de quinze dias depois do afastamento de Collor, Ulysses morreria num acidentede helicóptero, numa viagem entre Angra dos Reis e São Paulo. O corpo sumiu no mar. Jamais foi encontrado.

Um trecho do livro inédito de Fernando Collor:

“O vice-presidente (Itamar Franco), que retirei do ostracismo na política mineira, organizou um governo a que chamou cinicamente de ” republica dos senadores” -recompensando com cargos e sinecuras exatamente aquele que me julgariam mais tarde”.

“Causou-me especial emoção a solidariedade que recebi do deputado Ulysses Guimarães, naquele período duro de expectativa. Dr. Ulysses me visitou e me privilegiou com conselhos muito utéis, para enfrentar os dissabores que já não eram poucos e que se agravariam dali em diante. Todo o tempo assegurou-me o seu apoio – e o daqueles que o seguiram – afirmando que votaria contra o impeachment.

Como demonstração de seu afeto, presenteou-me com um dos seus livros , no qual apôs solidária dedicatória. 0 seu comportamento mudaria quando se iniciaram as articulações para garantir a tomada do poder, através de um golpe de mão. Prometeram-lhe que o vice-presidente renunciaria logo após a minha condenação pelo Senado e, assim, ocorrendo a vacância do cargo, ele,Dr. Ulysses, finalmente cumpriria o sonho de exercer a Presidência da República eleito pelo Congresso, para cumprir o restante do meu mandato. Seu trágico desaparecimento jogou uma pá-de-cal na operação”.

Um trecho da gravação feita no Senado para o DOSSIÊ GLOBONEWS – a única entrevista que o ex-presidente deu para a TV a propósito dos vinte anos da histórica eleição de 1989:

DUAS PROPOSTAS NO PALÁCIO DO PLANALTO: FECHAR O CONGRESSO NACIONAL E DIVULGAR DOSSIÊS SECRETOS DE ADVERSÁRIOS DO GOVERNO

GMN: Qual a proposta mais surpreendente que o senhor recebeu quando estava no Palácio do Planalto ?

FERNANDO COLLOR: “Recebi de várias fontes – de origens as mais diversas – as sugestões mais esdrúxulas. Dentro deste rosário de sugestões, a mais “singela” seria a do fechamento do Congresso. Diziam-me: “Fecha o Congresso!”- como quem diz “fecha esta porta”.Eu dizia: “Mas vocês se esquecem de que sou o primeiro presidente eleito pelo voto popular depois de quase trinta anos de submissão a um regime autoritário.Não posso trair as minhas convicções, não posso fazer isso”.

GMN: O senhor pode revelar de quem partiu a sugestão de que o senhor fechasse o Congresso?

COLLOR: “Não.Não posso – até porque não foi somente de uma pessoa”.

Eram políticos?

COLLOR: “Eram políticos,políticos…E outras propostas as mais descabidas e esdrúxulas. É aquela questão das “ideias”. Todo mundo chegava com uma ideia achando que era uma inovação. E eu as repelia a todas, sem me permitir acalentar, por um segundo que fosse, tal procedimento”.

GMN: Em algum momento, o senhor, que foi eleito com voto popular, teve a tentação de fechar o Congresso para escapar daquele processo?

COLLOR: “Não.Eu jogo duro. Sou um jogador que joga pesado, duro,vigoroso,mas com as cartas na mesa e obedecendo as regras do jogo, incapaz de fazer uma coisa dessa natureza, como fui incapaz de também cair na tentação de outras sugestões que me chegavam,como a de deixar publicar dossiês do Serviço Nacional de Informações (SNI), extinto por mim num dos atos que assinei no primeiro dia de governo. Os dossiês estavam ali, à disposição, para que os soltássemos. Não permiti que nenhum desses dossiês fosse colocado seja para imprensa, seja para quem quer que fosse”.

GMN: Quem sugeriu a divulgação de dossiês do SNI para constranger seus adversários obviamente foi um dos seus aliados. Eram parlamentares, era algum ministro?

COLLOR: “Ex-parlamentares que não haviam sido reeleitos em 1990. Como alguns tinham vários mandatos já cumpridos, talvez por isso conhecessem essas estranhas daquele serviço tenebroso que era executado pelo SNI”.

GMN:Os dossiês comprometiam adversários do senhor ?

COLLOR: “É. Falei: “Deixem-me ver o que é isso. Mandem trazer os dossiês”. Já que as pessoas me falavam, mandei trazer alguns. Tive a certeza de que havia tomado a decisão correta quando extingui o SNI. Meu Deus do céu: de segurança do Estado e de informação estratégica para o presidente, os dossiês não tinham nada. Eram só fofocas e futricas”.

GMN:A eventual divulgação desses dossiês poderia servir para desmoralizar seus adversários ?

COLLOR: “É. Sem dúvida, sem dúvida, no mínimo os constrangeria”.

GMN:O senhor já disse que não cogitou da possibilidade de fechar o Congresso para escapar do processo de impeachment. Mas o senhor admite que esta medida poderia eventualmente ter um respaldo popular já que o senhor tinha sido eleito pelo voto do povo?

COLLOR: “A questão do respaldo popular é difícil de a gente poder peremptoriamente afirmar, porque a gente sabe o sentimento da população varia de acordo com as circunstâncias. Não podemos esquecer que a mesma mão que aplaude é a que apedreja.O que eu entendia e respondia a essa interlocução dizendo: “Entendo que o que você pretende dizer,no fundo,é que você não concorda com a ação dos representantes que estão lá no Congresso –e não em relação à instituição Poder Legislativo”.

O DIA EM QUE AOS BRASILEIROS NÃO ATENDERAM AO PEDIDO DO PRESIDENTE E NÃO FORAM ÀS RUAS VESTINDO VERDE E AMARELO: “PERCEBI QUE HAVIA PERDIDO A PRESIDÊNCIA”

GMN: Quando enfrentava uma onda de denúncias, o senhor fez um discurso veemente em que pediu à população que se vestisse de verde e amarelo.Mas os manifestantes se vestiram de preto.Ali,o senhor sentiu que perdeu a capacidade de mobilizar apoio?

COLLOR: “Sem dúvida.Aquele foi o momento em que percebi que eu havia perdido a Presidência.Era uma solenidade bonita, um momento em que eu estava assinando atos que beneficiavam os taxistas. Havia muitos taxistas na ala oeste do Palácio do Planalto, exatamente aquela que fica mais próxima do Congresso.Estava apinhada de gente.O presidente do Banco do Brasil,o da Caixa, o ministro da Economia, muitos com uma fita verde e amarela na mão. Eu disse ao locutor que conduzia os trabalhos: “Eu não falarei.Falam os que estavam programados,como o representante do grupo de taxistas, o presidente da Caixa. Encerrada a solenidade, me dirigi para o elevador, quando então o pessoal começou a gritar; “Fala, Collor!Fala!Fala!”. Veio,então, o presidente da Caixa Econômica: “Presidente, não deixe de falar para este pessoal….Todos querem ouvir uma palavra sua”. Voltei. “Que saiam no próximo domingo de casa, com alguma peça de roupa numa das cores da nossa bandeira. Que exponham nas suas janelas toalhas, panos, o que tiver nas cores da nossa bandeira, porque assim,no próximo domingo, estaremos mostrando onde está a verdadeira maioria”.

GMN:O senhor se arrepende de ter feito aquela convocação ?

COLLOR: “Eu me arrependo. Aquilo foi uma atitude temerária. É o que se chama de cutucar a onça com a vara curta.Ali,talvez por eu estar sob uma pressão muito grande,eu quisesse,no fundo, saber logo qual seria o desfecho de tudo aquilo. Porque foi um processo de tortura. Então, eu disse: “Com isso, ou a gente vai se afirmar nas ruas ou então se a gente se sentir abandonado nesse processo, eu já sei que não tenho mais forças para pode lutar. E ai, quando no domingo as informações começaram a chegar de que as pessoas estavam se vestindo de preto ao invés de verde e amarelo, eu disse: “A Presidente está perdida”. Dentro de mim, caiu exatamente esta compreensão de que,ali, o jogo estava perdido”.

GMN:A idéia de convocar a população para que todos fossem às ruas de verde e amarelo partiu inteiramente do senhor? Nenhum assessor sugeriu?

COLLOR:“Aquilo foi de inopinado,naquele momento,naquele instante”.

GMN:O senhor diria que este foi o grande erro político na condução daquele processo, naquele momento ?

COLLOR:“Sem dúvida, sem dúvida. Isso foi um erro tático seriíssimo”.

GMN:O senhor tinha a ilusão de que contaria com o apoio popular naquele momento?

COLLOR:“Tinha”

GMN:O que é que levava o senhor a acreditar ?

COLLOR:“O que me levava a acreditar era que a vinculação minha com o povo era muito forte.Mas, naquele momento, se ele não estava contra mim, impregnado pela torrente que o noticiário fazia desaguar pelas manhãs, tardes e noites, eu imaginava que pelo menos o povo estivesse neutro,na dúvida.”Eu estou em dúvida”. E, estando em dúvida,não tomaria uma posição”.

O EX-PRESIDENTE CONFIRMA: PARTE DAS “SOBRAS” DA CAMPANHA PRESIDENCIAL DE 89 FOI USADA PARA FINANCIAR CANDIDATOS NAS ELEIÇÕES DE 1990

GMN:Um dos coordenadores da campanha do senhor à presidência disse que ouviu de viva voz do tesoureiro da campanha, PC Farias, que as sobras de campanha seriam em torno de 52 milhões de dólares.Onde foi parar tanto dinheiro?

COLLOR: “As chamada sobras de campanha foram objeto do escrutínio do Ministério Público, Polícia Federal e do próprio Supremo Tribunal Federal. Tudo isso consta dos processos que foram movidos contra mim e dos quais fui abosolvido”.

GMN:Mas todos sabem que nas campanhas eleitorais brasileiras,em geral, há uma contabilidade paralela, o chamado Caixa Dois, que não passa, obviamente,pelo controle da Justiça Eleitoral. A pergunta é: que informação concreta o tesoureiro PC Farias deu ao senhor sobre as sobras de campanha?

COLLOR:“Naquele momento da eleição,a legislação não previa,como hoje prevê, esta série de medidas e de pontos que devem ser observados quanto às contribuições oferecidas à campanha de um determinado candidato, até porque não havia campanha presidencial.Não houve a preocupação de se estabelecer critérios objetivos e plausíveis para que esta contabilidade fosse feita. Então, o que aconteceu é que os recursos iam chegando. Só me dava conta de que os recursos chegados eram suficientes ou não em função da disponibilidade que eu tinha do avião que eu tinha do avião para me deslocar e dos carros de som para falar.Quando eu chegava ao hangar para viajar – e aconteceu algumas vezes, no primeiro turno – ,o gerente vinha e me dizia: “Ah, não pode, porque vocês estão devendo aqui não sei quanto”. Eu sentia que os recursos da campanha não estavam chegando na medida das necessidades. Já no segundo turno foi uma loucura total”.

GMN:O senhor não tem ideia de quanto sobrou?

COLLOR:“….Esses valores: em torno de cinqüenta e poucos milhões”.

GMN:O senhor tem ideia do que aconteceu com esse dinheiro?

COLLOR:“Não. Não tenho ideia”.

GMN:Uma das versões é de que este dinheiro teria sido enviado para fora do Brasil e administrado por PC Farias. O que é que o senhor diz dessa versão?

COLLOR:“Não sei. Não saberia dizer. Somente ele próprio. O que sei é que parte desses recursos foi aplicada nas eleições de 1990. Houve eleições para governadores, deputados, senadores. Parte desses recursos serviram para ajudar os candidatos que apoiavam o governo na eleição que ocorreu em novembro de 1990”.

O LIVRO INÉDITO VAI PROVOCAR IMPACTO? “AH,SIM. E QUE IMPACTO….”

GMN: Por que é que o senhor continua guardando no fundo das gaveta o livro que escreveu sobre aquele período ? Quem são os alvos desse livro?

COLLOR:“Quando levei ao ministro Thales Ramalho alguns capítulos para que ele folheasse e dessa uma opinião,ele depois de uma leitura, tirou os óculos meneando a cabeça e disse: “Presidente, isso não pode ser publicado!”. As pessoas todas estão aí,vivas, têm seus parentes, têm isso, têm aquilo. Para que criar uma situação tão desagregadora como essa? O que passou passou ”.

Verifiquei que ele tinha razão. Em alguns momentos, depois disso, eu colocava o disquete no computador: por curiosidade, ia lendo. Numa primeira vez,comecei a fazer correções, sempre atenuando.Mas me lembrei do que ele também falou nessa conversa.Disse-me: “O que acho importante é que o senhor coloque isso e escreva para que não se vá a emoção do momento – que tem de ficar registrada para que os pósteros possam entender a emoção que o dominava logo após o seu afastamento e entendam dentro dessa ótica”. Eu, então, disse: não, não vou mais reler. Vou deixar como está, para atender ao aconselhamento do ministro Thales Ramalho”.

GMN:Quando,afinal,o senhor vai publicar esse relato?

COLLOR:“Não tenho a menor ideia”.

GMN: Mas o senhor tem certeza de que vai criar um impacto na política brasileira ?

COLLOR:” Ah,sim. E que impacto…..”

OS BASTIDORES DO BLOQUEIO DAS CONTAS CORRENTES E DA POUPANÇA NO “PLANO COLLOR”: ASSIM SURGIU A IDÉIA

GMN:Durante a campanha,o senhor dizia que o candidato do PT é que iria tomar medidas drásticas. Iria mexer na poupança. Mas o senhor é que terminou mexendo. O senhor estava mentindo para conquistar votos?

COLLOR: “Não! Não estava mentindo. As primeiras reuniões que fazíamos com a equipe econômica,o principal algo, até porque eu havia colocado isso muito insistentemente durante a campanha, era que nós só teríamos uma única chance de debelar a inflação.Nós iríamos debelá-la num ipon – um golpe de lutas marciais em que a luta termina pela perfeição do golpe dado. Nessa luta contra a inflação, eu dizia: “Vamos dar um ipon na inflação, vamos acabar com ela”. Isso gerou um compromisso muito forte, já que era algo que atormentava o cotidiano da população brasileira de forma muito presente, muito acintosa. Íamos por um caminho para ver como isso poderia acontecer de forma rápida, enveredávamos por outro. Mas nesse vai-e-vem não encontrávamos nenhuma medida plausível para que ficasse claro que com esse tal do ipon, uma medida econômica que fosse rápida, pudesse ser estancado o processo inflacionário. Comecei,então, a ouvir economistas e pessoas do mercado para saber deles a opinião que tinham sobre as alternativas dispostas para que estancássemos este processo. Um desses encontros me marcou bastante porque dele participaram o ex-ministro Mário Henrique Simonsen, o economista André Lara Resende e, naquela época, o homem de mercado Daniel Dantas. Convidei o professor Simonsen e ele se fez acompanhar desses outros dois brasileiros. Em nossa conversa, perguntei: Como é que o senhor acha, ministro, que o governo nosso pode debelar a inflação rapidamente?”. E ele ficava conjecturando, pensando em voz alta, intercalado por comentários ora de André, ora de Daniel.Todos chegavam a uma mesma conclusão: quando terminavam de engendrar um raciocínio, diziam :”Mas isso, com liquidez de que o mercado hoje dispõe, é impossível. Não dá, não dá”. André é que chegou e disse:”Mas ministro, há uma saída: estancar essa liquidez”. Usava uma palavra mais suave para aquilo que acabou sendo feito pelo meu governo.Vira-se André e diz: “Ministro, isso pode ser politicamente difícil de fazer ou impossível de fazer, mas tecnicamente não é a saída? “. O ministro disse:”Tecnicamente é a saída, mas não vamos nem adentrar mais nesse assunto, porque politicamente isso é inviável “.

Aquilo me marcou: o ministro dizendo que tecnicamente era a saída, mas politicamente era inviável. Porque dificilmente um governo poderia implementar aquilo sem que houvesse uma comoção nacional – e com desdobramentos até imprevisíveis. Começou a se formar dentro de mim a idéia de que teríamos de fazer, junto com o congelamento de preços, uma enxugada nessa liquidez.Nunca nos passou pela cabeça atingirmos a poupança.Nos passou pela cabeça,num primeiro momento, nós irmos em cima dos chamados “títulos ao portador”. Mas o mercado é muito esperto.Começou a haver um movimento de capitais saindo dessas aplicações de títulos ao portador e indo em direção à conta corrente e à poupança. Não houve outra maneira que não o de generalizar o chamado “bloqueio dos ativos” , algo que aconteceu pela primeira na história econômica mundial”.

GMN:Se o candidato Luís Inácio Lula da Silva tivesse vencido a eleição de 89 e tivesse bloqueado e a poupança e as contas correntes,o que é que teria acontecido com ele? O senhor acha que ele se sustentaria no poder?

COLLOR:“Vou me valer de um depoimento dado pelo hoje senador Aloísio Mercadante – que procurou a então ministra e disse: “Zélia, esse era o programa dos nosso sonhos. Só que tínhamos uma certeza: se Lula tivesse sido eleito e ele implementasse estas medidas, nós não teríamos condições de manter o governo. O governo cairia””.

GMN:Para ser bem direto: bloquear as contas correntes de milhões de brasileiros foi uma loucura ?

COLLOR: “Aquele foi um gesto que eu diria tecnicamente amparado – tomando o depoimento não somente do ministro Mário Henrique Simonsen mas também dos próprios integrantes da equipe econômica que se formava -, mas um ato de um voluntarismo muito grande e de coragem,sobretudo”.

GMN: A decisão, em última instância, foi do senhor?

COLLOR:”Sem dúvida, a decisão,em última instância,foi minha”.

AS DENÚNCIAS DO IRMÃO : “DETERMINANTES” PARA O IMPEACHMENT

GMN: Pedro Collor, o irmão que fez denúncias contra o senhor, escreveu que o senhor na presidência foi derrotado por sua própria megalomania. O senhor foi um megalomaníaco na Presidência?

COLLOR:”Não. Não. Talvez o termo esteja seguramente mal colocado. Carrego comigo aquela questão de perfeição, organização, ordem, disciplina. Pode ter achado serem atitudes megalômanas,mas não”

GMN:O senhor é “predestinado,inteligente, carismático,comunicativo, demagogo,irresponsável,ambicioso, vingativo e ganancioso”, segundo palavras textuais de Pedro Collor, publicadas em livro. Se não fossem as denúncias de Pedro Collor, o senhor acha que teria concluído o mandato?

COLLOR:“Não sei.Não saberia dizer…”

GMN:Como é que o senhor avalia o impacto daquelas denúncias no fim do governo Collor?

COLLOR:“Tiveram um impacto muito forte, sem dúvida. Aquilo foi determinante para que eu sofresse o impeachment e fosse afastado do cargo para o qual fui eleito por trinta e cinco milhões de eleitores”.

O MOMENTO DA VOTAÇÃO DO IMPEACHMENT: ENQUANTO O PAÍS ACOMPANHAVA A VOTAÇÃO, COLLOR FICAVA SOZINHO NO GABINETE PRESIDENCIAL

GMN: Por que, ao contrário do que se esperava, o senhor decidiu ficar sozinho no momento em que a Câmara dos Deputados votava o pedido de impeachment?

COLLOR: “Naquele momento, eu estava absolutamente só. Eu me lembro de que fiquei no meu gabinete sozinho, à noite já, somente com a luz em cima da minha mesa acesa. Vez por outra, um rumor ecoava da Câmara dos Deputados, onde se votava o meu afastamento. E eu ali, só,naquele silêncio, esperando.Por fim, ouvi um pipocar de gritos e vivas e de manifestações de regozijo e alegria. Em seguida, carros passando defronte ao Palácio do Planalto e buzinando, como se fosse uma festa, um grande acontecimento”.

GMN:O senhor pode revelar o que é que passava pela cabeça do senhor quando saía do Palácio do Planalto pela última vez ?

COLLOR (depois de um suspiro profundo):“É um turbilhão de coisas, um turbilhão de vontades, planos, ações, reações - um momento muito tumultuado, muito confuso”.

GMN:Por que é que o senhor decidiu que a solenidade (em que foi notificado oficialmente sobre a abertura do processo de impeachment) fosse transmitida pela TV e aberta a todo mundo?

COLLOR: “Porque eu queria que todo mundo presenciasse uma pantomima.Isso foi uma farsa,um jogo de farsantes,um jogo subalterno, sujo,inóspito,sempre. Que fique registrado por aqueles que escrevem a História. Porque eu faço a História, vocês escrevem a História. Que fique registrada a grande farsa em que se transformou esse afastamento, comemorado em cantos e loas como uma demonstração da vitalidade da nossa democracia,quando,ao contrário,a fragilidade nossa democracia. Demonstrou o quão frágeis são as nossas instituições.E como é importante ter uma grande e ampla reforma política: atores que votaram e me levaram para fora da presidência da República não poderiam nem teriam condições morais, éticas e de caráter de participarem daquela votação. Basta ver a fisionomia e os ditos que cada um pronunciava para as câmeras de televisão, para se ter notícia da grande patomima em que se transformou este processo de impeachment”.

GMN: Com sessenta anos de idade, qual é a grande crítica que o senhor faz ao Fernando Collor de quarenta anos, o mais jovem presidente da República eleito no Brasil?

COLLOR:“A grande crítica que faço é à pouca capacidade que tive de perceber que ninguém governo sem uma base parlamentar sólida. Dentro desse presidencialismo de coalizão em que estamos inseridos – um sistema político inteiramente ultrapassado e defasado, daí eu defender com ênfase o sistema parlamentarista – ninguém pode pode governar sem o Congresso. Disso não me dei conta o suficiente, embora alertado por companheiros e amigos como Luís Eduardo Magalhães, Ricardo Fiúza, Humberto Souto,o senador Ney Maranhão, uma plêiade de deputados e senadores que sempre me alertavam para a necessidade de compor esta maioria parlamentar.Isso,sem dúvida nenhuma,foi o ponto principal,o ponto nevrálgico: ao não dar a devida atenção, fez com que eu incorresse no grande erro que cometi no meu governo”.

GMN:O senhor entrou para a história política do Brasil por dois grandes motivos: primeiro, por ter sido o primeiro presidente eleito pelo voto direto depois do regime militar. Segundo, por ter sido o primeiro a ser afastado num processo de impeachment.O senhor hoje tem a sensação de ter jogado fora uma grande oportunidade histórica?

COLLOR:“Ah, sem dúvida que sim. O presidente mais jovem das Américas e também o presidente mais jovem da história do Brasil.Sem dúvida,foi uma pena que tivessem acontecido aqueles eventos que culminaram com o meu impeachment. Lamento profundamente. Impechment que ocorreu em função da pouca maturidade que eu tinha”.

GMN:O senhor disse que chegou a pensar em suicídio nos meses seguintes ao impeachment e até gravou uma fita com uma mensagem que seria deixada para a família.O senhor guardou esta fita?

COLLOR: “Está guardada”.

GMN: Chegou a ouvi-la depois?

COLLOR: “Não”

GMN: O senhor tem lembrança do que passou pela cabeça do senhor no exato momento em que assinou a renúncia à Presidência da República?

COLLOR: “O ato da renúncia foi assinado na Casa da Dinda, na madrugada do dia em que o Senado iria iniciar o meu julgamento político. Isso foi logo em seguida a um jantar, em que reuni os senadores e alguns deputados que estavam nos apoiando e nos sustentando até então, para combinarmos o que poderia acontecer no dia seguinte.Quando terminou o jantar – e teríamos número para evitar o impeachment – , não sei por que, mas alguma coisa bateu na cabeça. Pensei: “esse pessoal vai trair”. Já tinha ocorrido na Câmara, por que não no Senado? Eu aí disse: não. Eu vou renunciar para tentar evitar a suspensão dos meus direitos políticos”.

Posted by geneton at 05:46 PM

dezembro 06, 2009

NIKLAS FRANK

O FILHO DE UM CARRASCO NAZISTA:”NÃO POSSO VIVER EM PAZ COM A LEMBRANÇA DO MEU PAI. NÃO QUERO (..) NUNCA PUDE ENTENDER COMO É QUE OS ALEMÃES PUDERAM FAZER AQUILO.MAS FIZERAM”

Segunda e última parte da entrevista com um dos personagens mais fascinantes que tive a chance de entrevistar: filho de um dos maiores carrascos nazistas (ver post anterior), Niklas Frank vive em guerra contra a lembrança do pai, Hans Frank, o “açougueiro da Polônia”, responsável pelo extermínio de milhões de seres humanos:

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Niklas Frank: lembrança do pai é um fardo pesado (Foto:GMN)

É verdade que o senhor, como criança, se divertiu num campo de concentração sem ter noção de onde estava?

“É verdade. Fui com meu irmão, em companhia de nossa babá, para um pequeno campo, ligado a um grande campo de concentração. O oficial que estava no comando do campo obrigava uma pobre criatura, um homem magro, a montar num burrico. Em segundos, o homem caía de cima do animal. Eu ficava rindo o tempo todo! Porque, para uma criança como eu, era engraçado ver adultos jogados de cima de um burrico. Eu tinha quatro, cinco anos de idade.

Depois, ganhávamos chocolate para comer. O dia era maravilhoso. Somente depois é que descobri que aquilo era uma crueldade. Os adultos que o comandante tinha obrigado a subir no animal estavam quase mortos de fome. Eram judeus. Aquilo era um tipo de humor alemão”.

A lembrança destas cenas é o pior problema de consciência que o senhor tem ?

“A cena dos judeus no burrico é uma das muitas imagens que guardo em minha mente. Eu não diria que é a pior. A maioria das lembranças vem das imagens que vi em livros e jornais. A pior de todas é a imagem dos corpos amontoados. Nunca pude entender – nem hoje, que tenho sessenta e tantos anos de idade – como é que os alemães puderam fazer aquilo. Mas fizeram”.

Hans Frank foi responsável pela morte de quantas pessoas? É possível calcular?

“Não existe um número específico. Não dá para contar. Meu pai foi responsável pelo holocausto na Polônia, nos assim chamados campos de extermínio, onde matavam poloneses e judeus. Os campos de Sobibor e Treblinka estavam na área administrada por ele. O meu pai, portanto, era a maior autoridade ali. Era responsável pela morte de cada judeu, cada polonês, cada um de todos os outros judeus que foram deportados de outros países da Europa para os campos de concentração na Polônia”

“Meu pai sempre quis matar os judeus. Minha resposta é sim : meu pai foi inteiramente responsável pelo campo de concentração de Auschwitz”

É justo dizer que Hans Frank foi responsável pelos horrores de Auschwitz?

“Com certeza. Desde antes do início do III Reich, meu pai já fazia discursos terríveis contra os judeus. É algo que ele levou até o fim. Meu pai sempre quis matar os judeus. Minha resposta, então, é sim : meu pai foi inteiramente responsável pelo campo de concentração de Auschwitz”.

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Hans Frank: o carrasco seria enforcado no Tribunal de Nuremberg

O filho de outro criminoso de guerra disse que o senhor era “um demônio” porque denunciou o próprio pai. Como é que o senhor recebe uma crítica dessa?

“Para dizer a verdade, eu não esperava tal reação. Fiquei surpreso quando filhos de outros criminosos nazistas, como Hess, Shirach e Goering, se recusaram a ter qualquer contato comigo. Emissoras de TV tentaram nos reunir numa mesa-redonda, mas todos se recusaram a aparecer ao meu lado.

O que aconteceu é que destruí uma maneira de lidar com pais criminosos. Devo dizer que fiquei feliz por ter agido assim. Mas não sou o demônio. O que fiz foi, apenas , dizer a verdade. O fato de ser filho de quem sou não me levou a perdoá-los.

O que eu tinha de fazer era decidir: eu deveria defender o meu pai apenas porque ele me aciriciava na cabeça quando eu era criança ou eu deveria, pelo contrário, levar em conta a montanha de corpos que ele deixou atrás de si? A escolha foi fácil”.

Quando é que o senhor viu o pai pela última vez ? Qual é a lembrança que o senhor guarda desse dia?

“Guardo a lembrança da minha última visita à prisão de Nuremberg. Eu estava sentado o colo de minha mãe. Havia uma parede de vidro. O meu pai estava do outro lado do vidro, junto com soldados de capacetes brancos. Nunca me esquecerei deste detalhe.

“Eu sabia que o meu pai seria enforcado dentro de duas ou três semanas. Mas ele me disse que nós iríamos em breve comemorar o Natal, em nossa casa. Sempre perguntei a mim mesmo : “Por que ele estava mentindo para mim?” “

Ali,o meu pai mentiu para mim. Eu sabia que ele seria enforcado dentro de duas ou três semanas. Mas ele me disse que nós iríamos em breve comemorar o Natal, em nossa casa. Sempre perguntei a mim mesmo : “Por que ele estava mentindo para mim?”. Afinal, ele sabia que iria morrer em breve. Eu também sabia. E tinha sete anos de idade.

Terminada a visita, nós saímos daquela sala pequena . Eu estava muito decepcionado, Porque o meu pai não deveria ter agido daquele jeito. Deveria ter dito: “Nicklas, você tem sete anos de idade. Vou morrer. Fiz coisas terríveis durante toda a minha vida. Eu me arrependo muito. Por favor, não faça o que fiz. Tente levar uma vida honrada. Não a vida de um criminoso como eu”.

Assim, eu poderia ter amado meu pai por estas últimas palavras. Mas ele apenas me disse: “Nicki! Vamos festejar o Natal. Vamos nos divertir bastante juntos!”.

Não faz sentido. Aquela foi a última mentira do meu pai. Depois de ter mentido durante a vida inteira, ele, por último, mentiu para o filho”.

O senhor confirma que um de seus irmãos nunca teve filhos porque gostaria que o sobrenome Frank desaparecesse do mundo?

“O meu irmão disse algo assim uma vez. Mas não faz sentido. Porque o sobrenome Frank, em alemão, é comum. É como Muller ou Becker. O fato de não querer dar o nome a um filho não quer dizer nada. Nunca fizeram algo contra mim. Quando eu dizia que meu nome era Nicklas Frank, ninguém sabia de quem se tratava. Mas eu sei que, se eu dissesse que meu sobrenome era Goering ou Himmler, teria passado por maus momentos na Alemanha logo depois da guerra. Porque eu soube da filha de Himmler e da filha de Goering que elas eram imediatamente rechaçadas quanto tentavam algum trabalho. Diziam a elas: “Vocês são filhas desses ? Não podemos fazer nada. Eu sinto muito,mas vocês têm de ir embora”.

Hans Frank, condenado número sete no Tribunal de Nuremberg. O que é este nome significa para o senhor, hoje? O senhor finalmente conseguiu ajustar contas com o passado?

“Nunca vou viver em paz com o meu pai. Porque não posso, jamais, perdoar o que ele fez. Não é apenas o meu pai: como ele, tantos outros alemães cometeram crimes indescritíveis. Todas estas imagens estão vivas em minha mente. São crimes horríveis. Não perdoamos. Não posso viver em paz com a lembrança do meu pai. Não quero. Porque encontrar a paz é encontrar uma maneira de perdoá-lo. E não posso perdoá-lo”.

Mas o senhor vive em paz com a consciência?

“Não tenho problemas de consciência. Por acaso, não sou brasileiro. Sou alemão. Carrego, portanto, responsabilidade pelo que os alemães fizeram, embora, pessoalmente, não seja culpado. Eu era jovem demais na guerra. Mas estou dentro da história deste povo.

“Não posso perdoar o que os alemães fizeram – não falo apenas dos nazistas, mas dos alemães – naqueles anos entre 1933 e 1945. Não posso encontrar paz com a Alemanha. Mas amo o país”

“Não posso, então, perdoar o que os alemães fizeram – não falo apenas dos nazistas, mas dos alemães – naqueles anos entre 1933 e 1945. Não posso encontrar paz com a Alemanha. Mas amo o país. Amo a história alemã até 1933: nós éramos um país criminoso, imperialista e normal, como tantos outros. Tínhamos maravilhosos imperadores, poetas. Tínhamos uma gente, um país, um campo maravilhoso. Mas aí aqueles inacreditáveis doze anos começaram, para arruinar tudo”.

Hans Frank se encontrou com um padre, na noite em que foi enforcado. O senhor depois procurou este padre. Qual é a importância desse encontro ?

“Para mim, foi importante encontrar o padre que tinha acompanhado o meu pai até a forca. Um ano antes do enforcamento, este padre já tinha batizado o meu pai na prisão. Isso quer dizer que o meu pai se tornara católico. Mas não acredito que ele fosse realmente religioso .

Penso que o meu pai esperava que, assim, poderia ter a chance de sobreviver se conseguisse, por exemplo, obter um perdão concedido pelo Papa em Roma. Meu pai contava com este recurso. O papa Pio XII ensaiou fazer. Mas o gesto foi imediatamente rechaçado pela delegação polonesa - que ficaria horrorizada se o Açougueiro da Polônia, como meu pai era chamado, pudesse sobreviver graças a um ato de perdão concedido pelo Papa e encaminhado a um tribunal internacional.

Como jornalista, eu tinha curiosidade sobre as outras pessoas, mas ,especialmente, por gente que tivesse se encontrado com o meu pai. De qualquer maneira, o padre com quem me encontrei não era um homem muito educado. Chegava a ser um pouco estúpido”.

É verdade que o senhor perguntou ao padre sobre o som produzido pelo enforcamento ?

“Perguntei ao padre como o meu pai estava se sentindo na prisão, como ele lidou com as acusações e com a condenação à morte e como se comportou na última noite antes de ser enforcado.

O padre me contou duas coisas significativas. Disse-me: “O seu pai tinha medo de sua mãe até na prisão de Nuremberg”. A outra : “A coisa mais terrível que aconteceu com ele no momento do enforcamento foi o barulho produzido pelo pescoço no momento em que foi quebrado. Dava para ouvir em todo o ambiente”.

Devo dizer que este foi o único relato que me fez chorar, porque tratava de uma cena horrível. Mas o padre me descreveu a cena com um sorriso, como se fosse uma piada. Aquilo foi horrível, mas também surpreendente: como o meu pai tinha sido batizado, tiveram de abrir um buraco no capuz que lhe cobria o rosto na hora do enforcamento. Somente assim, o padre poderia fazer o sinal da cruz na testa do meu pai na hora da extrema-unção. Loucura.

De uma maneira estranha, foi emocionante ouvir o pade falar sobre o ruído provocado pelo enforcamento do meu pai. Comecei a chorar. Talvez tenha sido o momento em que mais tive a sensação do que é ser levado à forca e cair no cadafalso, para o fim da vida.

“O meu pai foi o único dos condenados a entrar no local de execução, em Nuremberg, com um sorriso nos lábios. Eis aí um pequeno gesto que merece respeito. Devo dizer que achei esta atitude corajosa”

Mas não tive piedade por meu pai, porque ele merecia este tipo de morte. Como ele tinha feito com que milhões de pessoas sentissem algo parecido, ele deveria experimentar algo assim na pele. E experimentou.

O meu pai foi o único dos condenados a entrar no local de execução, em Nuremberg, com um sorriso nos lábios. Eis aí um pequeno gesto que merece respeito. Devo dizer que achei esta atitude corajosa.

Era o meu pai”.

O que é que levou o senhor a denunciar o próprio pai? O senhor foi movido por razões históricas ou pessoais?

“Em primeiro lugar, foram razões pessoais. Sou, por acaso, filho deste homem. Mas o que quero é dar um exemplo de como lidar, como alemão, com os pais e avós. Porque sempre se faz silêncio sobre o que realmente aconteceu no III Reich.

A motivação, portanto, foi pessoal: eu queria encarar o que meu pai e minha mãe realmente fizeram, porque, assim, poderia dar um exemplo sobre como lidar com este problema. Talvez a decisão que tomei tenha sido errada. Porque, depois da publicação do primeiro livro, alemães ficaram incomodados com o tipo de linguagem que usei e com as maldições que lancei que contra o meu pai . Não acho, então, que tenha sido bem sucedido ao agir assim”.

Com que frequência o senhor pensa no pai, hoje?

“Todo dia. Todo dia penso no meu pai e na minha mãe. Sim. Mas nunca dei a eles a permissão de conduzir minha vida. Vivi minha própria vida. Mas estas lembranças ainda me acompanham todo o tempo. Ainda os amaldiçôo. Não entendo o que eles fizeram”.

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Niklas Frank mostra ao repórter imagens do pai: um "pecado alemão"(Foto:Paulo Pimentel)

A entrevista com o filho do carrasco nazista foi publicada, na íntegra, no livro “DOSSIÊ HISTÓRIA” (Editora Globo)

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dezembro 03, 2009

NIKLAS FRANK - PARTE 1

O FILHO DESCOBRE QUE O PAI FOI UM DOS PIORES CARRASCOS NAZISTAS. RESULTADO: DECLARA GUERRA SEM TRÉGUAS CONTRA ELE (PARTE 1)

O DOSSIÊ GERAL publicou, esta semana, uma entrevista com o pai que escreveu um livro comovente sobre os dois filhos deficientes (ver post anterior).

Tive a chance de gravar uma longa entrevista, numa cidadezinha do interior da Alemanha, com um personagem que vivia uma situação radicalmente oposta : um filho que vivia em guerra contra a lembrança do pai - um carrasco nazista.

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Eis o que ficou do encontro com um dos personagens mais marcantes que já encontrei:

A casa fica no meio do nada, num povoado minúsculo, chamado Eklak, a duas horas de Hamburgo. É um paraíso, para quem quer se esconder do mundo. Ou um tormento, para quem tenta mas não consegue escapar de uma obsessão: em qualquer lugar em que esteja, Niklas Frank estará sempre em guerra contra a memória do pai. A simples menção do nome de Hans Frank provoca sobressaltos em Niklas Frank.

A obsessão do filho pelo pai renderia tomos e tomos de teses psicanalíticas. Seis décadas depois do fim da segunda grande guerra, Niklas Frank, o filho, não se cansa de cumprir o papel de cruzado solitário de uma causa que o mobiliza dia após dia, semana após semana, ano após ano: tudo o que ele quer na vida é manchar, destruir, maldizer, destroçar, espezinhar a memória do pai.

Que herança insuportável será esta- que alimenta a hostilidade do filho para com o pai? Nicklas não consegue conviver com a idéia de que traz, no DNA, a herança de um carrasco. É filho de Hans Frank,o “Açougueiro da Polônia”. O pai entrou para a história pela porta da infâmia: ministro da Justiça de Adolf Hitler, terminou indicado pelo chefe para o posto de governador-geral da Polônia ocupada, cenário das maiores atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial.

O “açougueiro” era um homem culto. Gostava de ópera. Cumpria as funções de advogado do partido nazista. Ao desembarcar na Polônia, instalou-se com a família num castelo, em Cracóvia. De lá, reinava, soberano, rodeado de serviçais, enquanto milhões de prisioneiros marchavam para as câmaras de gás dos campos de concentração ou penavam em trabalhos forçados. Advogado pessoal de Hitler, tinha poderes absolutos como interventor. O território governado pelo Açougueiro abrigava campos de extermínio, como Treblinka, Sobibór e Auschwitz.

O sentimento que o filho devota ao Pai é incômodo. Provoca estranheza. Causa pena. Desperta compaixão. Mas é irremovível: Niklas Frank não perdoa, sob hipótese alguma, as atrocidades que o Pai comandou

Em seus diários, falava sem meias palavras sobre a necessidade de exterminar o que ele considerava as “forças demoníacas” :

“Pertenço, até a última fibra do meu ser, ao Fuhrer e à gloriosa missão que ele comanda. Daqui a mil anos, a Alemanha ainda proclamará o mesmo. Servir à Alemanha à servir a Deus.Se Cristo reaparecesse na terra, seria como um alemão. Somos, na verdade, a arma de Deus para a destruição dos poderes demoníacos da terra. Nós guerreamos, em nome de Deus, contra os judeus e o bolchevismo.Que Deus nos proteja!”.

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Hans Frank(de preto), ao lado de Adolf Hitler: o "Açougueiro da Polônia"

Isolado do mundo neste povoado do interior da Alemanha, o filho que tem horror ao Pai sorve uma caneca de café como quem bebe água. Quando a caneca fica vazia, ele interrompe por instantes a entrevista e vai à cozinha, para coletar uma nova dose de cafeína. Os olhos estão fixos numa foto em que o Pai, destinatário da ira acumulada no peito durante décadas, aparece sorridente ao lado de Adolf Hitler. O sentimento que o filho devota ao Pai é incômodo. Provoca estranheza. Causa pena. Desperta compaixão. Mas é irremovível: Niklas Frank não perdoa, sob hipótese alguma, as atrocidades que o Pai comandou.

Num texto que causou polêmica porque desagradou parte da opinião pública alemã, Niklas Frank escreveu:

“Vem, pai, deixe-me despedaçar o orgulho de tua vida!”.

Julgado e condenado a morrer na forca no Tribunal de Nuremberg, Hans Frank foi executado no dia 16 de outubro de 1946, aos quarenta e seis anos de idade. Deixou cinco filhos. Tentou se matar duas vezes na prisão, porque sentiu que não sairia dali com vida. As duas tentativas de suicídio fracassaram.

A acusação que pesava contra Hans Frank : co-autor de crimes contra a humanidade. Suas últimas palavras: “Jesus, tenha piedade!”.
.
Dos cinco filhos do Açougueiro da Polônia, Niklas foi o único que se dedicou à tarefa de denegrir por todos os meios a imagem do pai. Diz que o pai não merece piedade. Porque o mundo não pode, diz ele, se esquecer dos crimes cometidos por gente como Hans Frank.

Nascido seis meses antes do início da guerra, Niklas Frank guarda traumas que, para ele, são incuráveis. O rosto de Niklas Frank assume um ar grave quando ele descreve cenas que, na infância, lhe pareciam inofensivas mas, depois, assumiram um tom tétrico: não se esquece de quando foi levado a um campo de prisioneiros para se divertir com a visão de homens esquálidos que, sob a ordens de guardas, eram obrigados a montar em burros apenas para serem, em seguida, derrubados no chão. Anos depois, já adulto, é que entendeu o horror do que testemunhara.

Os sobressaltos se acumularam. Descobriu que o pai, um carrasco nazista, teve um caso homossexual quando jovem. A mãe colecionava amantes. Serviçais do castelo na Polônia descreveram cenas escatológicas

Niklas Frank estudou história, sociologia e literatura alemã, mas fez carreira como jornalista da revista Stern. A dedicação ao jornalismo explica a obsessão com que revirou cada detalhe da vida do pai e da mãe.

Os sobressaltos se acumularam. Descobriu que o pai, um carrasco, teve um caso homossexual quando jovem. A mãe colecionava amantes. Serviçais do castelo na Polônia descreveram cenas escatológicas: uma vez, já cansado de grosserias, um maitre urinou dentro da terrina que seria levada à mesa em que os Frank entretinham convidados. Os comensais degustaram a sopa, sem suspeitar da sujeira.

Aposentado, Niklas Frank recolheu-se ao povoado no interior da Alemanha. Vive com a mulher. A filha única já saiu de casa.
De vez em quando, entre uma e outra resposta que pronuncia com ar grave, ele brinca comigo e com o cinegrafista Paulo Pimentel, como se quisesse desanuviar a gravidade das cenas que descreve. Quando digo que vou gravar as perguntas em português, ele recomenda:

- Fale o português clássico – não aquele português cheio de gírias que você usa lá onde você mora!

Permite-se um comentário sobre a pífia atuação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2006. Diz que os brasileiros não jogaram nada.

A pregação de Frank destoa do coro dos que dizem que o nazismo é uma página virada na história alemã. O alemão Frank diz que a Alemanha não vai se desvencilhar desse fardo. A mancha, diz ele, é irremovível.

Quando confrontado com os crimes que cometeu, o pai de Niklas Frank declarou ao Tribunal de Nuremberg :

- Mil anos se passarão antes que a culpa da Alemanha desapareça.

O Reich – que duraria mil anos – se tornou um fardo de mil anos. Neste ponto, pai e filho concordam.

“Depois de toda guerra/ alguém tem de fazer a faxina/As coisas não vão se ajeitar sozinhas/ Alguém tem de tirar o entulho das ruas/para que as carroças possam passar com os corpos/Alguém tem que abrir caminho pelo lamaçal e as cinzas/as molas dos sofás/ os cacos de vidro/os trapos ensangüentados(…)/Não é fotogênico e leva anos/ Todas as câmeras já foram para outra guerra” – é o que reza o poema “O Fim e o Início”,escrito pela polonesa Wislawa Szymborska e divulgado no Brasil pela revista Piauí.

Aos olhos de Niklas Frank, o desfile das carroças nunca acabou.Não vai acabar nunca. Porque elas estão levando as centenas de milhares, os milhões de corpos dos prisioneiros que perderam a vida sob as ordens de Açougueiro da Polônia.

Niklas Frank poderia ser personagem deste poema. É alguém que, solitariamente, se dá ao trabalho de fazer a faxina moral da família Frank, para que as carroças possam passar com os corpos. Aos olhos de Niklas Frank, o desfile das carroças nunca acabou. Não vai acabar nunca. Porque elas estão levando as centenas de milhares, os milhões de corpos dos prisioneiros que perderam a vida sob as ordens de Açougueiro da Polônia.

A gravação completa do nosso encontro com o filho do Açougueiro da Polônia, numa manhã gelada de Eklak, sob um céu de chumbo que prenunciava tempestade e nevasca:

Qual foi a primeira reação que o senhor teve quando descobriu que tinha um pai que era um notório criminoso de guerra?

“Eu era criança no momento em que os jornais voltaram ser publicados de uma maneira democrática, logo depois da guerra. Vi fotos de montanhas de corpos. As legendas das fotos sempre traziam a palavra “Polônia”. Como criança, eu sempre soube que a Polônia era nossa! Em me perguntava: o que será que a Polônia tinha a ver com aquela montanha de corpos? Tive,ali, o primeiro choque. Devo dizer que este choque me acompanha por toda a minha a vida, até hoje: ali, descobri que eu era membro de uma família criminosa.

Três das minhas irmãs caminharam em outra direção: recusaram-se a reconhecer o que este tipo de foto mostrava. Diziam que aquilo era propaganda dos russos e das forças aliadas, os vitoriosos da guerra . Fui em outra direção . Doeu, com certreza. Tive o primeiro choque ao ver as fotos nos jornais. Eram corpos de crianças que tinham a minha idade!

Enquanto eu estava brincando e levando uma vida maravilhosa em Cracóvia, os nazistas estavam jogando crianças contra a parede , para matá-las, ou mandando-as para as câmaras de gás dos campos de concentração, a apenas trinta quilômetros dali. Tive um choque”.

Hans Frank foi condenado e executado no Tribunal de Nuremberg. Ao denunciá-lo novamente, o senhor não acha que deu a ele uma segunda setença de morte?

“Com certeza. Eu sentenciei de novo o meu pai à morte. Tentei encontrar algo de positivo sobre a vida do meu pai, mas não consegui. Porque ele era um mentiroso. Tinha um caráter truculento. Era um grande, um grande covarde.

Não encontrei nada que fizesse com que ele merecesse uma pena menor, como a prisão perpétua. Eu teria de condená-lo de novo à morte, por enforcamento. É uma pena, mas, para mim, esta é a maneira correta de agir. Tentei encontrar, na vida do meu pai, algo que ele pudesse ter feito contra Hitler ou para salvar vidas. Mas ele nunca fez algo assim. Tudo o que ele queria era ser amado por Hitler. Era a única coisa que importava para o meu pai. A única coisa!

O que ele sentia por Hitler era um amor profundo. Eu diria que era um relação quase homossexual. Descobri que meu pai teve uma experiência homossexual quando jovem, com dois professores. A ideologia do nazismo era totalmente contra a homosexualidade. Então, ele tinha de lutar para que ninguém descobrisse.

O meu pai era um homem tão bem educado e, ao mesmo tempo, tão estúpido”….

O senhor acha que o trauma deixado pelo regime nazista um dia vai ser superado, na Alemanha?

“Não acredito que exista trauma. Os alemães, especialmente gente comum, tentaram bastante que todo mundo se esquecesse do que tinha acontecido no III Reich : todas as coisas ruins que ocorreram durante aqueles doze estranhos anos. Mas tivemos a sorte de termos sido forçados a lembrar do que aconteceu. Todos irão se lembrar sempre daqueles doze anos sangrentos.

Só espero que ninguém se esqueça daqueles anos, tanto aqui na Alemanha como fora. Todo mundo na Alemanha quer comparar os crimes de guerra alemães com outros crimes, como, por exemplo, o bombardeio de Dresden ou o que aconteceu no Vietnam ou na Coréia ou em Hiroshima.

Todos, no mundo todo, sabem que aquele foi o único período da história universal em que um povo altamente industrializado promoveu o extermínio em massa de gente inocente, em escala industrial. Não se pode comparar com nada.

Ao fazer estas comparações, os alemães querem diminuir os seus próprios crimes. Graças a Deus, não conseguiram. Porque todos, no mundo todo, sabem que aquele foi o único período da história universal em que um povo altamente industrializado promoveu o extermínio em massa de gente inocente, em escala industrial. Não se pode comparar com nada. O Holocausto foi um comportamento alemão, um crime alemão”.

A SEGUIR: A LEMBRANÇA DA INFÂNCIA : O FILHO DO CARRASCO NAZISTA SE DIVERTE NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO, SEM TER IDÉIA DO QUE ACONTECIA LÁ

Posted by geneton at 05:56 PM

novembro 30, 2009

JEAN-LOUIS FOURNIER

O PAI DE DUAS CRIANÇAS DEFICIENTES ESCREVE O QUE OUTROS PAIS NÃO TERIAM CORAGEM DE ESCREVER. RESULTADO: UM BELO LIVRO

Fiz,em 2.000, uma entrevista de vinte horas (!) de duração com um jornalista que tinha se especializado em comandar redações : Evandro Carlos de Andrade. Vinte horas! Dez sessões de duas horas cada. Fiz um rosário de perguntas sobre o Diário Carioca, o Globo, a Rede Globo de Televisão.

A entrevista permanece inédita. Evandro morreu em 2001, quando comandava a Central Globo de Jornalismo. Tinha dirigido a redação do Globo por anos. Prometido: a entrevista um dia vai ser publicada, porque é um registro importante sobre a história da imprensa brasileira nas últimas décadas.

Um detalhe me chamou a atenção. Depois de falar de presidentes, ministros, campanhas, eleições, revoluções, vitórias, derrotas, grandezas e fraquezas, Evandro concluiu: o sentido da vida são os filhos. Ponto final. Não era nem o jornalismo nem a carreira nem a política nem o dinheiro nem a literatura nem a religião. Nada. Eram os filhos. E assunto encerrado.

Eu me lembrei do comentário sucinto mas inequívoco de Evandro Carlos de Andrade ao terminar a leitura de um livro belo e perturbador sobre filhos. Título: “Aonde a gente vai, papai?” (“Où on va, papa?”) . Autor: Jean-Louis Fournier. Editora: Intrínseca.

Fournier é um diretor de programas de TV francês. Teve dois filhos deficientes. Nomes: Mathieu e Thomas. A experiência, claro, deixou marcas profundíssimas na vida de Fournier – que, depois de décadas de silêncio, resolveu escrever sobre o assunto. O livro fez um enorme sucesso na França. Os filhos ficaram adultos. Um já morreu. O outro vive internado numa espécie de clínica de repouso.

Fournier teve a imensa coragem de escrever o que outros pais que viveram experiência semelhante podem até ter pensado mas dificilmente teriam coragem de confessar : diz,por exemplo, que, ao levar os filhos deficientes para passear de carro, pisava no acelerador e fechava os olhos, porque achava que um acidente na estrada poderia ser uma “solução” para tantos planos irrealizados, tantos silêncios, tantas impossibilidades. Mas, ao contrário do que as aparências possam fazer supor, o sentimento de Fournier pelos dois é de paixão.

Faço contato com o pai corajoso – o escritor que expôs, em livro, os dilemas e dubiedades provocadas pela dupla experiência.
“Se vocês fossem como os outros, eu talvez tivesse tido menos medo do futuro. Mas, se vocês tivessem sido como os outros, seriam como todo mundo”

Trechos do livro:

“Quando se fala de crianças deficientes, assume-se um ar circunspecto, como quando se fala de uma catástrofe. Ao menos uma vez, eu gostaria de falar de vocês com um sorriso. Você me fizeram rir, nem sempre involuntariamente”.

“Graças a vocês, tive algumas vantagens em relação aos pais de crianças normais. Não me preocupei com seus estudos nem com orientação profissional. Não tivemos de hesitar entre uma carreira científica ou literária. Nem de nos inquietar quanto ao que vocês fariam mais tarde – soubemos rapidamente o que seria: nada”.

“Se vocês fossem como os outros, eu os teria levado ao cinema, teríamos visto juntos os velhos filmes de Chaplin, Eisenstein, Hitchcock, Bunuel e outra vez Chaplin(…)Se vocês fossem como os outros, eu os teria levado ao baile com suas namoradas em meu velho carro conversível(…)Se vocês fossem como os outros, eu teria tido netos. Se vocês fossem como os outros, eu talvez tivesse tido menos medo do futuro. Mas, se vocês tivessem sido como os outros, seriam como todo mundo. Talvez não tivessem se interessado por nada na escola. Teriam gostado de Jean-Michel Jarre. Teriam se casado com uma idiota. Teriam se separado. E talvez tivessem tido filhos deficientes. Escapamos de boa”.

“Aqueles que nunca tiveram medo de ter um filho que não fosse normal que levantem a mão. Ninguém levantou.Todo mundo pensa nisso como pensa num terremoto, como pensa no fim do mundo – algo que só acontece uma vez. Eu tive dois fins do mundo”.

“Quando eu era jovem, desejava ter mais tarde uma escadinha de filhos. Eu me via escalando montanhas cantando, atravessando oceanos com pequenos marinheiros que se pareceriam comigo, percorrendo o mundo seguido de uma alegre tribo de crianças curiosas de olhar vivo, às quais eu ensinaria muitas coisas – os nomes das árvores, dos pássaros e das estrelas(…)Crianças para quem eu inventaria histórias engraçadas. Não tive sorte. Joguei na loteria genética, perdi”.

“Nunca compreenderei por que foram punidos com tanto rigor. É profundamente injusto, eles não fizeram nada. Isso parece um terrível erro judiciário”.

“Queríamos poder tê-lo defendido da sorte que se havia agarrado a ele. O mais terrível é que não podíamos fazer nada. Não podíamos sequer consolá-lo, dizer-lhe que o amávamos assim como era – tinham-nos dito que ele era mudo. Quando penso que sou o autor dos dias dele, dos dias terríveis que ele passou na Terra, que fui eu quem o fez vir, tenho vontade de lhe pedir desculpas”.

“Quando estou sozinho no carro com Thomas e Mathieu, passam-me às vezes pela cabeça ideias estranhas. Penso que se sofresse um grave acidente de carro talvez fosse melhor. Estou ficando cada vez mais insuportável de conviver – e as crianças crescem e ficam cada vez mais difíceis. Então, fecho os olhos e acelero – mantendo-os fechados o maior tempo possível”.
“Quando acontece algo assim, a gente não costuma falar. É como um tremor de terra, é como o fim do mundo”

A entrevista de Jean-Louis Fournier ao DOSSIÊ GERAL:

O senhor não costumava falar sobre seus filhos. Por que mudou de atitude?

Jean-Louis Fournier: “Quando acontece algo assim, a gente não costuma falar. É como um tremor de terra, é como o fim do mundo. Quando a gente vê um tremor de terra, a gente espera que ele termine, antes de falar sobre ele. Porque, quando a gente sofre um tremor de terra, há tantas coisas a fazer que não se pode refletir. Não há tempo para escrever.É preciso esperar que a poeira baixe. É exatamente o que aconteceu comigo. Agora que um dos meus filhos morreu – e outro vive numa clínica- , já não tenho problemas domésticos ou problemas práticos a serem enfrentados. Posso, então, refletir. E mais: já não sou jovem. Tenho setenta anos. Sou biodegradável. Já não posso esperar tanto, se desejo deixar uma lembrança dos meus filhos. Fiz o livro também para deixar uma lembrança, um marca dos dois. Porque as crianças deficientes não deixam marcas na vida. Não falamos sobre elas. Os outros,em geral, nem sabem que elas existem. Quando eles morrem, não dizemos a ninguém. Não há nada. Com meu livro, quis fazer com que eles passassem a existir. Quis fazer com que eles fossem conhecidos no mundo inteiro”.

O senhor conseguiu, já que eu, por exemplo, estou ligando do Brasil para falar dos seus filhos….

Jean-Louis Fournier: “O que é extraordinário é que, quanto a estas crianças, ninguém pergunta por elas. As pessoas ficam incomodadas. Porque a verdade é que não há nada a dizer sobre as crianças deficientes. Não podemos dizer: o que é que elas estão estudando? Fizeram provas? Arranjaram uma namorada? A única resposta que a gente pode dar, quando alguém nos pergunta o que é que nossos filhos deficientes estão fazendo, é: “nada”.O que é que eles fazem? Nada. O que é que eles fazem? Nada. Não me perguntavam nunca sobre eles. Agora, quando um dos meus filhos já nos deixou – e o outro quase já não vive entre nós -, os que leram meu livro me pedem notícias dos dois”.

Qual foi a lição mais importante que você aprendeu com seus filhos?

Jean-Louis Fournier: “A lição mais importante….(pausa) foi : o fato de não ser parecido com os outros não quer dizer, necessariamente, que você não seja tão bom quanto os outros. As crianças deficientes são um mistério. Não temos o direito de dizer que a vida que elas vivem não é interessante, já que não sabemos. A vida de cada um é diferente. A frase que não gosto de ouvir – mas que ouvi algumas vezes – é : “Eu me coloco no lugar dessa criança”. Ora, ninguém pode se colocar no lugar de outro. Não podemos dizer que a vida de um gato é menos interessante do que a vida de um político ou de um sábio. Não sabemos”.

Por que o senhor diz que não se considera um bom pai ?

Jean-Louis Fournier: “Não fui porque sou impaciente. Não sei ser paciente. Perco logo a cabeça. Quando eles choravam de noite, eu tinha vontade de jogá-los pela janela. Não creio, portanto, que tenha sido um pai tão bom. Com essas crianças, é preciso ter uma paciência de um anjo. E não sou um anjo”.

O que é o senhor pode dizer a um pai que tenha o mesmo problema que o senhor teve?

Jean-Louis Fournier: “Digo que não há uma criança deficiente: há uma criança que, por ser não ser como as outras, é um mistério. Dizem que são menos inteligentes do que as outras. O que é que elas significam ? Que há diferentes formas de inteligência. Ouço coisas como: se a Terra fosse povoada apenas por pessoas normais e inteligentes,a vida seria impossível. Porque a vida seria parecida com um estádio, onde cada um tentaria ser o primeiro. Mas, graças a essas crianças, há coisas que valorizamos, como o sonho, a inutilidade, a poesia. Porque de certa maneira elas são poetas, já que não estão integradas ao nosso mundo moderno: não vivem, por exemplo, tentando ganhar dinheiro. Vivem no sonho. Creio que o surrealismo é próximo do que essas crianças são. Há poemas surrealistas que poderiam ter frases ditas por crianças deficientes. É o que quero dizer. O que aprendi com meus filhos é que crianças deficientes são uma forma de poesia”.

Posted by geneton at 06:13 PM

novembro 27, 2009

PAULO COELHO

PAULO COELHO CONVOCA: “SINTAM-SE LIVRES PARA INSULTOS”

Paulo Coelho, o escritor brasileiro que se tornou um espantoso fenômeno de vendas no Brasil e no exterior, dá sinal de vida no DOSSIÊ GERAL.

O blog publicou trechos da entrevista em que um professor emérito da Universidade de Brasília, Édson Néry da Fonseca, cita Paulo Coelho como exemplo de “subliterato” ( ver post anterior)

Já habituado a levar bordoadas, o mago Paulo Coelho informa que, por coincidência, criou, há apenas uma semana, um espaço virtual para armazenar as críticas que lhe são feitas.

Uma nota pessoal: estive poucas vezes com Paulo Coelho. Uma vez, incomodei-o no apartamento com vista para o mar que ele mantém em Copacabana. Fui até lá para antecipar uma gravação que ele faria para um programa da TV Globo.

Eu me lembro de que ele contou que cultuava uma pequena esquisitice: adorava o “boa noite” que a apresentadora Lílian Witte Fibbe dava no final dos telejornais. Chegou a gravar uma fita com uma coleção de “boas noites”.

Em resumo: se fosse possível resumir em uma frase a impressão que Paulo Coelho deixou, eu diria, sem hesitar, que ele é “do bem”. Parece imune às tentações do megasucesso. Passa a impressão de uma simplicidade pouco vista em personalidades internacionalmente aclamadas, como ele é.

O mago PC é um brasileiro vitorioso. Faz sucesso como escritor num país iletrado. A qualidade do que ele faz é aberta a discussões? É óbvio que é. Por que não seria ?

O próprio Paulo Coelho convoca os eventuais críticos a publicar seus insultos à vontade.

Eis a mensagem do mega best-seller Paulo Coelho ao DOSSIÊ GERAL:

“Muito engraçada a entrevista. Como diz um dos comentários, tem gente que quer aparecer apenas porque faz críticas – e neste caso conseguiu estar aqui neste blog. Isso dito, sintam-se livres para insultos: criei um lugar no meu blog na semana passada, especialmente para isso
http://paulocoelhoblog.com/2009/11/19/por-que-odeio-paulo-coelho-why-i-hate-paulo-coelho/
Os comentários são moderados, mas não censurados. Leiam os insultos de outras 700 pessoas ali”.

Posted by geneton at 06:13 PM

novembro 26, 2009

ÉDSON NÉRY DA FONSECA

INTELECTUAL QUE COMBATE SUBLITERATURA NÃO PODE PISAR NA ACADEMIA. MOTIVO: PODE LEVAR UMA SURRA DOS SUBLITERATOS

Aviso aos navegantes: o DOSSIÊ GLOBONEWS exibiu uma entrevista com o intelectual que combate a subliteratura, a ponto de ter sido aconselhado a não pisar numa academia de letras, porque corria o risco de levar uma “surra”:

http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1396570-17665-337,00.html

Édson Néry da Fonseca é uma figura rara, porque, num mundo dominado pelo culto à mediocridade, ao exibicionismo e à idiotia, vive de cultivar a beleza literária e as virtudes do silêncio e do recolhimento. Não por acaso, este professor emérito da Universidade de Brasília vive hoje num casarão antigo, ao lado do Mosteiro de São Bento, em Olinda. Faz sucesso em feiras literárias – como aconteceu na Flip – recitando versos belíssimos de Manuel Bandeira.

O homem que cultiva o silêncio, a poesia e a fé acaba de lançar um livro de memórias. Título: “Vão os dias e eu Fico”. Editora: Ateliê Editorial. Recomendado.

Um trecho da entrevista:

Qual é o verso mais comovente que o senhor conheceu ?

A importância da poesia descobri uma vez em que havia aqui no Recife um jornalzinho distribuído nas praias chamado “O Praieiro”. Um dia, publico neste jornal o poema de Carlos Drummond de Andrade Consolo na Praia. Quando chego à praia de Boa Viagem, aproxima-se de mim um médico amigo que me abraçou e me disse: “Muito obrigado! Eua ia me matar hoje mas não me matei por causa do poema de Drummond!”. Eu disse: “Que coisa!”. Ia se matar porque tinha um neto drogado, incorrigível. O poema:

“Vamos, não chores.
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou,
o segundo amor passou,
o terceiro amor passou,
mas o coração continua” (trecho)

O senhor diz que detesta escritores acadêmicos e subliteratos. O senhor poderia citar, se é que existe, uma grande virtude um escritor subliterato e e um grande defeito de um escritor acadêmico ?

“Não diria que sou contra escritores acadêmicos. Sou contra a academia porque não é o meu ideal de convivência literária. Que uma Academia como a brasileira tem grandes escritores não há dúvida nenhuma. O que sou é contra a subliteratura. Os subliteratos é que me aborrecem. Mas eles têm virtudes humanas. Podem ser pessoas boas e nobres. Não são culpados de serem subliteratos. A subliteratura é a literatice, a oratória – algo que prejudica muitos escritores -, o estilo empolado, também chamado de barroco, o que é uma injustiça aos grandes escritores barrocos que houve”.

Quem é subliterato hoje no Brasil?

“Vou minimizar. Não posso entrar na Academia Pernambucana de Letras porque, numa entrevista que dei ao Jornal do Commercio, disse que ela era um reduto de medíocres.Quando o meu amigo José Paulo Cavalcanti Filho se elegeu, disse que não dispensava minha presença na posse. Mas,na véspera, veio à minha casa às oito da manhã pedir para eu não ir. Perguntei: por quê?. E ele me disse que fizera uma sondagem: “Disseram que iam dar uma surra em você se você entrar lá”. O subliterato não quer que a gente o chame de subliterato…”.

O senhor não poderia fazer a concessão de citar um nome de um subliterato brasileiro?

“Paulo Coelho. Com toda a consagração mundial, aquilo é um fenômeno de marketing que vai ser esquecido um dia”.

Qual foi o primeiro grande contato que o senhor teve com a mediocridade ?

“Aconteceu no colégio onde estudei – de jesuítas. Eram quase todos medíocres. Basta dizer que o professor de literatura, o padre Villas Boas, chamada Eça de Queirós de patife”.

O fato de um padre jesuíta citar um grande escritor como Eça de Queirós como um patife significou uma decepção para o senhor com a escola ?

“Ah, significou. Quando concluí o curso ginasial, neste colégio católico, deixei de ter fé. Deixei de frequentar a Igreja. Durante os dois anos do curso pré-jurídico,fui agnóstico.Não quis saber daquilo. Porque a mensagem que eles transmitiam era muito infantil: tinham por programa e por orientação só falar do inferno e das penas eternas. Isso não passou. Anos depois, em Brasília, participei de um retiro espiritual. O pregador era um jesuíta que veio para pregar. Era um típico jesuíta com aquela batina preta, aquela sotaina. Só falou em penas eternas. Logo no segundo dia de retiro, o pregador disse: “Eu soube que vocês querem conversar comigo. Não admito conversa! Conversem com os cardeais que estão aí à disposição! “. Veja que coisa…”.

O senhor diria que a velhice é a idade da contemplação?

“Pago para ver gente inteligente falar. Para mim, o espetáculo da inteligência é algo que me deslumbra. Sou capaz de pagar para ver gente inteligente falar, assim como sou capaz de pagar para não ir ver burros falarem”.

Ás vésperas de completar 88 anos de idade, qual é a grande pergunta para a qual o senhor não encontrou resposta até agora?

“É o fato de – com a exceção de um – todos os amigos de minha geração terem morrido, mas eu não morri. Eu me pergunto permanentemente a Deus: por que é que eu fiquei ? Isso me lembra o melhor romance de Graham Greene, “O Poder e a Glória”. Todos os padres virtuosos estavam sendo fuzilados.O padre devasso e bêbado era poupado. E esse padre perguntava a Deus: por que é que os virtuosos estão sendo mortos e eu sobrei?”.
Isso é um mistério. Não sei o que é que Deus quer de mim”.

Posted by geneton at 06:22 PM

novembro 21, 2009

NEIL ARMSTRONG

QUE MADONNA QUE NADA! MAIOR CELEBRIDADE INTERNACIONAL A VISITAR O BRASIL EM 2009 FOI NEIL ARMSTRONG : PRIMEIRO HOMEM A PISAR NA LUA FEZ VIAGEM SECRETA A SANTA CATARINA

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O primeiro homem a pisar na lua e o administrador do hotel, em Santa Catarina: foto tirada pelo irmão da noiva (Cortesia Carlos Herique Schmidt)

Começa, já,já, a temporada de retrospectivas.

Pergunta-se: quem terá sido a maior celebridade internacional a pisar em solo brasileiro em 2009? A cinquentenária Madonna ? Não,não, não. “Façam suas apostas”.

Edwin Aldrin, o segundo homem a pisar na Lua, passou pelo Brasil na semana passada, numa rápida visita que incluiu uma conferência para estudantes em Campos (Estado do Rio), a inauguração de uma fábrica de brinquedos em São Caetano do Sul (São Paulo) e reuniões com empresários da indústria aeronáutica. Deu entrevistas, tirou fotos, distribuiu autógrafos.

Mas, por uma grande coincidência, Edwin Aldrin não foi o único tripulante da Apolo 11 a desembarcar no Brasil em 2009 – exatos quarenta anos depois da primeira missão tripulada à lua.
Aos fatos:

Uma das maiores celebridades do Século XX passou pelo Brasil anônimo, sem ser descoberto nem pela imprensa nem por caçadores de autógrafos.
Neil Armstrong, o astronauta que entrou para a história como o primeiro ser humano a pisar no solo da lua, passou dois dias hospedado na suíte 122 do Plaza Itapema Resort & Spa, em Itapema, Santa Catarina. Desceu em São Paulo, pegou uma conexão para Florianópolis e desembarcou no aeroporto Hercílio Luz, onde um carro o esperava para a viagem até um hotel e resort em Itapema, a cerca de cem quilômetros da capital. Passou com louvor no teste do anonimato. Ninguém o reconheceu.

Notoriamente recluso, Neil Armstrong sempre evitou entrevistas, fotos e aparições. Desde 1994, deixou de dar autógrafos. Só dá o ar da graça em ocasiões especiais – como neste ano, quando posou para fotos ao lado do presidente Obama e dos dois outros astronautas da Apolo 11, nas comemorações dos quarenta anos da conquista da lua.

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Neil Armstrong com o Presidente Obama, em rara aparição pública, nos 40 anos da viagem à lua : óbvia predileção por gravatas amarelas e camisas azuis (Foto: site da Casa Branca)

Depois de correr mundo e receber todo tipo de homenagem como “herói do espaço” no final dos anos sessenta, Neil Armstrong resolveu dispensar, para sempre, a adulação da fama. Voltou à vida de professor de engenharia. Terminou se aposentando. Vive numa fazenda em Ohio, Estados Unidos. Nada de entrevistas, nada de fotos, nada de autógrafos, nada de badalação.

Uma prova da fascinação despertada até hoje pelo primeiro homem a pisar na lua: um barbeiro vendeu por 3 mil dólares um tufo de cabelo de Neil Armstrong

Como se fosse o Greta Garbo da corrida espacial, a mensagem que ele envia ao planeta é claríssima: “Leave me alone”. Deixem-me sozinho. O jornal inglês The Guardian chamou-o recentemente de “o J.D.Salinger da corrida espacial: a supercelebridade que foge da publicidade” – uma referência ao escritor que,depois de publicar “O Apanhador no Campo de Centeio”, resolveu se esconder do mundo. Um site que reúne informações sobre relíquias da corrida espacial diz que Neil Armstrong é o único contemporâneo que será citado daqui a mil anos, porque foi o primeiro ser humano a por os pés em um solo que não pertencia ao planeta Terra. O assédio não chega a ser uma surpresa.

A caça por “traços” do primeiro homem a pisar na lua bateu o recorde não faz tempo: o barbeiro que costumava atendê-lo tratou de guardar mechas de cabelo do homem. Quando o astronauta deixava a barbearia, o barbeiro recolhia tufos de cabelo do chão. Em seguida, anunciou que era dono da relíquia. Resultado: vendeu o tufo de cabelo por três mil dólares a um colecionador de relíquias espaciais. Armstrong ficou uma fera. Processou o barbeiro. Mas não conseguiu recuperar os tufos de cabelo.

Por obra do acaso, a família do astronauta silencioso terminou ganhando uma conexão brasileira em 2009 : Andi Knight, enteado de Neil Armstrong, apaixonou-se por Cristina Chang, brasileira que vive na Califórnia. Decidiram que o casamento seria no Brasil.

A surpresa: Neil Armstrong saiu da reclusão para participar da celebração de casamento, num resort localizado à beira-mar, em Santa Catarina.
A escolha do local não ocorreu por acaso: comerciante em Itajaí, Santa Catarina, o pai da noiva costuma jogar golfe nas dependências do resort.

Quem imaginaria encontrar Neil Armstrong flanando nas dependências de um resort, no quilômetros 144 da BR 101 ? Mas ele estava lá.

O mais importante – e mais recluso – dos astronautas fez um pedido antes de embarcar para o Brasil: que ninguém soubesse da viagem. O pedido foi atendido

A administração do Plaza Itapema Resort & Spa recebeu com antecedência um pedido, encaminhado pelo astronauta: a viagem brasileira da celebridade mais reclusa do planeta só poderia ser divulgada depois que ele tivesse ido embora. A direção do hotel cumpriu a exigência.

Livre do assédio indesejado de repórteres ou caçadores de autógrafos, Neil Armstrong circulou pelas instalações do resort sem ser reconhecido – nem incomodado. Fez longas caminhadas pela praia, mas não arriscou um mergulho. A água estava fria. Tomava café da manhã entre os outros hóspedes sem chamar a atenção de ninguém. Era tudo o que queria.
Em retribuição ao sossego que pediu – e encontrou -, Neil Armstrong posou para fotos com a família da noiva e com o administrador do resort. A ficha de hóspedes regista os nomes de Carol Armstrong – a segunda mulher do astronauta. Em seguida, como segundo hóspede da suíte 122, aparece um nome abreviado: N.A. Armstrong (o nome completo do herói do espaço é Neil Alden Armstrong).

Sem ser reconhecido por outros hóspedes, Armstrong não se furtou a trocar idéias com o superintendente da rede Plaza de hotéis - Carlos Henrique Schmidt – que tinha tido o cuidado de fazer um “curso intensivo” sobre o astronauta: tratou de ler tudo o que encontrou sobre ele.

O primeiro astronauta a pisar na lua disse que é bobagem (“bullshit”) responsabilizar o homem pelo aquecimento global

O trato feito com a administração foi cumprido ao pé da letra: o astronauta recluso entrou no resort no dia 24 e saiu no dia 27 de maio, mas o primeiro registro sobre a presença do viajante ilustre só foi feito tempos depois, no site do hotel.

Schmidt terminou brindado com uma declaração surpreendente do astronauta: Armstrong disse que a paranóia sobre o aquecimento global era “bullshit”. Ou seja: besteira. O que Schmidt ouviu de Armstrong ?

Procurado pelo Dossiê Geral, o interlocutor do astronauta deu este depoimento sobre o que ouviu de Neil Armstrong (horas depois, enviou a foto tirada pelo irmão da noiva):

“É um homem simples, tremendamente discreto. Não curte a importância que tem. De qualquer maneira, ninguém o reconheceu. Tomava café da manhã a fazia refeições no restaurante, em meio aos outros hóspedes. Tinha pedido para não tirar fotos. Já que ele é uma das poucas pessoas de toda a humanidade que tiveram a chance de enxergar a terra de um ponto-de-vista a que ninguém teve acesso (somente doze astronautas pisaram na lua), perguntei o que é que ele achava dessa situação de catastrofismo que tantos colocam: a sensação de que a terra vai acabar, a questão do aquecimento global, todas essas coisas que todos nós vemos diariamente na imprensa. Quero ouvir a opinião de Neil Armstrong, porque parece estar havendo muita especulação. E ele me disse: “Isso tudo é bullshit!A Terra é maior do que a humanidade. Você pode acabar com a vida humana, mas a Terra não vai acabar”. Também me disse de que o aquecimento global causado pelo homem na verdade faz parte de ciclos vividos não apenas pelo planeta, mas pelo sistema solar. O planeta vive sujeito a acontecimentos como, por exemplo, um meteorito que pode acabar com a vida na terra de um momento para outro. A situação de aquecimento global é mais decorrente da proximidade da terra com o sol, por exemplo. Ou seja: Neil Armstrong acha que a parcela do homem no processo de aquecimento global é mínima. Fenômenos solares e geológicos são muito mais impactantes do que a atuação do homem. É o que de mais interessante ouvi de Armstrong”.

“Disse a ele do meu orgulho de conhecê-lo, porque ele é uma das maiores personalidades vivas do planeta. Isso é mais impactante quando a gente vê a simplicidade com que ele age. Armstrong fez um discurso aos noivos. Transmitiu aos noivos que a vida a dois é uma vida que tem de ser marcada por respeito. Passou uma mensagem sobre a importância de um respeitar ao outro, num casamento. Disse que o princípio básico de um bom relacionamento é o respeito. Não fez qualquer referência à carreira de astronauta. O discurso foi familiar. Armstrong falou como padastro do noivo. Pela personalidade que ele é, todos queriam ouví-lo. Uma das características do ritual de casamento cumprido pelos coreanos é que os parentes próximos fazem, todos, uma mensagem aos noivos: os irmãos, os pais, todos. A noiva era brasileira – de origem coreana . É impressionante a tranquilidade que Armstrong passa para as pessoas. Digo que vi tal tranquilidade em poucas pessoas na minha vida…Não pedi autógrafo. Não caberia, naquele momento, porque era um momento privado”.

Assim como chegou, o primeiro homem a pisar na lua se foi : como se fosse um hóspede qualquer. Mas não é. Um tufo de cabelo de Neil Armstrong vale, comprovadamente, três mil dólares. Que outra celebridade atingiria tal cotação no louco mercado da fama?

Posted by geneton at 06:29 PM

novembro 19, 2009

FAUSTO CATTANEO

AGENTE SECRETO JURADO DE MORTE PELA MÁFIA DIZ QUE DELEGADO BRASILEIRO ACEITOU “FAVORES” DE “PROSTITUTA DE LUXO” OFERECIDA POR INFORMANTE PROFISSIONAL EM PARIS

O DOSSIÊ GLOBONEWS exibe neste domingo, com exclusividade, o depoimento de um “agente infiltrado” ( o programa vai ao ar na Globonews ao meio-dia e meia do domingo e às três e meia da tarde da segunda, depois de exibido pela primeira vez no sábado, às sete e meia da noite).

Ei-lo:

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O agente, no Rio de Janeiro: missões perigosas (Imagem: Lúcio Rodrigues)

Fausto Cattaneo é o nome deste homem – que se diz marcado para morrer pela Máfia siciliana. Nacionalidade: suíça. Idade: sessenta e seis. Circulou, anônimo, pela zona sul do Rio nas últimas semanas.

“Eu sei que existe uma bala guardada para mim”, diz, sem drama.”A bala pode chegar da Máfia siciliana, por exemplo. Se quiserem me matar, eles me matam quando e como quiserem”.

Não é para menos: durante anos, o suíço Cattaneo atuou como agente infiltrado em organizações criminosas internacionais – uma função de altíssimo risco.

Sob identidades falsas, fez papel de advogado corrupto, banqueiro, traficante. O trabalho de Cattaneo tornou possível a apreensão de “toneladas de drogas” – e o confisco de “milhões de dólares” de dinheiro sujo, diz ele, sem especificar números.

Um informante que trabalhava para Cattaneo foi executado em grande estilo pela Máfia : ao lado do corpo, os autores da execução deixaram uma bala, intacta.

O célebre juiz italiano Giovanni Falcone, inimigo público da Máfia, tratou de fazer um alerta: aquela bala era um aviso sinistro endereçado ao próprio Cattaneo. Tempos depois, no dia 23 de maio de 1992, o próprio Falconi foi executado pela Máfia, num crime de repercussão internacional.

O locutor-que-vos-fala gravou uma longa entrevista com o agente. Como se fosse um turista comum, ele admirava a paisagem de cinema da Lagoa Rodrigo de Freitas, num dia de céu sem nuvens.

Resignado, diz aprendeu a conviver com o perigo, mas ficou assustado quando recebeu, em casa, uma ameça telefônica : uma voz “com sotaque siciliano”, avisava que seria fácil “pegar’ Cattaneo. Bastaria fazer com que um carro o atingisse, “por acidente”, no momento em que ele estivesse passeando de bicicleta, na pequena cidade onde ele vive, no sul da Suíça.

O temor tinha dois motivos. Primeiro: ter sido alcançado por telefone. “Meus números sempre foram ultra-secretos”. Segundo: o autor da ameaça sabia que ele costuma andar de bicicleta. É verdade.
O agente diz que teria coragem de se infiltrar no comando do tráfico no Rio, desde que contasse com a ajuda de “pessoas certas”

Cattaneo listou táticas usadas para se infiltar entre criminosos sem despertar suspeitas: “Ficar na prisão no meio de criminosos, sem que eles saibam; recrutar informantes, ganhar confiança e ter muita, muita paciência”.

O agente teria coragem de se infiltrar no comando do tráfico de drogas numa favela no Rio?

“”Sim”, diz ele. “Mas com a ajuda de pessoas certas. Sozinho,não. A primeira medida: deixar a impressão de que sou importante. Mas sem dizer jamais “eu sou importante”. O que vale é causar uma impressão particular n0s outros, até que eles digam: “Ah, esse gringo é a pessoa certa. Com esse gringo, a gente pode fazer negócio”.

Assim, o caminho estaria aberto para que o agente conhecesse, por dentro, o comando do tráfico.

O ex-agente infiltrado confirma que “prostitutas de alto luxo” são usadas por informantes profissionais como uma espécie de moeda de troca na garimpagem por informação privilegiada.

O esquema é simples: as “prostitutas de alto luxo” são oferecidas, por exemplo, a policiais envolvidos em investigações sigilosas. Os policiais que aceitam o “presente” ficam devendo este – e “outros favores” – aos informantes profissionais.

Quando ficam íntimos de policiais, os informantes podem eventualmente ter acesso a informações que valem ouro, num submundo marcado por lavagem de dinheiro, tráfico internacional e operações suspeitíssimas.

Os tais “informantes profissionais” de que fala Cattaneo não são nem policiais nem criminosos: são, em última instância, “traficantes” de informações. Fazem de tudo para ganhar a confiança e a intimidade de quem possui aquilo que eles perseguem: informação privilegiada.

Cattaneo garante que, “nos anos noventa”, um delegado da Polícia Federal brasileira enviado a Paris para uma investigação aceitou os “favores sexuais” de uma prostituta oferecida por um informante profissional. Em casos assim, os policiais “ficam na mão do informante”,como diz Cattaneo:

“Amanhã, se o delegado disser ao informante “ah,você não pode entrar nesta investigação”, o informante poderá dizer: “Não se esqueça daquele quarto, daquela cama, daquela bonitona em Paris…”.

A vida aventuresca de Fausto Cattaneo acaba de chegar às telas. Inédito no Brasil, o filme “Dirty Money: l´infiltré” foi lançado este ano na Europa.

A ligação de Cattaneo com o Brasil é sentimental: o ex-agente casou com uma brasileira. Fala um português perfeitamente compreensível, entrecortado por palavras em espanhol e em francês. Além de gosto por passeios de bicicleta, adora água de coco.

Posted by geneton at 06:34 PM

novembro 17, 2009

OLEG IGNATIEV

AVENTURAS EM MOSCOU/ PARTE 3: O JORNALISTA REVELA UM SEGREDO GUARDADO DURANTE VINTE ANOS: O CHINÊS QUE ESCREVIA CARTAS SUPER-POLITIZADAS NUNCA EXISTIU

O baú de histórias proibidas que o jornalista Oleg Ignatiev guardou em segredo mas hoje pode contar não pára aí : além do poema que foi arrancado às pressas da edição do jornal porque trazia uma comparação imprópria entre Josef Stalin e a águia das montanhas, ele se viu às voltas com um chinês que jamais existiu.

Ignatiev recebeu a tarefa de encontrar, entre a correspondência enviada ao jornal, uma carta que saudasse a amizade entre a Rússia e a China. Mas não pôde cumprir a missão : a carta simplesmente não existia. Nenhum leitor tinha se dado ao trabalho de louvar os tratados de cooperação assinados entre os dois países.

O que fez nosso herói ? Num gesto que não teve coragem de confessar nem aos seus companheiros de trabalho, Ignatiev cometeu um pecado : simplesmente inventou um leitor chinês, um suposto Sun-Tsé-Lin. Ninguém viu Ignatiev cometer o sacrilégio de redigir uma carta que seria assinada por um leitor que jamais existiu.

A carta impressionou a todos na redação : o suposto autor – um operário chinês – era capaz de exibir um grau de politização que soava como música aos ouvidos dos jornalistas habituados a redigir loas ao regime soviético.

O velho jornalista me entrega o texto em que descreve com detalhes a aparição de um inexistente Sun-Tsé-Lin nas páginas do jornal :

- “O que não nos faltava em absoluto – confessa Ignatiev – era a audácia : ninguém se dava ao trabalho de medir cuidadosamente as expressões quando se tratava de estigmatizar os tubarões do imperialismo empenhados “em devorar a América Latina” (ou a Ásia ou a África – de acordo com a região do mundo a que dizia respeito o material denunciativo…).Mas a repetição infinita de fatos universalmente conhecidos massacrava e entediava não só os leitores mas também os autores.Queríamos escrever algo que fosse diferente de chavões repisados pela milésima vez”.

“A quatorze de fevereiro de 1951,todos os jornais soviéticos comemoravam o primeiro aniversário da assinatura do tratado sino-soviético de amizade, cooperação e ajuda mútua.O Komsomolskaia Pravda também deveria comemorar a data. O redator-chefe do jornal, Dimitri Petrovich Goriunov, encarregou a editoria internacional de preparar um “material não-padronizado”. A seção de correio do Comitê Antifascista da Juventude Soviética me entregou um maço de cartas vindas da República Popular da China. Todas vinham acompanhadas de uma tradução do chinês para o russo”

“Depois de ler todas as cartas, senti um calafrio : ficou claro que eu não conseguiria cumprir a missão do redator-chefe. Os autores de todas as cartas – sem exceção – ignoravam totalmente a amizade entre os povos da União Soviética e da China. Parecia que todos eles tinham combinado entre si pedir que lhes enviassem selos soviéticos….Minha situação era dramática, porque o jornal não poderia sair no dia 14 de fevereiro sem um material original dedicado à China. Não tive outra solução : precisei recorrer a um gesto desesperado”.

“Ninguém pode imaginar o martírio que é inventar uma carta em nome de um autor imaginário que, além de tudo, é chinês….O autor da carta fala de trabalho, sonha com um “futuro feliz” e refere-se com o máximo de calor ao “irmão mais velho” – a União Soviética. “Sun-Tsé-Lin”, maquinista de locomotiva, era um nome cem por cento chinês. A primeira parte do nome tirei de Sun Yat-Sem ; a segunda tirei de Mao Tsé-Tung . A terceira tirei de Lin Piao. Fiz três páginas de texto”.

“Quando o editor Boris Strelnikov entrou no gabinete do redator-chefe, Dmitri Petrocich Goriunov, encontrou-o segurando nas mãos uma prova da página com a minha “obra-prima”. “Diga-me,Boris, perguntou Dmitri Petrovich,como é possível : nossos jovens jornalistas – gente com instrução superior, gente que dispõe de condições especialmente favoráveis para o trabalho - usam uma linguagem pobre e ruim,enquanto que um simples maquinista chinês consegue encontrar palavras que nos emocionam profundamente. São palavras fortes e penetrantes !”.

“Não ousei, naquela ocasião, confessar a minha ação desonesta não só ao redator-chefe como também ao meu amigo Strelnikov. Jurei, então, que, no futuro, jamais utilizaria semelhantes métodos que violam a ética elementar do jornalismo. Somente depois de passados vinte anos, quando todos já tinham deixado de trabalhar no jornal, é que relatei toda a verdade ao meu antigo chefe, o que aliviou a minha alma”.

A dor de consciência só não atormentou Ignatiev porque ele foi - literalmente – salvo pelo gongo : a carta do chinês imaginário teve de ser substituída,”já à meia-noite”, nas páginas do jornal, por um longo artigo intitulado “A União Soviética é o nosso Futuro Feliz”, escrito por um certo Li Chiang – este,sim,um chinês de verdade, integrante da Nova Aliança Democrática da Juventude da China,como registram os arquivos implacáveis de Oleg Ignatiev.

A idéia de escrever uma carta em segredo, como se fosse um chinês politicamente engajado, deixou Ignatiev numa situação surrealista : ao contrário do que acontece com cem por cento dos jornalistas, ele torceu desesperadamente para que suas palavras jamais fossem publicadas. Por sorte, o comício do chinês imaginário sobre as belezas do regime soviético terminou cedendo lugar a outro artigo.

Quando os nomes dos todo-poderosos dirigentes do Kremlin eram escolhidos em conciliábulos do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, o mundo inteiro procurava enxergar, nas entrelinhas do jornal “Pravda”, algum sinal sobre a dança do poder no Olimpo comunista. Como se fossem egiptólogos debruçados sobre hieróglifos, os chamados “analistas políticos” ocidentais interpretavam cada palavra do jornal em momentos decisivos da história da finada União Soviética.

Não era para menos. O Pravda era o porta-voz oficial do Comitê Central do Partido Comunista, num regime que se fechava para o resto do mundo. O jornal tinha uma tiragem de cerca de 11 milhões de exemplares. O número de correspondentes espalhados pelo exterior chegava a quarenta e cinco, na “época de ouro”.

Logo depois do fracassado golpe de comunistas de linha dura contra o então presidente Mikhail Gorbatchev em 1991, o que parecia impossível aconteceu: o Soviet Supremo simplesmente ordenou a suspensão da publicação do Pravda – que voltaria a circular sob a direção de um coletivo de jornalistas.

Fã de Nikita Kruschev, o líder comunista que caiu em desgraça ao tentar ensaiar um início de liberalização do regime comunista nos anos cinqüenta, Ignatiev chama Stalin de “criminoso” e Brejnev de “fraco”.

Se quisesse, o senhor poderia escrever estas opiniões no Pravda ? – pergunto a ele.

Ignatiev suspira fundo. Responde, convicto:

– Não era impossível escrever. Mas sob o ponto-de-vista moral, não seria bom escrever no Pravda que Brejnev era fraco. Porque o Pravda era o órgão do Partido. E Brejnev, o líder do Comitê Central…

Aos setenta e dois anos, o velho jornalista do Pravda — até hoje comunista convicto — faz questão de repetir:

– Quando não concordava com um assunto, eu não escrevia nada. Mas nunca escrevi contra minhas opiniões.

(*) A reportagem completa sobre a primeira eleição para presidente realizada na Rússia depois do fim da União Soviética foi publicada no livro Dossiê Moscou

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novembro 13, 2009

NEY MARANHÃO

BASTIDORES DO PRIMEIRO GOVERNO ELEITO PELO POVO DEPOIS DO REGIME MILITAR: SENADOR REVELA QUE ESTAVA COM “ARMA POTENTE” QUANDO ESCOLTOU O PRESIDENTE ATÉ A SAÍDA, NO ÚLTIMO DIA DE COLLOR NO PALÁCIO

O DOSSIÊ GLOBONEWS exibiu, sábado, uma entrevista gravada no interior de Pernambuco com o ex-senador Ney Maranhão, membro da chamada “tropa de choque” do presidente Fernando Collor (a íntegra pode ser vista aqui: http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1379693-17665,00-EXSENADOR+FEZ+ESCOLTA+DE+COLLOR+NO+IMPEACHMENT.html

Aos 81 anos de idade, Maranhão revela que carregava na cintura uma “arma potente” no momento em que acompanhou Fernando Collor até o helicóptero, instantes depois de o Presidente ter sido notificado de que tinha sido afastado do poder.

Trechos da entrevista:

GMN: O senhor estava armado quando acompanhou o Presidente Collor pela última vez na saída do Palácio do Planalto ?

NEY MARANHÃO: “Claro. E estava com uma arma muito potente. Pronto para reagir se alguém tocasse no presidente. Ele morria, mas ia gente junto. Primeiro, eu ia. Depois, ele. Descemos a rampa. Quando fizemos a curva, na saída do Palácio, havia uma multidão: um corredor polonês. Nós levamos o presidente até o helicóptero. Naquela hora, se houvesse alguma coisa ali, ia morrer muita gente. Eu – por exemplo – estava preparado para isso. Se houvesse qualquer coisa com o presidente, eu seria o primeiro a reagir ”.

GMN: O senhor temia algum atentado contra o Presidente naquele momento?

NEY MARANHÃO: “Da maneira como o povo foi jogado contra o Presidente -, quando vi aquele corredor polonês tive a impressão de que não chegaríamos até o fim, porque não tinha nenhuma segurança atrás de nós”.

GMN: O senhor seria capaz de fazer o quê, se houvesse um tumulto na saída do presidente Collor ?

NEY MARANHÃO : “Se acontecesse alguma coisa com o Presidente, eu reagiria no ato. E essa reação não seria boa coisa. Não havia nenhuma segurança para ele. Nada que cobrisse o Presidente se a multidão tentasse linchá-lo ou fazer alguma coisa nesse sentido. Não tenho dúvida nenhuma: em defesa do Presidente, eu estava disposto a matar e morrer”

GMN: Que arma era essa ?

NEY MARANHÃO: “Era uma 44. Anaconda”.

GMN: Mas o senhor entrava armado no Palácio do Planalto sem problema ?

NEY MARANHÃO: “Sempre entrava. Primeiro, a gente tem o anjo-da-guarda. O segundo anjo-da-guarda é o 38. Eu estava preparado para tudo. Fui o primeiro senador a apoiar Collor – e morria com ele. Eu sentia que, naquela hora, eu tinha de estar com uma arma mais potente”.

GMN: O senhor diz que anda armado porque aprendeu lições no sertão. Que lições foram essas ?

NEY MARANHÃO: “As lições que meu pai me ensinou: o cabra tem de ter palavra, tem de ser grato, não adular macho e, quando conselho não resolve, cacete funciona. Eu, por exemplo, dei pra gente. Mas levei cinco surras de tabica – uma varinha fina. Quando a vara bate no sujeito, o cabra pode nem estar com vontade de mijar mas se mija todinho. Levei cinco surras de tabica. Aprendi desse jeito. Meu pai era tão corajoso que, em vez de andar com cachorro, andava com uma onça”.

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novembro 12, 2009

OLEG IGNATIEV - PARTE 1

AVENTURAS EM MOSCOU/ PARTE 2: O TODO-PODEROSO STALIN PODE OU NÃO SER COMPARADO A UMA “ÁGUIA DAS MONTANHAS” ? COMEÇA ASSIM UM DRAMA DE FIM DE NOITE NA REDAÇÃO

Vem chegando a data do aniversário de Josef Stalin, o ditador saudado por seus seguidores como “guia genial dos povos”. Um poema laudatório sobre Stalin chega à redação do Komsomolskaia Pravda . O redator passa os olhos. Os versos laudatórios – que comparam Stalin a uma “águia das montanhas” – ganhariam destaque na edição do dia seguinte. Ignatiev não resiste à curiosidade de passar os olhos pelo poema. De repente, ocorre-lhe uma dúvida devastadora : quanto tempo vive uma “águia das montanhas” ? E se a comparação fosse absurda ? E se a águia tivesse vida curta ? O que aconteceria se o jornal comparasse o intocável Josef Stalin a um pássaro de vida curta ?

A homenagem poderia se transformar numa dor de cabeça monumental não apenas para o autor do poema, mas para a redação inteira.

A dúvida sobre se era ou não apropriado comparar Stalin a uma águia da montanha provoca pandemônio entre os jornalistas naquele fim de noite de sábado. A tentativa de encontrar um redator informado sobre o tempo de vida médio dos animais fracassa redondamente. Era improvável que um daqueles jornalistas que cumpriam expediente no fim de noite fosse capaz de calcular o tempo de vida de uma remota variedade de águia. O amor de um ou outro jornalista pelo mundo animal com certeza não chegaria a tanto. Ignatiev tem, então, a idéia salvadora : por que não procurar o diretor do zoológico de Moscou ?

O problema é que já são onze da noite. Mas, como uma das funções do jornalista é incomodar a espécie humana em horários inconvenientes, Oleg telefona para o zoológico. Nada . O diretor – é claro – já tinha ido embora. O último recurso é tentar encontrar o homem em casa,p ara tirar uma dúvida que,aos olhos do resto da humanidade, poderia parecer excêntrica, mas, para aquelas jornalistas debruçados diante de um poema laudatório a Stalin, era uma questão grave. O jornal não poderia correr o risco de cometer um sacrilégio contra o todo-poderoso. Stalin mandava e desmandava, sem oposição visível, ali ,no final dos anos quarenta.

Ignatiev pede licença, levanta-se, revira papéis amontoados numa gaveta. Parece preocupado porque não encontra o que procura, mas o ar sisudo logo dá lugar a uma expressão de alívio quando ele põe as mãos sobre uma maçaroca de folhas datilografadas. Eis o tesouro : já vertidas para o português – para uma possível publicação em Portugal, sonho que não se realizou – as memórias inéditas de Ignatiev guardam histórias que jamais seriam reveladas se o regime soviético ainda estivesse de pé.

O velho jornalista relata assim as cenas de bastidores, no texto datilografado que me confiou :

“O jornal publicava inúmeras obras servis, poéticas e em prosa, dedicadas ao “aniversário do gênio de todos os homens progressistas do mundo”. Um poema dizia “tu pairas sobre o planeta/como uma águia das montanhas”. Imagine-se como foi difícil achar o telefone de um ornitologista. Obtive o número depois de uma hora da manhã. Telefonei sem esperar qualquer êxito. Quem atendeu foi um homem de idade bastante avançada – a julgar pela voz.

-Boa noite – disse eu – desculpe o adiantado da hora,mas temos um caso excepcionalmente urgente.Falo da redação do Komsomolskaia Pravda.

-Não me interessa de onde o senhor telefona”- respondeu,num tom irritado,o meu interlocutor.”Porque um indíviduo educado não acorda uma pessoa desconhecida no meio da noite”.

-Eu estou perfeitamente de acordo,professor,mas o senhor é a única pessoa que nos pode ajudar.É o senhor que depende se o jornal sai amanhã ou não !.

-Mas o que foi que aconteceu, jovem ? – perguntou o ornitologista.

-Tenho uma única pergunta a fazer-lhe : quantos anos vive uma águia das montanhas ?” .

-Mas foi por este motivo que me despertaram no meio da noite ?”- exclamou o professor, indignado.

-Não fique zangado,professor,”- pronunciei num tom implorante.”Mas este assunto se relaciona com a política : não é uma coisa sem importância !. O senhor nem imagina o que é importante,para nós,esclarecer quantos anos vive uma águia das montanhas !.

-Por favor,não grite assim. Não sou surdo.Em primeiro lugar,águia das montanhas simplesmente não existe. As aves a que o povo dá este nome são,na realidade,águias reais. Vivem no cativeiro – quando muito – uns vinte e cinco anos. Quando à duração da vida dessa águia em liberdade,a ciência não dispõe de dados exatos a respeito. Mas pode-se supor que sejam uns trinta ou trinta e cinco anos.

Ousei,então,fazer uma pergunta :

- Diga,por favor,professor,se existe na natureza alguma espécie de águia que viva cem anos….” .

- Há lendas que dizem que os condores chegam a viver setenta anos,mas a ciência não confirma.Agora, diga-me, por favor : para que o senhor precisa dessa informação ?.

Confesso que não satisfiz a legítima curiosidade do cientista.Sequer agradeci a gentileza. Corri para avisar Margarita Ivanovna Kirklissova, vice-secretária do jornal, encarregada da correção literária do material enviado para a composição. A poesia não foi publicada. Juramos a Kirklissova que jamais relataríamos a quem quer que fosse o acontecido. Descrevo agora este acontecimento cômico – que por pouco não se tornou uma tragédia – apenas porque o prazo para que se conservem segredos se limita a vinte anos na maioria dos países !. Hoje,episódios semelhantes parecem absurdos,irreais. Mas compreendíamos perfeitamente que a publicação daquela poesia podia trazer graves conseqüências….”.

Posted by geneton at 06:42 PM

novembro 07, 2009

CLETO FALCÃO

OS BASTIDORES DE UMA ELEIÇÃO HISTÓRICA : A OPERAÇÃO MONTADA PARA ESCONDER O FILHO DE UM CANDIDATO, A CONFISSÃO DE UM TESOUREIRO DENTRO DE UMA PISCINA – E UM DIÁLOGO ENTRE UM EX E UM FUTURO PRESIDENTE

A Globonews levou ao ar a entrevista que o locutor-que-vos-fala gravou,em Maceió, com um homem que foi testemunha privilegiada dos bastidores da primeira eleição direta para presidente realizada no Brasil depois do fim do regime militar (reprise nesta segunda,às três e meia da tarde). Faz exatamente vinte anos que o Brasil foi às urnas para decidir o jogo entre Collor e Lula. Deu Collor na cabeça.

O personagem do DOSSIÊ GLOBONEWS é Cleto Falcão – um dos principais articuladores da candidatura do então governador de Alagoas, Fernando Collor, à presidência da República. Eleito Collor, Falcão chegou a ocupar o posto de líder do partido do governo na Câmara dos Deputados. De volta a Alagoas, hoje é assessor parlamentar da Assembléia Legislativa de Alagoas.

Ninguém dava um tostão furado pela candidatura do então governador de Alagoas,Fernando Collor, quando ela foi lançada. Os empresários deram milhões. Os eleitores deram algo mais valioso: votos. Bom de palanque e de TV, Fernando Collor bateu o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva: 35.089.998 votaram em Collor,contra 31.076.364 que apostaram em Lula. O resto é história.

O lance mais polêmico da campanha eleitoral de 1989 foi a decisão tomada pela campanha do candidato Fernando Collor de veicular, em rede nacional de TV, no horário de propaganda eleitoral, um depoimento em que uma ex-namorada revelava que o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, escondia a existência da filha que tivera com ela.

A divulgação do depoimento abalou notoriamente a performance de Lula no segundo e decisivo debate com Fernando Collor. Cleto Falcão diz que havia “pânico” no staff do candidato Collor diante do progressivo avanço de Lula nas pesquisas eleitorais, às vésperas do embate final – o segundo turno. A cúpula da campanha se reuniu, então, para avaliar se a fita gravada com a ex-namorada de Lula seria ou não levada ao ar. “Ninguém foi contra”, diz Cleto. Terminada a exibição privê, Collor disse as seguintes palavras, segundo Falcão : “A fita vai ao ar. Quem quiser ficar comigo fique. Quem não quiser f……-se !”.

Anos depois, em 2005, em entrevista que me concedeu em Maceió, para uma série levada ao ar no Fantástico, Fernando Collor se declarou arrependido. Palavras textuais do ex-presidente:

“Eu diria que não foi algo de bom gosto nem de bom tom. A utilização seria absolutamente desnecessária. Não o faria novamente.Mas, numa campanha eleitoral, no fragor da batalha, com as emoções desencadeadas de forma violenta, é difícil a gente ter uma medida correta dos termos que nós utilizamos e das ações que estaremos por realizar. É preciso levar em consideração o momento em que a decisão foi tomada. De qualquer maneira, sob o ponto de vista racional, em condições normais de tempratura e pressão, sem dúvida nenhuma eu não faria aquilo”.

O que ninguém sabia, na campanha de 1989, era que o próprio Collor também tinha um filho fora do casamento. O comando da campanha teve de montar uma operação para manter em segredo a existência do menino. Mas o PT soube – e, segundo Cleto, chegou a enviar emissários a Maceió, para checar a história. O problema é que os detetives do PT não descobriram onde estava o menino ( Collor posteriormente reconheceu a paternidade, num gesto que Cleto Falcão elogia. Fernando James hoje é vereador em Rio Largo, município vizinho de Maceió).

Trechos da entrevista que a Globonews levará ao ar:

O senhor participou da operação para esconder o filho que o então candidato Fernando Collor tinha tido fora do casamento ?

Cleto Falcão: “O pessoal do PT – da campanha de Lula – esteve aqui em Alagoas. Rodou, rodou e, na realidade, foi incompetente. Não tiveram a competência de localizar o menino – que morava aqui em Rio Largo, uma cidade vizinha de Maceió. Collor posteriormente reconheceu o menino como filho. Mas, naquele momento em que o PT esteve aqui, nós tínhamos acabado de denunciar Lula porque ele, Lula, tinha uma filha fora do casamento. Imagine se descobrem o menino – e vinha a mesma denúncia. Ia ser um estrago muito grande.Quem ficou encarregado de resolver foi Cláudio Vieira (secretário de Collor) – que o fez com competência. Tirou o menino daqui, com a mãe. Só voltou depois da campanha. Conheci o garoto com Collor já eleito presidente, antes de tomar posse. O garoto e a mãe saíram daqui só no período quente da denúncia que a suposta namorada de Lula fez. Nós passamos a temer que aquele mesma denúncia fosse feita contra a gente”.

O tesoureiro Paulo César Farias faz, dentro de uma piscina, uma confissão sobre as “sobras de campanha” : 52 milhões de dólares

Um dos segredos mais bem guardados da política brasileira é o que acontece com as chamadas sobras de campanha. Que informação concreta o senhor tem sobre as sobras de campanha do então candidato Fernando Collor de Mello ?

Cleto Falcão: “Ao término da campanha, vim a Maceió para prestar contas das despesas no Rio de Janeiro. Eu havia sido coordenador da campanha no Rio. Estive com Paulo César Farias, tesoureiro da campanha, na residência de praia, onde ele foi assassinado. Ele estava tomando banho de piscina. Fiquei conversando com ele – eu do lado de fora, ele dentro da piscina. Perguntei: “PC, quanto você arrecadou na campanha, na realidade ?”. Ele disse: “134 milhões de dólares”. Fez uma pausa e disse:”Devem sobrar em torno de 52 milhões””.

O que é que aconteceu com esse dinheiro ?

Cleto Falcão: “A Polícia Federal, o FBI e a Scotland Yard não sabem. Eu vou saber?”.

O dia em que Cleto Falcão testemunhou uma doação milionária de grandes empresários para a campanha de Fernando Collor à Presidência da República

O senhor foi testemunha ocular de doações feitas por empresários à campanha do então candidato Fernando Collor à presidência. Qual foi a cena mais marcante que o senhor testemunhou nessas negociações ?

Cleto Falcão: “Uma cena muito marcante foi numa tarde em que fomos a São Paulo para um encontro de Fernando Collor com Antônio Ermírio de Moraes. Nós nos encontramos com ele na casa de José Ermírio de Moraes. Depois de muita conversa, Antônio Ermírio, presidente do Grupo Votorantim, disse que tinha sido chamado pelo presidente José Sarney para disputar a presidência e não teria aceitado porque sabia que tiraria votos do centro e da direita – que era o eleitorado de Fernando Collor.Com isso, ele não queria pagar o preço de estar ajudando a eleger um irresponsável como Leonel Brizola ou um despreparado como Lula. Logo em seguida, ele disse que o grupo tinha uma contribuição a dar à campanha. O irmão de Antônio Ermírio, José Ermírio, passou um cheque para ele. E ele perguntou:”A quem entrego?”. Fernando Collor disse: “Entregue ao Paulo César”. Antes de chegar às mãos de PC Farias, o cheque passou por mim, porque eu estava sentado antes do Paulo César.Olhei discretamente o valor. Era o correspondente a três milhões de dólares. Obviamente, saía pelo caixa-dois, porque não houve contabilização nem nada. O cheque não era cruzado. Vinha do caixa-dois”.

Um palpite: as circunstâncias da morte de PC Farias só serão esclarecidas dentro de “vinte ou trinta anos”

O senhor tem dúvidas sobre as circunstâncias da morte do ex-tesoureiro da campanha, PC Farias ?

Cleto Falcão: “Não é questão de ter dúvidas. Honestamente, acho que por trás do assassinato de PC Farias existe uma história que só será desvendada daqui a vinte ou trinta anos. Eu simplesmente acho que acreditar que Suzana Marcolino pegou um revólver e matou o PC é como acreditar em Papai Noel”.

O que é que leva o senhor a fazer esta afirmação ?

Cleto Falcão: “Porque ninguém mata a galinha dos ovos de ouro. O PC sustentava Suzana. Era uma pessoa muito boa para ela. E porque a perícia diz que não havia pólvora na mão de Suzana. Não utilizou o revólver. Agora, como foi e em que circunstância é algo que somente dentro de muitos anos vai ser desvendado e descoberto”.

A morte de PC Farias pode ter alguma ligação com o destino dado aos 52 milhões de dólares que, segundo ele disse, sobraram da campanha ?

Cleto Falcão: “Acredito que não. Sem que eu seja um policial do setor de investigação, eu analisaria que o PC era inconveniente para muita gente: para empresários que doaram dinheiro; para pessoas que participaram da campanha e queriam manter aquilo em sigilo. Mas sem nenhuma vinculação com aqueles 52 milhões”.
Collor tenta, secretamente, se livrar do candidato a vice-presidente, Itamar Franco: “Toda semana, Itamar tinha um chilique” ( E o alerta de Jânio Quadros: governo de presidente jovem demais pode dar “merda”)

O senhor tomou parte de uma consulta secreta que foi feita ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para afastar o vice Itamar Franco da chapa do então candidato Fernando Collor. Por que foi feita a consulta ?

Cleto Falcão: “Porque ninguém agüentava os faniquitos de Itamar querendo renunciar toda semana. Itamar aceitou ser vice-presidente mas toda semana tinha um chilique. Queria renunciar. Fernando – de forma discreta – mandou fazer uma consulta a ministros do TSE para saber se era possível substituir o vice. O TSE informou que não. O vice só poderia ser modificado com a renúncia do próprio vice, num ato de vontade unilateral”.

O senhor foi testemunha de um diálogo entre o então candidato Fernando Collor e o ex-presidente Jânio Quadros, em Roma. O que foi que um disse ao outro ?

Cleto Falcão: “Famos a um jantar em homenagem a Jânio Quadros. Jânio recebeu Collor com uma certa frieza, porque Jânio, na realidade, queria ser candidato a presidente. Começou, então, a contestar a candidatura de Collor. Dizia que Collor era muito novo : primeiro, ele deveria ser senador, deveria adquirir experiência. E Collor saindo pela tangente. Jânio insistiu na questão da pouca idade. A certa altura, Jânio parou e perguntou: “Quantos anos você tem?”. Fernando disse:””Tenho 39. Vou ter 40 na eleição”. Jânio fez um ar de surpresa, teatral. Disse: “Muito novo! Muito novo para ser presidente!”. Fernando disse: “Mas, presidente, gostaria de lembrar que o senhor foi presidente muito jovem, com pouco mais de quarenta anos!”. Jânio – que estava bebendo vinho – virou a taça, deu uma porrada na mesa e disse: “E deu na merda que deu ! E deu na merda que deu!”.

Jânio Quadros foi presidente com 43 anos. Renunciou apenas sete meses depois de tomar posse. Collor, eleito com 40 anos, também renunciaria, dois anos e meio depois da posse, num gesto extremo para tentar escapar da condenação no Senado. Não escapou. Condenado por “crime de responsabilidade”, passou oito anos impedido de exercer funções públicas. Em 1994, por falta de provas, o Supremo Tribunal Federal o absolveu.

Posted by geneton at 07:17 PM

novembro 03, 2009

LEDO IVO - PARTE 3

LEDO IVO (PARTE 3) / O POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO DÁ DE PRESENTE UM EPITÁFIO EM VERSOS PARA O AMIGO LEDO IVO – E MORRE. LEDO IVO CHEGA AOS 85, CHEIO DE “PERPLEXIDADE”

GMN : O que ficou da amizade com Manuel Bandeira ?

Ledo Ivo: “Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece na poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”.

Depois percebi que, para mim, a operação poética é como se fosse um encantamento da linguagem – uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da linguagem. Bandeira fez esta descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes : por exemplo, a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta,não basta apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não é,portanto,um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta exprimir-se.

A fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor. Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma civilização de massas, uma civilização eletrônica, uma civilização consumista. Tudo alterou a posição do escritor e do poeta no Brasil.

Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o último grande exemplo. O poeta vive hoje em uma época de anonimato. Os ícones são diferentes, os gurus são outros. A linguagem literária hoje compete com a linguagem eletrônica, o CD-Rom, o cinema,o disco . Mas,há alguma coisa que só a poesia tem condições de dizer. A poesia, então, existirá sempre,como linguagem específica,porque só ela pode dizer,sobre a condição humana,algo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira. O cinema e a televisão lidam de uma maneira diferente”.

GMN : O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica?

Ledo Ivo: “A função do poeta na sociedade é escrever poemas.A notoriedade é secundária”.

GMN : O senhor tem esta sensação de deslocamento ?

Ledo Ivo: “Pelo contrário ! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta ,surgi no momento certo.Tenho um grande sentimento da minha contemporaneidade.O mundo atual habita os meus poemas.A função do poeta é,também,celebrar o mundo em que vive. Não tenho nostalgia pelo passado. Não gostaria de ter nascido no passado,assim como não gostaria de ter nascido no futuro”.

GMN : Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, qual foi a grande lição ?

Ledo Ivo: “João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas.Cada poeta é diferente. As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa ! . O que mais me impressiona em João Cabral é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim, João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”,o poeta da obsessão, o poeta das coisas ocultas,o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa,mas se abre para o grande acesso popular, o que é curioso.

Uma vez,João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra literária. Procuramos fazer uma obra literária o maior possível.De repente, lá em Nova Iguaçu ,a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”.

GMN : Para o senhor – que se considera “um homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta” – qual é a grande pergunta, a grande perplexidade que até hoje o atormenta ?

Ledo Ivo: “A perplexidade é estar no mundo – com todas essas perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não-existência de Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há resposta. Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo, no sentido de ter uma existência nítida, com fronteiras definidas.Talvez o meu mundo seja o mundo da ambigüidade.

Drummond chamou a minha poesia de “múltipla”. É uma frase que ilumina mais uma existência poética do que muitos rodapés. Quando publiquei “Confissões de um Poeta”, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta,Hélio Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura.

Vivo nessa perpétua indecisão. O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda”.

GMN : Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude. Qual foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte?

Ledo Ivo: “Venho de uma família numerosa. Tenho um irmão que morreu, o chamado “anjinho”, aquele que morre novo. Outro irmão meu, chamado Éber, morreu aos oito anos. Numa família nordestina,numerosa, a morte vive sempre rodeando as pessoas. Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios. Mas censuro a morte ! .Como sou uma criatura do aqui e do agora,fico impressionado com a morte,porque ela faz com que a gente já não esteja aqui”.

Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória e instantânea.É um relâmpago. Além de tudo,há o mistério da existência : por que será que uns morrem cedo,outros morrem tarde e outros não morrem nunca ? “.

GMN : O senhor faz,em um de seus textos,uma referência a uma caminhada solitária pelas alamedas do Cemitério São João Batista. O que é que o senhor estava fazendo no cemitério ?

Ledo Ivo: “Devo ter ido me despedir de um amigo. Não fui para visitar o cemitério. O engraçado é que João Cabral escreveu o meu epitáfio em versos que ele nunca incluiu em livro. O que João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos. Terminou não fazendo.

João foi um grande amigo meu,mas tínhamos temperamentos diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro. Nunca nos encontramos – nem esteticamente. Dizia que eu falava muito; achava que só a morte é que me reduziria ao silêncio.
O epitáfio que João Cabral criou para mim é este :

“Aqui repousa
Livre de todas as palavras
Ledo Ivo,
Poeta,
Na paz reencontrada
de antes de falar
E em silêncio,o silêncio
de quando as hélices
param no ar “.

PS: A vida tem dessas ironias : lastimavelmente, João Cabral de Melo Neto, autor do epitáfio de Ledo Ivo, morreu há dez anos. Tinha 79 anos de idade. O poeta presenteado com o epitáfio precoce felizmente continua vivo. Ledo Ivo tem oitenta e cinco anos.

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novembro 02, 2009

LEDO IVO - PARTE 2

LEDO IVO (PARTE 2) / A INCRÍVEL PACIÊNCIA DO ESCRITOR E POETA QUE HÁ SESSENTA ANOS ESPERA PELO LEITOR : “UM DIA, ELE HAVERÁ DE APARECER”

GMN : O senhor escreveu em suas memórias : “Vivo escrevendo, mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que freqüência,então, o senhor tem a sensação de estar substituindo a vida pela escrita ?

Ledo Ivo: “É um drama comum a todo e qualquer escritor este sentimento de que estamos vivendo,sim, mas essa vida se destina somente a acumular experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se limita a viver, porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia : por que logo eu, numa família de onze, revelou a vocação e o destino para a escrita, numa família que não tinha pendores literários ? Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um escritor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra literária. O escritor é,então,uma pessoa condenada não a viver, mas a escrever.

Fausto Cunha – grande crítico,que notou,em minha procedência literária, a influência de poetas malditos como Rimbaud,Verlaine e Baudelaire – me disse : “O grande erro de sua vida é que você não morreu aos vinte anos. Se tivesse morrido moço, teria deixado “Ode e Elegia”, “As Imaginações”, e “Acontecimento do Soneto”. Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casemiro de Abreu !.Vida longa atrapalha a biografia !”.

João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi : “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas – o poeta que vive até os oitenta anos !”. Prefiro o mistério dos poetas que,como Drummond e Manuel Bandeira,tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa”.

GMN : Ariano Suassuna – que foi homenageado no carnaval aqui no Rio – disse que já tinha recebido a homenagem do “Brasil oficial”, ao entrar para a Academia Brasileira de Letras e estava recebendo ali,no sambódromo,a homenagem do que ele chama de “Brasil Real”. O senhor – que já foi homenageado pelo “Brasil Oficial” ao ser recebido por unanimidade na Academia Brasileira de Letras – sente falta do reconhecimento do “Brasil Real”,já que não é tão conhecido como poeta como deveria ?

Ledo Ivo: “O poeta inglês John Mansfield diz que já viu o azarão no jóquei ganhar o prêmio, já viu flor brotar da pedra, já viu coisas amáveis feitas por homens de rosto feio. “Eu também espero” – diz ele. Confesso que o problema do reconhecimento vasto não me preocupa. A vida literária se faz pela diversidade e pela multiplicidade. Não se sabe se o escritor de pouco público de hoje será o escritor de grande público de amanhã.

Um escritor pode ser obscuro e desconhecido hoje e famoso e glorioso amanhã. Você pode também estar dentro da literatura e um dia ser expulso ! São coisas que não me preocupam. O que me preocupa é a criação literária. Já que sou uma criatura dotada de linguagem, quero me exprimir. Mas sei que uma obra só se completa com a existência do outro. Há sessenta anos estou esperando por esse leitor. Um dia ele haverá de aparecer”.

GMN : O poema “A Queimada” – aquele que fala do lobo no covil – é uma declaração de princípios de que o escritor deve ser,no fim das contas,um solitário ?

Ledo Ivo: “O escritor deve ser um solitário solidário. A verdade, como digo no poema,não pode ser dita”.

GMN : O senhor reclama daqueles escritores que só brilham em congressos….

Ledo Ivo: “Oswald de Andrade – de quem fui muito amigo até brigarmos – me procurou, magoado, porque tinha sido expulso do Partido Comunista. Os comunistas, então, não o deixaram participar do Congresso dos Escritores de São Paulo. Eu disse a ele: “É besteira ! . Nietzsche nunca participou de um congresso de escritores” (risos)…

GMN: Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício” ?

Ledo Ivo: “Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas já vêm prontas, organizadas subconscientemente. Pensam que “capino” o meu texto. Mas o meu texto vem espontaneamente. Não tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que acrescentam !.

João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa inveja, mas não causa não!”.

GMN : Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de Andrade, escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar?

Ledo Ivo: “Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele que “enterra uma palavra por dia”. Para mim, o bom escritor é o que desenterra uma palavra por dia ! . Porque o escritor lida com um patrimônio lingüístico. De vez em quando o brasileiro ressuscita palavras esquecidas”.

GMN : Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus livros o tão citado poema sobre o Recife ?

Ledo Ivo: Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam. Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema :

“Amar mulheres,várias
amar cidade,só uma – Recife.
E assim mesmo com as suas pontes
E os seus rios que cantam
E seus jardins leves como sonâmbulos
E suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau”

O poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque Recife tem um lado cosmopolita – que me impressionou muito. O meu pai era pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era considerado meio pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico Willy Lewin,nos anos quarenta. Recife foi a cidade de minha primeira formação literária. Fazíamos poemas nas mesas do Lafayette,numa época de boemia. O poema sobre o Recife ficou desaparecido até 1947, quando chegou às mãos de Mauro Mota – que o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no Jornal do Commercio). O destino de um poema é curioso. A gente escreve um poema; ele ganha vida própria,começa a circular.

Guardo a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu : ele dizia que eu deveria ser um poeta alagoano,assim como ele era um poeta pernambucano. O sentimento do berço tinha grande importância para ele”.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE,O GRANDE POETA SECRETO,ENTRA EM CENA

GMN : Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência com Carlos Drummond de Andrade ?

Ledo Ivo: “O que me impressionou em Drummond, já no primeiro encontro, foi um certo “fechamento” interior. Não se entregava. Era como se vivesse insulado em si mesmo. Há em Drummond algo que é “intransmissível”. Tive essa sensação de intransmissibilidade.

Eu levei meus primeiros poemas para Drummond, no gabinete em que ele trabalhava, no prédio do Ministério da Educação, no centro do Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção de outros escritores para mim. Em seguida, vieram as rusgas, porque havia divisões políticas naquele tempo.

A coisa mais impressionante que Drummond me disse foi num de nossos últimos encontros. Um certo poeta brasileiro – de quem não quero dizer o nome – proclamou-se herdeiro de Drummond. Quando me encontrei com ele, disse: “Como é que vai o herdeiro?” . E ele : “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do modelo. O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim : é esta a lição da poesia”.

O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de Andrade. Os herdeiros são os diferentes. São até os adversos : não são os assemelhados. É a grande lição de Drummond que ficou em mim : ele não espera ter um clone como herdeiro. (risos) O que Drummond esperava era o “anti-clone”.

GMN : Nesse primeiro encontro, o senhor – que viria a se considerar um lobo no poema “A Queimada” – teve a sensação de que o Drummond era o “urso polar”,como ele disse que era num dos poemas ?

Ledo Ivo: “Tive essa sensação. Drummond tinha uma vida amorosa muito escondida – que depois, infelizmente, foi violada pela imprensa. Eu via, em Drummond, um grande poeta secreto. Naquela época, 1940, Drummond não tinha a notoriedade que ganhou depois. O próprio Manuel Bandeira pensava que o grande poeta brasileiro daquela época fosse Augusto Frederico Schmidt. Porque o Schmidt enrolava todo mundo (risos). Schmidt até pensou em fazer um poema sobre a descoberta do Brasil, mas depois Drummond veio com A Rosa do Povo e acabou com a festa”.

“Sou apenas um homem.

Um homem pequenino à beira de um rio.

Vejo as águas que passam e não as compreendo.

Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.

Vi que amanheceu porque os galos cantaram.

Como poderia compreender-te, América ?

É muito difícil.

Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.

O rosto denuncia certa experiência.

A mão escreveu tanto – e não sabe contar !

A boca também não sabe.

Os olhos sabem – e calam-se”

(Trecho de “América”, poema do livro “A Rosa do Povo”/Carlos Drummond de Andrade)

A SEGUIR : O GRANDE POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO DÁ DE PRESENTE UM EPITÁFIO EM VERSOS AO AMIGO LEDO IVO

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outubro 31, 2009

LEDO IVO - PARTE 1

O DIA EM QUE O POETA LEDO IVO OUVIU DO GRANDE ESCRITOR GRACILIANO RAMOS UMA CONFISSÃO IRRITADA, SURPREENDENTE E POLITICAMENTE INCORRETA SOBRE MARCEL PROUST: “NÃO LEIO VEADOS!”

Caçadores de belos versos,tremei de arrependimento : quem nunca leu um poema de Ledo Ivo, por preguiça, desinformação ou enfado, deve se penitenciar deste crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível.

Um exemplo ? É difícil encontrar uma declaração de princípios tão bela quanto “A Queimada” :

“Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita”.

O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da poesia brasileira neste início de século, diga-se que o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Ao contrário do que os versos podem fazer supor,o homem não é uma fera de garras afiadas.

Ei-lo : sentado numa poltrona da sala, o lobo Ledo vai fazer, a pedido do repórter,uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O cenário que circunda o Covil do Lobo é um convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas do mundo, o lobo Ledo precisa caminhar apenas cinco passos. É a distância entre a sala e a extremidade da varanda deste apartamento. Lá fora,a beleza escandalosa de um céu sem nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo.

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Ledo Ivo : convivência com Graciliano Ramos (Foto: Geneton Moraes Neto)

A localização do apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um poeta.Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Não é para qualquer um.

As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações de poeta vão se sucedendo,aos borbotões : com os gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível, o pequenino Ledo Ivo reconstitui, com frases precisas, momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de Andrade,Graciliano Ramos,Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.

Justiça se faça : Ledo Ivo já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de “o Brasil oficial” : a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe, por unanimidade, a cadeira número 10, no não tão distante ano de 1986. Mas o “Brasil real”, aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos, não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser.

O Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário, um ermitão que prefere ver a humanidade à distância. A ode à solidão – que ele já escrevera nos versos definitivos do poema “A Queimada” – repete-se no não menos belo “A Passagem” :

“Que me deixem passar – eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar,exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho”.

Ledo Ivo vai alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo cuidado que devota à linguagem escrita. O Português agradece,comovido. O poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como “de maneiras que….”. Se alguém cometer o sacrilégio de misturar “tu” com “você” diante do lobo,certamente escapará de uma admoestação, porque o homem é afável, mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.

Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski,o lobo Ledo carrega,pelas décadas afora,as marcas da infância em Maceió :

“Na tarde de domingo,volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam as maresias e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências
monótonas.
(…) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,
voltai a este dia inacabado
que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.
Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no mar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno

Apenas nomes em lápides.Apenas nomes.E o barulho do mar”.

Graciliano Ramos,João Cabral de Melo Neto,Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes vivos da imaginária enciclopédia do Lobo Ledo.
Gravando !

PRIMEIRA ESTAÇÃO : O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE DESPEDIR DA VIDA

GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável,corresponde à verdade ?

Ledo Ivo : “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo estado. Quando menino, como primeiro da turma no grupo escolar, fui apresentado a Graciliano,na época secretário de Educação. Pôs a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando ele publicou “Vidas Secas”, eu,”menino prodígio” em Maceió,escrevi,em 1938,um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse “vá visitar Heloísa” – a mulher do Graciliano Ramos, àquela altura, aos cinquenta anos de idade,uma figura importante na literatura brasileira. Durante nossa conversa, ele abriu uma gaveta e disse : “Quando publiquei “Vidas Secas” em Alagoas,só uma pessoa falou do meu livro : um menino de 14 anos…..”.

A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio, porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada, jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e Graciliano Ramos puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas,como,por exemplo,a correção lingüística que,dizem,existe em minha prosa.

Graciliano Ramos era,sim,uma pessoa rústica. Em toda a literatura brasileira,ele só tinha três, quatro admirações, além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês : José Lins do Rego,Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia, admirava Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos).

Notei, na casa de Graciliano Ramos, um livro de poesia autografado, fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa de Graciliano,dizia a ele : “Você deveria abrir esse livro ! “. E ele : “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos) .

Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro.Se não me engano,era um volume das poesias completas de Augusto Frederico Schmidt”.

GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical ?

Ledo Ivo: “A herança – pungente – é ver que a glória de Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com Graciliano Ramos foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um grande escritor,mas ainda não plenamente reconhecido – essa é que é a verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não reeditava. Em conversas íntimas, Graciliano chamava José Olympio de “esse filho da puta – que vive editando Lourival Fontes e Getúlio Vargas…..” (N: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas) . O que eu via ali, em Graciliano, era a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal – Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos em Alagoas : “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de Alagoas, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances ? Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa que o Rio,a metrópole,deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor.

Qual foi,então,a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ? A fidelidade ao ofício, algo que se viu também em Machado de Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia,não pensava em prêmios literários,não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles”.

GMN : O desleixo com a glória imediata foi,então,uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos ?

Ledo Ivo : “Uma característica de Graciliano Ramos -que me orgulha- é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil diferente. Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro – oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que tinham carro ! Um negócio impressionante,porque todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo diferente,o da vida literária, marcada pela existência de suplementos literários.

Mas havia ,em Graciliano Ramos,um detalhe que me impressionava : o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de certa maneira – muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele gostava -,no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust, por exemplo. Quando eu perguntava por que,ele dizia : “Não leio veados ! “.

Quando o visitei pela última vez,no hospital, ele chorou, porque sabia que ia morrer. Enquanto chorava,falava -e muito – sobre a mãe. O hospital ficava aqui ao lado,onde hoje é este edifício (Ledo aponta para fora do apartamento). Aquele foi nosso último encontro, porque eu estava de partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido.De vez em quando,falava coisas desconexas. Contava que a mãe,quando casou,levou as bonecas para casa – um negócio curioso.

O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante, porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que,por mais que ele dissesse que odiava a vida, ele, na verdade, amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma. Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão,mas nunca fumou.
Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”.

A SEGUIR : LEDO IVO FAZ RETRATOS FALADOS DE MANUEL BANDEIRA E CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Posted by geneton at 07:47 PM

outubro 29, 2009

VAN KIRK

UM ENCONTRO COM O CAVALEIRO DO APOCALIPSE : HOMEM QUE PARTICIPOU DO ATAQUE ATÔMICO A HIROSHIMA HOJE SE LEMBRA DAS VÍTIMAS “UMA VEZ POR MÊS” (QUANDO EMBARCOU PARA A MISSÃO, ELE LEVOU UMA PISTOLA E UMA BÍBLIA – PARA REZAR, SE TIVESSE TEMPO)

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Van Kirk : lembranças da bomba atômica (Foto: Geneton Moraes Neto)

Meninos, eu vi e ouvi: tive a chance de entrevistar, “olho no olho”, dois cavaleiros do apocalipse: militares americanos que participaram dos dois mais inesperados e devastadores ataques já lançados por um país contra outro. As bombas que os Estados Unidos lançaram sobre Hiroshima e Nagasaki forçaram o Japão a se render incondicionalmente, o que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial ( em breve, um post sobre o integrante da Missão Nagasaki. Porque quem entra em cena agora é um militar que participou do mãe de todos os ataques: a Missão Hiroshima)

Voilà :

Eis um dos cavaleiros do apocalipse: um homem de oitenta e dois anos colhe peras no pequeno pomar que cultiva no jardim de casa, num subúrbio de São Francisco, Califórnia. Oferece-me a fruta. “É boa e doce”. Faz sol. O azul escancarado do céu só é maculado pelo rastro deixado por um avião a jato.

Enquanto saboreia a pêra que acabou de colher, ele se dirige, a passos lentos, para uma cadeira na beira da piscina. Os raios de sol acentuam a brancura dos cabelos ralos. O pomar em casa e o conforto sugerido pela piscina podem dar a impressão de que o homem que colhe peras é um milionário. Não é. O homem que colhe peras é apenas um militar aposentado.

A biografia deste octogenário não seria diferente da de tantos outros veteranos de guerra se ele não tivesse levantado vôo, numa madrugada de agosto de 1945, a bordo do Enola Gay – o avião que conduzia a primeira bomba atômica usada numa guerra. Ao embarcar no Enola Gay, Van Kirk entrou para a História – para o bem e para o mal.

Os que criticam o uso da arma atômica chamam os militares que participaram do ataque de mensageiros da morte. Os que encontram uma justificativa histórica chamam-nos de guerreiros da paz. A polêmica durará séculos.
“Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra”

A missão que Theodore Van Kirk cumpriu mudou a história da humanidade. Todos os superlativos já foram usados para descrever a enormidade do ataque nuclear a Hiroshima. “Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra” – diz Bob Greene, autor de um livro recém-lançado, “Duty: a Father, His Son and The Man Who Won The War” – um jornalista que desde criança era fascinado pela Missão Hiroshima.

Que fantasmas povoam hoje os dias calmos deste homem ?

Se ele não tivesse embarcado há meio século para a Missão Hiroshima , certamente não teria o descanso dos seus dias de aposentadoria quebrado pela impertinência de repórteres que o procuram para tirar velhas dúvidas.

É o que faço agora. Van Kirk nos recebe – a mim e ao cinegrafista Sherman Costa – com um sorriso largo , uma pergunta bem-humorada (“vocês conseguiram chegar ? Pensei que tinham ficado presos no engarrafamento !”) e a disposição de abrir o armário onde se escondem os fantasmas de Hiroshima.
A bordo do avião que jogaria a bomba atômica sobre Hiroshima, Van Kirk levava uma pistola – e uma Bíblia

Pergunto se ele levou algum objeto pessoal quando embarcou no vôo histórico. Van Kirk me surpreende com a resposta: o único “objeto pessoal” que ele levou a bordo do avião que carregava a bomba atômica foi uma Bíblia. Se precisasse de conforto espiritual durante a Missão, poderia recorrer àquela pequena relíquia familiar:

- A única peça pessoal que carreguei comigo foi uma Bíblia – que eu tinha recebido de minha mãe e de meu pai. Era pequena. Cabia no bolso. Durante o vôo, eu me lembro de ter tocado a Bíblia com a mão. Mas não cheguei a ler nenhuma passagem. O exemplar da Bíblia não tinha meu nome, nada que pudesse identificar quem eu era. Se o avião por acaso fosse derrubado em território inimigo, os japoneses não poderiam me identificar pela Bíblia. Terminei perdendo-a, tempos depois.

Além do pequeno exemplar da Bíblia, Van Kirk carregava consigo uma pistola automática – que poderia ser usada numa situação extrema:

- Não havia rifles a bordo. Mas cada um de nós tinha uma pistola automática, calibre 45. Carreguei uma comigo, na missão rumo a Hiroshima. Se fôssemos derrubados sobre território japonês, poderíamos usar as pistolar para nos proteger ou – Deus nos livre – para destruir a nós mesmos, se necessário (Van Kirk evita a palavra “suicídio”). Mas, se algo desse errado na missão, a cena seria tão catastrófica que teríamos pouca chance de usar as pistolas.

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O navegador : a bordo do avião, a companhia de uma Bíblia - e uma pistola (Foto:GMN)

Ninguém participa impunemente de uma missão tão devastadora.

Van Kirk orgulha-se de ter contribuído para o fim da guerra. É um fato histórico indiscutível. O uso das armas atômicas – primeiro, em Hiroshima e depois em Nagasaki – obrigou o Japão à rendição incondicional . Se o Japão continuasse em guerra, seria invadido por terra. O número de mortos poderia ter sido maior do que o causado pelas bombas – dizem os estrategistas. Mas o preço do uso das armas atômicas foi altíssimo. O horror causado pelo cogumelo atômico jamais se dissipou. Calcula-se que cem mil pessoas tiveram morte instantânea, nos dez segundos seguintes à explosão. As cicatrizes deixadas pelas explosões atômicas vão atravessar os tempos.

Que tipo de pensamento terá passado pela cabeça de Van Kirk quando ele viu Hiroshima pela primeira vez, ainda a bordo do Enola Gay?

Van Kirk faz uma pausa, reconstitui o cenário do apocalipse:

- Era um dia perfeitamente claro. A gente podia ver a cidade a milhas de distância. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a de que nossa missão tinha sido bem sucedida: nós tínhamos encontrado a cidade, cumprimos os horários previstos, tudo estava perfeito. O primeiro pensamento que tive depois da explosão da bomba foi de alívio. Porque aquilo era algo que tinha exigido um treinamento que durara meses. O segundo pensamento que tive foi: a guerra acabou!

A História dos tempos de guerra não é feita apenas de ordens militares grandiosas e decisões sem rosto. Há sempre alguém que cumpre as ordens. As decisões tomadas no Salão Oval da casa Branca pelo Presidente dos Estados Unidos podem exigir – por exemplo – que um grupo de militares entre num avião de madrugada, invada o espaço aéreo japonês, mire numa cidade lá embaixo e abra as comportas para que seja lançada, naquele alvo povoado por homens,mulheres e crianças, a arma mais mortífera já concebida pelo homem- uma bomba atômica.

O avião Enola Gay levanta vôo da ilha de Tinian, no Oceano Pacífico, às 2 e 45 da manhã de seis de agosto de 1945 rumo a Hiroshima, com doze homens – e uma bomba atômica a bordo. A bomba explode às 9h16. Cem mil pessoas morrem instantâneamente na explosão. O número de vítimas chegaria a 145.000 no final de 1945.

“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastaram até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas seiscentos leitos e todos já estavam ocupados”, diria o jornalista americano John Hersey em “Hiroshima”, texto clássico sobre o bombardeio.
O jornalista que escreveu um livro clássico sobre Hiroshima registrou: “Um reverendo perguntava como o céu silencioso poderia ter causado tanta destruição”

“Nuvens de fumaça, próximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um céu silencioso poderia ter causado tanta destruição (…) Zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos”

A Missão Hiroshima foi o momento mais grave vivido por Van Kirk. Mas, para decepção dos fanáticos por guerra, ele constata:

- A guerra é mais interessante na TV do que na vida real. Guerra pode significar cinco minutos de extrema atividade – e um ano de monotonia….

Não havia lugar para monotonia a bordo de um avião que voava rumo ao Japão para cumprir uma missão que – não é exagero dizer – entraria para a história da humanidade:

- Havia a possibilidade de a bomba explodir no avião, o que seria desastroso. Poderíamos ter problemas no motor. Nós estávamos preparados para o pior – que, felizmente, não aconteceu. Não estávamos preocupados com os japoneses durante o vôo em direção a Hiroshima, porque sabíamos que eles não tinham como nos alcançar naquela altitude – confessa Van Kirk . Mas sabíamos que nosso avião seria atingido por ondas provocadas pelo deslocamento de ar, depois da explosão. Disseram-nos que, depois da explosão, iríamos sofrer o impacto. Houve até especulações sobre o risco de a explosão atingir o nosso avião. De volta à base, cheguei a ouvir de um dos cientistas o seguinte: “Quando vocês partiram para a missão, pensei que aquela seria a última vez que eu os veria….”. A turbulência durou pouco. O vôo de volta pôde continuar.
“Os cientistas tinham dito que a temperatura,no centro da explosão, seria mais forte que a do sol”

O calor que se espalhou por Hiroshima e Nagasaki era o de “mil sóis”. Seres humanos “se desintegraram sem deixar qualquer vestígio”. O inferno se instalou na terra. O grande paradoxo é que tanta destruição foi cometida – em última instância – em nome da paz – para acabar com a guerra. O Japão se rendeu. A Segunda Guerra Mundial acabou ali. Mas Hiroshima e Nagasaki entraram para sempre na História como provas de que o homem é tecnicamente capaz de destruir a vida sobre a terra. Basta tomar a decisão.

“Os cientistas tinham dito que a temperatura no centro da explosão seria mais forte que a do sol – diz Van Kirk. Quando a bomba explodiu lá embaixo, nós já estávamos nos afastando de Hiroshima. Não havia janelas na parte traseira do avião. Usávamos equipamentos para proteger nosso olhos. Ainda assim, pudemos ver um clarão parecido com o de um flash fotográfico numa sala escura. Hiroshima estava inteiramente encoberta por uma fumaça negra e por poeira. Não se via a cidade. A nuvem que se formou tinha várias cores: eram tons de cor púrpura, rosa, branca – todos os tipos de cores”.

A visão era bonita? – pergunto ao navegador.

“Não se pode chamar algo assim de belo. Era algo mais horrível do que bonito”.

Adiante, ele aprofunda a descrição:

- Minha primeira reação, ao ver as primeiras imagens de Hiroshima, foi de surpresa: como aquilo tudo pôde ser feito com apenas uma bomba ? Aquilo reforçou a nossa certeza de que não havia meio de os japoneses resistirem a uma arma daquele tipo. O Japão iria se render logo depois.

O que é que a palavra Hiroshima significa hoje para este homem?

“Para mim, Hiroshima significa, hoje, a ressurreição de uma cidade que foi destruída”, diz Van Kirk. “Hiroshima é também a prova de que o homem pode corrigir seus erros. Não é que a bomba atômica tenha sido um equívoco. O bombardeio foi perfeitamente legítimo como ato de guerra. A população de Hiroshima é hoje devotada à paz.É uma mensagem que vai para todo o mundo”.
“Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento”

Que resposta o navegador do Enola Gay dá, hoje, aos críticos da Missão Hiroshima, gente que condena o uso de armas atômicas?

- Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento específico e qual a alternativa que existia ao uso da bomba. O que aconteceu é que a bomba salvou vidas. Se não tivéssemos jogado a bomba, a guerra não teria terminado em agosto. Teria se estendido por um, dois meses. Durante este período, o Japão estaria exposto a um horrível bombardeio – com grande perda de vidas. Embora tenha havido uma horrível perda de vidas em Hiroshima – e também em Nagasaki – a alternativa seria pior : basta levar em conta o número de vidas que teriam sido perdidas se a guerra continuasse.

Ao contrário do esperado, o Japão não se rendeu depois da explosão da bomba em Hiroshima. Os Estados Unidos decidem,então, lançar uma segunda bomba. O alvo era a cidade de Kokura. Mas, como a cidade estava encoberta por nuvens, a bomba foi jogada em Nagasaki. O Japão finalmente se rende. O documento da rendição incondicional é assinado no dia 2 de setembro.

Pergunto se Van Kirk já teve pesadelo com Hiroshima:

- Nunca. Há quem me critique pelo fato de eu nunca ter tido pesadelo com a bomba atômica. Mas devo dizer que não tive. Porque acho que o que fizemos em Hiroshima foi apropriado.

Faria tudo de novo?

- Eu faria – diz Van Kirk , sem titubear. Faria tudo de novo, se as circunstâncias que a gente tinha ali se repetissem : um conflito que se estendia por anos, com muita matança, com feridos, com o país inteiro em estado de guerra, não apenas as forças armadas. Mas creio que as circunstâncias não se repetiriam. Não acredito que nenhuma outra guerra dure mais que uma semana ou duas.
“Lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade” – é o que Van Kirk diria aos moradores de Hiroshima, se tivesse tido a chance de se dirigir a eles antes do ataque

Se tivesse tido a chance de falar aos habitantes de Hiroshima momentos antes do lançamento da bomba, o que Van Kirka diria a eles?

- Eu diria: lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade. É um ato necessário. Vocês não aceitaram os termos da rendição incondicional – que nós oferecemos. O resultado é este.

Aos que dizem que o ataque a Hiroshima é discutível porque atingiu indiscriminadamente alvos civis, Van Kirk responde que não : Hiroshima era a sede das instalações militares japonesas encarregadas de defender o país em caso de invasão. Havia na cidade pelo menos cem “alvos militares”. Mas a população civil pagou o preço.

Van Kirk acha absurda qualquer comparação entre o ataque atômico ao Japão – um ato de tempos de guerra – e, por exemplo, o ataque dos terroristas de Bin Laden ao World Trade Center. O sentimento antiamericano, aguçado na era Bush, deu margem a comparações absurdas desse tipo:

- Quando vi o ataque ao World Trade Center me perguntei: que tipo de gente pode fazer algo assim? É algo que não consigo imaginar : que eles tenham achado que algo de bom poderia sair dali. Quando houve Hiroshima, nós estávamos em guerra. Havia legitimidade. Não apenas nós estávamos envolvidos na guerra,mas todo mundo – os britânicos, os russos, todos. Mas o ataque ao World Trade Center foi feito em tempos de paz. Como puderam fazer? Não consigo entender. Eu não o faria – nunca. Nunca.

Tento provocá-lo : o senhor iria a uma guerra hoje para capturar Bin Laden?

- Sim. Mas não creio que seja necessária uma guerra.

Vida de personagem da história é assim: o navegador do avião que jogou a bomba atômica oferece ao repórter um autógrafo sobre uma foto do Enola Gay. A relíquia vai para meus arquivos implacáveis. Pai de dois filhos e duas filhas, avô de sete netos, Van Kirk vive sozinho, com a mulher parcialmente inválida.

Em seus momentos de solidão, Van Kirk hoje se lembra das vítimas da bomba?

- Eu hoje me lembro das vítimas com menos freqüência do que antes. Mas a cada vez que vejo uma foto, um filme ou uma menção de alguém, me lembro das vítimas da bomba atômica. É algo que acontece menos e menos, à medida em que envelheço e o tempo vai passando. Hoje, devo me lembrar das vítimas uma vez por mês. Pode acontecer de eu me lembrar das vítimas duas vezes em um mês e, em seguida, passar três meses sem me lembrar. Mas a média é de uma vez por mês.

Van Kirk fica em silêncio. Nessas horas, ele parece rever intimamente os fantasmas de Hiroshima : o pesadelo da guerra, o imenso cogumelo atômico, a decisão dramática, a destruição indizível.

É sempre assim: quando uma notícia qualquer de TV fala da guerra ou quando um repórter vem de longe para ouví-lo sobre o dia histórico, Van Kirk embarca numa viagem feita de palavras, lembranças e silêncios – como agora. Não se recusa a falar. Não se esconde. Porque, desde o momento em que entrou no Enola Gay para voar rumo a Hiroshima, ele sabia que aquela viagem não acabaria nunca.


Posted by geneton at 07:59 PM

outubro 27, 2009

EVALDO CABRAL DE MELLO

BRASILEIRO ADORA CHORAR EM AEROPORTO. SÓ EXISTE UM POVO TÃO PIEGAS QUANTO O BRASILEIRO: O PORTUGUÊS – QUE CHORA ATÉ PARA ATRAVESSAR UM RIO (PALAVRA DE UM HISTORIADOR QUE ENTENDE DE BRASIL)

Quem quiser conhecer uma manifestação genuína do espírito brasileiro não precisa ir longe: basta dar um plantão diante diante dos portões de embarque e desembarque de qualquer aeroporto do país. Lá, as manifestações derramadas de afeto, as efusões, as lágrimas, os abraços, os beijos, o chororô – tudo funcionará como um retrato fiel da “pieguice luso-brasileira”.

O que é que os documentaristas estão esperando ? Por que não apontam suas câmeras durante doze horas seguidas para os portões de embarque e desembarque de algum aeroporto movimentado ? Ao término da gravação, terão em mãos, com certeza, material suficiente para compor um retrato fiel do temperamento brasileiro.

Quem chama a atenção para este detalhe do caráter brasileiro é um historiador que merece ser lido, ouvido e estudado, porque é capaz de produzir, em série, idéias originais e provocativas sobre o Brasil e o brasileiro – este povo bipolar. Chama-se Evaldo Cabral de Mello (sim, é irmão do grande poeta João Cabral de Mello Neto. Autor de livros como “O Negócio do Brasil” e “A Fronda dos Mazombos”, é apontado como um dos maiores especialistas em um tema que até hoje provoca debates: o período da dominação holandesa no Nordeste brasileiro).

Já se disse que o brasileiro é, essencialmente, um povo emotivo. Brasileiros choram quando ganham todo e qualquer tipo de competição, especialmente as disputadas longe do solo pátrio. Choram quando ouvem o hino. Choram quando o país é escolhido para sediar uma Olimpíada. Quando vi o chororô que se seguiu ao anúncio do Rio de Janeiro como sede das Olímpíadas, pensei comigo “que coisa patética, que coisa patética”. Só não consegui enxergar direito o que se passava na tela da Tv porque minha visão estava totalmente enevoada – pelas lágrimas. Patético, patético – mas brasileiro.

Voilá a transcrição de uma (rara) entrevista televisiva que Evaldo Cabral de Mello concedeu ao locutor-que-vos-fala sobre não apenas a pieguice, mas outros traços da geléia geral brasileira :

Quais são os sintomas dessa pieguice luso-brasileira?

Evaldo Cabral de Mello – “Vou citar apenas dois exemplos – que me parecem engraçados. Primeiro : a quantidade de pessoas que, no Brasil, se deslocam aos aeroportos para levar parentes e amigos. Se você pensar bem, cada pessoa que pega um avião no Brasil é levada por outras cinco ao aeroporto…Ou vão cinco receber cada pessoa que chega. Em relação a Portugal, me lembro do caso que me contou o pintor Cícero Dias. Morador em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial, ele se divertia muito ao ver os barcos que faziam a ligação entre o Terreiro do Paço e Cacílias. É como a barca Rio-Niterói. A distância é até menor que do que a do Rio a Niterói. Cícero ficava sentado, às gargalhadas, vendo o número de pessoas que, aos prantos, se despediam de parentes que iam atravessar o rio…”.

GMN – O senhor disse, numa entrevista, que o Brasil conseguirá, no máximo, ser um “Canadá dos Trópicos”. Isso é uma avaliação otimista ou pessimista ?

ECM – “Bastante otimista! Afinal de contas, eu me sentiria muito bem se tivesse a certeza de que, em vinte, trinta anos, o Brasil teria a renda per capita, o grau de desenvolvimento, o respeito pelos direitos humanos e as instituições democráticas estáveis que existem no Canadá, a despeito de todos os problemas de separatismo que os canadenses têm. Eu quis me referir, com a expressão “Canadá dos Trópicos”, a um país que fosse desenvolvido, ocidental, democrático – com a diferença de que fica nos trópicos. A mim não me parece que o povo brasileiro tenha vocação para grande potência. O Canadá é um país que conseguiu um nível de vida e certa projeção internacional, mas não reivindica um estatuto especial de grande potência, não tem ambições mundiais. Eu pessoalmente me pergunto se o Brasil, que ainda vive o processo de pôr a própria casa em ordem, é um país em condições de exercer uma influência internacional ampla. Nós podemos exercer influência dentro da América Latina, no Mercosul, nas nossas relações com a Europa ocidental, com os Estados Unidos, com países da África, em vista de nossa herança comum, mas acho otimista, pelos próximos vinte ou trinta anos, ver o Brasil como uma das potências mundiais”.

GMN – A natureza tropical, “grandiosa e barroca”, é “triste e deprimente”, na opinião do senhor. Mas uma natureza grandiosa não poderia inspirar, o país, ideais de grandeza ? Por que é que o senhor não gosta dessa natureza tropical ?

ECM – “Se natureza grandiosa inspirasse ideais de grandeza, a Suíça seria uma grande potência mundial. É uma questão de gosto estético. Eu entendo perfeitamente que uma pessoa goste de paisagens tropicais. Mas não gosto de nada majestoso. Tudo o que é majestoso me deixa perfeitamente frio. Comparado com certas paisagens européias, a paisagem tropical é majestosa, monumental. Não me diz nada. Sou muito favorável á paisagem já marcada pelo homem; a paisagem que tem o seu lado histórico. Já a paisagem nua e virgem não me atrai, absolutamente”.

GMN – O senhor já reclamou da falta de objetividade do brasileiro. Aqui, quem é pouco objetivo é “tido como inteligente”. O senhor quer que o brasileiro se transforme num alemão – metódico, frio e eficiente ?

ECM – “Não. Ocorreria uma negação da autenticidade do brasileiro se ele se transformasse num alemão. Mas seria bom que o brasileiro tomasse consciência de uns tantos defeitos da sua formação cultural e procurasse corrigi-los num sentido mais compatível com as exigências de um mundo crescentemente globalizado. Não adianta, diante da globalização, fincar os pés no terreno ou fazer como um avestruz. Não se pode ignorá-la ou detê-la. É preciso encará-la e enfrentá-la como brasileiro, mas também com a consciência de que a globalização vem trazer mudanças completamente irresistíveis”.

GMN – Nós temos a tendência de enxergar, no futebol e no carnaval, traços do caráter brasileiro. O futebol resumiria nosso talento para o improviso. O carnaval seria uma prova de nossa vitalidade. O senhor, como historiador, acha que o futebol e o carnaval são retratos fiéis do brasileiro ?

ECM- “São retratos parciais do brasileiro do século vinte. A popularidade do futebol e do carnaval no Brasil são fenômenos bastante recentes. O carnaval que se conhecia no Brasil no período colonial e ao longo do século dezenove era o chamado entrudo português – que não tinha nada a ver com o carnaval que se faz atualmente no Brasil. Já o futebol foi um jogo transplantado para Brasil por funcionários ingleses de companhias de eletricidade e outras que operavam aqui no fim do século passado. Para o século vinte, compreender o Brasil sem o futebol e sem o carnaval é impossível. Mas é preciso ter presente que todas essas idéias de identidade nacional, tanto no Brasil como fora, têm muito de uma construção ideológica. Nenhum país tem identidade. Uma identidade é inventada para um país. O futebol e o carnaval, então, são dois elementos fundamentais através dos quais a cultura brasileira do século dezenove inventou uma identidade para o Brasil. A preocupação com a identidade nacional, que sempre houve desde o período colonial, só se tornou absorvente e monopolizou as preocupações do Brasil do Modernismo para cá, ao longo dos últimos oitenta anos”.

GMN – O senhor diz que a busca permanente por uma identidade nacional é uma característica de “países inseguros”. A busca por uma identidade não seria, pelo contrário, um sinal de vitalidade ?

ECM – “Pode ser um sinal de vitalidade, mas este detalhe não exclui o fato de que normalmente os países não se perguntam por suas identidades ! Os países vivem suas vidas sem perguntar e sem levantar este problema !. A tendência a proclamar a identidade em face do mundo, como ocorre hoje com o Brasil, me soa como uma espécie de narcisismo coletivo que acho desagradável, como todo tipo de narcisismo. Todo tipo de narcisismo ,individual ou coletivo, é uma agressão em relação ao próximo. A mania de ficar lançando aos olhos da humanidade a nossa grande originalidade nacional me parece uma coisa de gosto duvidoso”.

GMN -…Mas a busca por uma identidade nacional gerou obras fundamentais, como Casa Grande & Senzala; livros importantes, como “Teoria do Brasil” – de Darcy Ribeiro – e até movimentos culturais, como o Manifesto Antropofágico, por exemplo. O senhor nega o valor dessas obras ?

ECM – “Claro que não nego o valor dessas obras, essenciais para a cultura brasileira no século vinte. O que estou dizendo apenas é que elas correspondem a uma receita cultural que, como toda receita cultural, se esgota ao longo do tempo, como as escolas literárias ou escolas de pintura se esgotam. Toda essa preocupação com a identidade na cultura brasileira já vem dando evidentes sinais de cansaço. Já não produz hoje os livros que produziu há cinqüenta, sessenta anos. Pelo contrário : nota-se um declínio pronunciado na qualidade dos livros. Porque não há como falar indefinidamente de um assunto que, por natureza, é esgotável”.

GMN – Quem foi o maior brasileiro do século vinte ?

ECM - “Eu perguntaria quem foi o brasileiro mais importante do século vinte, não o maior. O brasileiro de maior influência sobre o século XX, até diante do tempo em que exerceu o poder, foi Getúlio Vargas, assim como o brasileiro de maior impacto na história nacional no século XIX foi Dom Pedro II -que ficou quase cinqüenta anos como imperador”.

GMN – O julgamento da história vai ser favorável ou desfavorável a Getúlio Vargas ?

ECM – “Todo julgamento da história é misto. É raro a história fazer julgamentos completamente positivos ou completamente negativos. Getúlio deixou um herança que, como toda herança política, é ambígua. Podem-se ver pontos positivos, assim como podem-se ver falhas incríveis. É evidente, por exemplo, que ele foi o responsável por toda essa onda populista que se gerou no Brasil dos anos quarenta para cá. Igualmente, é inegável que ele tinha uma inclinação autoritária bastante pronunciada. Getúlio se beneficiou da inclinação autoritária que havia na sociedade e no regime político para permanecer longo tempo no poder. Mas é também inegável que, durante o governo de Getúlio Vargas, o Brasil alcançou metas importantes, sobretudo em matéria industrial. Pela primeira vez, teve-se a noção de planejar a economia brasileira no sentido da industrialização do país”.

GMN – Por que é que o senhor ficou decepcionado com os diários de Getúlio Vargas ? O senhor acha que, na intimidade, faltava grandeza a ele ?

ECM – “O que me decepcionou é que, como historiador, eu esperava, talvez, revelações sensacionais. O diário, na verdade, é um documento de um burocratismo cansativo. Getúlio foi, sobretudo, um grande burocrata; um homem com um pronunciado gosto da administração, o que, aliás, é uma característica bem rara em políticos brasileiros. O fato é que os políticos brasileiros têm horror à administração. Se eles se dedicassem apenas ao poder legislativo, não haveria maior problema. Mas chega um momento em que o político transita do legislativo para o executivo. Quando chega ao executivo, evidentemente que ele não pode continuar a se comportar como um deputado ou um senador. É preciso que o político brasileiro que se proponha a exercer funções executivas tenha o gosto da administração. Mas o que observo é que há uma carência quase generalizada nos políticos brasileiros. Porque os políticos brasileiros gostam do debate político-ideológico, gostam da transação, mas, quando estão diante da possibilidade de administrar um estado ou um município de maneira objetiva, caem na tentação política! Não conseguem se desligar da antiga condição de deputado ou senador para transitar para a condição de um executivo. Getúlio tinha o gosto pela administração, se bem que este gosto fosse bastante burocrático, fosse muito pouco inovador”.

GMN – Há autores que dizem que o subdesenvolvimento pode não ser apenas um estágio rumo ao desenvolvimento, mas uma condição permanente. Nós corremos este risco?

ECM – “Corremos, como todo país em desenvolvimento. Dos anos cinqüenta e sessenta, herdamos um otimismo fácil que pensava que normalmente todo país acaba se desenvolvendo. É uma idéia completamente equivocada ! Um país pode encontrar ao longo de seu percurso econômico obstáculos que não consiga resolver nem vencer. O país pode se ver numa situação de estagnação. Veja-se o caso da Holanda no século dezoito. A Holanda foi a primeira potência capitalista do ocidente, no século dezessete. Um século depois, devido a uma série de limitações, a Holanda foi passada para trás por um pelotão de países – sobretudo a Inglaterra, mas também a França. Passou, inclusive, por um período econômico de regressão bastante pronunciada, até que, no século dezenove, resolveu se recuperar para se tornar o grande país industrializado que é hoje – mas longe de pretender qualquer posição de primeiro plano no cenário mundial. Temos, realmente, uma noção linear do processo de desenvolvimento, como se saíssemos de uma posição de subdesenvolvimento para outra posição. De qualquer maneira, o Brasil tem grandes chances, por nossas dimensões continentais, por nossa estrutura de recursos naturais, pelo grau de desenvolvimento que já atingimos, pela existência de um parque industrial. Mas é evidente que a maioria dos países do Terceiro Mundo não tem condições de se desenvolverem no sentido do desenvolvimento dos países europeus”..

GMN – O senhor, então, não subscreve esta crença de que o Brasil um dia, no futuro, seria uma grande potência?

ECM – “Não há garantia nenhuma para um país, qualquer que ele seja, de que se tornará, em dez, vinte ou trinta anos, superdesenvolvido ou uma grande potência. Vai depender da capacidade das classes dirigentes – e da população em geral – para responder aos problemas que vão surgindo. Devo dizer que a experiência do Brasil no último meio século não é especialmente encorajadora. Se fomos capazes de resolver problemas e criar um parque industrial, o fato é que há uma série de problemas que o Brasil não vem conseguindo resolver a contento ! São problemas que o país não pode ficar indefinidamente sem resolver. Isso implica um atraso substancial no projeto desenvolvimentista. Um exemplo : reforma agrária é um negócio que já deveria ter sido feito no brasil desde os anos cinqüenta, sessenta. Controle demográfico é uma coisa que deveria ter sido feita no Brasil desde os anos cinqüenta. Eu sei que seria utópico esperar que tivéssemos feito este controle nos anos cinqüenta, quando havia obstáculos institucionais ao controle demográfico. Mas o fato é que, se o Brasil tivesse feito uma reforma agrária e um controle populacional a partir dos anos cinqüenta, a situação do país hoje seria incomparavelmente melhor, sobretudo do ponto de vista das disparidades de renda – que não seriam tão pronunciadas – e da violência humana, com a criação de enormes cidades com populações flutuantes e desempregadas. Não teríamos o grau de desemprego que estamos ameaçados agora de ter. Quando olho de volta no tempo, tenho a sensação de que o Brasil perdeu, nos anos cinqüenta, um momento essencial. Houve a presidência Kubitscheck, um ponto positivo, sem dúvida. Mas outras coisas foram completamente deixadas de lado. Os primeiros anos da década de cinqüenta me dão a impressão de anos perdidos”.

GMN – O senhor é uma dos maiores especialistas brasileiros sobre o período de dominação holandesa no Brasil. Se os holandeses tivessem ficado no Brasil, nós estaríamos hoje numa situação melhor ou pior ?

ECM – “Não há historiador que possa dar resposta a uma pergunta dessas. Se der, não é historiador. Mas, no século dezenove, houve uma tendência nativista de negar o valor da colonização portuguesa e dizer que, se os holandeses tivessem permanecido no Brasil, o nosso país seria um país muito mais próximo dos padrões ocidentais de vida. O que existe por trás desse debate é uma opção ideológica. É preciso partir de um princípio determinado para dar uma resposta. Se o essencial da história brasileira é a preservação da unidade nacional e da integridade territorial, então é evidente que a colonização portuguesa foi preferível, porque garantiu essas condições. Mas, se você achar que o importante não é a unidade nacional ou a integridade territorial, mas a adoção de valores mais compatíveis com a democracia, com os direitos humanos e com o desenvolvimento capitalista, então é possível e plausível que a colonização holandesa tivesse sido mais favorável. De qualquer forma, não se deve esquecer que a Holanda colonizou a Indonésia atual, um país que, pelo que se sabe, não parece ter assimilado as grandes virtudes nacionais do povo holandês. Toda esta discussão me parece um pouco acadêmica..”

GMN – Em certas áreas, fala-se com um pouco de saudosismo sobre a passagem do príncipe holandês Maurício de Nassau pelo brasil. Afinal, ele trouxe uma corte de artistas, construiu o primeiro observatório astronômico das Américas no Brasil. O senhor acha que existe fundamento histórico nesse saudosismo ?

ECM – “É evidente que o governo de Nassau foi um episódio completamente excepcional na história colonial do Brasil. Mas toda nostalgia histórica é inútil, infecunda e improdutiva. O que temos de fazer é olhar para a frente; não para o período holandês”.

GMN – Que avaliação o senhor faz do príncipe Maurício de Nassau ?

ECM – “É uma das personalidades mais simpáticas da história brasileira !”.

Posted by geneton at 08:03 PM

outubro 26, 2009

MILVINA DEAN

SURPRESA : ÚLTIMA SOBREVIVENTE DO TITANIC NÃO BEBIA ÁGUA. E QUASE CHEGOU AOS CEM ANOS DE IDADE…

O que não se faz por uma boa imagem para a televisão…

O locutor-que-vos-fala confessa, diante deste tribunal, que foi co-autor de um pequeno atentado contra a integridade física de uma quase nonagenária ( já, já, os detalhes).

“Vergonha ! Vergonha!” - dedos inquisidores apontariam em minha direção. “Como é que se faz uma coisa dessas ?” – gritaria o ocupante da penúltima fila do teatro de beira de estrada onde enceno meu espetáculo mambembe.

A meu favor, devo declarar que a causa era nobre – e o atentado foi involuntário, é claro. A “vítima” não era uma figura qualquer : era a mulher que, com o tempo, se transformou na única sobrevivente do Titanic. Dos 702 passageiros que conseguiram sair com vida do inferno no alto mar, em 1912, Milvina foi a última a morrer. Conseguiu chegar ao ano de 2009 ( Milvina ostentava também o título de mais jovem passageira a embarcar no Titanic: nascida em Londres em fevereiro de 1912, tinha apenas nove semanas de vida no dia da tragédia. Viveu até o dia 31 de maio deste ano. As cinzas foram jogadas ao mar neste fim de semana, quase cinco meses depois da morte de Milvina, portanto).

Eu me lembrei do “atentado” que cometi contra a sobrevivente do Titanic ao ler a notícia de que cinzas de Milvina Dean foram lançadas ao mar, na Inglaterra, no exato ponto de onde o navio zarpou para a fama e a tragédia, em 1912.

Tive a chance de gravar uma entrevista com Milvina Dean no mesmíssimo local agora usado como cenário para a última homenagem a ela : o porto de onde o Titanic partiu para a viagem que nunca chegou ao fim -entre a Inglaterra e os Estados Unidos.

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Milvina Dean : a última sobrevivente sai de cena aos 97 anos

Um detalhe inacreditável : a sobrevivente do Titanic me disse que, por uma espécie de idiossincrasia familiar, não bebia água. A mãe,a avó e uma tia também não bebiam. As três morreram perto dos cem anos. Milvina chamou atenção para o caso de uma tia-avó – que, sem beber água, vivera até os noventa e sete anos. Incrivelmente, Milvina Dean morreria com noventa e sete anos, a mesma idade da tia que lhe servia de exemplo. Não bebiam água, segundo ela, mas consumiam, é claro, outros tipos de líquido : sucos, refrigerantes, vinho e, pelo menos no caso de Milvina, copos ocasionais de bebidas mais apimentadas.

Eis o que meus arquivos implacáveis guardam sobre o encontro com esta personagem que passou a vida perseguida pela sombra do Titanic:

Quando chegar o dia do Juízo Final, este pobre jornalista brasileiro confessará diante do Criador: quase matei de frio a mais jovem sobrevivente do Titanic.

Como ? Quando ? Onde e por quê ?

Aos fatos, pois: desembarquei no porto de Southampton, na Inglaterra, num dia gelado de inverno, em companhia do cinegrafista Sérgio Gilz, para um encontro marcado com Milvina Dean.

Aos não familiarizados com a crônica das tragédias marítimas, diga-se que Milvina Dean foi manchete dos jornais no já remotíssimo ano de 1912. A façanha involuntária de Milvina: ter escapado do naufrágio do Titanic. Milvina – um bebê de colo – se salvou porque a mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas. O pai afundou junto com o navio.

Compreensivelmente, Milvina passou a ouvir a história do Titanic desde que se entende por gente. Quando tinha oito anos, ouviu da mãe um relato completo sobre tudo o que aconteceu. Por razões óbvias, passou a se interessar pela história do naufrágio.

Passou a ser abordada a cada aparição pública pela legião de excêntricos que vivem à procura de personagens direta ou indiretamente ligados à história do mais famoso desastre marítimo de todos os tempos. Para quem não sabe: funciona na Inglaterra uma certa Titanic Society – uma espécie de clube que reúne fanáticos de carteirinha pela história do Titanic. Aceitam-se sócios de qualquer país.

Depois de obter um contato com Milvina Dean através da assessora de um museu marítimo que organizara uma exposição sobre o Titanic, partimos rumo a Southampton. O encontro ficou marcado para o restaurante de um hotel – um local confortável para quem, como Milvina, carrega sobre os ombros o peso de quase nove décadas de vida.

A caminho do hotel, decidimos percorrer o cais do porto de Southampton, em busca do local exato de onde o Titanic partiu para a viagem que não teve volta, em direção a Nova York. Um guarda indicou o ponto em que uma pequena placa de bronze foi afixada para marcar o mais notório acontecimento já registrado na história do porto de Southampton. Vindas do mar, lufadas de vento gelado fariam um pingüim reclamar do incômodo do frio. Era janeiro.

Não resistimos à tentação de convidar Milvina Dean para uma visita ao local de onde partiu o Titanic. Partimos, finalmente, em direção ao hotel. Com a esperada “pontualidade britânica”, ela desembarcou do carro de um amigo – sapeca e bem-humorada. Parecia velhinha de filme inglês. Fizemos o convite: e se ela fosse com a gente ao local de onde o Titanic zarpou? Milvina disse sim. Nossa mini-caravana seguiu de volta ao porto.

Gravamos a entrevista com Milvina Dean no cenário dos sonhos: a mais jovem sobrevivente contemplando o mar exatamente no local em que começou uma saga que até hoje atrai a curiosidade de multidões no mundo todo (é só checar os números da bilheteria do filme Titanic, mega-sucesso de Hollywood).

A viagem do Titanic começou no dia 10 de abril de 1912. Quatro dias depois, no fim da noite do dia 14, o navio se chocou contra um iceberg. A madrugada seguinte foi de pavor. Quando o dia amanheceu, o gigante estava no fundo do mar. Havia 2.223 passageiros a bordo. Número de mortos: 1.517. Setecentos e seis escaparam.

Quando se aproximava o final da entrevista, Milvina – sempre com uma das mãos na cabeça, para evitar que o chapéu, levado pelo vento, fosse enfeitar o mar de Southampton, tal qual o Titanic fizera em 1912 – começou a se queixar dos rigores da temperatura.

“Eu estou ficando azul de frio”, disse. A mulher que já contava, no currículo, com dezenas de invernos, não iria reclamar à toa. Por precaução, decidimos escoltá-la de volta ao hotel, num carro devidamente aquecido. Não queríamos correr o risco de matar de frio a passageira que, nove décadas atrás, escapara de um infortúnio maior que o de ser importunada por repórteres brasileiros num dia gelado de inverno.

Enquanto o vento soprava gelado, gravamos a entrevista. Trechos foram ao ar no Fantástico. Eis a íntegra:

Qual é a grande pergunta que ficou sem resposta sobre o Titanic?

“A pergunta que sempre me faço é a seguinte: por que será que o navio navegou em direção a um iceberg? Penso freqüentemente sobre este detalhe: o capitão sabia da existência de icebergs na região? O navio estava na rota errada? Eu me pergunto por que o desastre aconteceu. Mas acho que jamais terei uma resposta”

A senhora ficou satisfeita com as respostas que obteve até hoje?

“Nunca houve uma resposta apropriada. Ninguém sabe com exatidão por que o Titanic afundou. Não sei se adianta perguntar: o que fez o Titanic ir em direção aos icerbergs?

O que aconteceu exatamente com a família?

“Meu pai morreu. Afundou junto com o Titanic. Meu irmão – que tinha menos de dois anos de idade – se salvou, junto com minha mãe e eu. O meu pai ouviu um barulho na noite do desastre. Correu para o convés, para ver o que é que tinha acontecido. Disseram a ele que, aparentemente, o navio tinha batido num iceberg. O melhor seria ir com as crianças para o convés. É o que minha mãe fez.

Minha mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas de número 13. Eu – que era pequena demais para usar coisas como coletes – fui embrulhada numa espécie de saco. O pior é que, em meio à confusão que se formou no momento em que os passageiros eram retirados do Titanic para serem encaminhados aos botes salva-vidas, minha mãe se perdeu do meu irmão. Só conseguiu reencontrá-lo quando outro navio – que passava pela região – nos resgatou. Aquilo foi terrível para a minha mãe. Além de perder o meu pai, que afundou junto com o navio, ela simplesmente não conseguia encontrar o meu irmão, uma criança de menos de dois anos de idade.

Minha mãe teve de ser levada ao hospital. Ficou em estado de choque. De volta à Inglaterra, minha mãe passou a receber uma pensão, para educar a mim e ao meu irmão. Quando eu tinha oito anos, minha mãe começou a me contar tudo o que se passara com nossa família no Titanic.

Um detalhe curioso: o meu irmão – que viria a ter quatro filhos – morreu, aos 82 anos de idade, exatamente no dia do aniversário do naufrágio do Titanic, em 1992. É extraordinario. Quero dizer que acredito em destino. Não foi por acaso que ele morreu”

A senhora diz que acredita em destino. Que outros fatos ligados ao Titanic que fizeram a senhora adquiria essa crença?

“Eu acredito na força do destino, em primeiro lugar, porque nossa família não iria viajar no Titanic. Nós, na verdade, iríamos embarcar em outro navio. Meu pai ia tentar a vida nos Estados Unidos, com nossa família – eu, minha mãe e meu irmão. Um dia antes da viagem, meu pai soube, na companhia de navegação, que tinha havido desistências entre os passageiros que viajariam no Titanic para os Estados Unidos. O funcionário da companhia perguntou se ele gostaria de trocar de navio. O meu pai ficou super-feliz com a chance de embarcar no Titanic. A outra coincidência – ocorrida tempos depois – foi, como eu disse, o fato de meu irmão morrer no dia do aniversário do naufrágio.

Houve outro detalhe: numa escala da viagem, minha mãe mandou um postal para o meu avô e minha avó dizendo “tudo bem até agora”, como se tivesse tido uma premonição sobre o que viria a acontecer”

Por que o Titanic chama tanta atenção ainda hoje?

“O principal motivo da mística que se criou em torno do Titanic foi o fato de terem dito que o navio jamais afundaria. É esta a razão principal por que o navio desperta tanto interesse: um transatlântico tão maravilhoso não poderia afundar – mas afundou. Por esse motivo, o interesse sobre o Titanic continua. Não pára”.

O que é que a senhora diz dessas expedições que tentam recolher objetos do Titanic no fundo do mar?

“Há uma distinção importante a ser feita. Não me oponho que se resgatem objetos que estão espalhados no fundo do mar, ao redor da área onde se encontram os destroços do navio. São parte da história. Eu sei que objetos ficaram espalhados num longo raio em torno do ponto exato do naufrágio. Mas não concordo que retirem objetos encontrados dentro da carcaça do navio.

Detesto a idéia de ver exploradores tirando objetos no interior dos destroços do Titanic. Fico pensando onde estariam os restos do meu pai. É horrível”

É verdade que a senhora nunca bebe água?

“Nunca bebo água. Por quê? Minha avó não bebia. Viveu 93 anos. Minha mãe não bebia. Viveu 95 anos. Minha tia-avó não bebia. Viveu 97. Por que eu deveria beber água? Além de tudo, não gosto”.

Há alguma relação entre o Titanic e o fato de a senhora jamais beber água?

“Não existe nenhuma conexão. Afinal, o Titanic naufragou na água salgada. Não bebemos água do mar de maneira nenhuma… (ri)

A senhora culpa alguém pelo desastre?

“Honestamente, penso que o naufrágio não deveria ter acontecido de maneira nenhuma. Mas não tenho conhecimento suficiente para culpar alguém pelo desastre. Ninguém sabe realmente o que aconteceu naquela noite”.

A lenda sobre o Titanic vai sobreviver para sempre?

“Vai, sim. Há um fenômeno interessante: não apenas gente idosa se interessa pelo Titanic. Fui a uma escola em que crianças me pediam autógrafo. Perguntam sobre minha idade, se não foi terrível perder meu pai, o que minha mãe pensava. São super-curiosas. A pergunta mais inteligente foi feita por um menino – que quis saber se minha família tinha perdido tudo no naufrágio, inclusive dinheiro, o que é que fizemos para sobreviver quando voltamos à Inglaterra? Eu disse a ele que minha mãe nos levou para a casa de nossos avós. A fascinação sobre o Titanic continuará – para sempre”.

O que é que o Titanic significa para a senhora hoje? O que é que significa, para a senhora, voltar a este cenário ?

“Tudo o que sei sobre o Titanic me foi contado por minha mãe. Quando minha família – eu, meu pai, minha mãe e meu irmão – se preparava para embarcar no Titanic, meu avô e minha avó disseram: “Que navio maravilhoso! Não vai afundar nunca! Vocês vão ter uma viagem maravilhosa!”. É o que penso quando volto a este lugar. De qualquer maneira, devo admitir que o Titanic hoje significa para mim a oportunidade de encontrar gente. É o que faço.

Penso que é extraordinária a chance que sempre tenho de me encontrar com gente de todas as partes do mundo.O Titanic desperta um grande interesse. O meu sentimento em relação a tudo que aconteceu é diferente de uma sobrevivente que, por exemplo, tenha uma lembrança vívida de parentes que morreram no naufrágio. O meu sentimento é de outro tipo. Não tenho lembrança do meu pai – que morreu na tragédia – porque eu era um bebê. Se eu o tivesse lembranças da convivência com o meu pai, este fato certamente teria um grande efeito sobre a natureza de meus sentimentos diante do Titanic”.

Uma das sobreviventes disse que o Titanic provou que o homem não pode desafiar Deus. A senhora diria o mesmo?

“Definitivamente, acredito que não podemos desafiar as forças da natureza. Fatos como o naufrágio do Titanic acontecerão sempre. Porque nada na vida é certo. O homem propõe. Mas Deus dispõe. Aquela foi a única vez em que se disse que um navio não iria afundar de maneira nenhuma. Não se dirá tal coisa novamente. Penso em tanta gente que pereceu no fundo do mar. A gente vê nos filmes os gritos de gente que não conseguiu escapar na hora do naufrágio. É horrível. Tudo parece tão bem na hora em que os passageiros embarcam. Fui a uma exposição que exibia objetos recolhidos no fundo do mar, perto do Titanic. Vi objetos de uso pessoal – como pentes, por exemplo. Fiquei pensando que os donos desses objetos morreram no mar. É triste”.

PS: Aos Titanicmaníacos : os arquivos do blogueiro guardam, em algum ponto incerto e não sabido, uma preciosidade – a gravação de uma entrevista com outra passageira do Titanic. Nome: Eva Hart. Tinha sete anos de idade quando embarcou. Guardava lembranças vívidas da aventura que viveu em alto mar: a corrida para sair viva de um transatlântico que, aos poucos, era engolido pelo oceano – de madrugada. Em breve, no Dossiê Geral.

Posted by geneton at 08:06 PM

outubro 20, 2009

JAMES WILLET

UM ENCONTRO COM O CARRASCO QUE JÁ EXECUTOU 89 HOMENS, NUNCA DERRAMOU UMA LÁGRIMA POR NENHUM PRISIONEIRO, NUNCA TEVE UM PESADELO – E AINDA ENCONTRA TEMPO PARA CULTIVAR E FOTOGRAFAR FLORES

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A morte florida : o carrasco cultiva flores nas horas vagas (Imagem: Sherman Costa/TV Globo)

Quem avisa amigo é : tirem as crianças da sala.

Porque o blogueiro vai descrever agora como foi o encontro com o personagem que faz os assassinos mais perigosos tremerem na base:

estive frente a frente com o mensageiro da morte – o homem encarregado de comandar o ritual de execução dos prisioneiros condenados à chamada “pena capital” no estado do Texas.

Eu já tinha tido um encontro com um carrasco profissional, numa cidadezinha do interior da Inglaterra: lá vivia o homem que um dia teve como profissão enforcar prisioneiros condenados à morte, na época em que a Inglaterra ainda aplicava o castigo definitivo a criminosos tidos como irrecuperáveis. A certa altura da entrevista, o carrasco inglês fez, no meu pescoço, uma demonstração de como usar a corda para o enforcamento (em breve, um post sobre o assunto).

Porque o dono da festa hoje é o Carrasco do Texas ( “Por que diabos há jornalistas que gostam tanto de tragédias, dramas, derrocadas, derrapagens, personagens excêntricos e cenários horripilantes ?”, perguntará a alma ingênua sentada na terceira fileira de nosso teatro mambembe. “Por um motivo básico”, responderá de pronto o meu demônio-da-guarda : “Se não gostassem dessas esquisitices, repórteres bisbilhoteiros estariam certamente cumprindo tarefas mais amenas, como animar festas infantis vestidos de Bozo, por exemplo”).

Eis o que escrevi sobre o encontro:

Se a palavra tédio pudesse ser escrita de outra maneira, teria dez letras : Huntsville. É o fim do mundo : o turista que desembarcar nesta cidadezinha do interior do Texas terá a impressão de que bateu na porta errada. Quer se divertir ? A melhor opção pode ser uma lanchonete de fast food em que os fregueses podem devorar sanduíches de hamburguer sem sair do carro. O desfile de jipes gigantescos no pátio da lanchonete funciona como um atestado motorizado da fartura americana. Não há carros velhos. A impressão (absurda ?) é de que também não há gente magra. A obesidade se alimenta de milk shakes, batatas fritas e hamburguers consumidos em quantidades industriais.

O forasteiro fará bem em degustar o hamburguer sem pressa. Se resolver se aventurar pelas ruas de Huntsville à noite terá a sensação de que pousou num deserto, habitado por fantasmas. Onde estarão os quarenta mil habitantes ?

Mas se o forasteiro estiver interessado em assuntos menos divertidos do que a qualidade dos hamburgueres servidos em lanchonetes fast foods, Huntsville pode se transformar de repente num lugar fascinante. O assunto é pena de morte ? Cadeira elétrica ? Injeção letal ? Cloreto de potássio ? Carrascos mal encarados ? Prisões inexpugnáveis ? Cercas eletrificadas ? Huntsville, abre as asas sobre nós : os repórteres em busca de bons personagens te saúdam com uma pontada de mórbida alegria no peito.

Indefensável, a pena de morte faz parte da história do Texas há séculos. A execução de presos pode causar horror a forasteiros ou a militantes que, religiosamente,fazem demonstrações de protesto diante da prisão a cada vez que o porta-voz anuncia a morte de um detento. Mas o ritual já se integrou à rotina de Huntsville. A não ser que o caso tenha repercussão nacional, há execuções que correm o risco de passar em brancas nuvens.

“Vá para um bar. Pergunte a quem estiver no balcão. Provavelmente ele não saberá que um preso vai ser executado naquele dia” – constata Larry Fitzgerald, porta-voz da prisão e advogado confesso da pena capital como método de justiça. “Fico irritado quando falam de Huntsville como capital nacional das execuções.Por que é que não chamam Huntsville de capital mundial dos direitos das vítimas ?”.

A banalidade do ritual da morte em Huntsville pode ser facilmente constatada no jornal local,o centenário Huntsville Item. Uma notícia de execução só merece registro no espaço nobre da primeira página se for capaz de mobilizar a atenção daqueles freqüentadores de bar citados pelo porta-voz da prisão como representantes típicos da maioria silenciosa. Caso contrário, a notícia ficará confinada sem grande destaque nas páginas internas. Execução aqui é rotina. Não é exceção.

O Huntsville Item abriria manchete se um dia a cidade passasse um mês sem ter notícia de um preso executado. Assim caminha Huntsville, dona do título de campeã nacional de execução de presos. Em nenhuma outra cidade americana tantos presos são executados quanto aqui. Desde que uma lei de 1973 decidiu que o Texas voltaria a punir com a pena de morte os autores de crimes hediondos, nada menos de trezentos e dez presos foram executados aqui com injeção letal.

Pode parecer estranho o fato de uma cidade tão pacífica ostentar a liderança nacional em número de execuções. Mas a aparente disparidade tem uma explicação : todos os condenados à morte no Texas são enviados para Huntsville, onde o Departamento de Justiça montou um aparato para que a mais rigorosa das leis seja cumprida.

Se o Estado decide punir com a pena de morte quem cometeu crimes considerados hediondos, alguém precisa cumprir a sentença.

Ei-lo : pai de um casal de filhos,55 anos de idade, fã de westerns , James Willett já comandou pessoalmente a execução de 89 presos. Método : injeção letal.

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O carrasco : a morte, em nome das leis do Texas (Imagem: Sherman Costa/TV Globo)

Quando chega o dia da execução, o condenado à morte sai do corredor da morte de uma penitenciária chamada Polunsky , a cerca de setenta quilômetros do centro de Hunsville, para uma viagem de uma hora rumo ao local de execução. O prédio onde os presos levarão a injeção letal chama-se The Walls. Fica no centro da cidade.

Depois de amarrado a uma maca por seis cintos de couro – atados aos tornozelos, aos dois braços e ao tronco – o preso terá a chance de dizer suas últimas palavras,diante do carrasco e do capelão.

A primeira dose é de um anestésico – administrado em dose suficiente para provocar a morte. O preso perde os sentidos em questão de segundos. A segunda substância injetada nas veias do preso provoca um colapso pulmonar.A terceira causa uma parada cardíaca. Não há escapatória possível. É como se o preso morresse três vezes.

Há um código secreto na sala de execuções. O preso nem desconfia, mas um gesto aparentemente inofensivo funciona como uma senha para que a sentença de morte seja executada. Do outro lado de um vidro espelhado, numa sala contígua, um funcionário aguarda um sinal do carrasco para liberar as substâncias que serão conduzidas por tubos plásticos às veias do condenado. O carrasco tira os óculos. É o que basta. Quando vê que os óculos estão nas mãos do carrasco,o funcionário já sabe o que deve fazer.

Willett hoje dá expediente no Museu da Prisão de Huntsville. A pérola do museu é a cadeira elétrica usada para executar 361 presos – antes da adoção da injeção letal como método de execução. Quem pagar o correspondente a doze reais pode contemplar à vontade a cadeira elétrica. Criança paga meia.

O que passa pela cabeça do homem pago pelo Estado para executar o que a Justiça decidiu ?

Procuro a fera no Museu da prisão. O carrasco se aproxima da cadeira elétrica,passa trinta segundos contemplando aquele monumento à morte, dá o veredito :

- A injeção letal é melhor do que a cadeira elétrica.É mais humana.Eu prefiro.

James Willett sabe do que fala.Diz que jamais perdeu um minuto de sono por exercer uma tarefa que almas sensíveis classificariam como macabra.

Uma das predileções de Willett pode soar como esquisitice no currículo de um homem que convive com tanta intimidade com a morte dos outros : o carrasco é apaixonado por flores. Usa as horas vagas para fotografar azaléas que florescem bonitas nos jardins de Huntsville.

O carrasco não é egoísta : quer compartilhar com o mundo o enlevo que sente diante da beleza uma azálea.

Willett é, literalmente, a última face que os condenados à morte vêem, no momento em que tomam a injeção letal que os matará em questão de segundos. “O processo deve durar uns vinte, trinta segundos”,di, com o tom profissional de um caixa de banco que,no final do expediente, atualiza os números do dia.

Ao lado de Willett e do preso, no instante da execução, só fica uma testemunha privilegiada : o capelão designado pelo sistema penitenciário para oferecer palavras de conforto a quem cometeu pecados capitais. Do lado de fora da sala, protegidos por uma tela de vidro, ficam as testemunhas : três escolhidas pelo preso,três escolhidas pela família da vítima.

Depois de cumprir a tarefa – comandar execuções que ocorrem pontualmente às seis da tarde,hora do Angelus -, Willett vai para casa tomar sopa, assistir a westerns na TV e dormir. “Adoro um bom western”,diz o carrasco.

Que demônios habitam a mente desse homem que tem um encontro com a morte dos outros justamente na hora em que almas devotas estão rezando a Ave Maria ?

Quando aparece na cela de presos que o Estado do Texas considera irrecuperáveis,para escoltá-los rumo à sala onde a sentença final será executada, Willett é a face visível de uma enorme e complicada engrenagem . A história dos presos condenados à morte passou por delegacias, institutos de medicina legal, postos de polícia,laboratórios,salas de tribunais,gabinetes de governadores – um enorme teia que,no fim da linha,se materializa naquele homem de olhos azuis e estatuta mediana.

Se um cartunista fosse desenhar a face de um carrasco , poderia perfeitamente imaginar a figura de um homem de feições duras,olhar gélido, um discretíssimo sorriso apenas esboçado no canto inferior direito da boca,como convém a um mensageiro da morte. As feições de Willett jamais desapontariam um cartunista. Porque ele é exatamente assim : um homem de feições duras,olhar gélido,um discretíssimo sorriso apenas esboçado no canto inferior direito da boca.

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A face do carrasco : a última visão dos condenados (Imagem: Sherman Costa/TV Globo)

Diante da cadeira elétrica,o carrasco fala.

O senhor diz que o último diálogo pode ser bem-humorado.Que humor é este ?

Willett : “Um dos presos,quando já estava amarrado à maca,no momento em que os enfermeiros da prisão estavam inserindo as agulhas,fez um pedido : “Queria um bombom.Minha boca ficou seca”. O capelão deu a ele um bombom – daqueles que vêm embrulhados em papel celofane. Como o preso estava imobilizado,o capelão jogou o bombom na boca. Perguntei a ele : “Vai ser sua última comunhão ?”. O preso me respondeu : “Vai ser a última.Mas tenho a impressão de que não vai funcionar”.

O que é que o senhor diz aos presos sobre o que vai acontecer ?

Willett : “Nós discutimos sobre quais serão as suas últimas palavras. Digo a eles,no dia da execução : “Voltarei em torno das seis da tarde,para levar você até a cela”. Os presos já sabem o que esperar. Poucos fazem perguntas. Mas digo : você vai caminhar por conta própria,sem algemas,sem que ninguém toque em você até que você chegue à câmara.A grande maioria dos presos simplesmente me acompanha até o local da execução”.

Como é que o senhor explica a eles o método da execução ?

Willett : “Em geral,perguntam-me quanto tempo vai durar.Ou se vai doer.Digo, honestamente,que a execução em si dura trinta segundos. Ao fim desse tempo, eles estarão dormindo. Perguntam se dói. Sou honesto : digo que ninguém sabe realmente. Mas,para quem olha, é como se alguém estivesse adormecendo, pacificamente. Parece-me indolor. Quando um preso faz a última declaração, eu já saberei qual será a última frase. Porque terei discutido o assunto com eles,antes. De qualquer maneira, a maioria me diz que vai me avisar quando a declaração estiver concluída. Neste momento,tiro os meus óculos. É um sinal para que o funcionário – que fica do outro lado de um vidro espelhado – saiba que é hora de liberar as substâncias que chegarão às veias do preso.O funcionário pode nos ver. Nós não o vemos. Em trinta, trinta e cinco segundos o preso dará um suspiro profundo e adormecerá.Eu ainda espero um pouco. Chamo, então, o médico que constatará a morte do preso”.

Qual foi a maior surpresa que o senhor já teve no dia da execução ?

Willett : “Sempre fui surpreendido com o fato de os presos pedirem uma grande quantidade de comida na última refeição. Dá para notar pelo tamanho do estômago – que fica estufado. É como alguém que come todo dia um prato feito. A comida pode até ser boa, mas enjoa depois de um certo tempo. Um dia,os presos ganham finalmente a permissão para pedir um tipo de comida a que eles não tiveram acesso durante anos. O que me surpreende também é ver que presos que são amarrados à maca parecem mais à vontade do que estou aqui agora,falando com você. Um dos presos, na hora da execução, no momento de pronunciar suas últimas palavras, pediu desculpas sinceras à família da vítima por toda a dor que tinha causado.Depois,virou-se para mim : “Guarda,é tudo”. Mas, antes de eu tirar os meus óculos,ele ainda me disse : “Como vão os Dallas Cowboys ? “. Pensei comigo : Meu Deus ! Ele arruinou suas últimas palavras com essa pergunta sobre o time de beisebol.

Um dos prisioneiros que levei para execução queria cantar “Noite Feliz” depois de pronunciar suas últimas palavras. Perguntou-me : “Posso cantar “Noite Feliz” enquanto essas substâncias estiverem entrando pelas minhas veias ? “. Eu disse que sim. Dei sinal para que as substâncias fossem liberadas. Quando ele começou a cantar, pensei comigo : “Meu Deus,as testemunhas que estão do outro lado do vidro vão pensar que eu impedi que ele cantasse a música inteira”. Eu tinha dito a ele que não haveria tempo para tanto”.

O senhor já pensou na possibilidade de que pode ter executado um inocente ?

Willett : “Certamente, há a possibilidade de que um inocente tenha sido executado. Numa situação em que há tanta interação humana – com valores como culpa, inocência e punição – haverá sempre esta possibilidade.É algo que cruza a minha mente”.

Que sentimento o senhor tem diante desta dúvida ?

Willett :”É triste saber que nós,a espécie humana,consideramos a possibilidade de fazer tais coisas”.

Que argumento o senhor usaria contra a pena de morte ?

Willett : “Não sei se teria um argumento contra a pena de morte. Há aspectos negativos – como, por exemplo, a possibilidade de um inocente ser executado. Discordo dos que dizem que a pena de morte impede crimes. Não impede. A maioria desses crimes é cometida em momentos passionais. O criminoso não pára para pensar “Meu Deus,posso pegar a pena de morte !”. O que a pena de morte faz é dar a certeza de que aquele criminoso não vai cometer outros crimes”.

O senhor já teve algum pesadelo depois de uma execução ?

“Não. Sou um daqueles que não perdem o sono por nada”.

O senhor afinal prefere a cadeira elétrica ou a injeção letal ?

“Nunca testemunhei uma execução na cadeira elétrica. Apenas li a respeito. Falei com testemunhas. Não tenho dúvida de que a injeção letal é melhor.Porque é como se alguém tivesse caído no sono – e não acordasse depois. A cadeira elétrica é mais horripilante”. (a cadeira elétrica texana foi aposentada em 1964.Desde 1982, quando a pena de morte voltou a ser adotada no Texas, cerca de 350 prisioneiros foram executados com a injeção. A não ser que as famílias reclamem os corpos, os executados são enterrados no cemitério da prisão. Presos cavam as covas. Os condenados à morte esperam a execução numa ala em que ficam confinados 23 horas por dia em celas individuais.Não veem TV. Só podem ouvir rádio em ocasiões especiais.Não existe visita íntima. 38 dos 52 estados americanos têm pena de morte. Há estados que ainda usam cadeira elétrica ou câmara de gás. A Anistia Internacional considera a pena de morte “desumana e cruel”).

O senhor se considera o homem mais temido do Texas ?

Willett : “Ah, não.Eis uma idéia que nunca passou por minha cabeça”.

Posted by geneton at 01:54 PM

outubro 12, 2009

WOODY ALLEN

DOCUMENTO : A ÍNTEGRA DE UMA ENTREVISTA EXCLUSIVA COM WOODY ALLEN, NA SUÍTE DE UM HOTEL COM VISTA PARA O HYDE PARK, NUM DIA DE INVERNO

Presente do Dia das Crianças : eis a íntegra de nossa entrevista com Woody Allen (ver post anterior). Palavra por palavra, sem cortes.

Uma das dez mil maravilhas da internet é o espaço ilimitado. Ao contrário do que acontece nos jornais de papel, é possível escrever – e publicar – sem que um editor texticida (ou seja: assassino de textos) invada de repente o ambiente com um serrote ensanguentado nas mãos, disposto a trucidar, por exemplo, qualquer entrevista que exceda um punhado de linhas. Vade retro, texticidas! Tratem de procurar um mausoléu confortável no Cemitério dos Mamutes Extintos. A internet matou vocês.

Um último aviso : equipes de busca continuam vasculhando os arquivos implacáveis do blogueiro-que-vos-fala, para localizar a tal foto que a megera-assessora-de-imprensa tirou, a contragosto, em cena descrita com detalhes no post anterior sobre mr. Allen.

Divirtam-se. O entrevistado é esperto, bem-humorado, levemente melancólico e espirituoso.

“Quero a imortalidade é no meu apartamento!”

GMN : Fazer filmes, no fim das contas, é a melhor maneira de superar a morte – ou pelo menos ter a ilusão de que é possível?

Woody Allen: “Não há como superar a morte. O que cada um deve fazer é se esforçar bastante para se encontrar em suas tarefas seja você um diretor de cinema, um motorista de táxi, um dentista ou um professor. Se você se concentra no trabalho, não vai ficar pensando na morte. Se, pelo contrário, você não pode se concentrar, a mente vai começar a se ocupar dessa nuvem escura que nos acompanha o tempo todo. Fica difícil, então. O fato de ser diretor de cinema não nos torna menos vulneráveis…”.

GMN : Mas, nesse sentido, há sim, uma diferença entre o motorista de táxi e o diretor de cinema, porque um ator ou um realizador de certa maneira não morre: daqui a cem anos alguém poderá estar vendo Woody Allen numa tela…

Woody Allen: “Mas eu não me preocupo em atingir a imortalidade através do meu trabalho. Eu quero a imortalidade é no meu apartamento! Isso é que conta! Imortalidade artística é catolicismo de intelectual. Os católicos pensam que existe vida depois da morte. Intelectuais que eventualmente podem nem ter relação alguma com o catolicismo pensam que existe vida depois da morte através da arte. Mas os dois estão errados”.

GMN : Se um crítico disser que você é um gênio e outro disser que você é um idiota, em qual dos dois você teria a tentação de acreditar?

Woody Allen: “Não leio nada que sai sobre mim nas resenhas. Porque tenho uma tendência de acreditar na última coisa que eu li. Se o crítico de um jornal escrever ‘esta pessoa é um gênio’, vou pensar aqui comigo: ‘Ah é? Sou gênio porque foi o New York Times que disse… ’ Se, por outro lado, alguém escrever ‘ele é um tolo; o filme não presta’, vou pensar: ‘Eu realmente fiz um filme ruim. Sou um bobo`.
A verdade é que coisas assim não são reais, não têm nenhuma relevância para um projeto. O fato de dez milhões de pessoas dizerem algo sobre um filme – ‘é ótimo ou ‘é horrível’ – não significa nada. O filme, por si mesmo, anos depois é que vai ver qual é a verdade. Não há como saber, agora – tanto em relação a filmes como em relação a qualquer obra de arte. Filmes que há anos eram considerados ótimos são esquecidos depois. Transformam-se em nada. Outros filmes – que não eram tão considerados quando do lançamento – permanecem em nossas consciências. Adquirem importância. ‘A Regra do Jogo’, filme de Jean Renoir, não foi bem recebido quando apareceu. Hoje é um clássico”.

“O fato de um diretor dizer que detesta um filme não quer dizer nada”

GMN : Você pediu ao estúdio para jogar fora o filme ‘Manhattan’ quando a versão final ficou pronta, porque mão gostou do resultado. Mas ‘Manhattan’ se transformou num dos seus filmes mais elogiados. A má opinião que você tinha sobre o filme é uma prova de que você não é nem um pouco confiável como crítico?

Woody Allen: “Um diretor não é confiável quando fala sobre o próprio trabalho. O fato de um diretor declarar que detesta um filme não quer dizer nada. Igualmente, é estúpido dizer ‘os críticos são uns bobos, não sabem de nada, não entendem nada.’ Porque quem não entende, na verdade, é o diretor. Os críticos entendem, o público entende – o diretor é que não.”

GMN : Você divide os realizadores em duas categorias: os que fazem prosa e os que fazem poesia. Woody Allen faz o quê: poesia ou prosa?

Woody Allen: “Todo diretor tem filmes que adotam uma abordagem poética – e outros que utilizam a prosa. Filmes meus, como ‘Bullets Over Broadway’ e ‘Manhattan Murder Mistery’, são prosa. Já ‘Another Woman’ é poético.”

GMN : Quem é o melhor poeta da história do cinema?

Woody Allen: “Ingmar Bergman. Para mim, é o melhor. Kurosawa, com certeza, é um grande poeta. Bunuel, igualmente. Os três são os maiores poetas.”

GMN : A poesia é superior à prosa?

Woody Allen: “Não necessariamente, porque filmes como ‘Ladrões de Bicicletas’, ‘A Grande Ilusão’ ou ‘A Regra do Jogo’ são prosa: não são poéticos. Isso não quer dizer que não sejam grandes filmes. ‘Oito e Meio’ é um filme poético, assim como ‘Persona’. Não acho, então, que uma seja superior a outra.”

“Sou um não-artista de público pequeno”

GMN : Você lamenta que nem sempre exista uma correlação entre os melhores filmes de um diretor e o sucesso comercial.

Woody Allen: “É verdade! Frequentemente, não existe…”

GMN : “A Rosa Púrpura do Cairo”, um dos seus filmes favoritos, atraiu o que você chama de “pequeno público”. Você acredita então que existe uma contradição entre boa qualidade artística e mercado de massa?

Woody Allen: “É interessante o que você me pergunta. Saul Bellow articulou o conceito de artista de público pequeno e artista de grandes públicos. Fiz uma distinção entre um autor como Charles Dickens – um artista de grande público – ou James Joyce, consumido por um público pequeno. Isso é verdade também no cinema. Chaplin e Buster Keaton têm um público grande – e são artistas! Bergman e Bunnuel têm um público pequeno. Fico numa posição desconfortável, no meio do ar…Eu sinto que não sou um artista desse nível. Sou um não–artista de público pequeno…(ri)”

GMN : Mas você é considerado um diretor intelectual que atinge o mercado de massa…

Woody Allen – “Não concordo nem com uma coisa nem com outra. Não sou um intelectual. Não atinjo o mercado de massas. Meus filmes não atingem. Bem que eu gostaria. Também gostaria de ser intelectual. Mas não sou.”

“A realidade da vida é desagradável, difícil e dolorosa. Mas você pode criar uma realidade própria”

GMN : Você gostaria que seus filmes tivessem a popularidade de um filme de aventuras de Indiana Jones?

Woody Allen – “Não me incomodaria. Quando lanço um filme, gosto que o público goste. Prefiro ver o público satisfeito. Mas jamais faria algo para atrair o público- como, por exemplo, mudar o filme. Quando o público gosta, fico feliz.”

GMN : Você diz que tem problemas para delimitar o terreno entre a realidade e a fantasia. É esta a razão que o levou a se tornar um realizador: tentar resolver, através do cinema, a confusão entre fantasia e realidade?

Woody Allen : “Que bom que você tocou neste assunto. O que acontece é que a realidade da vida é desagradável, difícil, dolorosa. Quando você trabalha com pintura, com poesia, com literatura, com cinema, com teatro, você pode criar uma realidade própria, sobre a qual você exerce controle: você usa os personagens de que gosta, no cenário que prefere, para fazer com que o destino de cada um se realize da maneira que você quer. É ótimo.”

GMN : Você já sentia a confusão entre realidade e fantasia antes de se tornar cineasta?

Woody Allen- “Não é bem uma confusão. A verdade é que eu sentia que a fantasia é boa. A realidade é ruim. Muitos dirão: a verdade é bela, a realidade é bonita. Fantasia, não. Mas não sinto as coisas dessa maneira. Para mim, a fantasia é que é boa. A realidade não é nem um pouco atraente.”

GMN : Uma pergunta direta e boba: por que você faz filmes?

Woody Allen – “Faço porque cresci gostando de filmes. Quando entrei no show business me pareceu que todo mundo queria fazer cinema. Parecia ser a mais expressiva forma de arte, a de maior comunicação com o público. Além de tudo, você poderia exercer um controle sobre o produto- o filme. Depois, vi que havia gente disposta a me dar dinheiro. Em filmes- como na arquitetura- você precisa de um bocado de dinheiro para realizar um projeto. As empresas, então, começaram a me dizer: ‘Você terá cinco milhões de dólares para ou dez milhões de dólares para fazer um filme.’ Nem discuti.”

“Não me incomodo de ter encontros assim, com jornalistas – uma vez por ano”

GMN : Você não reconhece a ‘integridade’ ou a ‘credibilidade’ dessas escolhas do “melhor filme do ano.” Você quer ser visto sempre como um outsider?

Woody Allen – “Não comecei com essa história de outsider, mas ela terminou acontecendo. Vivo em Nova Iorque, Faço meus filmes. Acontece que, devido à minha personalidade e à maneira como vivo, me transformei num outsider, sem necessariamente querer ser. Eu teria disposição, se houvesse uma comunidade cinematográfica em Nova Iorque, para sair com outros diretores e amigos, almoçar com eles. Mas não tenho amigos nem diretores.”

GMN : Quando um filme como Manhattan estreou, nem em Nova Iorque você quis ficar. Igualmente, você não compareceu à cerimônia do Oscar. Agora, para divulgar o filme “Mighty Aphrodite” (“Poderosa Afrodite”), você aceita falar sobre cinema diante de um jornalista de um país distante- o Brasil. O que foi que mudou?

Woody Allen- “Geralmente não vou a cerimônias de premiação. Mas ficou caro promover e anunciar filmes. Quero, então, cooperar. Se dependesse de mim, eu faria o filme e diria: ‘Fiz; vocês que vendam.’ Mas os produtores dizem: ‘Por favor, ajude. Não podemos comprar espaço em jornais e na TV’. Eu prefiro, então, ser amigável…
Quanto aos encontros com jornalistas, não me incomodo de ter encontros assim. Eu não faria o ano todo, mas uma vez por ano, ou uma vez cada dois anos, não me incomodo de ter esses contatos, porque quero ouvir o que é que os jornalistas dizem ou que tipo de pergunta fazem.

GMN : Se você fosse convidado a escrever o verbete “Allen, Woody” numa enciclopédia, quais as primeiras palavras que você usaria para se definir?

Woody Allen- “Eu diria que Woody foi um realizador que fez filmes – alguns bons; outros não. Creio que seria um retrato exato.
Eu ficaria feliz se um dia, quando eu deixar de fazer filmes, pudesse ter feito um ou dois que fossem tão bons quanto os melhores que vi. Eu me sentiria realizado se fizesse um filme tão bom quanto ‘A Regra do Jogo’ ou ‘O Sétimo Selo’. Para mim, seria o suficiente.
Ah, eu ficaria muito feliz, sim.”.

“Sempre que faço um aniversário significativo, tenho um sentimento desagradável. Datas assim dão um tom dramático ao fato de que estou envelhecendo”
GMN : Você já confessou que prefere os romancistas russos, como Dostoievski, porque eles se ocupam de “temas espirituais”, ainda que outros romancistas, como Flaubert, sejam ‘tecnicamente superiores’. Você- que também se ocupa de temas espirituais no cinema- gostaria de ser visto como o Dostoievski das telas?

Woody Allen- “Não necessariamente. Sou muito mais engraçado do que Dostoievski”.

GMN : Todo mundo fala da “crise dos quarenta.” Agora, depois de completar sessenta anos de idade, você já entrou em crise? ( a entrevista foi feita duas semanas depois do aniversário de sessenta anos de Woody Allen, em dezembro de 1995)

Woody Allen: “Eu me senti mal quando fiz cinqüenta anos, um tempo pouco prazeroso para mim. Fazer sessenta também não é agradável. Sempre que faço um aniversário significativo, tenho um sentimento desagradável. Porque datas assim dão um tom dramático ao fato de que estou envelhecendo”.

“Quando vou a um país, passo a acompanhar os esportes locais”

GMN : Você – que é um grande fã de esporte – também gosta de futebol?

Woody Allen- “Conheço melhor o futebol americano. Gosto de todos os esportes, na verdade. Quando vou a um país, passo a acompanhar os esportes locais. Posso ver uma partida de críquete. Já fui a jogos de futebol.”

GMN : Já teve algum ídolo brasileiro, na área do futebol?

Woody Allen- (depois de uma pausa para pensar) “Ídolo brasileiro? Há pouco tempo, li Machado de Assis. Achei que é um escritor excepcional. Uma amiga me deu um livro de Machado de Assis- ‘Epitaph for a Small Winner’ (título da tradução para o inglês de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’). Fiquei muito, muito impressionado. Dei o livro a meus amigos. Porque Machado de Assis não é bem conhecido.”

GMN : O que é impressionou tanto você no livro?

Woody Allen – “Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irônico. Alguns dirão: ele é cínico. Eu diria que Machado de Assis é realista.”

GMN : Quem lhe passou o livro?

Woody Allen- “Nem me lembro agora do nome da pessoa que me passou o livro. Apenas ela disse: ‘Você deve gostar…’ Respondi: ‘Nunca ouvi falar de Machado de Assis.’ Mas li- e gostei muito.”

GMN : Você consideraria a possibilidade de filmar ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’?

Woody Allen- “Gosto de escrever meus próprios filmes. Mas Machado de Assis é um maravilhoso momento na literatura. Dei cópias do livro para minha filha e para os meus amigos.”

GMN ; Você é um símbolo de Nova Iorque. Teria coragem de viver um dia numa cidade pequena e calma, longe de tudo?

Woody Allen- “Eu ficaria louco. Não poderia viver num lugar assim nem por dois dias- nem por um fim-de-semana. Preciso de cidades- seja Londres, Paris, Nova Iorque…Preciso de atividade, barulho, carros, restaurantes, livrarias, filmes. Sou viciado em civilização.”

GMN : Além de só gostar de cidade grande, é verdade que você detesta sol?

Woody Allen- “Adoro este tempo (olha para a janela do hotel; lá fora tudo cinzento: a chuva fina cai há umas doze horas).Gosto de Londres e Paris no inverno. Todo dia é bonito. É como um fotógrafo que gostasse de tons suaves.”

GMN : Você jamais viveria num país tropical?

Woody Allen : “Não! Não gosto de calor.”

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outubro 10, 2009

WOODY ALLEN

OS BASTIDORES DE UM ENCONTRO COM WOODY ALLEN: O DIA EM QUE ELE CONFESSOU QUE TINHA UMA PAIXÃO BRASILEIRA. QUEM SERÁ?

Woody Allen, um dos poucos cineastas que ainda conseguem imprimir uma marca pessoal a seus filmes, deve usar o Rio de Janeiro como cenário de uma de suas próximas investidas.

Bela escolha. Tomara que dê certo.

Tive a chance de entrevistá-lo longamente numa suíte do sétimo andar do Hotel Dorchester, diante do Hyde Park, em Londres. É uma dessas situações surrealistas que a gente vive no exercício do jornalismo: a chance de interrogar um cineasta de fama mundial.

Quando Woody Allen começa a falar, a gente sempre espera que vá soltar uma daquelas tiradas: “Eu me separei da minha primeira mulher porque ela era infantil demais. Toda vez que eu estava tomando banho na banheira ela vinha e afundava os meus barquinhos todos sem dar a menor explicação.”.

Ou então: “Não, eu nunca estudei nada na escola. Ou outros é que me estudavam.”.

A coleção de tiradas de Woody Allen traz, como marca registrada, uma auto-ironia marcada por um sentimento de inadaptação à realidade. A fantasia, repete Allen, é sempre melhor.

A entrevista aconteceu assim: um belo dia, você recebe um telefonema em casa. A produtora de um filme de Woody Allen oferece de mão beijada uma entrevista com o homem. Você comparece ao local na hora marcada. Não movi uma palha para conseguir o “furo de reportagem”. Só tive o trabalho de pegar o metrô. Nem sempre os repórteres suam a camisa.

A antessala estava entulhada de jornalistas estrangeiros. Woody Allen vai recebê-los em grupos de cinco. O assessor cronometra as mini-entrevistas coletivas. Com sorte, cada um terá tempo de disparar umas duas perguntas à celebridade.

De vez em quando, o estúdio resolve fazer um agrado a um jornal ou a uma emissora de tevê. Oferece uma entrevista exclusiva porque sabe que, assim, o espaço será maior. É tiro e queda. Eu era, na época, correspondente do Globo em Londres.

A assessora de imprensa me puxa para um canto: diz que Woody Allen falará “a sós” comigo. A megera faz uma recomendação e um pedido. A recomendação: não devo fazer fotos, para não incomodá-lo. O pedido: que eu ficasse calado. Eu não deveria dizer aos outros jornalistas que tinha sido agraciado com a chance de fazer uma entrevista exclusiva com o homem.

A mulher me faz um sinal discreto. Já posso entrar na suíte. Fico sozinho, à espera do astro.

Lá vem o bicho. A assessora tinha escoltado Woody Allen até a porta. Depois, desapareceu. Woody Allen caminha sozinho em minha direção, na suíte quilométrica. A pele de mister Allen exibe uma palidez de cera ( pergunto a meus botões : há quantos anos ele não toma um bom banho de sol ?. Mas intelectual não vai à praia : intelectual faz filmes, pelo menos no caso de Woody Allen. Adiante, como para confirmar as suspeitas, ele diria que jamais se habituaria a morar numa cidade ensolarada. Gosta é de chuva, tempo nublado, engarrafamento, livraria, loja de disco, bons restaurantes, barulho, enfim, todas essas pequenas delícias e horrores que formam a civilização).

Primeira impressão pessoal: não há diferença alguma entre o Woody Allen da vida real e o Woody Allen das telas. A fala é apressada. Um olhar tímido dirigido ao chão pontua o sorriso. Quando solta uma frase engraçada, para dizer, por exemplo, que quer a imortalidade aqui e agora – e não nas cinematecas, daqui a um século -, ri um riso tímido, entrecortado por suspiros. De calça de veludo marrom e suéter verde, dá a impressão de ter alguma dificuldade para ouvir, porque se aproxima exageradamente do rosto do repórter a cada pergunta. Fico pensando: ou o Woody Allen das telas imita o Woody Allen da vida real ou é o Woody Allen da vida real que imita o Woody Allen das telas. Porque um é a cópia do outro.

O bê-a-bá do jornalismo diz que entrevista boa é aquela que traz pelo menos uma declaração inesperada. Se tivessem o despudor de dizer em voz alta o que intimamente esperam dos entrevistados, os repórteres repetiriam algo como “senhor, fazei com que este desgraçado me confie pelo menos um segredo”.

Quando ouvi Woody Allen dizer que adorava acompanhar “qualquer tipo” de esporte em tevês de quartos de hotel, imaginei que estava a ponto de colher uma bela pepita. Bastaria perguntar qual era o brasileiro que ele admirava. Com certeza, ele citaria uma de nossas estrelas dos gramados. Quem sabe, Ronaldinho Gaúcho. Ou Ronaldo Gorducho. Num rasgo de generosidade, ele poderia citar Adriano, o bonde que ganhou fama de craque. Mas não. Woody Allen me surpreendeu: o brasileiro que ele mais admira é…..Machado de Assis!

Meus arquivos implacáveis preservam a fita. Trechos:

1
Você – que é um grande fã de esporte – também gosta de futebol? ( faço a pergunta certo de que ele vai cobrir de glórias o futebol brasileiro. Quebro a cara pela primeira vez).

Woody Allen: “Conheço melhor o futebol americano. Gosto de todos os esportes, na verdade. Quando vou a um país, passo a acompanhar os esportes locais. Posso ver uma partida de críquete. Já fui a jogos de futebol”

2
Já teve algum ídolo brasileiro, na área do futebol? ( aqui, tenho certeza de que ele citará nossos craques. Quebro a cara pela segunda vez).

Woody Allen: “Ídolo brasileiro? Há pouco tempo, li Machado de Assis. Achei que é um escritor excepcional. Uma amiga me deu um livro de Machado de Assis- ‘Epitaph for a Small Winner’ (título da tradução para o inglês de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’). Fiquei muito, muito impressionado. Dei o livro a meus amigos. Porque Machado de Assis não é bem conhecido.”

3
O que é impressionou tanto você no livro ?

Woody Allen: “Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irônico. Alguns dirão: ele é cínico. Eu diria que Machado de Assis é realista.”

4
Quem lhe passou o livro ?

Woody Allen- “Nem me lembro agora do nome da pessoa que me passou o livro. Apenas ela disse: ‘Você deve gostar…’ Respondi: ‘Nunca ouvi falar de Machado de Assis.’ Mas li- e gostei muito.”

5
Você consideraria a possibilidade de filmar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” ? ( Jogo a cartada final, na esperança de que ele vá me revelar em primeiríssima mão que planeja levar às telas um autor brasileiro.Quebro a cara pela terceira vez).

Woody Allen: “Gosto de escrever meus próprios filmes. Mas Machado de Assis é um maravilhoso momento na literatura. Dei cópias do livro para minha filha e para os meus amigos.”

6
Você é um símbolo de Nova Iorque. Teria coragem de viver um dia numa cidade pequena e calma, longe de tudo ?

Woody Allen: “Eu ficaria louco. Não poderia viver num lugar assim nem por dois dias- nem por um fim-de-semana. Preciso de cidades – seja Londres, Paris, Nova Iorque…Preciso de atividade, barulho, carros, restaurantes, livrarias, filmes. Sou viciado em civilização.”

7
Além de só gostar de cidade grande, é verdade que você detesta sol ?

Woody Allen: “Adoro este tempo (olha para a janela do hotel; lá fora, tudo cinzento: a chuva fina cai há umas doze horas). Gosto de Londres e Paris no inverno. Todo dia é bonito. É como um fotógrafo que gostasse de tons suaves.”

8
GMN : Você jamais viveria num país tropical ?

Woddy Allen: “Não! Não gosto de calor”

Uma nota pós-entrevista: encerrada a gravação, faço algo que não costumo fazer. Tiro de dentro de um envelope uma máquina fotográfica. Pergunto a Woody Allen se ele se incomodaria se eu fizesse uma foto. “Não, nenhum problema”, ele diz. Neste momento, a assessora – que tinha me dito que eu não fizesse fotos - entra na suíte, para avisar que o tempo estava esgotado. Quando vê que empunho uma máquina, ele me lança um olhar que faria um guarda de campo de concentração parecer um animador de festa infantil.

É óbvio que ela tinha sido mais realista que o rei. Ao contrário do que ela tinha dito, Woody Allen não se incomodaria em ser fotografado, pelo menos ali. Cometi, então, um sacrilégio. Passei a máquina para as mãos da megera. Pedi a ela que fizesse uma foto: o entrevistador ao lado de Woody Allen. Como não poderia ser indelicada diante da estrela Allen, a megera nos clicou. Woody Allen lança um olhar levemente inquisidor para a lente da câmera. Já o entrevistador-que-vos-fala é o desastre fotográfico habitual, um amontoado desconjuntado de ossos, músculos e espantos. Nada de novo, portanto: o de sempre. A foto deve estar no fundo de uma gaveta, para preservar os olhos de internautas sensíveis.

Posted by geneton at 12:36 AM

outubro 02, 2009

JOEL SILVEIRA

“O CÚMULO DO RIDÍCULO, BEIRANDO O GROTESCO: UM MARMANJO GORDO E BARRIGUDO TOCANDO CAVAQUINHO…”

Pausa para um refresco. Recupero em meus Arquivos Implacáveis as anotações de um encontro com Joel Silveira, o maior repórter do Brasil. Voilà.

Eis a víbora:

esparramado numa poltrona na sala deste apartamento na rua Francisco Sá,quase no limite entre Copacabana e Ipanema, Joel Silveira acompanha com um certo ar de enfado o telejornal da TV a cabo.

O peso dos oitenta e três anos é visível no olhar mortiço. O aparente cansaço diante do desfile de horrores planetários e provincianos no telejornal não impede o velho repórter de soltar imprecações contra – por exemplo – Fernando Henrique Cardoso :

- É o tipo do presidente que sabe falar mas não sabe dizer. Fala mas não diz. Nunca vi falar tanto,sobre qualquer assunto. Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola. Tenho a impressão de que todo dia, ao acordar, logo de manhã, Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta : “Por favor,qual é o mote de hoje ?”. O assessor diz -por exemplo – “indústria siderúrgica”. E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo. Um dia depois, muda de mote. Assim por diante, até o fim dos tempos.

Não foi por acaso que Joel recebeu de Assis Chateaubriand o título de “víbora” : um de seus esportes prediletos sempre foi destilar veneno e ironia em doses industriais.

Num país em que tantos títulos são injustamente atribuídos , o rótulo inventado por Chateaubriand para definir Joel é um exemplo de justiça. Além do apelido de “víbora”, Joel carrega também um título que o acompanha há décadas – o de “maior repórter brasileiro”.

Poucos terão – como Joel – um texto que reúne com tanta maestria Jornalismo e Literatura. A nossa víbora descreveu assim a cena que viveu depois de sair do Palácio do Catete,no Rio de Janeiro,ao fim de uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas :

- “Lá para a meia-noite,entrei no Danúbio Azul,um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas,desde que existem mundo e manhãs de abril”.

Pergunta-se: em que jornal ou revista se lêem hoje textos dessa qualidade ? A resposta é um silêncio ensurdecedor. Joel pode exercer aqui e ali um lirismo que já rendeu páginas memoráveis, mas nunca abandonou o gosto pela maledicência. Adora falar mal de da fauna humana – aí incluídos personagens perfeitamente inofensivos, como, por exemplo, os alpinistas, os turistas e os tocadores de cavaquinho.

É pura implicância. Cheio de certeza,constata:

-“O cúmulo do ridículo, beirando o grotesco,é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”….

Adiante,pergunta, a sério:

-Pode existir coisa mais idiota do que um alpinista ? Por que é que eles não pegam um avião, meu Deus do céu ? Por que não vão de helicóptero ? Pra que subir naquelas montanhas, se eles poderiam ver tudo da janela de um avião, no maior conforto ?

Provoco a víbora. Quero saber quem ele não levaria sob hipótese alguma para uma ilha deserta, se fosse condenado a passar o resto da vida isolado do mundo:

- Eu não levaria João Gilberto de forma nenhuma, com aquele violãozinho, uma coisa horrorosa. Aliás,o melhor talvez fosse deixá-lo numa ilha deserta, sem violão ! Assim,eu poderia ir embora. Não entendo o fenômeno João Gilberto : é um dos mistérios que minha inteligência não consegue alcançar. Eu até me esforço para entender tanta idolatria, porque ,como sou repórter, gosto de saber das coisas. Mas confesso que não consigo.

Joel nunca morreu de amores por um ex-colega de redação que entraria para a galeria dos brasileiros notáveis do Século Vinte :

- Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues.Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação.Gosto da peça “Vestido de noiva”,mas a verdade é não nos entrosávamos. Uma vez,eu estava escrevendo alguma coisa – escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo. De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção,fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: “Patético !”. Em seguida,foi embora, em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever.Depois,disse,simplesmente : “Dramático ! ”. Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – “patético” e “dramático”.

Depois de seis décadas de jornalismo, que outros tipos a víbora Joel incluiria na galeria nacional do ridículo,além dos tocadores de cavaquinho gordos e alpinistas ?

- Eu incluiria o turista numa Galeria Internacional do Ridículo. Porque o turista é de um ridículo sem par. De bermuda, cheio de máquinas penduradas no pescoço, suando em bicas, é roubado a toda hora nos restaurantes. Ridículo é também o velho que quer parecer moço- aquele que pinta cabelo, rebola e faz uma operação plástica por mês.

Joel vai fazendo confidências nesta tarde em Copacabana. Diz, por exemplo, que ouviu uma confissão de fraqueza de um dos maiores cronistas já surgidos no Brasil, Rubem Braga – um amigo do peito que até hoje lhe dá saudade. Os dois – Joel e Braga – foram correspondentes de guerra na Europa. Joel resolveu dar de presente a Rubem Braga um exemplar de um livro clássico de Stendhal – “O Vermelho e o Negro” . Semanas depois,Braga confessa a Joel que não conseguira de forma alguma passar da página noventa e dois do livro.O motivo:

- Rubem me disse que tinha interrompido a leitura porque o livro tinha personagem demais.E ninguém ficava parado….

Joel confessa que nunca conseguiu chegar ao final de “Os Irmãos Karamazov”,a obra-prima de Dostoievski. Agnóstico,alista-se entre os que concordam sem vacilar com o que disse o poeta Murilo Mendes :

-Deus existe, mas não funciona.

Cinco da tarde. É hora de dar um descanso ao guerreiro.Depois de tanta pergunta,peço que a víbora responda a um mini-interrogatório.São apenas cinco as dúvidas que quero tirar. É claro que ele aceita a proposta.Lá vai:

1

GMN : Quem foi a celebridade mais idiota que o senhor conheceu ?

Joel : “Deus me perdoe,mas foi o Papa Pio XII.Fui a uma audiência com ele no Vaticano.Diante do nosso grupo ,ele disse :”Brasileiros ? O português é uma bela língua. “Sabia” é do verbo saber. “Sábia” é uma mulher inteligente.”Sabiá” é um pássaro”. Que idiotice !”.

2

GMN : Se fosse escrever uma autobiografia,que fato vexaminoso o senhor faria questão de esconder ?

Joel : “Uma vez,em Roma,depois da guerra,vi Ernest Hemingway tomando conhaque sozinho num bar que ele costumava freqüentar.Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo.Fui ao banheiro remoendo a dúvida.Quando voltei,ele já tinha ido embora.É um dos meus grandes fracassos profissionais.O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway.Nesse caso,pelo menos o lead estaria garantido”.

3

GMN : Se o senhor fosse nomeado ditador de Sergipe,qual a primeira providência que tomaria ?

Joel : “Proibir a entrada de João Gilberto no Estado. Já seria um bom começo.Não existe nada tão chato quanto a Bossa-Nova”.

4

GMN : Qual a cena mais grotesca que o senhor já testemunhou ?

Joel : “Não precisa ir longe.Basta desembarcar num boteco qualquer do Rio numa noite de sábado.Repito : não existe nada mais grotesco do que um sujeito barrigudo e suado tocando cavaquinho”.

5

GMN : De quem o senhor não compraria um carro usado ?

Joel : “Não quero parecer ranzinza,mas alguém pode me dizer para que servem os alpinistas ? Por que aqueles idiotas não pegam um avião para olhar as montanhas do alto,em vez de tentar a subida ridiculamente amarrados em cordas ? . Eu jamais compraria um carro de um alpinista.Não se pode confiar em seres que não têm senso de ridículo”

Posted by geneton at 12:41 AM

setembro 28, 2009

FERNANDO GABEIRA

UMA “PROVOCAÇÃO” DE GABEIRA CONTRA UM TABU DA ESQUERDA: POR QUE É QUE NINGUÉM É CAPAZ DE PARTICIPAR DE UMA MANIFESTAÇÃO EM HOMENAGEM A UM POLICIAL MORTO EM SERVIÇO?

O repórter-que-vos-fala gravou uma longa entrevista com o ex-guerrilheiro Fernando Gabeira. O regime foi de esforço concentrado: seis horas quase sem interrupção. O depoimento serviu como balanço da trajetória de uma geração que, entre erros monumentais e acertos indiscutíveis, tentou mudar o Brasil. Ponto. Parágrafo.

Um pequeno esclarecimento à praça: não tenho qualquer vinculação política ou partidária com Fernando Gabeira. Meu interesse na gravação do depoimento que terminou virando livro (“DOSSIÊ GABEIRA : O FILME QUE NUNCA FOI FEITO”) foi puramente jornalístico. Sou do Partido dos Perguntadores do Brasil. That´s all.

O blog já teve a chance de tratar de uma das revelações feitas por Fernando Gabeira na entrevista: a participação do ator Carlos Vareza na operação para disfarçar guerrilheiros que tinham sequestrado o embaixador.

A certa altura do depoimento publicado,na íntegra, no “DOSSIÊ GABEIRA”, o ex-guerrilheiro lança uma “provocação” : por que, até hoje, ninguém se mostra disposto a participar de uma manifestação a favor de um policial morto em serviço, por exemplo ? Quem vai transformar em tema de denúncia a indiscutível opressão e o domínio territorial exercidos por criminosos contra populações das grandes cidades ?

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Fernando Gabeira : provocações no depoimento (Foto:Editora Globo)

Eis uma pergunta e uma resposta do longo depoimento:

GMN: Em Diário da Salvação do Mundo, você fez uma espécie de profissão de fé otimista: “Entre falar das misérias do presente e do potencial do futuro, talvez seja melhor optar por este último, localizar os pontos mais positivos do cotidiano, projetá-los para a frente, compreender que, por pior que seja a vida, o desejo de mudá-la significa a introdução de um elemento subjetivo novo, cuja simples existência é um dado de felicidade num vale de lágrimas”. Quais são os “pontos mais positivos do cotidiano” que Gabeira identifica no Brasil de hoje, quarenta anos anos depois de 68?

Fernando Gabeira: “O primeiro ponto é o aprofundamento da democracia que, hoje, no Brasil, é muito mais sólida do que no passado. É mais sólida do que em países vizinhos. Demos um grande passo, como se estivéssemos coroando um caminho de duzentos anos em busca da democracia”.

“A justiça social sempre foi um grande desejo. O Brasil é um país que vive, ainda, com uma grande disparidade de rendas e de recursos. Mas é uma disparidade que nos últimos anos foi combatida – no governo de Fernando Henrique e, mais acentuadamente, no governo Lula”.

“A luta sobre direitos humanos é permanente. O trabalho de direitos humanos no Brasil quer proteger o indivíduo contra a violência do Estado, como, por exemplo, no caso da menina que foi deixada numa cela no Pará ao lado de presos comuns. Eis um caso típico de direitos humanos desrespeitados pelo Estado”.

“Ao longo desse período, no entanto, formou-se um crime organizado que exerce domínio territorial sobre parte das cidades e pratica uma grande opressão sobre os moradores. Não tivemos a capacidade de incluir esta questão na agenda dos direitos humanos !”

“Vem daí a grande dúvida da sociedade sobre a nossa sinceridade: “Vocês só trabalham quando se trata de um indivíduo atingido pelo Estado ? Por que não trabalham quando se trata de um indivíduo atingido pelo crime organizado ?” É uma lacuna que terá que ser respondida de alguma forma”.

O ex-guerrilheiro quer saber por que ainda hoje não há a “mínima possibilidade” de fazer campanha contra a prisão de intelectuais em Cuba, por exemplo

“Há resistência, por exemplo, na hora de aderir a uma manifestação pela morte de um policial que tenha perdido a vida em serviço. É algo que não existe hoje, ainda, no movimento de direitos humanos. Mas o movimento cresceria se pudesse se reaproximar da sociedade”.

“O que a sociedade diz é claro. É o que ela diz historicamente para a esquerda: “Direitos humanos existem dos dois lados!”. A esquerda é hábil em discutir direitos humanos quando se trata de um desrespeito cometido por um país capitalista, mas, quando se trata de um desrespeito em um país socialista, o silêncio baixa”.

“Quando houve o caso da prisão de setenta e tantos intelectuais em Cuba, tentei fazer uma campanha aqui. A repercussão era mínima: não havia nenhuma possibilidade de criar um verdadeiro movimento de solidariedade àqueles intelectuais” .

——————

PS: Pausa para uma divagação jornalística. A trajetória acidentada de Fernando Gabeira desde os tempos da luta armada contra o regime militar é jornalisticamente interessante. Promessa: se um dia eu achar que uma história tão atribulada quanto a de um jornalista que resolveu participar da guerrilha contra o regime militar não é jornalisticamente interessante, prometo que terei a “clarividência” de guardar a viola, apagar a luz do meu palco mambembe e ir plantar pitanga em algum sítio da zona rural de Santa Maria da Boa Vista. Se todo jornalista burocrata fizesse ao planeta o imenso favor de abandonar imediatamente a profissão para ir plantar pitanga num sítio remoto, a imprensa seria dez,vinte, cem vezes mais interessante. Mas, não. Nossa imprensa é “previsível, empolada, chata – meu Deus, como é chata”, para repetir as palavras de São Paulo Francis. Faz parte do folclore jornalístico : desde o tempo dos dinossauros, as redações sempre estiveram povoadas de jornalisticidas, os imbatíveis assassinos do jornalismo, gente especializada em tornar cinzento, burocrático e entediante tudo o que poderia ser vívido, interessante e envolvente. Lástima, lástima, lástima. Fraude, fraude, fraude. Fim da divagação).

Posted by geneton at 12:49 AM

setembro 26, 2009

PAUL JOHNSON

OS ESTILISTAS TRANSFORMAM AS MULHERES “EM MACACAS”. E A MENTALIDADE POLITICAMENTE CORRETA É UM NOVO TIPO DE “TOTALITARISMO” (PAUL JOHNSON DISPARA CHUMBO GROSSO, NA ENTREVISTA QUE PAULO FRANCIS NÃO TEVE TEMPO DE FAZER)

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Paul Johnson: a fera do Tâmisa (Imagem:Paulo Pimentel/TV Globo)

Faço um ranking imaginário. Qual terá sido a declaração mais “politicamente incorreta” que já tive a chance de ouvir de um entrevistado ?

Uma candidata forte a levar a medalha de ouro: a declaração que um dos mais polêmicos intelectuais britânicos, o historiador Paul Johnson, fez sobre os estilistas, costureiros e assemelhados, numa longa entrevista que gravei com ele em Londres.

Em resumo: Johnson diz que, por serem majoritariamente homossexuais, os estilistas criam vestimentas ridículas que só servem para transformar as mulheres em “macacas”. O pior: as mulheres se prestam a este papel.

Uma registro dos bastidores: quem deveria ter feito a entrevista com Paul Johnson era Paulo Francis – sim, ele, o lobo hidrófobo. De passagem pelo escritório da TV Globo em Londres, Francis estava à procura de entrevistados para o programa “Milênio” da recém-inaugurada Globonews. O prédio onde funciona a Globo, ao final de uma rua sem saída chamada Oval Road, em Camden Town, é uma construção de tijolos aparentes que, por algum motivo que só Freud explicaria, me lembra o Depósito de Livros Escolares do Texas. Por sorte, nenhum Lee Harvey Oswald apareceu por lá.

Fiz um punhado de sugestões. Francis aceitou imediatamente a proposta de entrevistar Paul Johnson. Ampliados por uma lente fundo de garrafa, os olhos míopes e azuis de Francis bilharam. O encontro Francis x Johnson seria um choque de monstros: o encontro entre o Lobo Hidrófobo (Francis) e a Fera do Tâmisa ( Johnson). Eu faria questão de assistir à contenda de camarote.

Fiz a sugestão. Paulo Francis topou. O entrevistado seria Paul Johnson. Ia ser encontro do Lobo Hidrófobo com a Fera do Tâmisa. Desgraçadamente, Francis não teve tempo de voltar a Londres. Resultado: Bibiu entrou em campo no lugar de Pelé.

Havia pontos em comum entre a trajetória dos dois. Paul Johnson também tivera um passado de esquerda. Virou um conservador de carteirinha. Orgulhava-se de jamais ter pousado os pés num concerto de música pop, por exemplo. Tinha horror a ícones como Picasso. Motivo: as simpatias comunistas do artista. Aqui e ali, lembrava Paulo Francis.

Nesta passagem por Londres, Francis dizia-se orgulhoso de uma declaração que fizera no Brasil: numa entrevista à TV, dissera que se sentia “tecnicamente morto” numa sociedade dominada pela vulgaridade. Pergunta-se: o que Francis diria hoje ao ver idiotas marombados e louras oxigenadas trocando grunhidos em rede nacional?

Francis viajou para Nova Iorque em seguida. Ficou de voltar a Londres, como sempre. Poucos meses depois, no dia quatro de fevereiro de 1997, morreu fulminado por um ataque cardíaco, num início de manhã, no apartamento em que morava em Nova Iorque. Não teve tempo de fazer a entrevista que eu sugerira.

Por artes do destino, coube a mim a tarefa de entrevistar Paul Johnson. Sem falsa modéstia: eu me senti como se fosse Bibiu, ex-zagueiro-central do Sport Clube do Recife, entrando no lugar de Pelé. A vida pode ser cruel com o jornalismo. Ali,foi. Com toda certeza, o encontro de Paulo Francis com Paul Johnson produziria um diálogo de altíssimo nível. Minha entrevista com Paul Johnson produziu declarações interessantes - o mínimo que um repórter espera colher de um interrogatório. Paul Johnson tinha aceitado o pedido de entrevista. Alguém precisava entrevistar o homem. Desgraçadamente, Paulo Francis estava morto. Cumpri a tarefa na medida de minhas possibilidades. Assim caminha a humanidade.

Eis a entrevista que Paulo Francis não teve tempo de fazer:

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O intelectual Paul Johnson já foi chamado de reacionário, direitista, manipulador, antiquado, intransigente, preconceituoso e tarado

Defensores da mentalidade politicamente correta,tremei. Paul Johnson vem aí. Os fãs da fera o consideram um dos mais brilhantes historiadores britânicos. Os detratores ficam horrorizados quando lêem os freqüentes petardos que ele dispara contra, por exemplo, a arte moderna.

Colunista da revista Spectator,colaborador do Daily Telegraph, Paul Johnson pode ser acusado de tudo, menos o de ser um historiador pouco ambicioso : depois de escrever “A História dos Judeus”, mergulhou na fundo tarefa de produzir “A História do Cristianismo”.

Paul Johnson é um caso clássico de intelectual que nunca teve medo de nadar contra a corrente. Minorias que se julgam perseguidas devem ou não ser criticadas ? Devem, sim, responde a Fera do Tâmisa.

Picasso é um grande artista ? Não é não – brada Johnson, autor de um livro de ensaios chamado “To Hell With Picasso” (algo como “Que Picasso vá para o Inferno”). Picasso – garante ele – não passa de um stalinista que apoiou um regime totalitário.

A flexibilidade de conceitos morais é uma conquista do pensamento do século XX ? Não é, nunca foi nem poderia ter sido – rebate o impaciente Johnson. O relativismo moral –diz ele – é uma praga que faz os ingênuos acreditarem que não existe nada que seja absolutamente condenável.

As universidades ? Não passam de “fábricas de ignorantes”

Conservador assumido, crítico feroz da arte moderna, pintor nas horas vagas, religioso praticante e alpinista amador, Johnson é um polemista profissional. Faz parte de uma tribo minoritária: a dos intelectuais que não temem dar opiniões aparentemente fora de moda, fora de lugar e fora dos manuais de “bom comportamento” ideológico.

Johnson já foi chamado de reacionário, direitista, manipulador, antiquado, intransigente, preconceituoso: é uma espécie de Paulo Francis às margens do Tâmisa. O incômodo que Francis sentia deve ser igual ao sentimento de inadaptação que abastece a ira de Johnson contra a mediocridade, as nulidades e a empulhação.

As universidades, tidas por tantos como templos intocáveis do saber, se transformaram em centros de intolerância, irracionalidade, extremismo e preconceito. São fábricas de ignorantes, uma empulhação custosa, na avaliação devastadora de Johnson.

Orgulha-se de jamais ter-se dado ao trabalho de ver um show de música pop ou um jogo de futebol. Opiniões assim renderam a ele uma coleção de críticos e detratores. Mas ele não parece disposto a dar trégua.

Paul Johnson vem se ocupando da morte de Deus, o grande fato que não aconteceu no século vinte. Grandes tragédias do século XX, como o extermínio de seres humanos em escala industrial nos campos de concentração, poderiam ter contribuído para abalar a fé dos homens em Deus. Mas Paul Johnson diz que a ocorrência de tragédias terminou, paradoxalmente, reforçando a fé. Os descrentes procuraram proteção e consolo na idéia de Deus, porque o culpado de tudo é, como sempre, o homem.

“Ao contrário do que se esperava – festeja Johnson -, este não foi o primeiro século do ateísmo”.

“O relativismo moral afirma que todo bem ou todo mal é relativo. Acontece que há coisas que são absolutamente certas e coisas que são absolutamente erradas, sim!”

Quando o século XIX acabou, todo mundo esperava que a ciência iria tomar, de uma vez por todas, o lugar da fé. O avanço do conhecimento científico destruiria a idéia de que um Deus,seja qual for, existe. Um século depois,essa previsão falhou.

Nesta entrevista,feita em Londres,a Fera do Tâmisa ruge contra a mentalidade politicamente correta,a arte moderna e o relativismo moral.

Gravando !

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GMN : Qual foi o pecado capital do século XX ?

Paul Johnson : “É o que chamo de relativismo moral : a negação de que haja valores absolutos. Acontece que há coisas que são absolutamente certas e outras que são absolutamente erradas,sim !. O relativismo moral afirma – pelo contrário – que todo bem ou todo mal é relativo.Todos os valores seriam relativos, portanto. Vejo o relativismo moral sob toda maldade totalitária e todo tipo de pecado do século XX. Precisamos voltar -acho que já estamos voltando- a cultivar valores absolutos”.

GMN : O senhor diz que já não há uma idéia absoluta sobre o que é errado e o que é certo. Pode dar um exemplo do que é certo e do que é errado,no mundo de hoje ?

Paul Johnson : “O exemplo mais comum é o da sexualidade humana. A maioria das pessoas da minha geração – que viveu a década de trinta – foi educada para acreditar que havia certos e errados absolutos na sexualidade humana. É um fato que o relativismo moral esconde e ofusca. Crianças de hoje não aprendem que há certos e errados ! Aprendem que devem fazer o que os outros fazem. Isso é relativismo moral ! É um grande mal. Devemos lutar contra ele”.

“A pior idéia do Século XX é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos”

GMN : O senhor se declara um combatente na guerra das idéias. Qual foi a pior e a melhor idéia política do século XX?

Paul Johnson : “A pior idéia – que começou antes da Primeira Guerra, ainda por volta de 1910 – é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos. Mas há poucas coisas em que o Estado é melhor que o indivíduo. A verdade é que a idéia de que o Estado age bem é a pior de todas. Aprendemos agora esta lição. A melhor idéia é a seguinte : sempre que possível, os indivíduos devem ser deixados sós para fazerem o que puderem com os próprios recursos. Quanto maior a liberdade, maior a justiça, maior a eficiência e maior a felicidade humana.

O Brasil é um desses países que têm um futuro incrível. Chegará a esse futuro, dourado e glorioso, se acreditar mais em liberdade individual e menos no Estado”.

GMN : Por que o senhor diz que a mentalidade politicamente correta é uma nova forma de totalitarismo?

Paul Johnson : “Não gosto que venham me dizer como pensar, que palavras e expressões devo ou não usar. Para mim, esta é a origem do totalitarismo. Hoje,o totalitarismo vem começando de novo, no campus das universidades, nos Estados Unidos, sob o disfarce politicamente correto. Temos de lutar – muito ! – contra este fenômeno, antes que o totalitarismo disfarçado de posições politicamente corretas se estabeleça de verdade”.

“Picasso não lutava contra o totalitarismo. Ficou ao lado da União Soviética totalitária durante quase toda a vida. É um escândalo!”

GMN : Quanto o senhor pagaria por um quadro de Picasso? Por que o senhor é tão rigoroso na hora de julgar mestres da arte moderna, como Picasso e Cézanne?

Paul Johnson : “A arte precisa ter um propósito moral. Acontece que nunca pude detectar qualquer propósito moral claro na obra de Picasso. Era um homem perverso e imoral. Não vejo, em nenhuma de suas obras, um esforço para mostrar a arte com um propósito moral. Tal esforço é a essência do grande artista. Então, desconsidero Picasso completamente”.

GMN : A obra mais famosa de Picasso, “Guernica”, é uma denúncia contra a violência do totalitarismo. Por que é,então,que o senhor diz que não havia nenhum sentido moral na obra de Picasso?

Paul Johnson : “Porque Picasso não lutava contra o totalitarismo ! Picasso não era comunista : era stalinista ! . Ficou do lado da União Soviética totalitária, durante quase toda a vida. É um escândalo ! Não acreditava na liberdade, exceto para si próprio”.

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GMN : O senhor diz que a religião aprendeu a absorver todos os impactos da ciência. Agora que até seres humanos podem ser criados em laboratório, o senhor acredita que a fé religiosa vai sobreviver?

Paul Johnson : “A rapidez no avanço da ciência, especialmente nas ciências da vida – aquelas que afetam os seres humanos – vem tornando a religião mais importante do que nunca. Porque, em cada estágio do avanço da ciência, devemos trazer Deus à discussão. Devemos dizer: “Isso é moral? É Justo? É algo que se encaixa no plano divino para a Humanidade? Ou é algo que vai contra ele?”. O fator “Deus” na ciência é,hoje,mais importante do que nunca”.

Uma prova da existência de Deus, para Paul Johnson: testemunhar o alvorecer, a bordo de um avião, a doze mil metros de altura

GMN : Um astronauta, que é um homem da ciência, diz que procurou sinais de Deus numa viagem pelo espaço, mas não encontrou nada. Que argumento o senhor usaria para convencer este astronauta de que,por trás do vazio do espaço, existiria um Deus?

Paul Johnson : “Quando nos deparamos com um evento científico supremo, o modo de reagir a ele é uma questão de imaginação. Quando Robert Oppenheimer viu a primeira Bomba H explodir, em Alamos, ele citou Bhagavad Gita: “Eu me tornei a morte, o destruidor de mundos”. Um homem pode ver algo miraculoso ou científico, sem que tenha reação alguma. Se ele for um homem de grande imaginação, pode ter uma enorme reação. Quando, a bordo de um avião, a cerca de doze mil metros de altura, vejo o amanhecer, esta cena, para mim, é uma revelação da existência de Deus. De qualquer maneira, não preciso estar no espaço para fazer esta constatação. A maioria das pessoas,igualmente,não precisa : basta que tenham imaginação para que Deus venha à tona”.

GMN : O senhor consegue irritar as feministas e os esquerdistas com suas opiniões. Os dois são seus inimigos prediletos?

Paul Johnson : “Não sou, certamente, um inimigo das feministas. Sou pró-mulher : acredito que o século XXI será o século das mulheres. Dei palestras em Londres para milhares de senhoras japonesas : disse que elas têm o dever de tomar o poder que hoje parece disponível para elas no Japão – que era uma sociedade muito machista. Sou muito a favor das mulheres. Quanto à esquerda, não gosto de dividir pessoas em setores rígidos – esquerda e direita. Posso até dizer que sou radical – especialmente nas questões femininas, por exemplo. O meu ponto-de-vista é o de que todos os assuntos devem estar abertos à discussão. Não estou do lado da esquerda ou da direita : estou do lado da razão e da justiça”.

GMN : Por que o senhor diz que a esquerda tenta deixar os outros deprimidos? O senhor tem tomado Prozac?

Paul Johnson : “Não estou de forma alguma deprimido! O século XX foi,como um todo, um fracasso horrível. Mas aprendemos muitas lições. Não estou nem um pouco deprimido : Tenho uma imensa confiança : previa-se que Deus desapareceria da vida das pessoas. Mas Deus estará forte e vivendo nos corações de bilhões de homens, mulheres e crianças. É uma constatação que me torna o contrário de um deprimido: eu estou otimista”.

“Os estilistas, principalmente porque, na maioria, são homossexuais, transformam as mulheres em macacas”

GMN : Se é verdade que a idéia de Deus sobreviveu, quais são os três argumentos que o ssenhor usaria para convencer um ateu a acreditar em Deus?

Paul Johnson : “A primeira razão é a verdade. Deus existe – e a verdade é mais importante do que tudo. A segunda é a felicidade: com Deus, estamos mais felizes, mais satisfeitos, mais seguros do que sem Deus. A terceira razão : sob o ponto-de-vista puramente social, um mundo em que Deus fosse amplamente acreditado e respeitado seria um mundo muito mais seguro e melhor”.


GMN : O senhor diz que a moda é uma conspiração de costureiros para ver até onde eles podem forçar as mulheres a fazer macaquices. A moda é um sintoma da decadência?

Paul Johnson : “Não há nada de novo nesse fenômeno. A “alta moda de Paris” existe desde 1850 : é um século e meio de vida. Os estilistas –principalmente porque, na maioria, são homossexuais – sempre transformam as mulheres em macacas. Acham que as mulheres aceitarão o que eles fazem. As mulheres – não apenas as ricas – compram as roupas oferecidas pelos estilistas. Há coisas idiotas. Como essas roupas são fabricadas em massa – e levadas às lojas – não apenas as mulheres ricas,mas também as mulheres comuns, usam o que esses estilistas produzem. As mulheres é que escolhem. Ninguém faz uma mulher vestir roupas idiotas se ela não quiser”.

GMN : Quem será a próxima vítima de Paul Johnson ?

Paul Johnson : “Quero levar ao Parlamento uma lei de privacidade que impeça a mídia de invadir a privacidade alheia. Ingleses e americanos não têm essa lei. Quero que a Inglaterra tenha”.

GMN : É possível resumir o Século em uma só palavra?

Paul Johnson : “Não em uma palavra, mas em uma frase: “O Século XX foi um desastre total,suavizado pela capacidade humana de aprender lições da História”.

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Paul Johnson por Paul Johnson :

“De todas as calamidades que se abateram sobre o Século XX, além das duas guerras mundiais, a expansão da educação universitária nos anos cinquenta e sessenta é a mais duradoura. É um mito a crença de que as universidades são o berço da razão. São o abrigo de todo tipo de extremismo, irracionalidade, intolerância e preconceito; um lugar onde o esnobismo intelectual e social é propositadamente instilado e onde professores passam para os estudantes os seus próprios pecados de orgulho”.

“A nova forma de totalitarismo – a Mentalidade Politicamente Correta – é, inteiramente, uma invenção universitária”.

“O que me provoca reflexões sombrias é a lembrança de todo o desperdício produzido pelo modernismo. Perdemos duas gerações – meio-século- na busca pela feiúra. Talentos da pintura, desenho e escultura se perderam”.

“Nunca fui a um concerto de música pop ou a um jogo de futebol, nunca acompanhei novela de TV, nunca vi “A Ratoeira” ou “E o Vento Levou”, nunca concluí a leitura de “Em Busca do Tempo Perdido”, nunca li a revista “The Economist” ou “Time Out”, nunca tive um carro, nunca passei do limite da conta bancária, nunca compareci a tribunal. Ninguém nunca me ofereceu drogas, convidou-me para uma orgia ou me vendeu um contraceptivo. Jamais tive a menor vontade de possuir um quadro de Picasso, ter uma Ferrari, vestir um Armani ou morar em Aspen”.

“Jamais matei um peixe,cacei uma raposa ou esmaguei uma aranha – se bem que, uma vez,tentei esmagar uma tarântula no Recife”

“Já fiz Charles de Gaulle se benzer, Churchill chorar e o Papa sorrir”

“Considero-me um típico inglês do meu tempo, classe e idade, cujos pontos-de-vista,simpatias e antipatias são compartilhadas com multidões. Posso estar errado a esse respeito.Quando perguntada o que pensa sobre mim,minha mulher Marigold respondeu : “Difícil”.

(Trechos de “To Hell With Picasso”;Editora Weidenfeld & Nicolson,Londres)

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setembro 22, 2009

PAUL MCCARTNEY

10 VEZES PAUL McCARTNEY : POR QUE A IGNORÂNCIA MUSICAL SALVOU O “MAIOR COMPOSITOR POPULAR DO SÉCULO XX”…

O ex-beatle Paul McCartney começa a falar, numa sala do Royal Albert Hall, em Londres. O locutor-que-vos-fala grava as palavras daquele que o jornal Daily Telegraph chamou de ” o maior compositor popular do Século XX” ( ver post anterior).

Jornalistas – ingleses – presentes à entrevista não resistiram à tietagem. Uma moça cobriu Paul de elogios, antes de fazer uma pergunta. Meu demônio-da-guarda me soprou ao pé do ouvido: “Eu bem que disse! Jornalista bancando o amiguinho da celebridade é um mal planetário. Você pensou que que essas patetices só aconteciam com os subdesenvolvidos brasileiros que vivem jogando flores uns nos outros…”.

A observação feita ao pé-do-ouvido pelo meu demônio-da-guarda não me impede de declarar solenemente, diante deste tribunal, que sou um beatlemaníaco. Paul McCartney é,sim, o maior compositor popular do Século XX. Nenhum grupo jamais fez algo parecido com o álbum Abbey Road. Milton Nascimento – que nunca se notabilizou por ser autor de frases inspiradas – disse recentemente, numa entrevista ao G1, que os Beatles são os melhores: “O resto é palhaçada”, sentenciou.

O compositor que fala agora diante do punhado de jornalistas esteve – de uma ou outra maneira – presente na vida de milhões de ouvintes ao longo das últimas décadas. “Take a sad song and make it better”, como diz a letra de Hey Jude. Em última instância, ao compor tantas canções inesquecíveis, ajudou a tornar suportável nosso circo de horrores diários. É o suficiente. Que outra coisa um compositor de canções populares pode querer na vida?

É o que me ocorre, enquanto acompanho Paul McCartney falar, com a simpatia habitual, sobre a arte de compor música popular.

Guardei a fita. É hora de ouvir as palavras de Sir Paul:

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Paul McCartney: revelações sobre a "ignorância" (Imagem: TV Globo)

1. “Sempre achei que seria uma boa idéia aprender mais sobre o que eu estava fazendo. Contaria como um “plus”. Quando se sentam diante do piano para compor, amigos meus, altamente treinados musicalmente, ficam inibidos na hora de criar uma melodia nova, porque já têm informação excessiva na cabeça, acumulada a partir de todo o Bernstein, todo o Beethoven, todo o Mozart ou todo o Mendelssohn que ouviram. Sou sortudo, porque, nesse sentido, tenho um “buraco negro” na cabeça. Quando me sento, é como se não tivesse nada. De certa maneira, penso que é muito bom. Porque o que eu escrever possivelmenTe será mais original. Há vários exemplos. Em West Side Story, por exemplo, há uma música de Leonard Bernstein, There is a Place for Us : ouvi dizer que a melodia composta por Bernstein já teria sido feito por outra pessoa. A gente vê que até grandes como Bernstein podem misturar as informações, inconscientemente. Não saber tanto pode ser uma vantagem, então.A ignorância é uma bênção, no meu caso”.

2. “O importante, sobre o fato de escrever música para orquestra, é que tive sorte: não conheço tanto sobre música clássica. Quando eu era criança, meu pai desligava o rádio quando entrava música clássica. Dizia: “Desligue esse negócio…” (imita a voz de desprezo). Como fã de jazz, ele não gostava daquilo. Depois, ouvi Bach. Você pode citá-lo como meu compositor preferido. Quando eu estava nos Beatles, citei Bach como um dos meus compositores favoritos. Recentemente, ouvi um pouco Monteverdi ( compositor italiano). Mas, quando eu estava escrevendo uma peça para orquestra (Standing Stone, lançada em 1997) , não ouvia realmente nenhum dos compositores clássicos, a não ser para ver o que é que eu não deveria fazer! Porque eles já tinham feito! Ouvi Beethoven, para ver como ele fez. Gostei de Monteverdi porque vi que ele tinha algo em comum com a música do começo dos Beatles: ele não conhecia muitos acordes…Havia um link interessante ali. Depois, descobri os Noturnos de Chopin – que todos conheciam mas só vim a conhecer há pouco. São excelentes”.

3. “Tentei, em minha vida, aprender a ler e a escrever música três vezes, mas não fui bem sucedido. A primeira vez aconteceu quando eu era menino – com uma velha senhora lá da minha rua. A segunda quando eu tinha dezesseis anos. A terceira, aos vinte e um. Nunca consegui me dedicar ao estudo da música. Porque, na verdade, eu já estava compondo. Já tinha feito, por exemplo, When I´m Sixty Four. Nesta época, eu estava tentando. Desisti, no fim das contas. O que aconteceu, com Standing Stone, é que descobri um programa de computador que permite que eu, primeiro, trabalhe no teclado. Depois, transfiro para o computador. Posso aprender como orquestrar enquanto trabalho no computador. Isso foi um salto para mim. Porque não sou bom em matéria de computador. Preciso de uma equipe para descobrir como me livrar da confusão em que me meti….”

4. “Eu estava ouvindo,nos anos sessenta, peças de Stockhausen e algumas das coisas mais estranhas da música contemporânea. Pensei em fazer um álbum com sons eletrônicos. Ia chamar o disco de “Paul McCartney Goes Too Far”. Nunca cheguei a fazer. Fiz outras peças desde então – que não cheguei a lançar. Talvez lance um dia. Mas nunca pensei em fazer com a Orquestra Sinfônica de Londres. Ou fazer peças tão grandes como Standing Stone. Eu já tinha gostado de fazer o Liverpool Oratorio (primeiro exercício de Paul McCartney com música clássica, lançado em 1991) com orquestra. Queria fazer de novo algo assim. Quando surgiu a oportunidade, peguei”.

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5. “Não esperava escrever peças como Standing Stone. Já tinha sido divertido botar violinos em Yesterday ou em Eleanor Rigby. Eu tinha, na época, meus vinte e poucos anos. Não pensava : “Quando eu tiver meus trinta anos e for velho…..”. Mas imaginava que poderia fazer algo nessa linha, não tão ambicioso quanto viria a acontecer. Considerava que música para orquestra era algo que eu poderia fazer, depois do rock-and-roll”.

6.“Eu não sabia como compor na tradicional maneira clássica - que é pegar um tema e desenvolvê-lo, numa peça em que a música é usada como uma jornada. Ao compor, senti que precisaria de uma história como base, para me manter “nos trilhos”. Fiz contato com Allen Ginsberg, poeta, amigo dos anos sessenta. Comcei a curtir poemas. Cheguei a trabalhar com poema escrito. Tentei fazer Standing Stine como um poema, caso precisasse usar de letras. Mas terminei não usando muito do poema. O que aconteceu é que o poema se tornou uma história, para o caso de o ouvinte precisar de algo em que se apoiar enquanto ouve a música. Compus peças menores como preparação para a peça maior. É como escrever contos antes de escrever um romance”.

7. “Não diria que estou fazendo música clássica. Estamos usando apenas orquestra, ao invés da combinação rythm & blues - guitarra, baixo e bateria. Era divertido usar ocasionalmente trompete ou quarteto de cordas. Porque a gente trabalha com outro tipo de músicos. Não vejo limites entre os gêneros. Para mim, era tudo música. Quando olho para trás, vejo que o rock-and-roll estava começando a flertar com músicas orquestradas. Penso em “Save the last dance for me”, com The Drifters. Ou “It doesn´t Matter Any More”, com Buddy Holly. Estava começando a acontecer. Não vejo barreiras. Não divido entre música clássica, “easy listening” ,rock-and-roll. Para mim, o que há é música boa e música ruim”.

8.”É tudo uma questão de amar a música. Tenho sorte de ser pago para fazer o que amo. Compus muita coisa em minha vida. Em geral, são coisas curtas. A música Hey Jude foi a mais longa: cerca de sete minutos. É um grande desafio. Você pode perguntar a um escritor de contos por que ele se preocupa em escrever um romance. Ora, porque é um desafio. Se você gosta de música, é interessante, então, fazer uma peça maior. É bom trabalhar com orquestra e animador trabalhar com gente com este tipo de virtuose. Se você gosta de talento, é algo animador a fazer”.

9.”Um dos motivos por que lancei o cd Flaming Pie (um dos melhores álbuns da fase pós-beatle de Paul McCartney), junto com Standing Stone, foi porque queria mostrar a todos que faço meu rock-and-roll. Não vejo estas barreiras. Em “Eleanor Rigby”, já havia os violinos e minha voz. Não se dizia que eu estava virando “clássico”. Gosto de vários tipos de música. O fato de tocar uma tradicional música irlandesa – por exemplo – não quer dizer que estou indo nesta direção. Quer dizer que eu gosto desse tipo de música assim como outros. Ainda amo o rock-and-roll”.

10.”Alguém me perguntou se eu estava confortável com o título de Sir (honraria concedida pela realeza britânica). Eu disse que sim : estava altamento honrado. Mas me ocorreu que tenho orgulho também do título de mister ( tratamento usado por e para cidadãos comuns). É working class. Você ganha quando tem vinte e um anos” ( idade em que se passa a ser chamado de “senhor”). Vou tentar descobrir se terei de deixar o título de mister para usar o de sir. Se for obrigatório, vou tentar burlar o sistema….Tenho orgulho de mister me lembra de onde vim e quem sou. Mas estou orgulhoso do título de sir”. Não é que não goste de usar o título de sir. É que me apego ao título de mister também. Não sei se você pode usá-lo”.

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setembro 21, 2009

PAUL MCCARTNEY

A “CHAVE” PARA ENTENDER UM FENÔMENO: O DIA EM QUE O EX-BEATLE PAUL McCARTNEY REVELOU QUE SÓ CONSEGUE FAZER TANTA MÚSICA PORQUE É “IGNORANTE”

Quem é o maior compositor popular do século XX ?

Não faz tempo, o jornal Daily Telegraph cravou : é Paul McCartney.

Não é patriotada nem exagero do jornal inglês. Que outro compositor terá produzido, sozinho ou em parceria com um tal de John Lennon, tantas canções reconhecíveis por tanta gente em tantas partes do mundo? Nenhum.

Fazer música popular, em última instância, é criar canções que possam ser assoviadas numa caminhada. Simples assim. Pouquíssima gente fez tantas quanto nosso personagem de hoje.

O repórter-que-vos-fala faz questão de ser tendencioso quando o assunto é Beatles. O melhor álbum da história da música pop é Abbey Road, lançado faz exatamente quarenta anos, no remoto setembro de 1969.

É possível ouví-lo por horas seguidas sem pular uma faixa sequer ( faça-se o teste: dá para contar nos dedos da mão de um mutilado de guerra quantos álbuns passariam pela Prova da Audição Sem Pulo).

Tive a chance de testemunhar duas aparições de Paul McCartney em Londres ( uma das aparições aconteceu numa daquelas cenas que ocorrem uma vez na vida: Paul McCartney subiu ao palco do Royal Albert Hall, em companhia de Eric Clapton, Elton John, Phil Collins e Marc Knopfler, entre outras feras, num show beneficente, para executar um repertório que incluía faixas do Abbey Road, como o hino “Golden Slumbers”, seguida por “Carry That Weight” e “The End”. Carimbei meu diploma de beatlemaníaco ao ver um beatle tocando três músicas do álbum Abbey Road “ao vivo e a cores”, devidamente acompanhado por uma banda de primeiríssimo time. Em breve, falo desta cena).

A outra aparição de McCartney testemunhada pelo repórter-que-vos-fala aconteceu numa entrevista, também no Royal Albert Hall.

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O "maior compositor popular do Século XX" na entrevista : "ignorância" abençoada (Imagem: TV Globo)

Beatlemaníacos, exultai: acabo de localizar, no meu baú de raridades, uma fita cassete em que Paul McCartney faz uma confissão que, sem exagero, pode servir como chave para entender por que ele foi capaz de produzir uma coleção de canções assoviáveis : ao explicar suas ligações com a música clássica, ele relembrou as três tentativas que fez de estudar e ler partituras. Fracassou nas três.

Adiante, ele confessa : se tivesse uma grande cultura musical estocada em algum escaninho de seus neurônios, certamente se sentiria tolhido na hora de sentar diante do piano para compor.

Paul McCartney diz que amigos seus, compositores, donos de uma vasta cultura musical, vivem uma experiência curiosa: eventualmente, se sentem bloqueados na hora de compor, porque, a cada novo fraseado, são invadidos por uma dúvida. E se alguém tiver feito algo assim antes?

Com uma ponta de ironia, Paul McCartney diz que, a partir de suas próprias experiências como compositor, pode declarar que “a ignorância foi uma bênção. O fato de não saber tanto pode ser uma vantagem”, confessa, sem vacilar.

Ou seja: se tivesse realmente estudado música, é provável não tivesse composto pérolas como “Hey Jude”, “Yesterday” e uma infinidade de outras, igualmente “assoviáveis”.

O “maior compositor popular do Século XX” estava dando ali – de mão beijada – para um punhado de jornalistas, numa sala do Royal Albert Hall, a chave para que se entendesse a raiz do fenômeno que ele próprio representa.

O tema alimentaria um ano de debates num seminário de música : se não fosse “ignorante”, Paul McCartney não seria um compositor popular tão extraordinário.

Anotações sobre a aparição londrina de sir Paul McCartney:
Dou plantão numa das entradas do Royal Albert Hall, na vã esperança de arrancar uma declaração exclusiva do meu ídolo ( repórter não deve nunca, never, jamais, sob hipótese alguma, fazer papel de tiete, mas, enquanto esperava a chegada de Sir Paul McCartney eu não tinha como não lembrar dos tempos em que passava horas, horas e horas ouvindo o lp Abbey Road em meu quarto de adolescente nos fundos de minha casa no bairro de Nossa Senhora do Rosário da Torre, Recife, Pernambuco. De qualquer maneira, não abro mão de uma convicção pétrea: o jornalismo dará um imenso, um extraordinário, um indescritível salto de qualidade no dia em que forem banidas da face da terra as entrevistas em que o entrevistador se comporta diante do entrevistado não como repórter mas como praticante de uma modalidade de esporte que poderia ser batizada de “voleibol jornalístico” : são os “jornalistas” que passam a vida levantando bolas para o entrevistado, especialmente as celebridades. A cena é invariavelmente triste e patética. O mal não é apenas brasileiro: diante de Paul McCartney, uma jornalista se derreteu em salamaleques antes de conseguir articular uma pergunta. Patética. Como diriam os estudantes rebelados que pichavam muros na Paris de 1968, a humanidade só será feliz no dia em que o último jornalista deslumbrado for enforcado nas tropas do penúltimo).

Faço uma combinação com o cinegrafista Luís Demétrio. Em vez de nos dirigirmos ao auditório que servirá de palco para a entrevista, ficaremos do lado de fora, próximos à entrada principal do Royal Albert Hall. Quem sabe, num golpe de sorte, não conseguimos uma declaração do homem.

Fãs capazes de qualquer sacrifício descobrem, não se sabe como, que Paul desembarcará ali dentro de instantes. Lá estão elas, indiferentes ao frio de rachar, num canto da calçada, à espreita. De repente, noto que um magrelo vestido de preto começa a falar discretamente num walkie-talkie.
Faço um sinal para o cinegrafista. A celebridade deve estar chegando.

Um carrão preto, com vidros indevassáveis, se aproxima lentamente da entrada do prédio. Quando notam, as fãs se agitam. O carro pára. Quem desce do banco dianteiro? Só podia ser ele. E era. Eis Sir Paul McCartney, recém-condecorado pela Rainha.

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O canto dos olhos exibe pés-de-galinha. O tom da pele, pálido, sugere que o rosto passou por uma maquiagem – quem sabe, para esconder as rugas. A cor das cabelos não deixa dúvidas: uma tintura passou por ali. A idade manda lembranças. Mas – de calça jeans, casaco preto e blusa clara - o eterno Beatle parece, na medida do possível, jovial.

Avanço em direção à presa, com o microfone em punho. Fãs soltam gritos. Os brutamontes – popularmente conhecidos como seguranças – entram em ação para afastar todo e qualquer intruso – eu, inclusive.

Paul acena para a turba. Em meio ao tumulto, a única declaração que consigo captar é um monossílado – “Hi!” – versão inglesa para “Olá!”. Paul se limita a fazer um “V” de vitória com os dedos.

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Em questão de segundos, desaparece dentro do prédio, cercado de seguranças por todos os lados. É uma luta inglória: enfrentar um daqueles brutamontes corresponde a desafiar Mike Tyson para um duelo, no meio da rua, numa manhã de inverno. Faltam-me proteínas para tanto.
Lá dentro, na coletiva, o assessor de imprensa de Paul McCartney - ou o próprio – apontam aleatoriamente para um ou outro jornalista – que, bafejado pela sorte, pode balbuciar uma pergunta. Supercelebridade é assim. O dedo indicador do beatle me desconhece solenemente. Fica para a próxima. Não havia tempo para que cada um fizesse uma pergunta. “Paul precisa ensaiar”, diz o assessor.
Além das declarações que o astro fez na coletiva, volto para a redação com a entrevista “exclusiva” mais sucinta das tantas que tive a chance de tentar: “Hi!”.
Mas preservei a fita com a íntegra do que Paul McCartney disse ali. A declaração sobre a “vantagem” de ser ignorante em matéria de formação musical é preciosa.

Beatlemaníacos, aguardai:
em um próximo post, o Dossiê Geral publica, na íntegra, as palavras do “maior compositor popular do Século XX” naquela manhã de inverno de 1997 em Londres.

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setembro 20, 2009

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

O DIA EM QUE O METALÚRGICO (E EX-TINTUREIRO) LUIZ INÁCIO CONFESSOU QUE NÃO TINHA “VOCAÇÃO POLÍTICA”

Faz trinta anos: um pernambucano que se tornara estrela ascendente do movimento sindical volta a Pernambuco pela primeira vez depois de ficar famoso nacionalmente. As declarações que o visitante ilustre fez naquele dia soam hoje surpreendentes, se confrontadas com o que viria a acontecer com ele. O Lula sindicalista dizia que não se considerava uma “liderança”. Confessava não ter “vocação política”. Desencava os partidos políticos.

Meninos, eu vi e ouvi:

O sobrenome não era um sobrenome. Era uma profissão: metalúrgico. O nome não era um nome. Era um apelido: Lula. A combinação esquisita de um nome que era apelido e um sobrenome que era uma profissão servia para identificar aquele sindicalista que despontava para a fama: “Lula Metalúrgico”. Era assim que nós, repórteres que cobríamos a visita do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva ao Recife, no remoto ano de 1979, o chamávamos.

Lula já tinha sido capa de uma revista semanal. Começava a atrair a atenção do Brasil como o primeiro líder sindical surgido sob o regime militar. Fazia, ali, a primeira visita a Pernambuco depois de ficar conhecido. Ainda não era uma celebridade.

O pernambucano que visitava Pernambuco pela primeira vez depois de ficar conhecido em todo o Brasil só queria uma coisa: encontrar tempo para se dedicar à família…

Quem poderia imaginar que aquele pernambucano que voltava ao Recife para defender um “novo sindicalismo” iria, um dia, subir a rampa do Palácio do Planalto como presidente? Ninguém.

O Partido dos Trabalhadores não existia. Era apenas uma idéia na cabeça daquele sindicalista, que, ao abrir a boca diante de platéias, subtraía o “s” do plural das palavras com a mesma desenvoltura com que soltava imprecações contra governos militares que manipulavam os índices de inflação.

O Lula que desembarcou no Recife era um líder sindical que resistia às cantadas para se engajar em partidos políticos – não importa quais fossem. Descubro em meus arquivos uma gravação em que ele avisa:

“Não sou filiado a partido político algum. Não sou filiado à Arena, não sou filiado ao MDB. Fui contra o bipartidarismo quando ele foi instituído. Por uma questão pessoal, enquanto houver bipartidarismo, não vou me filiar a partido político algum. Quem sabe, um dia, surja um partido em que os trabalhadores tenham voz, onde os trabalhadores sejam maioria. Quando surgir esse partido, serei – não tenham dúvida – um dos filiados”.

O sindicalista Lula estava a um milhão de anos-luz do candidato Lula que, quase um quarto de século depois, seria capaz de dar bom-dia a poste em troca de um voto – como faz todo candidato que se preza.

O Lula Metalúrgico pichava gente da Arena e do MDB, dispensava a ajuda de estudantes que se ofereciam para distribuir panfletos a operários, acabrunhava-se com a intromissão de intelectuais na atuação do sindicato, fazia restrições à ótica das pastorais operárias da Igreja Católica, esculachava a conduta da chamada “grande imprensa”.

Aos que tentavam sondar seus planos futuros, oferecia uma resposta que, hoje, soa como curiosidade arqueológica. Lula dizia que, simplesmente, não tinha “vocação política”. Dava-se por satisfeito no exercício da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos.

O sindicalista Lula quebra logo a solenidade de um encontro com o arcebispo de Olinda e Recife: “Dom Hélder, meu filho tem nome de costureiro, Sandro, mas é macho!”
O então presidente da seção estadual do MDB – Jarbas Vasconcelos, oposicionista brigão que, duas décadas depois, se elegeria duas vezes governador de Pernambuco – é o cicerone na visita que o sindicalista barbudo faz ao arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara.

O arcebispo vivia numa casa modestíssima, nos fundos da Igreja das Fronteiras, no bairro das Graças, no Recife. Um poster de Martin Luther King – com a inscrição “Eu tenho um sonho” – ornamentava a parede da sala. Lula troca gentilezas com Dom Hélder. Diz que a trajetória do arcebispo servia de exemplo para os trabalhadores. Dom Hélder ouve o elogio com um meio-sorriso nos lábios. O metalúrgico apresenta aos anfitriões o filho caçula, um menino de um ano e poucos meses: “Ele tem esse nome de costureiro, Sandro, mas é macho!” Dom Hélder, Jarbas Vasconcelos e a mulher de Lula, Marisa, riem.

Aquela viúva que atraíra os olhares do também viúvo Luiz Inácio Lula da Silva se tornaria, tanto tempo depois, a primeira-dama do país. O primeiro marido de Marisa, um motorista de táxi, morreu assassinado num assalto. A primeira mulher de Lula morreu de parto – junto com o primeiro filho do casal.

Depois da visita a Dom Hélder, a estrela emergente do sindicalismo brasileiro fez uma pausa no périplo recifense para conversar com os repórteres. Hoje a cena seria impensável, mas na época era assim que acontecia: em vez de convocar a imprensa para o local da entrevista, Lula é que se dava ao trabalho de ir a uma redação. A gravação foi feita na então sucursal do Recife do Jornal do Brasil, perto da casa de Dom Hélder.

As palavras do “sapo barbudo” ( apelido que ganharia de Leonel Brizola dez anos depois, durante a campanha presidencial de 1989) naquele final de manhã no Recife se transformaram, com o tempo, em relíquias preciosas para os que tentam entender a trajetória política de um presidente que um dia foi um metalúrgico irritado com partidos:

O “sapo barbudo” (apelido que ganharia dez anos depois, durante a campanha presidencial de 1989) revisita, então, memórias distantes: Em que situação você saiu de Pernambuco para morar em São Paulo?

Uma passagem pouco conhecida da biografia do metalúrgico Lula em São Paulo : “Trabalhei quase três anos como tintureiro”

Lula: “Não me lembro se foi em 1951 ou 1952. Mas saí de Pernambuco para não morrer de fome. Fui com toda a família. Meu pai já estava lá. Minha mãe tinha um pedaço de terra em Garanhuns, trabalhava na roça e não conseguia sustentar a família. Então, a única forma que ela encontrou para sobreviver – na época, eu era criança – foi ir embora, para onde estava o marido, para poder tentar cuidar dos filhos. Eu tinha uns seis anos”.

Quando você começou a trabalhar em São Paulo?

“Comecei a trabalhar em 1958, com 13 anos de idade. Trabalhava como tintureiro, numa tinturaria. Trabalhei quase três anos como tintureiro. Depois, entrei numa empresa metalúrgica. Trabalho hoje nas Indústrias Villares”.

Como é que você entrou no sindicato?

“Eu entrei no sindicato em 1969. Um dia, fui lá ver uma assembléia, gostei e fiquei”

Você reconhece que é o primeiro líder político que surgiu fora do âmbito parlamentar nesses últimos tempos?

“Nem me considero uma liderança. Eu me considero, muito mais, um elemento que conseguiu captar os desejos de uma classe. Tentei levar os desejos dessa classe adiante e transformá-los numa bandeira de luta. Acho que a sociedade inteira tem muita responsabilidade – como os estudantes, com aqueles movimentos de 1977- e os intelectuais. Nós, os trabalhadores, somos um dos setores que entraram na briga”.

Você se considera, então, um resultado da abertura comandada pela sociedade civil?

“Exatamente. Porque faço parte dessa sociedade”.

Além da circunstância política concreta da abertura, o fato de você ter conseguido se tornar porta-bandeira de uma classe pode ser atribuído a quê? Haveria uma vocação pessoal ou foram apenas as circunstâncias políticas que favoreceram?

“Já começa a ficar difícil falar da gente… Gostaria que, aí, você colocasse de sua cabeça como é que você vê a coisa. Porque, para mim, fica muito difícil falar…”.

Alguma experiência passada de partidos políticos no Brasil entusiasmou você?

“Não. Lamentavelmente, nenhuma”.

Que experiência chegou perto do que você espera de um partido representativo?

“Nenhum partido me entusiasmou. O Partido Comunista, por exemplo, sucumbiu da mesma forma que nasceu. Quer dizer: nasceu e morreu. Não foi obra dos trabalhadores. Veio de cima para baixo, um negócio imposto à classe trabalhadora. Alguns partidos que se diziam representantes da classe trabalhadora, como o PTB, o PC e o próprio Partido Socialista, nunca foram legitimamente representantes dos trabalhadores, porque não nasceram da classe trabalhadora. Foram impostos à classe”.

Quais são, afinal, os planos de Lula na política?

“Não sei. Não pensei ainda. Deixe contar uma coisa: toda essa vida que tenho levado tem me afastado muito de minha mulher e dos meus filhos. Hoje, praticamente, não disponho de um horário para minha família. Não posso permitir que minha mulher fique sozinha na hora de cuidar da família. A única coisa de que tenho certeza é que, no dia 25 de abril de 1981, eu me desligo do sindicato. O que vai acontecer depois daí só vou saber a partir do dia 25. Não tenho vocação política. Por enquanto, o que pretendo é continuar o trabalho no sindicato”.

Posted by geneton at 12:50 AM

setembro 18, 2009

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

O DIA EM QUE O AUTOR DE “MORTE E VIDA SEVERINA” DESABAFOU CONTRA O EXIBICIONISMO: “NINGUÉM É TÃO INTERESSANTE PARA FALAR DE SI MESMO O TEMPO TODO” (O QUE ELE DIRIA DO FESTIVAL NARCISISTA DE HOJE ?)

Se os jornais publicassem tudo o que se fala numa redação (ou, pelo menos, tudo o que os repórteres vêem mas não escrevem), nossa imprensa certamente não mereceria o julgamento que um dia Paulo Francis fez :
“Nossa imprensa : acadêmica, empolada, previsível, chata. Meu Deus, como é chata…”

Ponto. Parágrafo.

Já se disse que o melhor jornal é aquele que jamais chega ao conhecimento do leitor. O que acontece nos bastidores de uma reportagem pode ser tão interessante quanto o que sai nas páginas dos jornais.
Minha pequena coleção de entrevistas com o super-poeta João Cabral de Melo Neto foi marcada por desencontros, vexames, incidentes e mal-entendidos – sem maior gravidade, mas suficientes para fazer ruborizar qualquer tímido.

Vexame número 1

Cenário : saguão do Aeroporto Internacional dos Guararapes. Ano : 1973. Dou meus primeiros passos como repórter. O chefe de reportagem me despacha para o Aeroporto. Missão : cobrir a chegada do mais ilustre dos poetas pernambucanos. O diplomata João Cabral vivia no exterior, na época.

Lá fomos nós, em busca da celebridade . O único problema é que o fotógrafo não sabia que João Cabral era pernambucano. Assim que o poeta desembarca, o fotógrafo o convoca a posar em frente a um painel turístico que mostrava uma imensa foto do Recife. A pose em frente ao painel provaria que o poeta esteve na cidade…Pouco à vontade ,o poeta concorda em posar. Lá pelas tantas, o fotógrafo quer saber se o poeta por acaso já conhecia a capital. João Cabral responde com algum som inaudível.

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O poeta de Morte e Vida Severina: desencontros com o repórter ( Imagens: TV Globo)

Vexame número 2

João Cabral aceita receber o repórter na casa do irmão, à beira-mar, em Olinda. Horário da entrevista : onze da manhã. O repórter chega vinte minutos atrasado. Formalíssimo, João Cabral nem parece estar de férias. Aparece no portão metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola.

Primeira frase que pronuncia : “Você chegou com uma pontualidade nada britânica…”. O repórter quase estreante procura, em vão, um buraco no chão para se esconder. Não encontra. Entre mortos e feridos, todos se salvam : a entrevista segue adiante.

Vexame número 3

De volta ao Brasil depois de se aposentar da carreira diplomática , João Cabral escolhe o Rio de Janeiro como endereço . O repórter que, anos antes, cometera o pecado de chegar com uma “pontualidade nada britânica”, telefona em busca de uma nova entrevista. Quem sabe, agora consiga fazer uma entrevista sem incidentes.

João Cabral se desculpa : “Vamos marcar outra hora… Minha mulher morreu ontem”. Já não tão estreante, o repórter procura de novo um buraco no chão para se esconder – em vão. Um silêncio que parece durar uma eternidade se instala nos dois lados da linha telefônica. O que dizer numa situação dessas ? Nada. Meus pêsames. Desculpe. Eu sinto muito. Socorro !

Vexame número 4

O homem marca a entrevista : vai receber o repórter em casa – um apartamento na Praia do Flamengo . Por coincidência , o jornal O Globo marca, para a mesmíssima hora, uma sessão de fotos de João Cabral com Ferreira Gullar . Os dois poetas aguardam a chegada do fotógrafo do jornal.

Aperto a campainha . “Pode entrar”. Cabral e Gullar vão para a janela do apartamento . A vista, ao fundo, é bela. Fazem pose. Ficam olhando para as minhas mãos, à espera de que eu saque a máquina fotográfica . Pensam que eu sou o fotógrafo que estavam esperando. Mas não tenho máquina nenhuma . Carrego apenas meu gravador .

“Não quer fazer a foto agora ?“ Dois dos maiores poetas brasileiros estavam ali,diante de mim, à espera da impossível foto. Não, não quero, não sei , não posso fazer. Deve ter havido algum engano. Nunca fui fotógrafo em minha vida. Um buraco no chão, pelo amor de Deus !

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Desfeito o equívoco, os dois desistem de esperar pelo clique de minha máquina inexistente. Cinco minutos depois, o fotógrafo (o verdadeiro) desembarca no apartamento. Os dois voltam a posar na janela. Livre da tarefa, João Cabral finalmente dá a entrevista pedida pelo locutor-que-vos-fala.

O poeta – um dos maiores que o Brasil já teve – confessava que o gosto do fracasso não lhe era estranho. Devo ter comentado com meu demônio-da-guarda : fracasso ? Se depender do meu histórico de fracassos nos bastidores das entrevistas com João Cabral, posso dizer que sou diplomado no assunto.

Vasculho meus “arquivos implacáveis”, dez anos depois da morte do poeta, para fazer um pequeno decálogo de declarações feitas ao repórter pelo autor de “Morte e Vida Severina”:
1. “Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras “pedra” ou “faca” ou “maçã”, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que “tristeza”, “melancolia” ou “saudade””

2.”Não gosto de carta. Tanta gente escreve até diário… Escrever o meu diário é, para mim, uma coisa inconcebível. Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo. Em carta, você acaba falando de si próprio”.

(o que o poeta diria hoje da imensa avalanche narcisística impulsionada pela maravilha da Internet ?)

3.”A popularidade é uma coisa terrível. Acaba cercando o escritor e o artista de um mundo artificial – e um interesse inteiramente artificial. O sujeito acaba fazendo aquilo que sente que o público gosta, em vez de fazer aquilo que acha que deve ser feito”.

4.”O êxito teatral de “Morte e Vida Severina” é que tornou o meu nome conhecido. Mas não creio que minha poesia seja popular”.

5.”A atividade intelectual é uma coisa que seduz. Vivo para ela. Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa”.

6. “A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso”.

7. ” Manuel Bandeira e Carlos Drummond são sujeitos de tal integridade que não foram corrompidos pela popularidade. Nem todo mundo tem integridade para resistir. Em geral, o sujeito acha bom e barateia a produção para ser agradável. Baixa o nível para ser agradável…”

8. “Morte e Vida Severina” foi um poema que escrevi: não trabalhei. Eu escrevi a pedido de Maria Clara Machado. Não trabalhei como trabalho em outras coisas minhas. Eu sinto que é um poema que não me satisfaz. Mas foi um poema bem levado para o teatro e a televisão”

“Esta cova em que estás, com palmos medida,
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio

Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo

É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo, te sentirás largo
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas à terra dada nao se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio” ( trecho de Morte e Vida Severina)


9.”Pelo meu temperamento, nunca gostaria de ser um escritor popularíssimo. O fato de não ser popular me dá tranqüilidade. Não vivo de escrita. Se vivesse de escrever, gostaria de ser popular, porque os direitos autorais seriam grandes. Mas, como não vivo de escrever, a falta de popularidade não me frustra. Ao contrário”.

10. “Não tenho nenhum ouvido musical. Você pode tocar uma música conhecidíssima. Eu não distinguirei uma da outra! O que lembro é que, desde menino, eu era o filho desentoado. Já no coro do Colégio Marista, mandavam que eu fingisse que estava cantando, mas não cantasse, porque saía tudo desentoado”.

Posted by geneton at 01:26 AM

setembro 15, 2009

BERT KEIZER

O MÉDICO-FILÓSOFO ENSINA COMO ENCARAR A MORTE SEM PÂNICO : CADA UM DE NÓS JÁ ESTEVE MORTO POR MILHÕES DE ANOS, ANTES DE NASCER. NÃO FOI NADA DIFÍCIL. MORRER É COMO DORMIR SEM SONHAR

CENA 1.EXTERIOR.DIA. AMSTERDÃ, HOLANDA

O Dr.Morte anda por uma rua chamada Vondelstraat, no centro de Amsterdã, numa bicicleta de aros cor de prata. Veste um casaco de couro preto. Os cabelos, embranquecidos pelos cinqüenta e nove anos, estão ralos. Os óculos de aros finos ampliam um olhar inquisidor. O céu encoberto por nuvens escuras dá à paisagem um toque apropriadamente melancólico.

Depois de prender a bicicleta a um poste com uma corrente, numa atitude que revela uma precaução exagerada, o Dr. Morte caminha para o encontro marcado com o entrevistador.

CENA 2. FLASH BACK: O AVISO DA CIGANA

Pausa para uma digressão: a visão da bicicleta de aros cor de prata evoca a lembrança da única consulta que fiz a uma cigana, a serviço de uma edição especial do Almanaque Fantástico, em 2005.
A Cigana Esmeralda disse que eu tomasse todo cuidado antes de viajar em carros prateados, porque as cartas do baralho que ele manuseava diante de meus olhos descrentes revelavam que havia risco de um grave acidente. Problemas no freio. Mas ela nada disse sobre bicicletas de aro prateado circulando sob o céu de chumbo de Amsterdã. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres, sopra-me com uma voz claudicante: “Vá em frente! Sinal verde para a entrevista”

CENA 3. PEQUENA INTERVENÇÃO DO NARRADOR

É bom prestar toda atenção ao que este homem diz. Porque o que ele diz tem tudo a ver com o destino de cem por cento dos seres humanos: a morte. Não é recomendável fazer de conta que o assunto não é fascinante. Porque é. Não adianta chamar o assunto de “mórbido”, “deprimente”, “lastimoso”, “incômodo”, “desagradável”.

É bobagem recorrer a este velho arsenal de adjetivos, porque eles, no fim das contas, servem apenas como desculpa para que não se encare um fato irrevogável: um dia, o planeta seguirá existindo sem nossa presença.

“Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a idéia morte faz que com tudo passe a valer a pena. E torna tudo impossível, também. É, portanto, um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas!”, ele diria, durante nossa entrevista. “Não, eu não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”.

CENA 4. O PERSONAGEM PRINCIPAL ENTRA EM CENA

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O médico que encara a morte: autor de um belo livro (Foto:GMN)

Hora das apresentações. O homem se chama Bert Keizer. É um caso raro de médico que é filósofo. Ou filósofo que é médico. Formou-se em Filosofia na Inglaterra. Em seguida, decidiu estudar medicina, na Holanda, no início dos anos setenta. Formado, passou uma temporada no Quênia. Desde o início dos anos oitenta trabalha com pacientes terminais.

Pai de um casal de filhos, Bert Keizer pratica eutanásia, quando um paciente terminal lhe pede. Ou seja: ajuda o paciente a morrer. O debate jamais terminará: um médico – o profissional encarregado de zelar a todo custo pela vida – deve ou não apressar a morte de um paciente? Deve, sim, se médico e paciente estiverem na Holanda.

Keizer faz um cálculo aproximado: já deve ter tratado de cerca de 1.500 pacientes terminais. Destes, 25 optaram pela eutanásia. Pediram – e receberam – ajuda do médico para que morressem logo.

A bem da verdade, é injusto chamar Keizer de “Doutor Morte”. O médico-filósofo pratica, sim, eutanásia, a pedido de pacientes, mas é incapaz de pronunciar uma palavra de simpatia à morte. Prefere, sempre, oferecer consolação e alívio a quem vê o apagão final se aproximar.

CENA 5: DE COMO O MÉDICO SE TORNOU UM SUCESSO EDITORIAL

Durante anos, Keizer fez anotações sobre a morte. Nunca publicara nada. Um dia, resolveu reunir as anotações num livro, publicado por uma pequena editora holandesa. Sucesso imediato. O texto do médico-filósofo é envolvente, inspirado. Não resvala jamais na pieguice. Uma grande editora inglesa se interessou pela aventura literária do médico, uma espécie de Drauzio Varella holandês. O livro “Dancing With Mister D” (“Dançando com A Morte”) fez sucesso na Inglaterra. A Editora Globo lançou a edição brasileira.

Neste momento, o narrador passa a palavra para o médico-filósofo. O que ele diz nos ajuda a falar sobre o indizível, a entender o incompreensível.

CENA 6. O NARRADOR SAI DE QUADRO. CLOSE DO MÉDICO – QUE FALA OLHANDO PARA A CÂMERA

“ Nem sempre é possível salvar vidas. Uma das coisas que devemos lembrar é que a porcentagem de pessoas que morrem é de cem por cento! Todo mundo vai morrer um dia. A medicina tenta nos afastar da morte. Mas não funciona. Porque todos nós temos de morrer.

Uma das razões por que entrei na Medicina foi a vontade de procurar formas de diminuir o sofrimento alheio. Ao insistir, por exemplo, em lançar mão de recursos tradicionais, a Medicina pode até aumentar o sofrimento de quem se aproxima da morte. Mas o médico pode diminuir o sofrimento se tiver a coragem de encarar o fato de que aquela pessoa vai morrer. Assim, ele poderá transformar este processo em algo suportável”.

“O que ocorre na eutanásia é que você dá ao paciente um comprimido para dormir. Barbitúricos . Você não dá em forma de comprimido. Dá em forma de pó, dissolvido em glicerina e álcool. É uma poção, um drinque. Metade de uma xícara de café. Você dá. O paciente bebe. Em um, dois minutos, minuto, adormece. Não morre: adormece. Você, médico, faz uma promessa ao paciente: se ele, depois de adormecer, não tiver morrido depois de cerca de quarenta e cinco minutos, você dará uma pequena injeção letal, uma substância que se usa em cirurgias. Mas o paciente sabe que, quando tomar o comprimido dissolvido, morrerá. Se o paciente não puder engolir, você dará uma injeção, para administrar os barbitúricos. Também neste caso, os pacientes,primeiro, adormecem. Depois, morrem durante o sono. Parece terrível, mas não é uma maneira ruim de morrer. É cair no sono na melhor das companhias”

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Keiser: só há duas maneiras de pensar sobre a morte (Foto:GMN)

CENA NUM QUARTO DE HOSPITAL: O MÉDICO ESPERA PELO SUSPIRO FINAL DA MULHER QUE TINHA PEDIDO PARA MORRER. MAS ELA DIZ: “AINDA ESTOU PENSANDO….

“Aconteceu uma vez com uma senhora que tinha tomado esta poção de barbitúricos. Eu e a filha desta mulher estávamos em pé, ao lado da cama, à espera do momento em que ela adormecesse e, em seguida, morresse. A mulher sentiu esse silêncio, notou nossa expectativa de que ela perdesse a consciência. Neste momento, ela nos disse: “Ainda estou pensando….”, o que foi, realmente, engraçado. Mas sei que ela tinha a sensação de estar deslizando rumo a um abismo. Mas o que ela disse trouxe alívio para aquele momento”.

EUTANÁSIA SÓ EXISTE QUANDO O PACIENTE, CONSCIENTE, PEDE PARA MORRER. QUALQUER OUTRO CASO NÃO É EUTANÁSIA: É MEDICINA PALIATIVA

“Aqui, no meu país, a eutanásia é definida como “suicídio assistido por um médico”. Ou seja: o médico dá a você uma overdose, em caso de sofrimento insuportável sem qualquer perspectiva de recuperação. O médico pode, ao invés de dar a dose a você, administrá-la ele mesmo, se você pedir. Isso é que é eutanásia.

Mas as pessoas têm idéias confusas sobre a eutanásia, porque pensam que é o que ocorre quando, ao tratar de um paciente terminal, que entrou mais ou menos em coma, o médico dá a ele uma dose extra de morfina, para que ele morra um pouco mais rápido. Isso não é eutanásia! Isso é tratar de um paciente terminal. Para nós, o pedido feito pelo próprio paciente para que se pratique a eutanásia é fundamental.

Para que haja eutanásia, é preciso que alguém, em plena consciência, peça para morrer. Somente nestes casos, a eutanásia é possível. Em todos os outros casos, fala-se de medicina paliativa. Ou seja : o bom tratamento de um
paciente terminal”.

UM INSTANTE DE DÚVIDA: DEVERIA OU NÃO TER AJUDADO UM HOMEM “COM RAIVA DA VIDA” A MORRER ?

“Eu me lembro de um caso de eutanásia que me deixou intrigado…Um homem me fez ajudá-lo a se suicidar. Era um doente terminal de câncer de pulmão. Ia morrer. Mas ele fez aquilo com raiva. Estava com raiva dos médicos que o trataram, porque ele pensou que seria curado. Mas os médicos não o curaral. O homem ficou, então, furioso. Nesta raiva, ele contou com minha ajuda para se “vingar” da vida. Hoje, acho que é errado, não é um ato equilibrado de um homem sábio, mas um ato raivoso de um homem ferido. Não me sinto bem com relação a este caso”.

O MEDO ÍNTIMO DO MÉDICO QUE MATA: MORRER NAS MÃOS DE UM MÉDICO INÁBIL

“Tenho medo da extinção, sim. Isso me preocupa. Mas, biologicamente, sei que não existe escolha. Tenho também medo de morrer nas mãos de um médico que não saiba como cuidar de mim. Ou seja: um médico que continue tirando raios-x, em vez de me consolar e me dar analgésicos.

Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a morte faz com que tudo valha a pena. E torna tudo impossível. É um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas”.

SÓ HÁ DUAS MANEIRAS DE PENSAR NA MORTE. UMA É BOBA. A OUTRA É ESTÚPIDA

“Há duas maneiras de pensar na morte. Você pode pensar na morte o tempo todo, o que é uma bobagem. Também pode não pensar nunca, o que é igualmente estúpido. É difícil encontrar um meio termo. Há quem diga que perco tempo demais me preocupando com a morte. Mas, quando a gente envelhece, estatisticamente passa a ficar mais próximo da morte do que quando tínhamos quinze anos, por exemplo. Não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”

NÃO SE PODE OLHAR DIRETAMENTE PARA O SOL. NEM PARA A MORTE: “A GENTE NÃO PODE ENCARAR O NADA”

“Penso em La Rochefoucauld – que disse: “Não se pode olhar diretamente para o sol – ou para a morte”. É verdade: a gente não pode encarar o Nada, assim como não pode treinar os olhos para encarar o brilho do sol. Não se pode olhar para o Nada. É um abismo. Nem os que estão se aproximando da morte olham para ela! Pelo contrário. Preferem olhar para os que estão próximos e dizer: “Obrigado”, “aproveite”, “você é inesquecível”.

A morte é, portanto, uma daquelas condições que não podemos imaginar. Podemos, por exemplo, olhar para a noite passada. Ali, estávamos “mortos”. Porque estar dormindo sem sonhar é como estar morto. É o que todo mundo faz toda noite. Não é nada de grandioso. Mas o medo de uma situação irrecuperável – o “não-ser” – é uma das piores coisas sobre as quais temos de pensar. Porque não podemos imaginar o universo sem nós. A gente pensa: se morremos, todo o universo morre. É inimaginável que as coisas continuem depois”

A GRANDE SAÍDA É IMAGINAR: “DURANTE MILHÕES DE ANOS NÃO ÉRAMOS NASCIDOS. ISSO NUNCA FOI UM PROBLEMA PARA NÓS!”

“A vida não é perfeita. O que acho que serve de consolo é o fato de que podemos olhar para a morte com alguma distância, com clareza. Não se pode viver sem ilusões. Mas deve-se ter o menor número possível de ilusões. A tarefa de se livrar das ilusões é a Filosofia. Buscar a clareza na vida é uma atitude que nos ajuda a combater o pessimismo. A filosofia é uma maneira de criar clareza sobre nossas confusões.
É impossível contemplar o nada, o não-ser. Mas devemos pensar nos milhões de anos em que não éramos nascidos. O fato de não termos existido antes não é um problema para nenhum de nós. Qualquer criança pode entender!

É algo que não incomoda a ninguém. Mas aí nós nascemos, vivemos por sessenta anos – por exemplo – e morremos. Por milhões de anos adiante, estaremos mortos. O fato de não termos existindo antes não é um problema, mas o fato de que estaremos mortos por milhões de anos adiante nos incomoda! É engraçado este incômodo, porque não faz sentido. Creio que este incômodo acontece porque, neste caso, estamos falando de nossa própria morte, algo que não podemos imaginar. Não podemos nos imaginar não estando aqui!

Mas, antes de nascer, você esteve morto por milhões de anos. Isso não foi nada difícil. Ou foi ? Claro que não”.

Posted by geneton at 01:38 AM

setembro 14, 2009

ABDEL BARI ATWAN - PARTE 3

O HOMEM QUE CAMINHOU AO LADO DE BIN LADEN PELAS MONTANHAS GELADAS DO AFEGANISTÃO: A AL-QAEDA DESCOBRE O PODER DA INTERNET NA GUERRA DE PROPAGANDA!

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Bari Atwan & Bin Laden: caminhada numa montanha no Afeganistão (Foto: cortesia Abdel Bari Atwan)

Jornalista é bicho esquisito. O entrevistado dá os anéis, mas ele quer os dedos. O entrevistado dá um boi, mas ele quer a boiada.

Assim caminham as redações.

Abdel Bari Atwan, o jornalista que foi convocado pela Al Qaeda para um diálogo olho-no-olho com Osama Bin Laden, aceitou nos dar uma longa entrevista, em Londres – depois de alguma relutância.

Terminada a gravação, pedi encarecidamente ao entrevistado que me cedesse cópias das fotos que ele tirou do megaterrorista Bin Laden.

Atwan tinha me dado um boi : a entrevista. Eu estava pedindo a boiada.

Faz parte.

A insistência, desta vez, foi premiada : o homem nos “brindou” com cópias de fotos que ele próprio tirou de Bin Laden, nas montanhas geladas do Afeganistão.

Um militante da Al Qaeda fez, a Atwan, o favor de clicá-lo ao lado do chefe Bin Laden. Assim, Atwan pôde descer das montanhas para a planície com uma prova indiscutível de que o encontro existiu ( Bin Laden não permitiu gravações).

Bari Atwan chama a atenção para um detalhe que nem sempre é levado em conta: a Al-Qaeda, hoje, já não precisa fazer, pessoalmente, a catequese de militantes. A “ideologia” da organização se espalha via Internet.

Eis a terceira e última parte de nossa entrevista com Abdel Bari Atwan sobre os encontros que ele teve o chefão da Al-Qaeda, Osama Bin Laden, antes dos atentados do 11 de Setembro:

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Atwan e Bin Laden: diálogos e caminhadas, sem gravador por perto (Foto: cortesia Abdel Bari Atwan)

“Amo a experiência americana. Mas, para nós, árabes, muçulmanos, povos do Terceiro Mundo,o problema é a política externa americana – que vem nos destruindo!”

Que tipo de sentimento o senhor tem em relação aos Estados Unidos?

“Amo os Estados Unidos. Amo a experiência americana. Imigrantes de todas as partes do mundo foram ao país. Criaram uma superpotência. É um país multicultural, multiétnico, multirreligioso. Nós encontramos nos Estados Unidos todas as cores, todas as culturas, todas as religiões que, ao trabalharem juntas, conseguiram criar uma grande superpotência. A igualdade, a democracia, os direitos humanos, a constituição, tudo forma uma bela experiência. Gostaria que tivéssemos esta experiência em todo o mundo.

Mas, para nós, árabes, muçulmanos, povos do Terceiro Mundo,o problema é a política externa americana – que vem nos destruindo!

Os Estados Unidos apóiam ditaduras no Oriente Médio e lançam guerras. Hoje, enfrentamos três guerras no mundo islâmico: estão nos combatendo no Afeganistão, estão nos combatendo no Iraque, estão nos combatendo na Palestina, porque apóiam ocupações israelenses. É este o nosso problema com os Estados Unidos.

Se os Estados Unidos tivessem uma política externa justa, que nos tratasse, a nós, árabes e muçulmanos, como trata o povo americano, com igualdade, sob as regras da lei, não haveria problema. Se tivéssemos um sistema judiciário independente, como eles têm, seria excelente”.

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Bin Laden: livros e armas (Foto: Abdel Bari Atwan)

Bin Laden convidou o senhor para entrevistá-lo. Por que ele não permitiu que o senhor gravasse a entrevista?

“Fui convidado por Osama Bin Laden para fazer a entrevista. Bin Laden chegou a ter um embaixador em Londres – que circulava em público. Não era, portanto, considerado um terrorista. Depois, o embaixador foi preso, porque os Estados Unidos queriam que ele fosse deportado, sob a acusação de que enviou telefones satélite para os acusados de atacar as embaixadas em Nairóbi e Dar es Salaam.

“Um dos colegas de Bin Laden disse-me que Bin Laden não gravou porque não queria cometer erros na construção das frases”
Quando cheguei diante de Bin Laden, fui surpreendido porque ele não queria que a entrevista fosse gravada! Atuei, então, como um estudante: fiquei tomando notas enquanto ele me dava as respostas. Detesto tomar notas assim! Sou editor de um jornal.

Eu nem poderia insistir para que a entrevista fosse gravada ou perguntar por que ele não queria que eu usasse o gravador. Mas, depois, Abu Musab, um dos colegas de Bin Laden, disse-me que Bin Laden não gravou porque não queria cometer erros na construção das frases. Não queria também cometer eventuais equívocos na citação de passagens do Alcorão. Porque erros poderiam ser usados contra ele, como prova de que ele não seria qualificado, depois, como Mullah ( n: uma espécie de clérigo).

Pareceu-me que Osama Bin Laden estava planejando tudo desde o início: um dia, ele seria o Califa, o líder de todos os islâmicos do mundo. Não queria, então, que alguém tivesse em mãos qualquer prova de que tivesse cometido erros ou de que não conhecia o Alcorão ou a gramática árabe!”

“Perguntei :”Onde é que fica o toilete?”. Responderam: “Toilete? Você pensa que aqui é o Sheraton ou o Hotel Hilton? Trate de encontrar uma árvore. Vá se lavar lá”.

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Bin Laden: os motivos do "ódio" (Foto: Abdel Bari Atwan)

O senhor rezou com Bin Laden?

“Rezei. Um grupo me esperava do lado de fora, às quatro horas da manhã, debaixo de uma temperatura gelada, algo como vinte e cinco graus abaixo de zero! Deram-me um pouco de água. Porque a reza da manhã é a única em que você precisa se lavar. Trouxeram-me, então, água numa espécie de bacia. Disseram que era para a higiene matinal. O que notei é que eles iam para fora da caverna, para se levar. Precisavam tirar as calças. Mas estava gelado. Perguntei :”Onde é que fica o toilete?”. Responderam: “Toilete? Você pensa que aqui é o Sheraton ou o Hotel Hilton? Trate de encontrar uma árvore. Vá se lavar lá”.

Como sou tímido, tive de ir para longe da caverna. Não sou como eles. E estava gelado! Tive a impressão de que minhas pernas iam ser separadas do meu corpo.

Terminei rezando depois de Osama Bin Laden. Graças a Deus, ele me pediu para deixar o grupo que estava rezando, porque minha participação poderia ter sido catastrófica.Eu poderia cometer equívocos ao citar passagens do Corão”.

A morte de Bin Laden hoje significaria o fim da Al-Qaeda?

“Se você me fizesse esta pergunta antes da invasão do Iraque ou antes do 11 de setembro, eu responderia que a morte de Bin Laden significaria o fim da Al- Qaeda. Porque no Oriente Médio, no mundo islâmico, as organizações giram em torno de um homem. Quando o líder é morto, a organização se desintegra. Mas a Al Qaeda é diferente. A organização se transformou.

“O que existia, antes, era uma Al-Qaeda. Hoje, há várias mini-Al-Qaedas. É como um franchising, uma rede de lanchonetes”

Osama Bin Laden desapareceu nos últimos anos. Mas a Al Qaeda vem se fortalecendo cada vez mais.

É dez vezes mais do que era antes, em consequência da guerra da política externa do presidente George Bush. A Al-Qaeda deixou de ser o que era antes: uma organização em forma de pirâmide, em que existia uma cúpula e uma base : hoje, a Al-Qaeda é uma organização que se espalhou.

O que existia, antes, era uma Al Qaeda. Hoje, há várias mini-Al Qaedas. É como um franchising, uma rede de lanchonetes como a Kentucky Fried Chicken. Hoje, existe Al Qaeda no Afeganistão, Al Qaeda no Paquistão, Al Qaeda na Arábia Saudita, Al Qaeda no Iraque, Al Qaeda na Somália. Amanhã, quem sabe, haverá Al Qaeda na Europa, Al Qaeda em Darfur.

As mini-Al Qaedas são totalmente independentes do quartel-general da organização. Igualmente, a Al Qaeda já não depende da TV Al Jazeera ou do jornal Al Quds para divulgar seus comunicados.

Hoje, a organização dispõe de uma mídia alternativa: os sites na Internet! Assim, a Al Qaeda consegue chegar na frente do governo e dos serviços de informação americanos. A ideologia da Al Qaeda pode ser vista na Internet. Qualquer pessoa pode acessar esta ideologia: hoje, ninguém precisa ir ao pregador ou ao líder ou esperar por instruções ou por lições sobre a ideologia da Al Qaeda. É este é perigo!”.

(A íntegra do depoimento de Abdel Bari Atwan aparece no “Dossiê História”/Editora Globo)


Posted by geneton at 01:38 AM

setembro 13, 2009

ABDEL BARI ATWAN - PARTE 2

UM TELEFONEMA ENIGMÁTICO DE UM MILITANTE DA AL-QAEDA. TEMPOS DEPOIS, VEIO O 11 DE SETEMBRO

Eis a segunda das três partes do depoimento de Abdel Bari Atwan, dono de um jornal de língua árabe sediado em Londres – o homem que encarou Bin Laden:

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Atwan: contatos imediatos com Bin Laden (Foto: GMN)

É verdade que o senhor recebeu informação prévia sobre aquele que viria a ser o pior ataque terrorista da história?

“Eu estava esperando um ataque da Al-Qaeda contra os Estados Unidos. Mas, para ser sincero, não esperava que fosse na escala do que aconteceu em Nova York, no 11 de setembro.

O braço direito militar de Bin Laden tinha me dito que a Al Qaeda iria ensinar aos Estados Unidos uma lição muito, muito grande , algo de que os americanos jamais se esqueceriam. Recebi, portanto,a informação de que “alguma coisa” iria acontecer, porque Osama Bin Laden estava se preparando para algo “grande”. A ligação telefônica que recebi dizia : “Pode esperar que alguma coisa vai acontecer”.

Imaginei que a Al-Qaeda iria atacar uma embaixada americana. Mas nunca me ocorreu que eles fossem tão longe, a ponto de planejar um ataque ao World Trade Center, o maior centro financeiro do mundo. Mas eles planejaram o ato muito bem, o que, para mim, foi uma surpresa” .

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Atwan : sinais da Al-Qaeda (Foto : GMN)

O senhor se arrepende de não ter avisado a ninguém sobre a possibilidade de um grande ataque?

“Recebemos, durante todo o tempo, informações sobre ataques que, no fim, terminam não acontecendo. Pensei, então, que este tipo de telefonema que recebi trazia um tipo de informação igual a tantas outras.

Nós, árabes, habitantes do mundo islâmico, estamos sempre ameaçando atacar ou praticar vingança. As ameaças às vezes se realizam mas, em outras, não. Eu não estava realmente certo de que eles estavam preparando um ataque da escala do que aconteceu. Não levei o aviso a sério. Mas, se eu pudesse evitar um ataque maciço como aquele, eu evitaria”

“Quando eu mencionava os Estados Unidos, podia ver o sangue subir à cabeça de Bin Laden”

Que tipo de comentário Bin Laden fez ao senhor sobre a possibilidade de fazer um grande ataque contra os Estados Unidos?

“Bin Laden estava cheio de ódio contra os Estados Unidos. Pude ver. O que ele queria era se vingar, fazer um grande ataque. Era o tempo todo assim. Quando eu mencionava os Estados Unidos, podia ver o sangue lhe subir à cabeça."

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Bin Laden me disse que queria se vingar. Queria atacar. Queria promover um ataque muito, muito grande. Queria atingir os Estados Unidos no bolso. Ou seja: abalar o nervo financeiro do país de uma maneira ou outra. Mas não havia como dizer. O que ele me disse é que um grande ataque exige muita preparação. Não é fácil. Um ataque assim demanda tempo e preparo. Ao me dizer estas coisas, talvez ele estivesse se referindo ao que viria a acontecer no 11 de setembro”.

Qual foi o momento mais assustador do encontro que o senhor teve com Bin Laden?

“Houve três coisas assustadoras.

Primeira: quando estávamos indo para o encontro, em Tora Bora, passamos por estradas primitivas e estreitas. Eram estradas feitas para camelos e burros, não para carros. Quanto mais alta a estrada, mais escorregadia. O motorista devia ter uns dezoito anos. Dirigia como se estivesse numa autoestrada. Fiquei morrendo de medo.

“O motorista respondeu: ” Um grupo estava passando por aqui. Uma grande pedra caiu. Esmagou o carro. Todos morreram. Estão com Deus agora, no paraíso. São mártires”

Segunda: quando a gente estava chegando ao topo da montanha, vi pedras que rolavam sobre a estrada. O motorista parava o carro na estrada, para remover as pedras do meio do caminho. Tudo indicava que outras pedras iriam cair, adiante. Perguntei: “Isso é normal?”. Porque era assustador ver pedras caindo na estrada. O motorista respondeu: “É normal! Dez dias atrás, um grupo estava passando por aqui. Uma grande pedra caiu. Esmagou o carro. Todos morreram. Estão com Deus agora, no paraíso. São mártires. Então, se acontecer algo assim, será bom, porque iremos para o paraíso!”.

Eu disse: “Talvez seja cedo para eu ir para o paraíso. Porque quero fazer a entrevista….”.

Terceira: cinco minutos depois de chegar à caverna, ouvi barulho de tiro, foguetes, tudo.Todo mundo que estava dentro da caverna correu para fora, com suas armas. Fiquei onde estava, na caverna. Quase não me mexi. O som de tiros durou uns quinze,vinte minutos. Eram foguetes, eram bateria anti-aérea.

Quando voltaram, eles disseram: “Isso foi um exercício militar. Os americanos poderiam ter seguido você. Fazemos estes exercícios rotineiramente”.

Quando o exercício ia começar pela segunda vez, segurei um dos soldados e disse: “Por favor, fique comigo! Estou assustado!”. Os outros foram para fora da caverna, mas este ficou comigo. Temi que os americanos poderiam nos atingir. Se atingissem, tudo estaria acabado para nós ali.

“Estava dormindo no mesmo quarto que Osama Bin Laden. Botei a mão embaixo da cama. Puxei. Era um revólver”

“Depois, quando eu estava dormindo no mesmo quarto que Osama Bin Laden, em camas que na verdade eram feitas de galhos de árvores, logo senti que havia alguma coisa incomodando minhas costas. Não eram camas apropriadas. Não estávamos no Hotel Sheraton, afinal de contas. Como a cama era ruim, eu não conseguia dormir direito. Tentei, então, ver o que estava me incomodando. Botei a mão embaixo da cama. Puxei. Era um revólver.

Puxei as outras coisas: era uma caixa de granadas de mão! Descobri que estava dormindo sobre um arsenal!

Bin Laden estava ao lado – dormindo. Posso dizer que ele não roncava. Se alguém quisesse matá-lo, aquela era a melhor oportunidade. Porque eu tinha os revólveres, as granadas, tudo. Mas eu pensaria em algo assim….”

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Atwan : escolhido pela Al-Qaeda para a missão (Foto:GMN)

Qual foi a impressão pessoal mais marcante que Bin Laden deixou no senhor?

“Fala pouco. Não é feito nós, árabes do Oriente Médio ou talvez latino-americanos, que são barulhentos e usam as mãos para falar…Não.

“É calmo. Ri raramente. Fala com suavidade. Jamais interrompe você”

É calmo. Ri raramente. Fala com suavidade. Jamais interrompe você. Espera que você termine de falar. Quando fala, usa poucas palavras. Não é feito nós, que falamos sem parar. Ao mesmo tempo, ele tem senso de humor. Disse-me: “Precisamos da América. Queremos cooperar com eles. Precisamos vender o petróleo que temos. Não podemos beber petróleo. Não dá para beber…”.

A partir do que ouviu de Bin Laden, como é que o senhor explica o ódio extremo que ele desenvolveu contra a civilização ocidental?

“Os Estados Unidos são odiados por Osama Bin Laden – que vive cheio de ódio contra a administração americana, não contra o povo. Bin Laden é contra as políticas americanas, porque sente que, quando estava combatendo as tropas soviéticas no Afeganistão , foi usado pelos americanos e,depois, descartado, como se fosse um lenço de papel. Milhares de árabes mujahedins foram mortos na luta para manter as tropas soviéticas fora do Afeganistão. Osama Bin Laden ficou amargurado. Depois que eles derrotaram as tropas soviéticas, os Estados Unidos os descartaram. Como se não bastasse, os combatentes passaram a ser considerados de terroristas. Ou seja: cumpriram um papel, foram abandonados e, no fim das contas, ainda foram acusados de ser terroristas.

Bin Laden lutou no Afeganistão para libertar o país de tropas estrangeiras. Mas, quando voltou para a Arábia Saudita, viu que havia meio milhão de soldados americanos lá, justamente no país em que ele nasceu. Perguntou: “Qual é a diferença? O que ocorria no Afeganistão era uma ocupação soviética. Aqui, é ocupação americana”.

Feitas as contas, ele sentia que tinha sido deixado de lado e traído pelos americanos. Para ele, os americanos estavam fazendo, na Arábia Saudita, a mesma coisa que os soviéticos tinham feito no Afeganistão”.

A SEGUIR: ÚLTIMA PARTE DO DEPOIMENTO. AS FOTOS DE BIN LADEN. UMA RADIOGRAFIA DA AL QAEDA, A ORGANIZAÇÃO TERRORISTA QUE ELEGEU OS ESTADOS UNIDOS COMO ALVO NÚMERO UM.

Posted by geneton at 01:55 AM

setembro 12, 2009

ABDEL BARI ATWAN - PARTE 1

AS DESCOBERTAS DO HOMEM QUE ESTEVE FRENTE A FRENTE COM BIN LADEN : O SUPERTERRORISTA TEM MEDO DE GRAVADOR! (PARTE 1)

Perguntei ao Joel Silveira octogenário qual era a grande entrevista que ele gostaria de ter feito mas não fez.

Resposta na ponta da língua : Adolf Hitler.

O maior repórter brasileiro me disse que aproveitaria a entrevista para fazer uma ponderação: “Eu diria a ele : “Hitler, você deveria ter se dedicado à pintura! Não deveria ter abandonado seus quadros. O mundo ganharia um pintor medíocre. Em compensação, se livraria de um psicopata sanguinário”. É claro que, quando eu desse este conselho a Hitler, a entrevista seria imediatamente interrompida. Eu seria levado para fora da sala e executado dez minutos depois”.

Joel ria ao me descrever a cena imaginária.

A escolha de Hitler para a grande entrevista é perfeitamente compreensível.

Todo jornalista que se preza daria a mão direita para ter a chance de interrogar um vilão da magnitude de Hitler.

E hoje? Quem é o vilão que mereceria qualquer sacrifício em troca de uma entrevista ? Eu ofereceria meu time de botão preferido e uma foto autografada de Charlotte Rampling em troca de cinco minutos diante do megaterrorista Osama Bin Laden.

O motivo: o mal é, sempre foi e será jornalisticamente fascinante.

Bin Laden dificilmente sairá de seus esconderijos para brindar um repórter com uma entrevista – menos ainda um brasileiro.

Mas….tive a chance de colher, em Londres, um longo depoimento do homem que interrogou Bin Laden “ao vivo e a cores”, frente a frente, numa caverna no Afeganistão.

Eis o que escrevi depois de entrevistar Abdel Bari Atwan, um dos personagens mais desconfiados que tive a chance de encontrar:

Primeira (e surpreendente ) descoberta: Bin Laden não permite que suas palavras sejam gravadas. O cúmulo do perfeccionismo : não quer que um eventual vacilo na fala seja eternizado numa gravação

Apoiado por um cajado – que lhe confere um ar de pastor de ovelhas – Bin Laden caminha por uma trilha coberta de neve, nas alturas de uma montanha de Tora Bora, no Afeganistão. Com voz suave, descreve qual é a tática que pretende usar para infligir derrotas, vexames, danos e humilhações à superpotência que seus olhos fundamentalistas enxergam como a encarnação do mal na terra: os Estados Unidos da América.

Ao lado de Bin Laden, Abdel Bari Atwan - que detectou a “suavidade” no tom de voz do líder da organização terrorista Al Quaeda- , anota freneticamente tudo o que ouve. Tentou gravar a peroração, mas esbarrou na resistência de Bin Laden a gravadores.

( Atwan procurou saber por que diabos Osama Bin Laden preferia que suas palavras fossem anotadas, ao invés de gravadas. Um dos militantes da Al-Qaeda deu a ele uma informação que serve de pista sobre o que passa pela cabeça deste pastor de ovelhas antiamericanas : Bin Laden não queria gravar porque poderia, quem sabe, cometer um ou outro tropeço na construção de uma frase ou na citação de uma passagem do Alcorão. Diante do que viu e ouviu, Atwan elaborou uma explicação para este demonstração extremada de perfeccionismo : como espera um dia ser entronizado como o califa que comandará os muçulmanos de todo o planeta, Bin Laden não quer deixar, atrás de si, registros de imperfeições, por menores que sejam).

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Abdel Bari Atwan : frente a frente com Bin Laden ( Foto: GMN )

Terminada a peroração de Bin Laden, Atwan descobriu que tinha colhido na fonte, sem intermediários, as duas pontas de um novelo.
Primeira ponta: os motivos do ódio que o homem do cajado devotava aos Estados Unidos ( São dois. Bin Laden reclamou de que os Estados Unidos usaram – e depois abandonaram – guerrilheiros islâmicos “fervorosos” que, nos anos oitenta, lutavam contra as tropas soviéticas que tinham invadido o Afeganistão, um país islâmico. A derrota soviética atendia aos interesses americanos, porque a União Soviética era a grande inimiga dos Estados Unidos no cenário internacional. Segundo motivo: Bin Laden considerou um sacrilégio intolerável a presença maciça de soldados americanos em lugares sagrados do islamismo, na Arábia Saudita, durante o deslocamento de tropas que lutaram na primeira Guerra do Golfo, em 1991. As origens da guerra que ele declararia aos Estados Unidos remontam, então, ao Afeganistão e à Arábia Saudita. Bin Laden também se queixou do apoio americano a “ditaduras corruptas” no mundo árabe).

Segunda ponta: a revelação de Bin Laden sobre a tática que adotaria contra os Estados Unidos ( já, já, Atwan dará detalhes sobre o que ouviu).

O convite para um encontro frente-a-frente com Osama Bin Laden partiu da própria Al-Qaeda. O convidado não vacilou um segundo antes de aceitar

Atwan bate no peito: diz que os três dias que passou em companhia de Bin Laden em Tora Bora o transformaram no jornalista que mais tempo ficou com o líder da Al-Qaeda, antes ou depois do 11 de Setembro.

( Quem é, afinal, este homem a quem Bin Laden fez tantas confidências, antes dos ataques do 11 de setembro de 2001? Abdel Bari Atwan é um palestino, nascido na Faixa de Gaza. Radicado na Inglaterra, dirige um jornal de língua árabe que é publicado em Londres, o Al-Quds al- Arabi. A chance de um encontro face a face com Bin Laden nas montanhas de Tora Bora nasceu depois de um convite da Al Qaeda.

Não por acaso, Atwan se tornou especialista na Al-Qaeda. Disse sim ao nosso pedido de entrevista. Mas demonstrou ser um homem desconfiado. Vive olhando para os lados, como se estivesse se guardando contra a investida de algum intruso imaginário. Sobre a mesa de trabalho, mantém um terço ao alcance da mão, ao lado do teclado do computador. O bigode é de Sadam Hussein. Os cabelos devem ter passado por uma tintura rejuvenescedora).

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Pausa para uma oração no meio da entrevista ( Foto : GMN )

Jornais publicaram que Osama Bin Laden chegou a andar com um cartão de visita de Atwan no bolso. Atwan já declarou, escreveu e repetiu que não endossa nem apóia a “agenda da Al-Qaeda”. Mas é certo que o encontro nas montanhas de Bora Bora serviu para estabelecer uma relação de confiança entre o bigodudo Atwan e o candidato a califa Osama Bin Laden . Basta um exemplo: a Al Qaeda escolheu o jornal de Atwan para divulgar comunicados de repercussão mundial, como, por exemplo, o e-mail em que a organização assumia a autoria dos atentados que abalaram Madrid em 2005.

Aos olhos das autoridades americanas, no entanto, os contatos de Abdel Bari Atwan com a Al-Qaeda podem ter sido meramente profissionais, mas foram suficientes para envolvê-lo sob manto de suspeição. As tentativas que Atwan fez para obter visto de entrada nos Estados Unidos, para atender a convites de universidades, trombaram em dificuldades, restrições e vexames. Atwan desistiu de tentar de novo.

As instalações do jornal Al-Quds al Arabi são modestas. Ficam no primeiro andar de um prédio feio na King Street.

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Começa a gravação. Abdel Bari Atwan vai traçar um retrato falado sobre o homem que declarou guerra à maior potência militar do planeta:

Bin Laden me disse : “Se eu conseguir atrair os americanos para o Oriente Médio, para combatê-los em meu próprio terreno, em meu próprio chão, em meu próprio quintal, será perfeito”

Qual foi o comentário mais marcante que Bin Laden fez ao senhor sobre a luta contra os Estados Unidos?

“Osama Bin Laden me levou para uma “excursão turística” pelas montanhas de Tora Bora. Caminhamos sob um frio intenso. Disse-me: “Não posso combater os americanos nos Estados Unidos , porque é extremamente difícil. É algo que exige grande planejamento e grande esforço. Mas, se eu conseguir atrair os americanos para o Oriente Médio, para combatê-los em meu próprio terreno, em meu próprio chão, em meu próprio quintal, será perfeito. Prometo a você: farei maravilhas, porque esta será uma das melhores coisas que podem acontecer em minha vida: lutar contra os americanos em território islâmico, em território árabe”.

Parece-me que o presidente Bush, um homem esperto, cumpriu este desejo de Bin Laden ao invadir o Iraque e o Afeganistão….Hoje, a Al-Qaeda se reagrupa no Afeganistão; o Talibã, também, impõe perdas nas forças da Otan. Destruíram a reputação da América – política e militar – depois da invasão do Iraque. Veja-se o que a Al Qaeda e outras organizações estão fazendo contra as forças americanas no Iraque: cerca de três mil mortes! Deus sabe o que acontecerá ainda”.

O senhor diz que Bin Laden transformou os Estados Unidos em parte do Oriente Médio. Como é que o senhor explica esta estratégia?

“Bin Laden conseguiu enganar os Estados Unidos. Conseguiu ser mais rápido do que eles: fez o ataque contra o World Trade Center para fazer com que os americanos mandassem tropas para o Oriente Médio e para o Afeganistão. Lá, Bin Laden poderia combatê-las.

“Sabia que, se os Estados Unidos enviassem tropas para o Oriente Médio, enfrentariam o destino que enfrentaram no Vietnam ou que os soviéticos enfrentaram no Afeganistão”

Quem olha para a História vai ver que todos os impérios caíram porque tentaram expandir suas fronteiras e atacar países menores. Parece que Bin Laden estudou História muito bem. Porque sabia que, se os Estados Unidos enviassem tropas para o Oriente Médio, enfrentariam o destino que enfrentaram no Vietnam ou que os soviéticos enfrentaram no Afeganistão. Bin Laden planejou tudo. Deve estar satisfeito.

Escondido em algum lugar, ele deve estar esfregando as mãos, contente, porque não poderia imaginar que os Estados Unidos iriam fazer o que estão fazendo agora. Bin Laden não imaginaria que os Estados Unidos estariam sofrendo derrotas num país como o Iraque. Não esperaria que os Estados Unidos fossem gastar esta montanha de dinheiro, centenas de bilhões de dólares, além de perder três mil soldados, até agora.

Se Bin Laden morrer amanhã, morrerá feliz. Porque conseguiu se vingar dos Estados Unidos, grande país que ele considera o mal: Bin Laden fez com que os Estados Unidos fossem humilhados no Oriente Médio, na mão de muçulmanos e árabes. Deve estar extremamente feliz agora”.

“Disse que gostaria de ter morrido com seus companheiros que foram mortos na luta contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Porque ele considera esta vida precária. O que ele quer é a vida eterna. Quer ir para o paraíso”

Depois dos encontros com Bin Laden, o senhor escreveu que teve a impressão de que ele não era um homem comum. O que é que ele tinha de tão extraordinário?

“O que chamou minha atenção, no caso de Osama Bin Laden, é que ele é um homem corajoso. Não teme a morte. A verdade é que ele lamentava o fato de ainda estar vivo.

Bin Laden me disse que gostaria de ter morrido com seus companheiros que foram mortos na luta contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Porque ele considera esta vida precária. O que ele quer é a vida eterna. Quer ir para o paraíso. A declaração que Bin Laden me fez neste sentido me impressionou.

O que me impressionou também foi a humildade que Bin Laden cultiva. Um exemplo: ele comia a mesma comida que os seus colegas, como qualquer outro guerrilheiro mujahedin ( n: é este o nome dado a um muçulmano envolvido numa batalha. A palavra mujahedin significa “combatente”) . Por esta razão, era adorado e amado por eles. Bin Laden me mostrou coragem. Parecia ter paz de consciência. Não demonstrava ter medo de nada. É um personagem fascinante”.

“Não usa telefone. Não usa celular. Não usa qualquer tipo de equipamento eletrônico, porque sabe sabe que pode ser fatal”

É verdade que o senhor recebeu ligações da Al-Qaeda?

“Recebi várias chamadas telefônicas da Al-Qaeda, mas não de Bin Laden, pessoalmente. As ligações foram feitas pelo braço direito de Bin Laden na área militar, Abu Hafs al-Misri, depois do bombardeio de Kandahar, em 1998, quando o presidente Bill Clinton enviou mísseis Cruise como vingança contra o ataque a embaixadas americanas em Nairóbi (Quênia) e Dar es Salaam (Tanzânia).

Abu me telefonou. Disse-me que eles iam se vingar. Iriam dar aos Estados Unidos uma lição que os Estados Unidos jamais tinham recebido. É provável que ele estivesse dando sinais do que aconteceria no 11 de Setembro.

Osama Bin Laden pessoalmente não usa telefone. Não usa celular. Não usa qualquer tipo de equipamento eletrônico,porque sabe sabe que pode ser fatal. Mas os seus colegas e assessores usam telefone”.

A SEGUIR, NA PARTE II : POR QUE BIN LADEN ESTAVA “CHEIO DE ÓDIO”. O BLOGUEIRO GANHA UM “BRINDE” : FOTOS ORIGINAIS DO TERRORISTA NAS MONTANHAS DO AFEGANISTÃO!


Posted by geneton at 11:04 AM

setembro 08, 2009

NORMAN MAILER

O DIA EM QUE O GRANDE REBELDE NORMAN MAILER DECRETOU, SEM ALEGRIA, O FIM DE UMA ERA: “JÁ NÃO SOMOS UMA CULTURA LITERÁRIA. SOMOS UMA CULTURA TELEVISIVA”

Começo contando vantagem : testemunhei, gravei e fotografei uma das últimas aparições públicas de um monumento da literatura americana.

( Pausa para oração. Dizei, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres: além de contar vantagens, que outra arma um blogueiro acidental pode empunhar para implorar pela atenção de transeuntes apressados ? A padroeira fica em silêncio. Vou em frente).

Aos amantes da palavra impressa, lamento informar que as notícias não são boas.

Quando saí daquele auditório, tive a impressão de ter testemunhado o fim de uma era. Divido esta experiência com os frequentadores do DOSSIÊ GERAL. Vasculho meus arquivos implacáveis em busca do meu relato.

Ei-lo:

O lamento do velho lobo: um americano médio é incapaz de citar o nome de três bons escritores contemporâneos

Acabou. O fim de uma época em que os escritores tinham uma voz ativa na sociedade foi decretada por um porta-voz insuspeito: um grande escritor. Nome: Norman Mailer. Sem qualquer alegria, ele constata que, hoje, um americano médio, “razoavelmente inteligente”, não seria capaz de citar o nome de três bons escritores contemporâneos. Adeus, meninos.

It´s all over now, baby blue.

E agora?

Agora, vale a pena ouvir a palavra de Mr. Mailer. Eis o homem: o Grande Rebelde das Letras Americanas, o velho porta-voz das insurreições, o Eterno Dissidente, o “último ícone da literatura americana do Século XX” caminha apoiado por duas bengalas. Os cabelos, desalinhados, clamam por um pente. Traja uma camisa laranja de mangas compridas. Uma jaqueta protege-o dos rigores do inverno.

Primeira constatação: a longevidade – definitivamente – não vem de graça: o tempo cobra, ao Norman Mailer de 83 anos, o pedágio imposto aos octogenários que ousam desafiar a passagem dos séculos

(quando Mailer nasceu, no último dia de janeiro de 1923, em Long Branch, New Jersey, a Primeira guerra Mundial tinha acabado havia apenas cinco anos. Os horrores do delírio hitlerista, a viagem do homem rumo às estrelas, o rosto estilhaçado de John Kennedy em Dallas, a aventura americana no Vietnam, a rebelião dos jovens dos anos sessenta, todos estes temas que um dia ocupariam a pena do Mailer escritor ainda demorariam décadas para acontecer: eram apenas uma possibilidade escondida nas cartas de alguma cigana).

Mailer reclama : já não pode encarar o espoucar dos flashs

Quando fala, o Grande Rebelde pontua as frases com um pigarro renitente. Quando ouve, fixa os olhos limpidamente azuis no movimento dos lábios do interlocutor – um esforço para captar, no ar, as palavras que a quase surdez o impede de ouvir.

“Eu estou ficando surdo a cada minuto” – confessa, sem esforço para disfarçar a ruína auditiva. “Estou ficando velho. Já não terei tanto tempo” – diria, pouco depois. “Desculpe o pigarro. O motorista me disse outro dia, sobre minha voz: “Você soa como Richard Nixon no fim da vida…”.

Que ninguém se iluda com a aparente autocomiseração. O octogenário Norman Mailer provará já, já, que não lhe falta fôlego para disparar petardos verbais em todas as direções.

O Grande Rebelde me brindaria esta noite com uma confidência feita ao pé do ouvido – um pequeno prêmio concedido à minha impertinência. Assediado por fãs que pediam um autógrafo em exemplares do recém-lançado “The Big Empty”, o livro que reúne seus diálogos políticos com o filho John Buffalo , Mailer comete ali e aqui pequenas indelicadezas, facilmente perdoáveis quando se contam as décadas que já acumula sobre os ombros.

Um leitor estende-lhe um bilhete. Mailer nem olha para o pedaço de papel: “Não posso ler. Não posso”. Quando outro fã dispara flashs a dois palmos de seus olhos, resmunga: “Gente de minha idade não pode encarar flash….”.

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Norman Mailer : fim de uma era ( FOTO : GMN)

O desconforto diante do espoucar dos flashs parece legítimo. Diante do assédio ao nosso personagem, recorro a um caso extremo de concisão. Pergunto a Norman Mailer se ele poderia se definir em uma só palavra – e escrevê-la na folha de rosto do meu exemplar.

Colho uma confidência ao pé do ouvido. Noites de autógrafos ? Ah, “são brutais, rudes e desconfortáveis”

Não, não pode. Pega a esferográfica vagabunda para me presentear com um autógrafo, escrito em letra firme e legível. O assédio faz Mailer me confidenciar o que pensa dessas aparições: “São brutais, rudes e desconfortáveis”. Guardo o desabafo em meu gravador.

É inevitável: uma sensação de “fim de uma era” percorre a espinha dorsal de quem testemunha a aparição do Grande Rebelde das Letras neste início de noite gelado, no prédio que serve de sede à New York Society for Ethical Culture, no número 2 da rua 64, Nova Iorque.

Eis ali o escritor que, no auge dos anos sessenta, agitava os manifestantes que bradavam diante do Pentágono contra o envolvimento americano na Guerra do Vietnam. Hoje, apoiado por bengalas e aparelhos para surdez, emite impropérios contra o Presidente George Walker Bush para platéias não tão numerosas.

Os manifestantes que antes lotavam as alamedas de Washington hoje se resumem a duas centenas de almas que enfrentam o frio do inverno nova-iorquino para ouvir, em tom reverente, a pregação anti-establishment do Velho Rebelde

O que terá acontecido? Onde estão as hordas de ouvintes? O próprio Mailer dá o diagnóstico : “Já não somos uma cultura literária. Somos uma cultura televisiva. Os escritores já não são tão importantes quanto antes. É o que digo, sem nenhum prazer”.

Onde estão as equipes de TV da CBS, NBC, ABC, que não aparecem para documentar a pregação do Velho Lobo? A única equipe de TV presente é a de um canal francês.

O repórter cede à tentação de anotar um paralelo cruel : é como se a inevitável decadência física de Mailer tivesse acompanhado a não tão inevitável perda de importância da figura do escritor numa sociedade dominada pelas imagens.

As caixas de som espalham o som de “Mother”, a canção prodigiosa em que John Lennon resumiu em duas frases a história da psicanálise

As caixas de som espalham os acordes de canções militantes cometidas pelo John Lennon pós-Beatles, como “Power to the People”. Depois, a platéia é embalada pelos versos de Lennon em “Mother”, a canção que mereceria o Grande Prêmio Internacional de Concisão porque consegue resumir em duas frases tomos e tomos de tratados psicanalíticos: “Mother, don´t go/ Daddy, come home”: Mãe, não vá embora/Pai, venha para casa”.

Lá fora, uma solitária militante – que parece saída de uma passeata contra a Guerra do Vietnam – distribui panfletos anti-Bush. O alvo agora é a intervenção americana no Iraque.

Quem enfrentou a neve das ruas pelo privilégio de ouvir a pregação do Grande Rebelde teve a sensação de que o sacrifício foi recompensado.

A vitória da “cultura televisiva” sobre a “cultura literária” não é o único tema que ocupa as atenções de Mailer neste começo de século. A “lenda literária” (é assim que o jornal Village Voice se refere a ele) oferece aos ouvintes idéias originais sobre, por exemplo, a ligação que existe entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia.

Dá uma explicação quase psicanalítica sobre o medo do terrorismo. Cria uma tese controversa sobre a influência que os intervalos comerciais das TVs exercem sobre a capacidade de concentração dos telespectadores. Dá o que falar. Faz provocações. Não escorrega no ramerrame da obviedade.

Cumpre o papel que reservou para si desde que subiu ao palco literário: é um escritor que não se conforma em apenas escrever. Quer intervir. Intervém. A torrente verbal de Mailer incendeia a imaginação dos ouvintes. A ele, pois.

O terrorismo é cruel porque traz a morte sem aviso prévio: “Ser morto sem aviso é um ultraje à alma”

Em vez de discursar sobre o óbvio desconforto que a ameaça de ataques terroristas espalhou sobre a sociedade americana, Mailer detecta um efeito pessoal provocado pela onda de medo:

- Detesto terrorismo porque uma das minhas idéias religiosas favoritas é a de que nós devemos estar preparados para a morte. Ser morto sem aviso é um ultraje à alma. Uma das piores coisas sobre o 11 de setembro é que ninguém estava preparado para um ataque daquele. Preparar-se para a morte é importante. Acredito que há alguma coisa depois da morte. O terrorismo é particularmente horrível porque estilhaça a noção de que você deve estar preparado para morrer.

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Norman Mailer, em foto mal iluminada : não queria flashs no rosto (FOTO:GMN)

O Monumento Mailer estabelece uma surpreendente ligação entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia. Vale a pena ouví-lo:

- “Acontece que a democracia é a mais delicada forma de governo. A mais delicada! Por esse motivo, demorou tanto a ocorrer na História. A democracia depende de que a linguagem do povo se torne mais rica e mais elevada ao longo das décadas e dos séculos. Depende de criatividade, substância, boas instituições e alto desenvolvimento. George Bush é uma força que age negativamente sobre estes valores, porque ele reduz a linguagem. É um orador abominável”.

-“ Quero insistir neste ponto: a democracia depende da beleza da linguagem. Depende do aperfeiçoamento – e não da deterioração da língua. Os Estados Unidos eram maravilhosos nos tempos de Franklin Roosevelt, porque ele falava tão bem. O pouco que pudemos ter de John Kennedy nos deu uma mostra de que ele, um homem inteligente, queria elevar o nível da inteligência na política e na América. Democracias são delicadas. Digo: o inglês só não sofreu um colapso e só não se partiu em pedaços ao longo das turbulências do Século XX porque um dia existiu William Shakespeare. Sem James Joyce, a Irlanda seria bem menos. Faço essas constatações não por ser um semi-talentoso novelista, mas porque a linguagem é imensamente importante. Bush destrói a linguagem quando abre a boca. Em nome do terror, Bush cometeu crimes contra a integridade e a reputação do Estado. É o pior Presidente dos meus oitenta e três anos de vida. Isso significa um bocado, porque vivi sob Ronald Reagan”.

O Século XXI impõe uma exigência a todos nós: todos temos de conviver com uma dose de angústia e de incerteza

O guerreiro Mailer avisa aos ingênuos que não há com escapar de dois sentimentos que se espalharam pelo planeta depois de assentada a poeira do desabamento do World Trade Center:

- “Uma das exigências do novo Século é que nós temos de conviver com uma dose de angústia e incerteza. O Onze de Setembro derrubou os dois mais reluzentes monolitos da economia americana, as Torres Gêmeas. Além de tudo, as Torres falavam da fálica hegemonia americana sobre o mundo. A dona-de-casa típica ficou desolada diante da assustadora possibilidade de que alguém pode trabalhar durante anos para formar uma família- e perder tudo em uma hora”.

A quem interessar possa, Mailer vai logo se declarando um “conservador de esquerda” – uma classificação que, admite, nem sempre é aceita por mentes habituadas a simplificações ideológicas:

- “Pelo lado conservador, há instituições e valores que não devem ser desmentidos com um piada. Metade da população mundial se enquadra na vida familiar. Se você não se enquadra, não ridicularize. Porque família é, sob vários aspectos, uma forma de arte”.

Diante da platéia surpresa, Mailer articula uma nova teoria sobre a dificuldade de concentração das crianças

Mailer articula uma tese original sobre a televisão. Diz que a geração nascida e criada diante da luz azulada dos monitores de TV tem dificuldade de acompanhar raciocínios mais elaborados, porque toda história que a TV conta é interrompida de dez em dez minutos por comerciais :

- Quando liam, as crianças de antigamente desenvolviam o poder de concentração, pelo prazer da narrativa. Em outras palavras: elas podiam seguir um narrativa por horas. É quase como exercitar músculos: só que exercitavam a mente. Hoje, o equivalente a essas crianças espertas vêem na TV narrativas que são interrompidas a cada sete ou dez minutos por anúncios comerciais. Isso impede a continuação da narrativa. As crianças, então, ficam habituadas à idéia de que não são capazes de seguir nada que dure mais do que sete ou dez minutos. Perdem o poder de concentração. Acontece com todos: se alguém se interessa por um programa, logo vem um comercial para afetar a concentração e a capacidade de pensar mais profundamente sobre o assunto.

Uma confissão pessoal: o grande dissidente americano tenta enxergar luz depois da morte

Por fim, o Grande Rebelde causaria uma nova surpresa, ao pronunciar uma profissão de fé na reencarnação:

- Eu acredito em reencarnação, porque acredito que Deus é o criador. Para mim, a idéia de que Deus existe faz mais sentido do que a idéia de que Deus não existe. A reencarnação é um dos instrumentos profundos que Deus usa para tornar melhores suas criaturas. Quando você morre, acredito que você é julgado, não para ir ao inferno ou ao céu, uma idéia que nunca fez sentido para mim. O que faz sentido é a idéia de que você renasce. Há, espera-se, uma certa sabedoria na escolha feita no renascimento. Neste momento, você é punido pelos pecados que cometeu ou é recompensado pelo que conquistou na vida. Ou seja: a vida tem um sentido, para Deus e para você, na maneira com que você renasce. Você é premiado ou punido depois da morte.

O Grande Rebelde agarra-se à ilusão do renascimento. É como se erguesse a bandeira branca e fizesse um aceno para o invisível, o incompreensível e o improvável. Os ouvintes consomem em silêncio reverente a inesperada profissão de fé de Mailer numa vida além da morte. É como se o homem de 83 anos olhasse para o fundo do despenhadeiro – e, finalmente, depois de tantos embates, tantas protestos, tantos prêmios, tanta glória, pudesse enxergar com clareza o que antevira numa passagem de “Os Exércitos da Noite”:

“…Pois temos de ir até o final da estrada e alcançar aquele mistério onde a coragem, a morte e o sonho de amor nos prometem que poderemos, enfim, dormir”.

Norman Mailer dormiu no dia dez de novembro de 2007, meses depois de constatar, sem alegria, numa noite gélida, o triunfo da imagem sobre a palavra.


Posted by geneton at 11:37 AM

setembro 07, 2009

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

GRANDE POETA E PÉSSIMO PROFETA, DRUMMOND SE CONFESSA AO TELEFONE: “SOU UMA PESSOA TERRIVELMENTE CORAJOSA, PORQUE NÃO ESPERO NADA DE COISA NENHUMA”

Repórter existe para incomodar os outros. Ponto. Parágrafo.

A vocação para a inconveniência é defeito de fábrica. Vem no DNA. É caso perdido. Não há como corrigir, portanto.

Feita esta constatação, declaro: eu deveria cumprir dez anos de desterro por ter incomodado consistentemente o maior poeta brasileiro.

Repórteres em busca de declarações não deveriam perturbar a reclusão do autor de versos como “Consolo na Praia” :

“Vamos, não chores…

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu

(…) Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis casa, navio, terra.

Mas tens um cão.

(..) A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento…

Dorme, meu filho”

Ah, não, nem se discute. Fica decretado que o autor do poema “Hino Nacional” definitivamente não merecia ser importunado por repórteres que gastam a vida garimpando frases alheias :

“Precisamos descobrir o Brasil !

Escondido atrás das florestas,

com a água dos rios no meio,

o Brasil está domindo, coitado.

Precisamos colonizar o Brasil.

(…) Precisamos adorar o Brasil!

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão

no pobre coração já cheio de compromissos…

se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,

por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos”

Eu me penitencio. É óbvio que um repórter cometeria um pecado se pegasse o telefone para tentar extrair, a golpes de gravador, um punhado palavras de um poeta que já tinha oferecido ao Brasil versos como os de “América”:

“Sou apenas um homem.

Um homem pequenino à beira de um rio.

Vejo as águas que passam e não as compreendo

(…) Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.

O rosto denuncia certa experiência.

A mão escreveu tanto – e não sabe contar !

(…) Sou apenas o sorriso

na face de um homem calado”

Mas….o repórter-que-vos-fala confessa que perseguiu Carlos Drummond de Andrade – logo ele, o monumento que preferia se fechar “em copas”.

Usar o telefone. Era este o caminho das pedras para os repórteres que quisessem romper o muro de silêncio que o maior poeta brasileiro ergueu diante de si

O segredo para abordá-lo , com sucesso, era só um : usar o telefone como arma.

Atenção, pesquisadores de curiosidades zoológico-poéticas : o apartamento 701 do prédio número 60 da rua conselheiro Lafayette, em Copacabana, era palco diário de uma cena esquisita. Lá,um urso polar adorava falar ao telefone.

Desde que virou uma quase unanimidade nacional, Drummond ergueu em torno de si uma couraça para se proteger das investidas do mundo exterior. Era o exemplo acabado do mineiro arredio. Usava uma suposta timidez – desmentida por amigos íntimos – para manter longe de si, na medida do possível, as incoveniências da celebridade, descritas nos versos amargos do poema “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz” :

“Ah,não me tragam originais
para ler,para corrigir,para louvar
sobretudo,para louvar (….)

Respeitem a fera.Triste,sem presas,é fera”

Durante décadas, Drummond fugiu dos pedidos de entrevista. Preferia repetir a resposta-padrão : tudo o que tinha a dizer estava em seus poemas e crônicas. Mas mantinha um flanco aberto : o telefone.

Amigos chegaram a definir Drummond como um “ser telefônico”. Ziraldo escreveu que Drummond era “ao telefone, um derramado, com uma voz entre rouca e afunilada, meio tênue e fina, com a respiração difícil como quem tem desvio de septo”.

O “urso polar” cultivava esta pequena esquisitice : sempre que podia, fugia do contato pessoal, mas se mostrava surpreendentemente acessível a investidas telefônicas de intrusos como, por exemplo, este repórter-que-vos fala.

Quando era um dos editores do Jornal da Globo, cultivei, pelos idos de 1986, o hábito de incomodar o poeta pelo telefone,em busca de declarações que eram transformadas, no ar, em frases que exibiam a assinatura de Drummond.

“Não sou filólogo, não sou professor, não sou gramático.Sou um leigo em língua portuguesa”, disse-me o poeta Drummond. O caminho estava aberto para a abordagem : setenta e seis perguntas por telefone

O poeta jamais se esquivou de fazer rápidos comentários. A uma pergunta sobre o que pensava de uma reunião de professores de países de língua portuguesa em Lisboa para discutir uma proposta de unificação ortográfica, Drummond – tido como um dos maiores poetas já produzidos pela língua portuguesa – deu uma resposta tipicamente drummondiana :

- “Considero-me um usuário, não o proprietário da língua. Não sou filólogo, não sou professor, não sou gramático. Sou um leigo em língua portuguesa”.

Tive a chance de entrevistar outro gigante da poesia brasileira, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, sobre a idiossincrasia telefônica de Drummond :

- “Era uma coisa engraçada : pessoalmente,ele falava menos” – constatava Cabral. “Mas tinha uma conversa longuíssima ao telefone. Quer dizer : quanto mais longe a pessoa, mais afetuoso ele era. Tenho a impressão de que ele não gostava era do contato físico”.

O telefone terminou se transformando no caminho das pedras para a obtenção daquela que seria uma das maiores entrevistas já concedidas por Drummond, em julho de 1987.

Dezessete dias depois , o coração do poeta, já abalado por dois enfartes, parou de bater. Resultado: a entrevista gravada por telefone terminou se tornando uma espécie de testamento de Carlos Drummond de Andrade.

Ao todo, Drummond respondeu a setenta e seis perguntas que lhe fiz por telefone, em duas sessões. Transcrita, a gravação da entrevista rendeu cerca de duas mil linhas datilografadas. A íntegra foi publicada no “Dossiê Drummond” ( há os que se queixam de que repórteres não devem ficar trancafiados na redação diante de um telefone. Mas a experiência prova: investidas telefônicas podem dar grandes resultados, é claro. Por que não? ).

Duas semanas antes de morrer, Carlos Drummond de Andrade disse, a este repórter, que, em duas décadas, seus versos estariam esquecidos : “Ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”. A profecia estava errada.

As palavras do urso polar ficam. Diga-se que, em suas confissões telefônicas, o grande poeta revelou ser um péssimo profeta. Cometeu um monumental erro de avaliação : disse que, em duas décadas, estaria esquecido. Não foi. Não será. Errou feio.

Era um grandesíssimo poeta ? Era. Cometeu versos perfeitamente dispensáveis no fim da vida ? Cometeu. Era tão bom cronista quanto poeta ? Não era. Distribuiu elogios a torto e a direito ? Distribuiu, por gentileza. Mas o que fica, é claro, é a obra.

Versos como os de “A Máquina do Mundo”, obra-prima não tão conhecida quanto deveria, vão durar tanto quanto o mármore. Vai passar uma eternidade antes que alguém os iguale – em beleza, em brilho, em ouriversaria poética.

Em “A Máquina do Mundo”, o poeta tem a chance de decifrar o mistério do mundo numa caminhada de fim de tarde por uma estrada pedregosa de Minas. Mas dispensa a oferta. Prefere seguir a caminhada, solitário. Nada tão drummondiano. O final do poema:

“A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo

enquantio eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas”

Recolho um possível decálogo de nossa entrevista :

1
”Não tenho a menor pretensão de ser eterno.Pelo contrário : tenho a impressão de que daqui a vinte anos – e eu já estarei no cemitério São João Batista – ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”.

2
”A solidão em si é muito relativa. Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos ,uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler nunca está solitária, nunca estará sozinha. Terá sempre uma companhia : a imensa companhia de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”.

3
”Não fiz nada organizado. Não tive um projeto de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso. Não houve nenhuma programação. Por outro lado, não tendo tido nenhuma ambição literária, fui poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético”.

4
”A popularidade nada tem a ver com a poesia. A popularidade pode acontecer. Mas um grande poeta pode também passar despercebido”.

5
”Tive apenas o desejo de exprimir minhas emoções. Eu sentia necessidade de que eles se soltassem ; era um problema mais de ordem psicológica do que de outra natureza”.

6
”O jornalismo é uma forma de literatura. Eu,pelo menos,convivi – e mil escritores conviveram- com uma forma de jornalismo que me parece muito afeiçoada à criação literária : a crônica”.

7
“O que lamento é que as novas gerações já não tenham os estímulos intelectuais que havia até trinta ou quarenta anos passados. As pessoas que sabiam escrever a língua se destacavam na literatura e nas artes em geral. Hoje em dia,há escritores premiados que não conhecem a língua natal”.

8
”Sou uma pessoa terrivelmente corajosa, porque não espero nada de coisa nenhuma”.

9
”Considero-me agnóstico. Sou uma pessoa que não tem capacidade intelectual e competência para resolver o problema infinito que é se existe ou não existe uma divindade”.

10
”Minha motivação foi esta : tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo”.

Posted by geneton at 09:41 PM

setembro 05, 2009

MANOEL CYRILLO

2009. UM EX-GUERRILHEIRO DESCREVE OS DOIS GOLPES QUE NÃO FORAM FEITOS CONTRA O REGIME MILITAR : UM ATAQUE EM MASSA CONTRA AGÊNCIAS BANCÁRIAS EM SÃO PAULO E A OCUPAÇÃO DE UMA EMISSORA DE RÁDIO

O passado manda lembranças: o ano de 1969 voltou às páginas dos jornais e revistas esta semana. Motivo: num setembro como este, o embaixador americano do Brasil, Charles Elbrick , foi sequestrado por guerrilheiros que queriam forçar o regime militar a libertar presos políticos. Jamais tinha havido uma ação parecida.

2009. Procuro um dos guerrilheiros que participaram do sequestro do embaixador. Conclusão: tal como acontece com 1968, 1969 bem que pode também ser chamado de “o ano que não terminou”. Porque há sempre um acréscimo a ser feito.

Ei-lo: ao contrário do que se imaginava , o sequestro não deveria se encerrar com a libertação do embaixador. Não satisfeito, um dos cabeças do sequestro planejara outra ação espetacular – que deveria ser executada depois que o embaixador fosse solto.

O plano: guerrilheiros ligados à Ação Libertadora Nacional (ALN) iriam tomar uma emissora de rádio para divulgar um manifesto que denunciava a ingerência americana em assuntos internos do Brasil.

A guerrilha também planejou – mas não teve tempo de executar – um ataque em massa contra agências bancárias no bairro do Sumaré, em São Paulo.

O manifesto radiofônico seria escrito a partir dos papéis que o embaixador conduzia numa pasta no momento em que foi seqüestrado: relatórios que analisavam a atuação de personalidades públicas brasileiras.

Os guerrilheiros já tinham feito uma operação bem sucedida contra uma emissora de rádio, para transmitir palavras de ordem de Carlos Marighella

A ALN já tinha know-how em matéria de ocupação de emissoras de rádio: apenas três semanas antes do sequestro do embaixador, um comando da ALN ocupara a torre de transmissão da Rádio Nacional de São Paulo, localizada em Diadema. Tempos depois, a Rádio Nacional seria rebatizada como Rádio Globo.

O técnico de plantão foi obrigado a levar ao ar a gravação de um manifesto explosivo: Carlos Marighella, o líder da ALN, anunciava que, ainda naquele ano, a guerrilha chegaria ao campo. As ações urbanas seriam intensificadas: “Devemos aumentar gradualmente os distúrbios provocados pela guerrilha urbana, numa seqüência interminável de ações imprevisíveis, de tal modo que as tropas do governo não possam deixar a área urbana sem o risco de deixar as cidades desguarnecidas”.

Se a operação na rádio em São Paulo tinha dado certo, por que não repetir a façanha depois do desfecho do sequestro do embaixador ? – era o que se perguntava Manoel Cyrillo, guerrilheiro da ALN, com a autoridade de quem tinha tido participação decisiva nas duas operações.

Mas nem tudo iria sair como planejado.

Cyrillo foi um dos guerrilheiros que ocuparam a torre de transmissão para irradiar as palavras de ordem de Marighella.

Logo depois, viajara de carro para o Rio de Janeiro, para a Operação Sequestro. O comando da Ação Libertadora Nacional, em São Paulo, tinha decidido enviar para o Rio quatro pesos-pesados para participar diretamente da operação de captura do embaixador americano: Joaquim Câmara Ferreira, Virgílio Gomes de Sá, Paulo de Tarso Venceslau e Manoel Cyrillo.

Os relatórios que o embaixador transportava no dia em que foi sequestrado serviriam de base para denunciar a “ingerência americana” em assuntos internos do Brasil

Quando chegou ao cativeiro, Cyrillo teria um motivo para o que chama de “espanto”: a leitura dos relatórios que o embaixador transportava.

O guerrilheiro interpreta os papéis – até hoje – como uma prova material de que os americanos queriam meter o bedelho em assuntos internos do Brasil.

Por este motivo, imaginou um desfecho que, se executado, com certeza aumentaria a repercussão internacional do caso: a ocupação de uma emissora de rádio para leitura de um documento-denúncia.

A entrevista com o ex-guerrilheiro foi feita no Rio, como parte do trabalho de apuração do “Dossiê Gabeira”, recém-publicado.

Trechos do depoimento do guerrilheiro sobre o plano de completar o sequestro com uma investida-surpresa a uma emissora de rádio de grande audiência:
1
“A idéia de tomar uma emissora de rádio depois de terminado o sequestro do embaixador americano surgiu com um “furo de reportagem” que o embaixador nos deu: entre os papéis que estavam na pasta que ele conduzia, havia uma “bomba”, um documento a que ele atribuía um peso relativamente pequeno. Nós todos, brasileiros, até hoje não demos a importância que se deve dar a este documento. É um relatório que estudava alternativas civis para o Brasil, já que, na avaliação dos americanos, o regime militar estava seguindo por descaminhos que já não interessavam tanto à administração americana”.

2
“Diante deste “furo”, eu e Virgílio Gomes da Silva,o “Jonas”, também da Ação Libertadora Nacional, conversamos, ainda na casa onde estava o embaixador, sobre esta idéia: que tal se a gente, assim que chegar em São Paulo, fizer outra ação na rádio ? Repetiríamos o que fizemos na Rádio Nacional: botar no ar um pronunciamento em que a gente usaria palavras do embaixador”.

3
“A ação, infelizmente, não chegou a ser realizada porque, quando saímos da casa, depois de termos trocado nossos presos pelo embaixador, ao fim de toda a negociação com a ditadura, terminamos indo para um aparelho no bairro do Catete. Dormimos lá. De manhã, saímos. Ficamos sabendo, no fim do dia, que aquele aparelho tinha caído.( Cyrillo usa a expressão “o aparelho caiu” para dizer que o apartamento usado como esconderijo por ele foi invadido pela polícia. Os jornais do sábado, dia treze de setembro, menos de uma semana depois da libertação do embaixador, informavam que a polícia encontrara no apartamento 311 do prédio 180 da rua Santo Amaro,no Catete, “grande quantidade de material explosivo e de armamento“). Ficou tudo lá – inclusive o documento oficial da embaixada. O que transmitiríamos pelo rádio seriam trechos do documento que recolhemos com o embaixador”.

4
“Eu já tinha participado da tomada da rádio em São Paulo, pouco antes. Fui o “sargento” dessa ação. Nós levamos um gravador portátil. A fita que foi levada ao ar tinha sido gravada em estúdio, com locução boa. Era uma mensagem de Marighella. Nós levamos conosco um técnico em rádio que sabia fazer todas as conexões necessárias para que a gravação fosse levada ao ar. Fui do grupo operacional”.

5
“A missão era tomar de assalto a torre de transmissão da rádio. Não fomos para os estúdios: fomos, direto, para a torre de transmissão. Isso pegou a repressão de surpresa. Quando começaram a ouvir pela rádio a transmissão daquele material, os policiais foram imediatamente para a sede da emissora. Acontece que estávamos na torre, em outro município… Assim, a transmissão ficou vinte minutos no ar”.

6
“A torre tinha vigilância zero. Era um terreno enorme, vazio, com um pequeno estúdio. Só havia um técnico – que ficava ali cuidando de tudo. A ocupação ocorreu de manhã, horário de maior audiência da rádio. Pegamos o “horário nobre”. Pela manhã, havia o pico de audiência com aqueles programas que traziam notícias policiais e receitas de remédios…O documento, assinado por Marighella, anunciava o compromisso de lançamento da guerrilha rural no final daquele ano. Por esta razão, estávamos voltados para a preparação da guerrilha rural. Faríamos algo parecido depois da libertação do embaixador”.

7
“Nós estávamos preparando, também, aquela que poderia se tornar uma das últimas grandes operações de guerrilha urbana que faríamos em São Paulo : um ação de desapropriação que ocorreria em toda uma rua do setor bancário da cidade. Todos os bancos seriam desapropriados! Armas dos veículos de policiamento seriam apreendidas. Os caixas bancários, aliás, tinham sido arbitrariamente militarizados. Caixas – que eram funcionários dos bancos, civis – foram treinados pelo exército para defender os interesses do patrão – ou das seguradores. A rua ficava no Sumaré. Chamava-se Afonso Bovero. Desde aquela época, a rua tinha uma série de bancos. Fecharíamos os quarteirões em que ficavam quatro agências bancárias. Faríamos comícios-relâmpago no trecho. A ação seria de grande envergadura. O planejamento foi feito logo depois do sequestro do embaixador americano. Nós estávamos planejando, nestes últimos meses, a execução dessas expropriações”.

8
“Precisávamos de recursos para financiar nossas atividades – particularmente, a guerrilha rural -, além de fazer ações de propaganda política. Vem daí a importância do sequestro: era uma ação de propaganda política, assim como a tomada da Rádio Nacional”

“Não chegamos a escolher a rádio que usaríamos para fazer a transmissão sobre o embaixador, nestas conversas que tive com Jonas, o comandante da ação. Logo depois, o documento “caiu”. Assim, tivemos de descartar a operação. Sem o documento, não havia o que fazer”.

9
“O documento – e as análises do embaixador – significavam algo terrível para a gente, porque mostravam um grau quase ficcional de ingerência dos Estados Unidos. Nós nos acostumamos a ver coisas assim em filme ou em romance policial”

10
“A transmissão de um programa no rádio seria um belo golpe de propaganda política. Teria repercussão internacional, além de ser um acontecimento histórico: pela primeira vez, o movimento popular ia ter em mãos documentos que comprovavam este tipo de ação do governo americano. Mas o fato de não podermos ter feito a transmissão não me frustrou tanto. O que me frustou foi a gente não poder ter ido ao campo”.

Posted by geneton at 09:41 PM

setembro 01, 2009

HENRY METELMANN

UM SOLDADO NAZISTA, UM REPÓRTER BRASILEIRO: VAI COMEÇAR A LONGA TARDE DAS LEMBRANÇAS ATORMENTADAS

O repórter-que-vos-fala quer fazer diante deste tribunal imaginário uma confissão que pode parecer despropositada, mas não é : sempre tive vontade de interrogar um soldado nazista. Ponto. O problema é que veteranos de guerra nazistas fazem, quase sempre, a opção preferencial pelo silêncio. Por que se expor ao escárnio ?

Kurt Vonnegut chamava os repórteres de voyeurs da desgraça alheia. Ah, o inconfessável apetite de repórteres por dramas, derrocadas, derrapagens, tragédias, derrotas, arrependimentos; a íntima necessidade de vasculhar escombros, ruínas, destroços e estilhaços – físicos ou morais. Porque qualquer estagiário de jornalismo sabe que paisagens devastadas são um belo hábitat para personagens trágicos. Provocados, eles emergirão da névoa em que se encontram.

Durante anos imaginei o cenário: um veterano de guerra, octogenário, já pressentindo o blecaute final, expõe seus fantasmas mais íntimos a um repórter forasteiro que o procura, no meio da tarde, num casarão de uma rua deserta numa cidade obscura da Baviera - o berço do delírio hitlerista.

Minha insistência foi premiada. A cena que imaginei aconteceu, não numa cidadezinha da Baviera, mas no interior da Inglaterra. Tive a chance de interrogar um ex-soldado nazista, veterano da temidíssima Divisão Panzer. Nome: Henry Metelmann.

Steve McQueen, mocinho do filme de guerra, tenta escapar dos soldados alemães. O menino se pergunta: quem são esses cães de guarda que querem aprisionar nosso herói numa solitária ?

A fantasia de um dia dirigir a palavra a um nazista pode ter nascido, quem sabe, numa sessão do Cinema da Torre, no Recife, quando eu tinha doze, treze anos de idade. Eu me lembro de ter visto a platéia em peso torcendo por Steve McQueen, enquanto ele, a toda velocidade, a bordo de uma motocicleta, tentava escapar dos soldados alemães no filme Fugindo do Inferno (The Great Escape). A platéia batia palmas e gritava. O incentivo não deu certo. Recapturado, Steve McQueen voltou para a solitária.

Quem eram aqueles cães que puniam o herói com temporadas intermináveis na solitária ? Pela primeira vez, eu via uma platéia torcer pelo bem, contra o mal. O filme durava quase três horas. Vi três sessões, em três dias seguidos. Quase nove horas no cinema. Nenhum menino de doze anos escapa impunemente de tal maratona cinematográfica. A curiosidade de um dia interrogar um vilão instalou-se em algum escaninho de minhas florestas interiores.

O que um soldado nazista teria a dizer, na “vida real” ? Bato na porta da casa número 132 de uma rua sem movimento de uma cidade sem atrativos num ponto remoto da Inglaterra. O encontro tinha sido marcado a duras penas. Quando fiz o primeiro contato, por telefone, o ex-soldado alemão, radicado há décadas na Inglaterra, confessou que não tinha nem um pingo de orgulho pelo que fez no passado. Mas aceitou falar, porque queria “transmitir às novas gerações” as lições que aprendeu.

O ex-soldado de Hitler confessa que chorava ao ouvir a palavra do líder
Educado na Juventude Hitlerista, o jovem Metelmann chorava de emoção ao ouvir Hitler. Não tinha a menor dúvida da superioridade da “raça alemã” sobre os outros povos – a escumalha que deveria ser varrida do planeta em nome da supremacia ariana. Terminou se integrando à temida Divisão Panzer, a muralha de tanques que abria caminho para o avanço das tropas nazistas.

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O ex-soldado nazista: lembranças atormentadas (Foto: GMN)

Quando a guerra eclodiu, em setembro de 1939, Metelmann ainda não era soldado. Dois anos depois, foi personagem da ofensiva contra a Rússia.

Eis um decálogo das lembranças do homem que matava em nome de Adolf Hitler:

1.”Tudo o que me foi ensinado na Juventude Hitlerista e na escola dizia que eu pertencia a uma das maiores nações da terra: a alemã. Hitler era nosso líder. Para mim, ele era uma espécie de segundo Deus. Eu poderia morrer por ele!”.

Uma menina que corria para dar as boas-vindas aos soldados, um prisioneiro chamado Bóris, uma mulher chamada Celina: três tragédias que atormentam as lembranças do soldado

2. “Quando vi Hitler pela primeira vez, em Hamburgo, devo dizer que fiquei desapontado, porque ele era baixo. Pensei que ele era grande e forte, mas ele não era. Tinha um rosto sério. Não se via riso ao redor de Hitler. Assim era ele”.

3.”Quando me tornei soldado, achava que era um ser humano superior, em comparação a todos os outros. Éramos a raça ariana! Os russos, os poloneses, os povos eslavos era raças inferiores. Por essa razão, éramos superiores”.

4.”Precisávamos conquistar primeiro a Europa para, depois, conquistar o mundo. Eu apoiava inteiramente essa idéia! Pensava que ela era certa. Nossa missão, portanto, era impor nossa vontade às outras nações. Se as outras nações não acreditassem nessa idéia, teríamos de forçá-las. Era este o motivo de nossa brutalidade na guerra”

5.”A lembrança mais dolorosa que tenho é do ponto de vista humano. Estávamos em nosso tanque quando um colega disse : “Olhe, maçãs !”. Tínhamos chegado a uma espécie de sítio. Eu estava guiando o tanque. Desci, então, para colher maçãs para nós. Neste momento, vi uma mulher debruçada sobre uma menina que deveria ter uns doze anos. Tinha sido atingida por um disparo. O sangue saía da ferida aberta no corpo da menina. Pensei: “Não posso fazer nada”. A mulher – a mãe da menina – levantou-se, olhou para mim e disse: “Veja o que vocês fizeram ! Minha filha estava vindo para dar as boas-vindas a vocês, soldados ! O que ela estava trazendo para vocês era pão e sal – que é um sinal de boas-vindas. E vocês a mataram!”. Eu me lembro de que a menina ainda estava respirando. Voltei para o tanque. Um dos meus colegas perguntou: “Cadê as maçãs ?”. Eu disse : “Acabei de ter uma experiência terrível. Nós matamos uma menina! Ela está ali, no chão. Não podemos fazer nada!”. Meu colega disse : “Ah, não importa! É somente uma russa…”

6.”Conheci bem um prisioneiro, porque fui encerregado de vigiar,à noite, a área em que ele estava. Chamava-se Bóris. Eu sabia que todos seriam executados. Estava de guarda naquela que seria a última madrugada da vida de Bóris. Eram cerca de quatro da manhã. Pouco depois, às seis, ele seria fuzilado. Enquanto eu me afastava, ele apontou para o meu rifle: “Você pode fazer qualquer coisa! Pode matar muitos de nós, russos. Pode destruir! Pode causar mal! Mas não pode matar idéias!” . Ainda respondi: “Não consigo entender!”. Eu estava impregnado de minhas idéias nazistas. Fui embora. Mas ele repetiu: “Você pode fazer mal com este rifle! Mas não pode atingir as idéias. E essas idéias vencerão, não importa quanto demore!”. Participei da execução de Bóris e de outros prisioneiros – que foram fuzilados. Ouvi os tiros. De fato, fiquei triste por ele. Porque achei que ali estava um ser humano decente. Eu estava sentindo pena de Bóris. Mas devo dizer que também não achava que as execuções fossem exatamente erradas. Eu pensava na superioridade dos alemães. Nossa obrigação era limpar o lixo do mundo. Era este o motivo de estarmos fazendo aquelas coisas”

“A mulher disse: “Vocês são uns porcos nazistas! Espero que percam a guerra!”

7.”Vi uma mulher que, para mim, parecia velha: devia ter uns sessenta anos. As mãos da mulher tinham sido amarradas a uma árvore. Perguntei a um soldado que estava por perto: “O que foi que aconteceu?”. E ele: “Nós a capturamos na noite passada, quando ela se preparava para enterrar minas”. Ou seja: quando um tanque de nossa Divisão Panzer, um caminhão ou um carro alemão passassem, explodiriam. Eu disse a ela algo como: “Ah,bom, pegamos você! Como é que você se chama ?”. Ela respondeu: “Celina”. E eu: “Celina de quê ? “. E ela: “Não vou dizer nada!”. Nossos soldados, então, pegaram uma corda para que ela pudesse ser executada. Disse: “Porcos alemães! Vocês vieram aqui ocupar nosso país. Longa vida à revolução! Longa vida a Lênin! Vocês são porcos! Espero que percam a guerra!”.

Celina morreu. Nosso comandante disse: “Livrem-se do corpo. Enterrem-no”.

Fiquei pensando: “Celina era uma mulher muito corajosa. Sozinha, diante de nós, soldados fortes, disse: “Vocês são uns porcos nazistas!”. Pensei comigo: “Isso foi um gesto de coragem, Celina. Não importa de que lado as idéias estejam. Não importa. Você teve coragem”.

8.”Participei do combate contra os russos. A única maneira de sair daquele inferno era manter a coesão do nosso exército. Ou seja: nós, alemães, nos unirmos para tentar sair. Creio que essa foi uma das razões por que lutamos como demônios na Rússia: não queríamos ser capturados. Tínhamos ocupado um país! Além de tudo, matamos gente, matamos soldados. Éramos duros, difíceis. Pensávamos que tínhamos esse direito. Hoje, lamento”.

9.”Não posso dizer, hoje, que “lamento” o que fiz, porque não significa nada para para ninguém. Mas, hoje, sou totalmente internacionalista. Não acredito na superioridade alemã, porque essa idéia é estúpida, perigosa e, por fim, autodestrutiva”.

10.”Hoje, como existe uma espécie de guerra em andamento no Iraque e no Afeganistão, vejo jovens que são postos em uniformes e enviados para esses países. Vão matar e, provavelmente, morrer. É esta fonte de minha frustração: sei que é errado, mas não posso fazer nada”. ( o depoimento do ex-soldado foi publicado, na íntegra, sem qualquer corte, em “Dossiê História“).

Quando saí da casa do velho soldado, em companhia do cinegrafista Paulo Pimentel, ao fim de uma entrevista que se estendeu por uma tarde gélida de fevereiro de 2007, um detalhe me impressionava. Décadas e décadas depois do fim da guerra, o ex-soldado, então com 85 anos, não fazia grandes elucubrações geopolíticas nem alinhavava teses para justificar o horror. Não se estendia sobre Hitler nem Stalin nem Mussolini. Não tratava da Conferência de Yalta nem da divisão da Europa. Preferia falar de três lembranças que o acompanham, intocadas, desde então.

Três personagens literalmente perdidos no tempo, sem rosto, sem sobrenome, sem história : a menina que corria com um cesto de pão nas mãos, Celina e Bóris.

Feitas as contas, os três é que importam. A “dimensão humana” termina se impondo.

Depois de se despedir, o ex-soldado recolhe-se à solidão da viuvez, na andar térreo do casarão onde mora, longe de tudo e de todos. Lá dentro, as três lembranças de sempre estarão esperando por ele: a menina, Celina e Bóris; a menina, Celina e Bóris; a menina, Celina e Bóris.

Sempre foi assim.

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Foto: GMN

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abril 21, 2009

ROBERTO CARLOS

ROBERTO CARLOS TENTA EXPLICAR O FENÔMENO ROBERTO CARLOS


O cenário é a suíte de um hotel em Ipanema. Numa gravação feita originalmente para o Fantástico, Roberto Carlos dá pistas sobre o motivo do sucesso perene de um fenômeno chamado Roberto Carlos. Primeira pista: a exigência. Num país em que o improviso é tido como virtude, Roberto Carlos é obsessivamente exigente com a qualidade do que faz. O nível de exigência descamba com frequência para a teimosia, como ele próprio admite. Mas pode explicar – pelo menos em parte – a gênese do sucesso. Segunda pista: a paciência. Terceira: a sintonia com o gosto popular.

Com a palavra, o “Rei” Roberto Carlos, num depoimento agora publicado pela primeira vez.


GMN: Já se tentou explicar. Como é que você explica o fenômeno Roberto Carlos?

Roberto Carlos: “Nunca me preocupei com a explicação. Trabalho muito. Gosto muito do meu trabalho. Uma das coisas que têm me ajudado muito é a paciência. Porque não basta saber fazer música. É preciso ter paciência para insistir na idéia de fazer melhor do que aquilo que a gente fez até certo ponto. A gente fez até aqui (aponta para uma escala imaginária) e ficou bom. Mas será que se eu ficasse outra noite trabalhando nesta frase eu não iria fazer melhor ?

A paciência me impulsiona. Isso tem me ajudado. O que tem me ajudado muito também é que tenho o gosto muito parecido com o do povo. Gosto – muito – das coisas de que o povo gosta. Podem ser coisas muito simples – que a própria crítica não elogia tanto por ser algo muito popular. Mas gosto. Eu me identifico – muito - com o povo, realmente. É um fator que tem contribuído para o bom resultado de minha carreira. Mas é apenas um fator. São coisas que a gente não sabe explicar”.

GMN: As virtudes de Roberto Carlos como um grande cantor todo mundo conhece. Se você fosse um crítico de música rigoroso, que defeito você apontaria em Roberto Carlos?

Roberto Carlos: “Sou teimoso. Exagero um pouco na minha teimosia. Quando estou trabalhando num CD - e as coisas estão indo bem - eu até paro para pensar um pouco. Descanso, relaxo. Quando vou ouvir de novo, digo: “Estava bom. Teimei demais”.

GMN: Chico Buarque disse numa entrevista que, com o passar do tempo, a necessidade de fazer música vai diminuindo, porque música popular, segundo ele, é coisa de juventude. A fonte do Roberto Carlos compositor começou a secar ou não?

Roberto Carlos: “Não.De jeito nenhum. Eu sinto diferente: a necessidade de fazer música não tem diminuído com o tempo. Sempre quero fazer alguma coisa nova. Quero falar das coisas que sinto numa nova música. Penso assim. Logicamente, com o passar do tempo a gente gosta um pouco mais do conforto e de trabalhar um pouco menos. Mas fazer música é algo de que gosto muito. Não tenho menos vontade de fazer música. Gosto de fazer. Quero fazer mais”.

GMN: Que tipo de cuidado você tem com a voz? É verdade que você masca gengibre todo dia?

Roberto Carlos: “Não masco gengibre. Faço um gargarejo de gengibre com mel antes dos shows. Os cuidados que tenho são os de não fazer esforços exagerados com a voz, manter minha voz sempre bem cuidada. O gengibre é suave, com mel. Não masco, porque acho muito forte”.


GMN:Você diz que já conseguiu se livrar de manias que estavam atrapalhando você. De que mania exatamente você já se livrou?

Roberto Carlos: “Não é bem assim! Não são só manias. É a questão do TOC, o Transtorno Obsessivo Compulsivo. Não se trata de se livrar dessa ou daquela mania, mas de tratar o problema como um todo. Determinadas coisas me angustiam hoje menos do que antes. Exemplo: o fato de você estar de preto não está me incomodando. Antes, eu poderia ficar um pouco incomodado. Mas vai ser difícil eu fazer certas coisas. Vai ser muito difícil que eu venha a usar o marrom. É uma cor de que não gosto. Também vai ser difícil eu deixar de usar azul. Porque é uma cor de que gosto. Preto é uma que acho bonita...”.

GMN: Se eu estivesse de marrom – uma cor que você detesta – você me receberia?

Roberto Carlos: “Receberia. Mas, se você fosse gravar um disco comigo de marrom, eu iria ficar meio “assim”“.

GMN: Com o tratamento , você já conseguiu descobrir qual foi a origem dessas manias?

Roberto Carlos: “Não existe a descoberta da origem. O Transtorno Obsessivo Compulsivo pode até ser hereditário. Não tem uma origem básica. Isso parece que já vem no DNA”.

GMN: Quantas sessões de tratamento você vem fazendo por semana para se livrar do TOC?

Roberto Carlos: “Faço duas sessões por semana já há algum tempo”.

GMN: Você tem apelado para medicamentos também?

Roberto Carlos: “Não tenho tomado remédio”.

GMN: Que palavras você não dizia antes mas agora se sente à vontade para dizer?

Roberto Carlos: “Ainda não cheguei a este estágio do tratamento. Mas algumas reações que eu censurava muito eu segurava. Hoje em dia, falo. Digo as coisas que me incomodam. Uso qualquer tipo de palavra – inclusive palavrão mesmo. Eu me segurava muito. Ficava sempre me criticando e me segurando”.

GMN: Você chegou a mudar letras de músicas suas, para evitar dizer certas palavras ? Hoje, você se sentiria à vontade para dizer certas palavras?

Roberto Carlos: “Estou quase. Eu mudei a letra de “É preciso saber viver”. Digo “se o bem e o bem existem”. Mas, daqui a pouco, eu vou dizer a outra”.

GMN: É verdade ou é lenda essa história de que você fala com as plantas?

Roberto Carlos: “É um pouco de verdade e um pouco de lenda. Falo com as plantinhas. Mas, na realidade, o que faço é carinho nas plantas, por serem seres vivos”.

GMN: O que é que você diz a elas?

Roberto Carlos: “Faço um carinho. Cumprimento. Digo: “Bom dia. Tudo bem, minhas plantinhas...” – qualquer coisa assim. Boto a mão nas plantas com muito carinho. Tenho realmente muito carinho por elas. Mas não existe uma conversa. Antigamente, eu dizia até que ouvia as plantas. Mas acho que eu estava meio.....Agora, estou um pouco pior (ri). Só falo, para não dizer que ouvi....”.

GMN: Quando quer andar na rua sem ser reconhecido, Pelé usa disfarces. Qual foi a última vez em que você conseguiu andar na rua?

Roberto Carlos: “Faz muito tempo. Nem me lembro de poder andar na rua tranquilamente sem ser abordado por alguém. Isso só antes da Jovem Guarda. De lá para cá, só lá fora, onde ninguém me conhece como aqui. Não é questão ser incomodado, mas ser abordado pelas pessoas”.

GMN: Você sente falta da liberdade de poder ir ao cinema num sábado à tarde ou a um restaurante sem ser abordado?

Roberto Carlos: “Eu sinto às vezes. Penso sempre assim: o que acontece é o bom resultado do trabalho que faço. O resultado do trabalho de um artista é ele ficar conhecido e ganhar todo o carinho do público. Isso é que faz com que ele não possa sair à rua tranquilamente. Mas às vezes sinto falta. Antes, não sentia tanto. Mas atualmente, nesta fase de minha, tenho sentido falta de sair um pouco, tomar um sorvete na esquina, bater um papo, tomar uma cerveja. Normalmente, não tomo cerveja. Mas até uma cerveja iria bem”.

GMN: Você já pensou na possibilidade de usar um disfarce?

Roberto Carlos: “Fiz duas vezes na época da Jovem Guarda”.

GMN: Descobriram você?

Roberto Carlos : “Quando saí pela segunda vez, um cara disse: “Você parece Roberto Carlos...”.Eu disse :”Não sou não”. Mas acho que ele não acreditou em mim”.

GMN: Que disfarce você usou?

Roberto Carlos : “Botei barba, o cabelo todo para trás. E saí. Fui ao cinema. Mas a barba postiça, para ficar natural, tem de ser colada. E incomoda muito. Não foi uma coisa confortável. Não me animei, então, a fazer outras vezes”.


GMN: Por que é que você renega o primeiro disco que você gravou? Você considera esse disco ruim, por algum motivo?

Roberto Carlos: “Não renego. Com toda sinceridade: não considero este disco como um disco bom. Tanto é que não vendeu. Ou vendeu muito pouco. Mas não chego a renegá-lo. É um disco que faz parte de minha história. O que aconteceu, na realidade, é que a própria CBS não manteve este disco em catálogo. Virou um disco de colecionador. Já que não foi colocado em catálogo nem se encontrava nas lojas, virou um disco difícil. Mas não renego nem considero um bom disco. É um disco de começo de carreira” (O disco que nunca foi relançado é “Louco por Você”, gravado em 1961).

GMN: O motivo por que esse disco não agrada tanto você é porque você imitava João Gilberto?

Roberto Carlos: “Não. Eu, na realidade, cantava muito influenciado por João Gilberto, mas num disco anterior (um compacto em que canta “João e Maria” e “Fora do Tom”). Neste disco eu já estava adquirindo minha própria maneira de cantar, meu próprio jeito”.

GMN: A moda dos cabelos grandes passou para todo mundo, menos para Roberto Carlos. Você pensa em um dia cortar os cabelos?


Roberto Carlos: “Não. Pode ser que eu diminua um pouco o comprimento. Mas acho muito difícil que eu venha a usar o cabelo totalmente curto. Não me vejo assim. Se eu tivesse um cachorro e chegasse em casa de cabelo curto, ele iria estranhar. E eu também iria me estranhar”.

GMN: Que tipo de conselho o vovô Roberto Carlos dá aos netos?

Roberto Carlos: “Que eles sejam boas pessoas e se empenhem sempre em caminhar do lado do bem e lutem pelas coisas que querem. Mas ainda são muito pequenos para entenderem. É o recado que darei daqui a pouco a eles. De uma certa forma, a gente já diz a eles essas coisas de uma forma ou de outra”.

GMN: A gente descobriu no arquivo da TV Globo um pedido de Cartola endereçado a Roberto Carlos: ele queria que você gravasse a música “O Mundo é um Moinho”. Você já pensou em incluir uma música de Cartola no repertório?

Roberto Carlos: “Quase cantei uma música de Cartola : “As Rosas não Falam”. Mas, justamente por achar que as rosas falam, eu disse: “Não; não vou gravar ainda não”. Pode ser que um dia eu venha a gravar. A música é linda. A letra é linda, maravilhosa. Cartola ó um grande compositor, inspiradíssimo. Faz coisas lindas. Quem sabe um dia eu vou gravar uma de suas músicas...”

GMN: Que música de outro compositor você daria tudo para ter feito?

Roberto Carlos: “Algumas músicas eu gostaria de ter feito. Não vou dizer quais são, mas, em algum momento, eu teria vontade de trocar uma frase. Vejo músicas lindas que falam de amor mas de repente, no final, elas mudam para terminar de uma forma mais inesperada. Isso às vezes me tira a idéia de gravar essas músicas.

Gosto de canções que falam sempre de amor bem-sucedido. Eu mesmo tenho feito canções de amor que não falam somente de amores bem sucedidos. Mas hoje em dia gosto de falar de amores bem sucedidos, como na canção “Te Amo Tanto” – que fala de uma declaração de amor. Fico pensando por que o amor é muito usado na arte, no teatro, na música – mas falando da dor. É curioso. Para mim, amor não devia combinar com dor. É meio utópico. Hoje, gosto de fazer canções que só falam na forma maior do amor”.

GMN: Você falou de músicas que desistiu de gravar por achar que elas não tocam do amor do jeito que você entende. Você pode citar uma música de outro compositor a que você não faria nenhum reparo?

Roberto Carlos: “É difícil. Não sei. Mas quando digo que não sei não quer dizer que eu tenho alguma coisa a criticar nas músicas de outros compositores”

GMN: Uma velha pergunta: você acha que cantor deve falar de política?

Roberto Carlos: “Depende. Aquele que entende de política deve. Mas quem não entende de política não deve. Porque ninguém deve falar sobre o que não sabe. A gente deve falar sobre o assunto que conhece. Quem entende bem de política deve falar, assim como quem entende de amor fala de amor. Quem entende de matemática fala de matemática. Não tenho nada contra quem fala de política em música. Isso depende da vontade e do conhecimento de cada um”.

GMN: Diz-se que Roberto Carlos talvez seja o cantor mais carismático da música brasileira. Que definição Roberto Carlos tem para “carisma”?

Roberto Carlos: “Carisma é quando uma pessoa consegue chegar ao público e haver uma comunicação, uma troca de sentimento , energia e amor. É algo que pode acontecer em todos os setores, não apenas com os artistas. Quando alguém tem esse tipo de característica – o de se comunicar no olhar e causar alguma coisa ao espectador ...O carisma é uma troca de energia”.

GMN: Você faz força para criar a imagem de bom moço?

Roberto Carlos: “A imagem de bom moço, não. Sou o que sou! Se de repente passo a imagem de bom moço, não vejo nada de errado. O errado seria se eu fosse um cara errado tentando passar a imagem de um cara certo. Não quero dizer que eu seja dos mais certinhos. Sou apenas o que sou. Mas não me preocupo em passar algo que não sou”.

GMN: Erasmo Carlos disse numa entrevista recente que os contatos entre vocês dois são raros hoje em dia. O casamento artístico com Erasmo Carlos começou a dar sinais de cansaço?

Roberto Carlos: “Não. Não chamaria de ”casamento artístico” , porque não gosto dessa expressão. Nesta nossa amizade realmente fraternal, a gente nunca se cansou de trabalhar um com o outro. O que acontece é que, num determinado momento da minha vida, eu quis compor sozinho. As canções que tenho feito nesses cinco anos, dedicadas a Maria Rita, gosto de fazer sozinho. É uma coisa minha, muito minha. E até com Erasmo, meu irmão e “amigo de fé”, como digo na letra que fiz para ele, não seria algo que eu gostaria de fazer. Porque essas músicas gosto de fazer sozinho. Erasmo sabe. E entende muito bem”.

GMN: Pouca gente sabe que você compôs sozinho alguns dos grandes clássicos da Jovem Guarda, como “Quando” e “E Por Isso Estou Aqui”...

Roberto Carlos: “Namoradinha do Amigo Meu” também...

GMN: Uma curiosidade “técnica”: quando você compõe sozinho, você usa piano ou violão? Como é que você começa a compor?

Roberto Carlos: “Antigamente, eu compunha com violão. Depois, comecei a compor com piano. Mas não toco piano. Ou toco muito mal. O meu piano é um pianinho elétrico em que troco de tom. Não toco em todos os tons. Não tenho esta habilidade, embora tenha estudado piano quando era menino. Mas muito pouco. Sou muito limitado no piano. Mas tenho composto mais no piano do que no violão”.

GMN: Você já teve a tentação de apelar para o espiritismo para tentar um contato com Maria Rita?

Roberto Carlos: “Não...”

GMN: Quando o seu filho teve problemas de saúde, você teve contatos com Chico Xavier...

Roberto Carlos : “Tive. Procurei inclusive Zé Arigó (médium mineiro a quem se atribuíam “curas espirituais” nos anos sessenta) num momento de muita aflição. Acho que meu filho foi beneficiado com esse contato que a gente fez com Arigó...”

GMN: Hoje, você não teria a tentação de apelar para o espiritismo para estreitar o contato que você diz que mantém com Maria Rita até hoje?

Roberto Carlos: “Não. Isso tenho feito do meu jeito – espiritualmente e mentalmente. O jeito que estou fazendo é melhor para mim e para nós”

GMN: Sua fé religiosa sofreu algum abalo em todo este processo?


Roberto Carlos: “Não sei se um abalo. Mas passei a ver todas essas coisas de uma forma muito realista. Aquilo de “a fé remove montanhas” não é, para mim, uma realidade. A fé ajuda você, dá força. Ajuda você a subir a montanha e sair do outro lado. Ou a dar a volta. Mas não tira a montanha da frente. A fé, então, ajuda, mas não muda o panorama das coisas. Porque as coisas não mudam de repente”.

GMN: Se você fosse fazer uma comparação, você diria que o Roberto Carlos de hoje é tão religioso quanto o Roberto Carlos de há vinte anos?

Roberto Carlos: “Sou religioso. Talvez não seja tão praticante. Continuo católico. Só que hoje, sem culpas, consigo questionar certas coisas de minha religião e de todas as religiões. Questiono inclusive esta questão da fé. Isso é uma questão de evolução, através da vida e dos acontecimentos. Hoje, vejo tudo de forma realista. Questiono coisas que não questionava antes”.

GMN: Paul McCartney disse, numa entrevista recente, que às vezes em casa, diante do espelho, na hora de escovar os dentes, ele se pergunta: “Mas será que este é o Paul McCartney que tocava com os Beatles?”. Em casa, sozinho, vive a sensação de olhar para Roberto Carlos como se Roberto Carlos fosse outra pessoa?

Roberto Carlos: “Não. Nem um pouco. Eu me olho no espelho de uma forma normal, como uma pessoa comum. Nem me lembro. Sinceramente. Faço as coisas de uma forma natural. Olho-me no espelho, faço minha barba, penteio o cabelo. Não penso nessas coisas”.

GMN: Se alguém pedisse a Roberto Carlos para escrever um verbete sobre Roberto Carlos numa enciclopédia da música popular brasileira, qual seria a primeira frase que você escreveria?

Roberto Carlos: “Não escreveria....”

GMN: Por excesso de modéstia?

Roberto Carlos: “Porque, para mim, é complicado escrever sobre mim mesmo. Acho muito complicado”.

GMN: E se um crítico recorresse a você e perguntasse: qual é a melhor definição de Roberto Carlos sobre Roberto Carlos?

Roberto Carlos: “Para mim, é complicado. Só se ele me perguntasse especificamente sobre uma característica minha. Mas eu me analisar e escrever alguma coisa a meu respeito, eu não saberia. Para mim, seria difícil”.

GMN: Se tivesse de escolher uma só palavra para definir Roberto Carlos, que palavra você usaria?

Roberto Carlos: “Uma só palavra é difícil. É a mesma coisa que você me perguntou antes: se eu tivesse de escrever alguma coisa numa enciclopédia a meu respeito. Você pergunta a mesma coisa com uma só palavra, o que é mais difícil ainda... Não sei. Nunca parei para pensar nesta questão. Sou o que sou. Escrevo e canto o que sinto. E só. Paro por aí. Não fico me analisando”.

GMN: Numa entrevista antiga que você deu ao Fantástico, você dizia que já se daria por satisfeito se fizesse parte das lembranças do público. Isso satisfaria você hoje ainda?

Roberto Carlos: “Com certeza. Estou satisfeito com o que tenho conseguido junto ao público. Ficar na lembrança do público é uma coisa muito linda”.

GMN: Você um dia teria disposição para escrever um livro de memórias?

Roberto Carlos:”Já pensei em escrever minha história. Mas acho que, num livro só não cabe não. Vou ter de escrever uns três livros...” (rindo)

GMN: Já escreveu alguma coisa em casa?

Roberto Carlos: “Não. Faz vinte anos que estou pensando nisso...”

GMN: É verdade que você vem preparando um livro de memórias com um jornalista?

Roberto Carlos: “Não. Já pensei em contar minha história. Mas ainda não escrevi a primeira linha”.

GMN: Não são poucos os críticos que consideram a década de sessenta como o auge de Roberto Carlos. Você concorda com essa avaliação?

Roberto Carlos : “A década de sessenta foi uma época muito importante em minha vida. É a que mais chama a atenção dentro de toda a minha carreira. Mas os anos setenta são anos muito importantes na minha obra, pelas canções que escrevi. A Jovem Guarda, no entanto, é a que mais chama a atenção e a época mais representativa, pelo menos junto ao público , ao espectador, ao fã”.

GMN: Você tem alguma dificuldade de se analisar como artista. Você tem um certo pudor em se reconhecer como um grande nome da música brasileira – ou como um grande ídolo popular, pelo menos...

Roberto Carlos: “Tenho, porque acho que essas coisas não são pra gente viver, mas para ouvir. Sobre a gente mesmo e sobre as coisas que a gente faz, a gente tem de ouvir o que os outros acham - e não dizer o que a gente pensa sobre nós mesmos”.

(Entrevista gravada no dia 10 de dezembro de 2004)

Posted by geneton at 12:13 PM

janeiro 12, 2009

FRIAÇA

O DEPOIMENTO COMPLETO DO ÚNICO BRASILEIRO QUE REALIZOU O SONHO DE MARCAR UM GOL NUMA FINAL DE COPA DO MUNDO NO MARACANÃ. A INCRÍVEL HISTÓRIA DO ARTILHEIRO QUE TEVE UMA CRISE DE AMNÉSIA DEPOIS DE PERDER UM TÍTULO QUE PARECIA CERTO. QUANDO ELE "VOLTOU A SI", ESTAVA DEBAIXO DE UMA ÁRVORE, NUMA CIDADE DO INTERIOR"

Friaça podia bater no peito: era o único brasileiro que realizou o sonho de todo jogador de futebol: marcar um gol pelo Brasil, numa final de Copa do Mundo, no Maracanã.

O autor da façanha morreu hoje, doze de janeiro de 2009, aos 84 anos.

Tive a chance de entrevistá-lo duas vezes.


O depoimento completo de Friaça foi publicado no nosso livro "DOSSIÊ 50', lançado em 2000 pela Editora Objetiva. É a única reportagem que traz a palavra de todos os jogadores que entraram em campo para enfrentar o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950. Esgotado, o livro virou "raridade". Mas pode ser encontrado em sebos.
:

“FIZ UM A ZERO NA FINAL DA COPA.ALI NÓS JÁ ÉRAMOS DEUSES”

Albino Friaça Cardoso tinha vinte e cinco anos, oito meses e vinte e seis dias quando realizou o sonho máximo de todos os jogadores brasileiros de todas as épocas: fazer um gol numa final de Copa do Mundo dentro do Maracanã superlotado. O gol sai logo no primeiro minuto do segundo tempo. O Maracanã enlouquece. Friaça também. “A emoção foi tão grande que só me lembro de uma pessoa que veio me abraçar: César de Alencar, o locutor. Quando a bola estava lá dentro, ele gritou: “Friaça, você fez o gol!”. Naquela confusão, ele entrou em campo e me abraçou. Nós dois caímos dentro da grande área”.
Louco de alegria, Friaça só se lembra com clareza do rosto de César de Alencar. “Passei uns trinta minutos fora de mim. Eu não acreditava que tinha feito o gol. Eu tinha potencial, mas estava ao lado de craques como Zizinho, Ademir e Jair. E logo eu é que fiz o gol”. Se o Brasil precisava apenas de um empate, então o jogo estava liquidado: a seleção ia ser campeã do mundo. “Ali, nós já éramos deuses”.

Friaça só não poderia imaginar que outras cenas inacreditáveis iriam acontecer ali – além da queda com César de Alencar dentro da grande área, numa explosão de alegria. Consumada a tragédia brasileira, diante da maior platéia até hoje reunida para um jogo de futebol, a dor da derrota desnorteou o autor do gol do Brasil.

“O trauma foi enorme. Vim para o Vasco. Fiquei, em companhia de outros jogadores, andando de noite em volta do campo, ali na pista. O assunto era um só: como é que a gente foi perder com um gol daqueles ?”.

Depois das voltas inúteis em torno do campo do Vasco na noite de domingo, Friaça pirou. “Só me lembro de que a gente subiu para o dormitório. Eram umas onze da noite. Troquei de roupa e me deitei. Não me lembro de nada do que aconteceu depois. Quando dei por mim, por incrível que pareça, eu estava em Teresópolis, no meu carro. Passei pela barreira, fui para um hotel. Quando me perguntaram: “Friaça, o que é que você quer?” Eu simplesmente não sabia onde estava. Só sabia que estava debaixo de uma jaqueira, no terreno do hotel. Não sei como é que saí com meu carro da concentração. Não sei como é que fui bater em Teresópolis. Um médico que era prefeito de Teresópolis é que me deu uma injeção. Comecei a saber onde é que estava uns dois dias depois. A a minha família,em Porciúncula,estava atrás de mim, sem saber onde é que eu estava. O pior é que eu também não sabia. De 64 quilos eu passei para 59”.

Quem tivesse a sorte de fazer gol pelo Brasil ganharia um terreno – era um dos prêmios aos futuros campeões do mundo. O artilheiro da finalíssima contra o Uruguai mereceria um prêmio extra – uma televisão, na época, um luxo para privilegiados. Quando finalmente descobriu em que país estava, depois do trauma da vitória do Uruguai, Friaça tentou receber o terreno e a televisão.

“A resposta que me deram foi: só se o Brasil tivesse vencido o jogo...”.


“Eu tinha confiança : a gente ganharia do Uruguai com facilidade.Cheguei a imaginar um placar de 2 ou 3 a 0 para o Brasil,pelo time que nós tínhamos e pelo time que o Uruguai tinha.A gente pode dizer que o Uruguai tinha um grande time,mas o Brasil era uma potência,uma força.O Brasil não pensava nem no empate.A gente não daria essa chance ao Uruguai.A verdade é que nós,os jogadores,estávamos tranquilos.A gente sabia que,se o time jogasse o que vinha jogando,dificilmente perderia.Se o tempo pudesse voltar,se o Brasil pudesse jogar dez vezes contra o Uruguai,ganharia nove.A seleção de cinquenta foi uma das maiores que o Brasil já teve.

A maior vingança que experimentei em minha carreira esportiva aconteceu um ano depois de nossa derrota na final da Copa de 50.O Vasco da Gama foi ao Uruguai jogar contra o Penarol. Ganhamos do Penarol – que tinha onze jogadores de seleção – dentro do Estádio Centenário.Repetimos a dose em outro jogo,aqui no Brasil.


Em 1950,nós estávamos engatinhando. Não estávamos preparados para ter um impacto tão grande quanto o que sofremos.O nosso time tinha um potencial muito maior do que o do time do Uruguai. O gol de empate do Uruguai,marcado por Schiaffino,teve um impacto grande sobre nosso time.Porque,até então,o jogo mais duro que tivemos tinha sido contra a Iugoslávia.Vencemos por 2 a 1,um jogo duro.

Diante dos outros,o Brasil jogava quase que a toque de música,como,depois,a seleção de 70.Era um time homogêneo.Quando o Uruguai fêz o gol de empate,sentimos um impacto.Há quem fale em Bigode.Mas fomos todos nós


Não houve falha na armação tática do time.Ainda ouço até hoje que Obdulio Varela deu um tapa em Bigode. Não deu.Eu estava lá ! Pude sentir todo o problema.Bigode –é verdade- tinha dado uma entrada violenta.Aliás,violenta,não : uma entrada dura.Houve o impacto do juiz.Neste momento,Obdulio entrou em cena para separar. Mas não houve nada.


O que aconteceu,no gol,adiante,é que Bigode foi batido numa jogada,porque Ghiggia era um jogador de alta velocidade. Se Bigode foi batido pela alta velocidade de Ghiggia,então teria de contar com a cobertura de outro jogador. Não posso ficar falando.Não é o caso de a gente crucificar A, B ou C.Mas não houve cobertura.Como não houve cobertura,veio aquele impacto. Schiaffino,no lance do primeiro gol do Uruguai,foi muito feliz,como Ghiggia.Basta ver que o próprio Ghiggia diz que pegou a bola mal no pé.Fêz o gol no contra-pé de Barbosa,o nosso goleiro.Pegou a bola quase que com o bico da chuteira.Resultado : a bola entrou entre a trave e a perna esquerda de Barbosa.

O que eu acho é que não houve uma cobertura certa no lance, já que se sabia que Ghiggia era um jogador de grande velocidade. Tinha pouco domínio de bola,mas era veloz.

Não acredito em falha técnica do treinador. Porque,desde o primeiro jogo,entramos da mesma maneira.Mas aconteceu o lance : Ghiggia recebia a bola e partia para cima de Bigode.Como era de alta velocidade,Ghiggia dava um chute lá pra frente e partia.Então,a cobertura era essencial.

Não estou crucificando ninguém.Mas estou dizendo o que faria : punha um jogador fazendo a cobertura.

Gravei bem o lance do meu gol contra o Uruguai,porque este é o tipo de coisa que a gente guarda.Eu tinha potência na perna direita,graças a Deus.Quando vi,Máspoli,o goleiro do Uruguai,tinha saído.Bati forte na entrada da área - do lado direito para o lado esquerdo.A bola entrou.O lance tinha nascido de uma combinação minha com Bauer.Assim : Bauer tocou para mim, eu toquei para o Zizinho – que tocou,na frente,para mim. Antes de entrar na área,bati na bola.Tive a felicidade de marcar !

Eu só tinha um pensamento : fiz o gol ! A única coisa que eu vi foi César de Alencar me abraçando.Caímos dentro da área.Passei uns trinta minutos fora de mim.Eu não acreditava: nós tínhamos craques como Zizinho,Ademir e Jair.Mas eu é que tinha feito o gol ! Em toda a vida,eu sempre fui muito frio, nunca tive medo de ninguém : eu era igual a todos. É uma das das vantagens que eu tinha -e tenho até hoje.

Quanto à recomendação que o nosso técnico fêz antes do jogo,é bom que se diga o seguinte : o que Flávio Costa não admitia a covardia,mas aceitava entradas firmes e duras,desde que fossem leais.Há uma diferença entre as duas coisas.Deslealdade é uma coisa,jogada dura é outra.

Se alguém pensou em tirar de campo um jogador como Obdulio Varela,foi bobagem.Porque Obdulio era um jogador vivo e manhoso : não ia cair numa dessas.Eu mesmo já passei por uma situação dessas. Gostava de jogo duro.Não cheguei a jogar quatro vezes no Vasco na mesma posição : ora era center-foward,ora ponta-esquerda,ora ponta-direita.ter four, ponta esquerda, ponta direita e gostava. Depois da Copa,joguei contra o Uruguai,como center-foward.Matias Gonzalez me disse : “Vou te botar pra fora da área !”.Eu disse : “Você me conhece ! Sou do estado do Rio ! Já joguei 4 vezes contra você.Vamos brigar até o fim do jogo.Você sabe que eu não corro do pau !”.

Antes do jogo,aquele assédio atrapalhou o descanso dos jogadores.Como era ano de eleiçãO,teve jogador que foi levado para passear.A seleção,então,não teve sossego,tranqüilidade.É por razões que eu digo que a seleção estava engatinhando,em 1950,porque não tinha uma vivência.Um exemplo: passamos quarenta e cinco dias em Araxá,sem comunicação alguma com nossas famílias. Depois que Paulo Machado de Carvalho e o falecido Geraldo José de Almeida foram para é que começamos a Ter contato.Acontecia o seguinte : nossas famílias não recebiam as cartas que a gente escrevia.

Não culpo Flávio Costa de jeito nenhum, porque ele era sozinho.Era Flávio Costa e Vicente Feola para tomar conta de vinte e cinco jogadores. Depois,ficaram vinte e dois.Hoje,existe uma comissão técnica.Mas quem fazia treinamento era Flávio Costa – tudo ele.A equipe era o roupeiro,dois massagistas,dois médicos e Vicente Feola,para ajudar.

Eu me lembro de lances que poderiam ter mudado a história do jogo.Eu era um jogador que tinha noção dos passes,principalmente os de perna direita. Houve um lance em que fiz um passe certeiro,para Ademir entrar de cabeça.Eu,naquele estado de nervos,tinha certeza de que Ademir,com a facilidade que tinha para jogar,faria o gol.Mas Ademir praticamente devolveu a bola para mim. A bola voltou na mesma direção ! Por aí,dá para ver o estado em que os jogadores do Brasil se encontravam,naquele momento,a dez,quinze minutos do fim da partida.Naquela altura,era tudo na base do “valha-me Deus”,porque ninguém entendia nada.

A gente tinha saído da concentração para o Maracanã às onze e quarenta e cinco.Chegamos ao estádio em torno de uma hora da tarde.Quando chegamos ao vestiário,encontramos colchão para todo mundo se deitar no chão.

Antes,quando a seleção estava concentrada no Joá,antes da mudança para São Januário,várias vezes tivemos de empurrar,em dia de treino,uma camionete enguiçada da Polícia Militar,uma daquelas que tinha a madeira pintada de amarelo e a lateria pintada de azul.


Durante a Copa,jogadores receberam camisa, corte de terno,relógios e lustres.Da Sexta para o sábado e do sábado para o domingo,dentro do bar do Vasco da Gama,na concentração em São Januário,eu assinei autógrafos como “capeão do mundo”.Assinei !

Tinha até comerciante envolvido.Hoje,jogador de futebol não faz um negócio desse se não receber uma importância. Mas eu assinei bolas,faixas,fotos,todo tipo de coisa.Já nem sei onde assinei...Quem fizesse o primeiro gol receberia um terreno,perto do Leblon.Quem fizesse o primeiro gol do Brasil contra o Uruguai iria ganhar uma televisão,uma novidade,na época.Fiz o gol.Nunca vi esse prêmio.Não ganhei terreno.Corri atrás,mas não adiantou nada.Quem ia dar os prêmios disse que não podia,porque o Brasil tinha perdido a Copa.A televisão ia ser prêmio de uma loja chamada A Exposição. Meu cunhado foi à loja,para saber do prêmio.Disseram : “Ah,não ! Só se o Brasil tivesse ganhado o jogo...”.

Logo em seguida,comprei uma televisão.


Durante a Copa,houve uma reunião entre os jogadores,para discutir a divisão de prêmios que eram oferecidos à seleção.Decidiu-se que ia se fazer um leilão dos objetos.Pelo seguinte : havia no grupo jogadores que não tinham condições físicas ou técnicas de jogar.Como não jogavam,corriam o risco de não receber prêmios.
Então,combinou-se com nossa “diretoria”,formada por Augusto,Nílton Santos,Castilho e Noronha,o seguinte : tudo o que cada um recebesse seria leiloado.Houve,então,uma pequena desavença sobre como é que se ia dividir um lustre de cristal,oferecido por uma loja.Flávio Costa entrou na discussão para acalmar o pessoal.



Mas o pior,para mim,veio quando o jogo acabou.Vim para o Vasco. Ficamos eu,Bauer, Rui e o Noronha andando em volta do campo,na pista do do Vasco. : é a momento mais duro que tive em minha vida.Dali,subimos para o dormitório.

O assunto era um só : como é que nós fomos perder com um gol daqueles ? Ficou aquela “conversa de bêbado”,sem fim nem começo.

Só sei que subi para o dormitório ás onze horas.Não me lembro de mais nada,não sei de mais nada. Quando eu dei por mim,estava em Teresópolis ! Uma pessoa do hotel me perguntava: “Friaça, o que é que você quer?” E eu nem sabia onde estava !.Só sei que estava debaixo de uma jaqueira,num hotel...Fui sozinho para lá.Não como é que pedi ao porteiro para sair,não sei como é que cheguei a Teresópolis.De manhã,o porteiro do hotel foi chamar o prefeito de Teresópolis – que eu conhecia.Tomei injeção,passei uns dois dias com ele. Honestamente,não sei o que eu tomei,mas fiquei apagado. Depois é que me refiz,comecei a saber onde é que eu estava e o que é que tinha feito.A minha família estava me procurando no Rio e em São Paulo,porque não sabia onde é que eu estava.Mas eu mesmo também não sabia ! Depois de chegar finalmente a Porciúncula,terra da minha família,eu me comuniquei com o Rio e com São Paulo.Eu tinha 64 quilos.Passei para 59.


Devo ter ido para Teresópolis porque sempre que tinha uma folga gostava de ficar quieto lá.Nunca gostei de confusão.Eu queria era tranquilidade.

O que vi no vestiário do Brasil,assim que acabou o jogo,foi só choro.Não se via outra coisa,a não ser gente se abraçando,chorando,lamentando.Os mais frios sofrem mais.Quem desabafa sente um alívio.quem não desabafa fica sofrendo.Nosso vestiário - desculpe a expressão – virou um cemitério.Era só gente se lastimando,como num velório.


Quando acabou tudo,eu pedia muito a Deus que eu jogasse outra vez contra o Uruguai.Terminei jogando – e ganhando,pelo Vasco : 3 a 1 em Montevidéu,2 a 0 aqui.


Não adiantava querer sonhar.Eu queria ir à forra.O Vasco chegou debaixo de cavalaria,mas ganhou.

Jogadores da seleção brasileira de 50 - que tinham condições de crescer na carreira - só regrediram depois da Copa.Antes,éramos deuses.

Nós,os jogadores,sofremos em todos os cantos,porque para onde a gente ia,ouvia só duas palavras : Obdulio,Uruguai "

Posted by geneton at 03:48 PM

dezembro 09, 2008

HERBERT DE SOUZA (BETINHO)

UM BRASILEIRO DESEMBARCA EM CUBA COM DÓLARES ESCONDIDOS EMBAIXO DA ROUPA.
MISSÃO: DEVOLVER AO GOVERNO DE FIDEL CASTRO DINHEIRO QUE NÃO SERIA USADO NA
GUERRILHA NO BRASIL. NOME DO BRASILEIRO: HERBERT DE SOUZA, O BETINHO


O movimento que o ex-governador Leonel Brizola tentou organizar no exílio para combater os militares que tinham tomado o poder no Brasil em 1964 teve pelo menos um financiador - o governo de Fidel Castro - e um pombo-correio,encarregado de fazer as negociações sobre a ajuda financeira em viagens clandestinas para Cuba : o militante Herbert de Souza,o Betinho,famoso anos depois como lider da Campanha Contra a Fome. O célebre ‘’Ouro de Moscou’’ na verdade era dólar de Cuba - pelo menos no caso do núcleo uruguaio.

Betinho foi o primeiro dos exilados brasileiros a ir do Uruguai para Cuba em missão clandestina em busca do apoio do governo de Fidel Castro ao movimento que Brizola pretendia liderar contra o regime militar brasileiro.

Meses depois,já afastado do núcleo brizolista,Betinho terminou se envolvendo de novo com os dólares de Cuba. A Ação Popular(AP) - grupo a que Betinho pertencia - tinha desistido da guerrilha. Resultado : Betinho voltou a Cuba com dólares camuflados pelo corpo, amarrados em cintas por baixo da roupa, porque queria devolver aos cubanos a parte que coube à AP no pacote de ajuda oferecida pela multinacional guerrilheira na epoca em operacao em Havana.

Três décadas depois,o muro que encobre a história da ajuda externa aos movimentos de combate ao governo militar no Brasil começa a ruir. Pela primeira vez,Betinho fala em cifras. Deixa no ar um tema para debate : neste depoimento exclusivo,diz que não vê problema ético algum em ter botado a mão nos dólares de Cuba, porque movimentos politicos de todas as tendências ideológicas recebem ajuda externa.

GMN - Como foi feita a viagem a Cuba para articular o apoio cubano à resistência ?

Betinho : ‘’Fui pedir o apoio cubano ao grupo liderado por Brizola,no Uruguai .Tive contato,em Cuba,com o comandante Piñero,o homem-forte desse esquema cubano de contatos com movimentos no exterior. Fui a Cuba para tratar do treinamento de brasileiros - e também do apoio financeiro de Cuba ao movimento. Fiz o primeiro contato.Brizola mandou emissários para dois lugares : para a China e para Cuba.

GMN-Por que você foi escolhido ?

Betinho : ‘’Tínhamos,no Uruguai, um ‘’Comando da Revolução’’, grupo que coordenava, junto com Brizola, as medidas da luta contra a ditadura no Brasil. Eu era um dos que integravam o grupo.Alguém de dentro do grupo tinha de ir a Cuba.Eu fui’’.

GMN - Há documentos secretos americanos que falam na ação conjunta de governos militares sul-americanos na perseguição a exilados no exterior. Você sentia que corria algum risco físico ?

Betinho : ‘’Algum risco a gente corria, porque nosso esquema era precário. Havia uma mala de fundo falso,usada para trazer dinheiro de Cuba. Depois, descobriu-se que essa mala era de um modelo só. Bastava alguém chegar ao Aeroporto para saber : lá vem a mala de Cuba..Era um esquema primário, tanto por parte de Cuba quanto de nossa parte. Fiquei envolvido nesse processo no Uruguai por onze meses’’.

GMN - Um relatório da CIA, divulgado há’ anos, diz que o grupo liderado por Brizola recebia ajuda de Cuba através de portadores que traziam ‘’dólares americanos’’. A CIA estaria se referindo a você ?

Betinho : ‘’Eu não trouxe o dinheiro. Só fiz o contato. Outros foram a Cuba e trouxeram. Não me lembro quem. Ou então Cuba entregava o dinheiro’’.

GMN- O próprio Brizola reconheceu, numa entrevista à TV em Porto Alegre, logo depois da volta do exílio,que houve uma ajuda de Cuba,’’modesta e pequena’’. Há versões desencontradas. Quanto era ?

Betinho : ‘’Eu nunca soube dessas quantias. Mas,pelo que conheco da época,milhão não era algo que estivesse ao alcance de Cuba. Porque Cuba tinha problemas de dinheiro,principalmente em dólar. Cuba tinha era a máxima boa vontade em ajudar. Brizola controlava esse dinheiro com minúcias de centavos. Porque era a subsistência do grupo. Tinha gente que estava no Uruguai por conta da chamada ‘’revolução’’ que iríamos fazer. Não tinham emprego. Brizola pagava alojamento e comida para uma turma’’.

GMN -Mas voce não tratou de quantias com o comandante cubano para o grupo de Brizola ?

Betinho : ‘’A remessa do dinheiro já não foi feita comigo. Outros é que entraram no circuito.Se eu falar em valor, é um chute. Não tenho elementos. Mas eu chegaria quase a garantir que um milhão de dólares estava fora do alcance de Cuba. Nao é que Cuba não tivesse o desejo de dar este apoio. Não tinha era dólar’’.

GMN - O que entrou,então,foi dólar de Cuba para os exilados no Uruguai...

Betinho - ‘’E muita economia, muita contribuição de bens do próprio Brizola. Porque ele tinha algum recurso. Nao era uma pessoa pobre. Eu diria que foi pouco dinheiro que correu ai’. Tão pouco que não deu margem a corrupção. Eram dezoito pessoas que iam fazer a guerrilha.O dinheiro era basicamente para passagens’’.

GMN- Quem trouxe,então, o dinheiro depois do primeiro contato que você teve em Cuba ?

Betinho - ‘’Emissários. Vinha tudo em mãos.Não se tinha acesso a banco nem conta na Suíça. Eram notas de vinte a cem dólares. Juntava-se tudo, punha-se numa mala de fundo falso. Mas nunca peguei numa mala dessas’’.
Que tipo de mensagem você levou para Fidel Castro ?

Betinho - ‘’Viajei do Uruguai para Cuba com uma carta de Brizola para Fidel Castro. Era uma carta simples : dizia que eu estava indo como emissário; pedia apoio. A carta era de uma página. Dizia : ‘’Prezado...’’.
A palavra seguinte era recortada. Adiante,dizia : ‘’Nós estamos enviando o emisssário....’’. E vinha outro recorte. Todos os nomes e referências eram recortados e deixados em outro envelope.

O problema é que os dois envelopes iam com a mesma pessoa ! Quem por acaso interceptasse o emissário só teria o trabalho de encaixar as palavras recortadas no espaco correspondente.Ficaríamos desmoralizados pelo primarismo do nosso sistema de comunicação.Um código deve sempre ter algo a ser decifrado.O nosso não tinha : era só colar as palavras!".

GMN: Quantas missões você cumpriu ?

Betinho : ‘’Voltei a Cuba não como emissário de Brizola,mas em nome da Ação Popular,para devolver dinheiro. Talvez eu tenha sido o único,na história humana....

A razão por que devolvi dinheiro a Cuba foi ideológica : nós, na AP, tínhamos feito a conversão ao maoísmo. Acontece que o maoísmo tinha uma diferença ideológica com a guerrilha. Como já não íamos usar o dinheiro de Cuba para fazer o treinamento de nossos militantes, a direção resolveu,então, que os dólares deveriam ser devolvidos.

Defendi esta posição : disse que tínhamos recebido o dinheiro para treinar. Se nao íamos treinar, então seria desonesto gastar o dinheiro de Cuba com outra coisa. Voltei, então, a Cuba levando o dinheiro em cintos embaixo da roupa. Eram,se não me engano,vinte mil dólares.

Os cubanos ficaram totalmente surpresos com a devolução! Tive um encontro com um auxiliar direto do comandante. Os cubanos ficaram me olhando, sem ter muitas palavras. Além de eu dizer que estava devolvendo o dinheiro - algo que jamais aconteceu lá - eu ainda dava as razões : ‘’Somos maoístas’’.

GMN - Houve casos de outros grupos que tenham devolvido dinheiro ?

Betinho : ‘’Tenho notícias de gente que fez o contrário : recebeu dinheiro da China mas armou uma empresa de táxi no Uruguai. A gente soube que aconteceu. Não ouvi falar de nenhum outro caso de devolução de dinheiro’’.
GMN - Como é que você chegava a Cuba ?

Betinho : ‘’Se a gente estava no Brasil, passava pelo Uruguai e ia para a Argentina. De lá, pegava um vôo - que passava por cima do Rio - rumo a Paris. Em seguida,Praga. Depois,Irlanda.P or fim,um pouso no Canadá,onde se pegava o vôo direto para Havana. Eram vinte e seis horas de viagem! ".

GMN - Você faria tudo de novo ?

Betinho : ‘’Faria por uma razão : naquele momento,havia duas atitudes possíveis. Uma atitude era dizer que o golpe era uma fatalidade que tinha vindo para ficar,não havia nada o que fazer, ’’vamos cuidar de nossas vidas’’. Houve gente progressista que tomou este caminho.

A outra atitude era dizer : temos de lutar! Era tudo uma decisao voluntarista de reagir,uma postura ética e democrática, querer acabar com a ditadura e fazer alguma coisa. Mas que experiência nós tínhamos ? Nenhuma! Nossa experiência era de política institucional. Trabalhamos com o Congresso,com mídia,com partidos politicos. Havia uma juventude que queria lutar.Era meio no grito’’.

GMN - Seu nome é sempre associado à etica. Como é que voce julga a conduta ética, no caso da devolução do dinheiro ?

Betinho :’’A discussao que tivemos na AP na verdade tinha um fundo ético. Tínhamos mil razões para ficar com esse dinheiro. Nés estávamos precisando. O dinheiro foi dado para a Revolução ! Companheiros chegaram a defender essa tese. Diziam : a gente fica com o dinheiro, avisa a Cuba que vamos empregá-lo para a Revolução. E vamos,sim ! Respondi: ‘’Mas este dinheiro foi dado para determinada coisa - que não fizemos’’. Além de tudo,estamos agora numa posicao política diferente dos cubanos. Não é justo nem ético ficar com esse dinheiro’’. O que pesou na decisao não foi a racionalidade política, mas a racionalidade ética.Como eu era da direção da AP,disse : ‘’Não tenho condições de ficar na coordenação se a gente pratica uma coisa dessas. Não aceito’’.

GMN : Qual é a importância que você dá,hoje,ao apoio cubano à resistência clandestina contra a ditadura militar no Brasil ?

Betinho : ‘’Cuba estava exportando para os outros movimentos a realidade cubana, assim como a China exportava a realidade chinesa. Não sabiam o que era o Brasil.

Cuba nos vendeu - e nós compramos ! - uma estratégia de guerrilha. Ora,guerrilha sem ampla mobilização popular é impossível ! Imaginamos uma consciência nacional anti-golpe e anti-militar. Em cima dessa consciência supostamente existente na sociedade brasileira, a gente daria uns tiros...Mas a maioria dos grupos que pregavam a luta armada nem arma tinha! Era tudo expressão de um desejo - que custou caro. Porque houve prisões,tortura,desespero,crise pessoal e familiar no meio de tudo’’.

GMN : Você vê hoje alguma ingenuidade na tentativa de organizar no Uruguai uma resistência ao regime militar brasileiro ou aquela era a única saída para o grupo,na época ?

Betinho : ‘’Sou tentado a escolher a segunda opção.

Em 1964, o golpe na verdade foi dado com ampla cobertura da mídia e da opinião pública. O confronto teria de ser feito a partir de uma iniciativa enérgica do próprio governo Jango, algo à la 1961, quando Brizola arrancou uma reação de coragem (N: Betinho se refere ao movimento liderado por Brizola depois da renúncia de Jânio Quadros para garantir a posse do vice constitucionalmente eleito, João Goulart).

Se Jango tivesse autorizado ações militares que foram propostas a ele em 1964, o golpe não prosperaria. Porque os golpistas eram tímidos.Eram quase que institucionais. Não tinham a experiência de 1930, quando houve arma,tiro e morte. Nem no Chile,onde o golpe foi avassalador. Aqui, eles iam fazer uma marcha. Tanto é que o golpe acabou tendo uma versão parlamentar’’.

GMN : Se alguem disser a você hoje que era errado receber dinheiro de Cuba para fazer guerrilha no Brasil ,que resposta voce dá ?

Betinho : ‘’Digo : errado era fazer guerrilha. Uma revolução era essencialmente uma ação nacional. É preciso ter bases e recursos nacionais. De qualquer maneira,a história da revolução mundial é uma história de apoios internacionais,tanto do lado da esquerda quanto do lado da direita - e da social-democracia também !

Uns vivem ajudando os outros.Quero dizer que nao tenho problema nenhum a esse respeito.O principal problema é político : um movimento que não conseguia levantar apoios nacionais - e passava a depender fundamentalmente de apoio externo - começava mal’’.

(1996)

Posted by geneton at 12:25 AM

dezembro 06, 2008

HENFIL

O DIA EM QUE O CARTUNISTA HENFIL DISPAROU PETARDOS CONTRA ROBERTO CARLOS, PELÉ, GILBERTO FREYRE, FERNANDO GABEIRA, GILBERTO GIL, CAETANO VELOSO


O cenário: um quarto de hotel na praia da Boa Viagem, no Recife. Henfil chega mancando de uma perna. O joelho vem incomodando de novo. É sempre assim. Mas ele já se acostumou. Quando começa a falar sobre personagens que lhe soam contraditórios, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Roberto Carlos e Gilberto Freyre, o mais conhecido cartunista brasileiro sublinha as frases com um gesto que gosta de repetir: franze a testa e coça a barba espessa.

O Brasil é o assunto predileto de Henfil ( local de nascimento: Nossa Senhora do Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Data: 05/02/1944). Não é para menos. Henfil nunca escondeu que enxerga em tudo o que faz um toque missionário. É provável que esta certeza venha de uma educação religiosa rígida - somente aos 21 anos, Henfil perdeu a virgindade.

Quem sabe, a consciência missionária seja resultado da convivência com a hemofilia, um aviso permanente da fragilidade do corpo. O certo é que Henfil não se dispensa do papel de militante. Ao cumprir esta função, chega a ser desmesuradamente rígido no julgamento da atuação política de outros artistas. Igualmente, não hesitou em ir morar no Rio Grande do Norte, já depois de consagrado, porque julgava indispensável a experiência de conhecer de perto o Brasil nordestino, tão diferenciado do que ele próprio chamava - ironicamente - de "Sul Maravilha". Henfil só não quer ser simplista: repete que a culpa pelas mazelas brasileiras pode até caber aos governantes - mas deve ser repartida com o povo também.

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Qual deve ser exatamente o papel do humor num país como o Brasil?

Henfil: "O humor, em geral, tem o papel de fazer rir, mas, no Brasil, há algo mais: o humor têm também o papel de conscientizar, infelizmente. É um pouco como cobram que o papel da televisão é educar ; a TV, dizem, deveria ser uma espécie de braço direito do Ministério da Educação. Infelizmente, é um pouco verdade, porque o grau de informação e consciência do povo brasileiro a respeito da cultura e dos problemas do país é pequeno.

A gente às vezes nem sabe se vive em Nova Iorque ou na caatinga. Nunca se sabe direito. Então, é uma espécie de orientação que você pode dar. Há casos como o da dívida externa. O brasileiro não sabia que a dívida externa era de 10 bilhões de dólares - saudosos 10 milhões de dólares! E foi papel do humor, naquele tempo, dizer que era esse o valor da nossa dívida"

O que você espera quando desenha um cartum? Que ele faça pensar, em primeiro lugar?

Henfll: "Eu diria que era fazer pensar. Depois, tenho a preocupação de que esse pensar doa menos. Em geral, pensar dói demais, principalmente no Brasil, a terra do FMI. Dói demais pensar. Então, este é um aspecto do humor.

Mas o humor tem também uma coisa inteligente: a inteligência do humor se situa acima da filosofia. Por quê? Porque o humor reverte a expectativa. Você nunca ri porque a coisa é simplesmente engraçada ou esquisita. Você ri porque descobre algo sobre o qual você não tinha pensado antes. É aí que você ri."

Depois que vê todo o trabalho que realizou até hoje, você acha que vale a pena fazer rir, afinal?

Henfll: "Quando ri, você relaxa e sente a despreocupação de receber uma idéia. A única forma de vencer o medo é através do humor. O riso ajuda e relaxa, para que a pessoa possa ficar inteligente. Quando estão rindo, as pessoas são mais inteligentes do que quando estão com raiva. Pode notar: a pessoa riu - e todo mundo já começa a achá-Ia mais simpática, mais inteligente e menos parecida com os vegetais e os minerais."

Quem é o personagem mais caricaturável da política brasileira?

Henfll: "Paulo Maluf é bem fácil. O general Figueiredo também é fácil fazer.
Mas o povo brasileiro é o mais fácil de caricaturar. Não sou caricaturista, mas é fácil colocar o povo dentro dos quadrinhos e dos cartuns, porque o povo é o principal responsável por tudo o que existe aí.

Há uma certa passividade do povo brasileiro - que deixa as coisas acontecerem além da conta. Tenho mais vontade de cutucar o povo brasileiro - cada um de nós - do que de cutucar aqueles que estão por cima criando caso com o povo brasileiro. A macaquice nossa de imitar neve e imitar americano o tempo todo no vestir e no cantar...

Meu Deus do céu, como é que vou poder criticar a orientação das autoridades financeiras do Ministério do Planejamento de ficar importando tudo, se, até quando não é permitido, o brasileiro vai lá fora e traz como contrabando? Nós estamos contrabandeando, em todos os sentidos, tudo o que vem de fora. Ocorre, principalmente, no Nordeste, o que é uma coisa que me atinge ainda mais, porque sou identificado com a região. O grau de desnacionalização no Nordeste é ainda maior do que em qualquer outra parte do Brasil. Dá vontade de ficar cutucando o brasileiro, principalmente o nordestino "

Quem é o personagem menos caricaturável? O que traz mais dificuldade na hora de caricaturar?

Henfil: "Para ficar coerente com o que estou dizendo, tenho dificuldade com os poderosos. Hoje, na medida em que as eleições estão surgindo e a gente vai ganhando mais condições de trabalhar e expor as coisas, é difícil você chegar e dizer, com relação aos poderosos: 'É aqui!'.

Dou um exemplo. Posso chegar e dizer: 'A culpa é do ministro Delfim Netto! Vou lascar o pau nele!'. Ora, mas existe o FMI ! E como é que vou caricaturar o FMI? Com as iniciais? Isso cansa. Parece marca de caminhão. Não dá pé. Então, já que o humor que faço é mais de conscientização, é bastante difícil mostrar ao povo brasileiro, aos leitores, quem é que realmente manda no Brasil, qual é a cara, se tem bigode, se é homem, se é mulher, se é a terceira força. O FMI é o quê? Fica difícil"

Mãe dá Ibope?

Henfil: "Mãe sempre dá Ibope. Você se refere às 'Cartas da Mãe' - que venho escrevendo desde 1977 na revista ISTOÉ. Tenho também o livro 'Cartas da Mãe'. Acontece que escrever cartas para a mãe foi a forma que descobri de falar com o leitor - não mais através de desenhos de uma forma que ele pudesse entender o que eu estava querendo. Há os que têm dificuldade de entender o desenho. Só uma geração criada com história em quadrinhos é capaz de pegar o simbolismo e saber o que é que quer dizer aquilo, esse traço assim, esse balão com três pontinhos embaixo significando pensamento...

Parti, então, para escrever carta, para facilitar o entendimento. Carta todo mundo sabe escrever - ou ler. Escrever carta para a mãe é o mínimo que cada um faz. Eu escrevo para minha mãe. Ora, todo mundo tem mãe - espero. Todo mundo tem filho. Todo mundo é mãe ou filho. Então, ou se identifica comigo porque é o filho escrevendo para a mãe ou então é o contrário.

As mulheres, em geral, se identificam com a mãe e me falam: 'Eu me identifico tanto com a sua mãe...' Já os homens me dizem: 'Eu me identifico com você!'. A linguagem da mãe é a mais acessível. Porque a mãe,afinal, é obrigada a falar com crianças de um mês, um dia. Procuro entrar na cabeça da minha mãe e escrever na linguagem com que ela falaria. É aquela linguagem de mãe: simples.

A política entra na conversa porque as mães hoje estão ficando cada vez mais politizadas. Veja o caso da Argentina. Quem desestabiliza o regime de exceção na Argentina são as mães, as chamadas Loucas da Praça de Maio "

De que político brasileiro você não compraria um carro usado?

Henfil: "Ah... (pausa). Meu Deus do céu! Eu queria saber com que carro eu ia comprar um político usado... Não compro com carro nenhum político usado! São pouquíssimos os políticos de quem eu compraria um carro usado.

Vamos facilitar: não compro carro usado por nenhum político. Mas de alguns eu até compraria. Um exemplo: Teotônio VileIa. É, para mim, o símbolo de um político que escreve carta pra mãe todas as vezes em que fala da Mãe-Pátria "

Já se disse que em épocas fechadas, como no Brasil dos anos 70, há um espaço grande para o cartum político, mas, em épocas de descompressão e abertura, há um espaço maior para o cartum de costumes. Você concorda com esta interpretação?

Henfil: "Durante o período da chamada fechadura, é como na Igreja. Qualquer coisa que você faz na Igreja, engraçada ou pesada, todo mundo fica em silêncio, falando baixinho. Tudo o que se faz ali é significativo. Diziam-me: 'Que cartum genial que você fez! Você denunciou bem!'. Ora, eu não tinha denunciado nada. Era apenas um cartum que eu tinha bolado. Mas, naquele silêncio todo, as pessoas acham logo que o cartum foi feito cheio de significados.

É bom para o cartunista ficar cheio de significados secretos e trabalhar em fechadura. Mas a maioria do povo não entende! Fica uma espécie de Língua do P. Só quem sabe que existe um indício de problema numa área como repressão ou dívida externa vai achar segundas intenções em determinado cartum. A maioria, realmente, nem entende! O humor brasileiro, tão popular até a época de Juscelino Kubitscheck, Jânio Quadros, com Carlos Estêvão, o Amigo da Onça, Millôr Fernandes daquele tempo, Ziraldo, tinha um grande alcance. Depois, não teve alcance popular. Humorista ficou coisa de elite intelectualizada e informada. Se não fosse o humor na TV, o humor hoje não seria popular e estaria quase que em museus de arte moderna. Então, esse negócio de dizer que em época de repressão você fica mais criativo... Você
fica mais criativo para a fuga! Dizem: 'Cria-se mais na cadeia'. O que se cria mais em cadeia é oportunidade de fuga! Nunca vi ninguém criar nada legal e bom na cadeia."

Como é,afinal, o Brasil dos seus sonhos?

Henfil: "Ah, o Brasil.... Vou dizer uma coisa: já morei dois anos em Natal porque escolhi e quis morar, depois de ter vivido dois anos em Nova Iorque. O Nordeste parece mais com o Brasil. É aquela coisa descontraída, aquela força das pessoas convivendo e se conhecendo. Você tem grandes chances de comer, beber e cantar ainda em nossa língua, com as coisas da terra. Penso muito. Tenho um sonho: que nosso problema com o FMI, com a dívida externa, vá conduzir a uma coisa que a gente poderia até chamar de fechadura.Ou seja: : o Brasil se fechar para dentro de si próprio.

Tenho tantas saudades da língua portuguesa! Já estou cansado de falar em cheeseburger, hamburguer, overnight, open, spread, jeans, T-Shirt, essas coisas todas. Tenho saudade de falar nossa língua, cantar nossa música, comer nossa comida. Estou nesse hotel, resolvi pedir um cartola. De repente, veio cartola com queijo prato! É brincadeira? Não se respeita nem cartola mais!"

Acabou a briga entre os chamados "patrulheiros ideológicos" e a "Patrulha Odara"?

Henfil: "Primeiro é preciso esclarecer ao distinto público o que é que significa esse diabo de patrulha ideológica e Patrulha Odara.

Houve um determinado momento em que alguns críticos, principalmente de cinema e de música, começaram a criticar uma tendência havida particularmente entre os chamados baianos - que hoje são paulistas, são cariocas - de entrarem no esquema da "open-music". Começaram a fazer uma música que estava correndo em Nova Iorque, discoteca, aquelas coisas todas.

Críticos que começaram a dizer: 'Não é por aí! Cadê as raízes? Cadê a nossa música? Nós estamos pagando royalties! Para quê? Vai aumentando a nossa dívida externa!'.

Porque dívida externa não é só dólar que se pega emprestado para construir viaduto, Angra dos Reis, Itaipu, aquelas coisas, não! Dívida externa se faz a cada disco estrangeiro que se compra no país também. Os cantores chamados baianos começaram a ser pontas-de-lança da música estrangeira, principalmente a americana. Não era nem a música estrangeira em si. Que venha a música italiana, que venha a música do Haiti! Mas não: é só música americana! Como foram,todos, criticados, resolveram reagir. Disseram que era "patrulhamento ideológico". Crítica virou "patrulhamento ideológico"!

Eu é que inventei que eles, os baianos, eram a Patrulha Odara, porque queriam patrulhar a crítica que se fazia. Ora, crítica é um negócio que faz todo mundo crescer. A preocupação dos chamados críticos era com o crescimento desses artistas - que são importantes. Caetano Veloso é importante. Gilberto Gil é importante. São tão bons que não poderiam estar fazendo aquilo.

Quem falava eram as pessoas que estavam interessadas no crescimento dos dois - e não na decadência. Gilberto Gil - que entrou nessa e começou a fazer discotheque - se arrebentou, inclusive comercialmente, porque não adianta. Macaquice não dá dinheiro! Só dá dinheiro para o vendedor de amendoim. O macaco não ganha nada. Agora, Gilberto Gil já vem tendo de voltar e ver que realmente errou. O que aconteceu, então, foi patrulha ideológica ou foi crítica chamada construtiva e de amigo?

Isso tudo já foi superado, justamente por um retorno e uma consciência do país inteiro - inclusive dos cantores - de que, quando você copia culturalmente qualquer outro país, faz dívida externa, paga royalty. Você não copia idéia de outro país de graça! A dívida externa deve estar em 110 bilhões de dólares. A música tem culpa também!"


O que é que significam, para você, as seguintes pessoas: em primeiro lugar, Fernando Gabeira.

Henfil: "Fernando Gabeira esteve exilado uns tempos, voltou ao Brasil, escreveu O Que é Isso, Companheiro?, Entradas e Bandeiras, Sinais de Vida no Planeta Minas, aqueles negócios.

Prestou, principalmente com o livro O Que é Isso, Companheiro?, uma colaboração imensa a todo mundo, na consciência do que aconteceu no exílio e do que aconteceu no Brasil antes de ele partir para o exterior, principalmente sob o aspecto da tristeza de um tipo de comportamento que em geral os grupos políticos têm, sejam de direita ou de esquerda. É um comportamento quase religioso, aquela coisa de magia negra, fechada, cheia de dogmas, punições e inferno. 'Você vai para o inferno se for revisionista!', aquelas coisas.

Mas há um problema com relação a Fernando Gabeira: ele chegou parecendo que tinha descoberto o Brasil! O país existe aí há quatrocentos e oitenta e tantos anos. Mas parecia que ele, Gabeira, é que tinha começado o movimento negro, o movimento dos homossexuais, o movimento feminista! É aquele negócio do sujeito que chega descobrindo tudo. É o 'Brasil Ano-Zero: Gabeira chegando ao país'. Tirando esse lado, tudo perfeito. Mas o movimento feminista tem centenas de anos no Brasil, principalmente no Nordeste, onde houve o movimento pioneiro pelo voto feminino."

Dom Hélder Câmara...

Henfil: "Dom Hélder é uma coisa contraditória. A gente tem um carinho imenso por Dom Hélder - e também um medo imenso por ter carinho por ele. Quem escolheu Dom Hélder Câmara como figura subversiva não fomos nós. Nós o escolhemos pela dedicação que tem às causas, às denúncias e, principalmente, ao povo. É um dos primeiros que fez opção preferencial pelos pobres. Mas o sistema o escolheu como inimigo número um. Dá até medo de admirá-Io, porque eles vão falar: 'Admiram Dom Hélder porque ele significa uma coisa que a gente tem de combater.' "

Gilberto Freyre...

Henfil: "Tudo no Brasil é contraditório, mas Gilberto Freyre talvez seja o mais contraditório de todos. A obra de Gilberto Freyre é voltada para o povo. É opção preferencial pelo povo. Ninguém mais do que ele talvez tenha condições de mostrar a realidade do povo brasileiro, principalmente do Nordeste. Mas há uma contradição: o comportamento político de Gilberto Freyre, quando ele não escreve ou exerce a visão sociológica, é de extrema-direita. Admiro Gilberto Freyre de um lado. Tenho medo de Gilberto Freyre por outro, porque ele é poderoso dentro do sistema. Coluna do meio."

Roberto Carlos...

Henfil: "Eu espero que você não me pergunte também sobre Pelé: dá no mesmo. Roberto Carlos - que tem um grande carisma - também é uma figura contraditória.Todo mundo tem um grande carinho por ele. É algo que transcende a música que ele faz. Não é nem questão de saber se ele canta bem ou mal. Eu - que já fui chamado de patrulheiro ideológico - nunca parei para pensar se Roberto Carlos canta bem ou se suas músicas são bonitas ou não. Roberto Carlos tem uma presença humana e se entrega à música de tal forma que não quero saber se é bonito ou feio: gosto de Roberto Carlos. Quando canta, ele se entrega; não brinca.

Mas ele tem uma dívida interna com o brasileiro. Roberto Carlos, apesar de todo o carinho que o público brasileiro lhe dá, não devolve o carinho em forma de atuação. Quando perguntam a Roberto Carlos a respeito de qualquer coisa, ele diz: 'Não; eu sou apolítico. Não sou político, não me meto em política.' Ora, todo mundo é político! Dizer 'eu não me meto em política' é a pior das políticas. 'Não tenho nada com vocês'. Como não tem? Nós batemos palmas para você! Como é que não temos nada a ver com você? Tenho uma mágoa pela não-participação de Roberto Carlos na defesa de um povo que vem se lascando."

Sônia Braga...

Henfil: "Que é que vou dizer? Sônia Braga já devolveu mais do que a gente deu a ela. Ela é aquele desejo imenso: todo mundo adora Sônia Braga. É a mulher que todo mundo gostaria de ter. Mas ela devolve. Quando a coisa pipoca por aí, Sônia Braga tem uma boa atuação, uma firmeza. Não se entrega a essa coisa de dizer 'não sei; sou atriz'. Sônia Braga é a vizinha que todo brasileiro gostaria de ter."


(1983)

Posted by geneton at 10:00 PM

dezembro 03, 2008

MARIO QUINTANA

"O PROLETÁRIO É UM SUJEITO EXPLORADO FINANCEIRAMENTE PELOS PATRÕES E LITERARIAMENTE PELOS POETAS ENGAJADOS"

CINCO VERSOS DE MARIO QUINTANA (Alegrete, RS, 1906):


1. “Ai de mim/Ai de ti, ó velho mar profundo/Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios”.

2. “A vida é um incêndio/nela dançamos, salamandras mágicas/Que importa restarem cinzas/se a chama foi bela e alta?/Em meio aos torós que desabam/cantemos a canção das chamas!/Cantemos a canção da vida/na própria luz consumida...”

3. “Um poema como um gole d’água bebido no escuro/Como um pobre animal palpitando ferido/Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna/Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema/Triste/Solitário/Único/Ferido de mortal beleza”

4. “Da primeira vez em que me assassinaram/perdi um jeito de sorrir que eu tinha/Depois, de cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha...”

5. “Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!/Ah! Desta mão, avaramente adunca,/Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!”

E VINTE E TRÊS RESPOSTAS:


Qual deve ser o primeiro compromisso da agenda da vida de um poeta?

QUINTANA: "O primeiro compromisso deve ser: não parar de poetar. Não parar de viver intensamente"

O senhor diz que gosta de fazer projetos a longo prazo, para “desafiar o diabo”. Que último desafio o senhor lançou?

QUINTANA: "O último desafio foi uma viagem – gorada – a Paris. O próximo, já em execução, é aprender a falar inglês. Eu era apenas tradutor de francês da Editora Globo. Aprendi, sozinho, a língua inglesa numa gramática, para traduzir. Mas apenas lia o que estava escrito, sem saber a pronúncia. Agora, estou lidando com um curso de inglês da Inglaterra por meio de fitas cassete. O primeiro tradutor de Virginia Woolf no Brasil fui eu. A tradução foi bem recebida pela crítica".

O escritor Erico Verissimo dizia que “Quintana é um anjo que se disfarçou de homem”. O senhor tem algum reparo a fazer à observação?

QUINTANA: "Tenho. Sempre desejei ser exatamente o contrário: uma espécie de diabo"

Qual a grande compensação que a poesia dá a quem a escreve?

QUINTANA: "Minha grande compensação é ter, às vezes, conseguido pegar a poesia nuínha em flor. Mas é difícil! (ri)"

Críticos já notaram que o senhor tem uma preferência especial pelas reticências. É verdade que prefere as reticências aos pontos finais?

QUINTANA: "Considero que as reticências são a maior conquista do pensamento ocidental, porque evitam as afirmativas inapeláveis e sugerem o que os leitores devem pensar por conta própria, após a leitura do autor"

O senhor diz que, ao escrever, “pergunta mais do que responde”. Qual a grande pergunta que o senhor não conseguiu ver respondida até hoje, aos oitenta e dois anos?

QUINTANA: "O essencial é a gente fazer perguntas. As respostas pouco importam"

Se a poesia, segundo suas palavras, “é uma loucura lúcida”, todo bom poeta deve ser necessariamente louco, ainda que lúcido?

QUINTANA: "Creio que é na Bíblia que foi escrito que todos nós temos um grão de loucura. O poeta deve ter esse grão de loucura, mas não necessariamente estar num grau de loucura"

O senhor já se confessou simpático à restauração da monarquia no Brasil. A notícia de que será promovido no início dos anos noventa um plebiscito para decidir se o Brasil deve ser monárquico ou republicano anima-o? Que cargo gostaria de ocupar no Brasil governado por um Rei?

QUINTANA: "É claro que nenhum! Eu não desejaria ser o Poeta da Coroa. A melhor receita para fazer um mau poema é fazê-lo de encomenda"

Além de poeta, o senhor é tradutor de obras clássicas, como vários volumes de Marcel Proust. Que semelhança pode existir entre o trabalho de tradução e o ofício da criação poética?

QUINTANA: "Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estréia desse autor na literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim"

O senhor já chegou a trabalhar simultaneamente na preparação de cinco livros. Em algum momento da vida se sentiu tentado a deixar de escrever?

QUINTANA: "Sempre estou escrevendo, em prosa e em verso.Venho trabalhando em quatro livros.Cinco é demais! Nunca pensei em deixar de escrever, porque é a única coisa que sei fazer na vida".

Qual o grande medo do poeta Mario Quintana hoje?

QUINTANA: "Tenho medo de dizer"

O senhor, segundo notou o autor de um artigo publicado pela revista ISTOÉ, "nada tem: nem casa, nem mulher, nem dinheiro, nem família". Tanto desapego foi escolha pessoal ou aconteceu à revelia do que o senhor desejou ?

QUINTANA: "Catastrófico o autor, para mim desconhecido, dessa coisa publicada na ISTOÉ. O certo é que elas não tiveram tempo...E agora,no fim da picada, acho preferível a solidão sozinho à solidão a dois. Quero a solidão sozinho!"

(Enclausurado num quarto de hotel em Porto Alegre, Mario Quintana tinha uma mania: escrever a mão textos que, só depois, eram datilografados pela secretária Mara Cilaine, guardiã do poeta)

O senhor já declarou que "o proletário é um sujeito explorado financeiramente pelos patrões e literariamente pelos poetas engajados". Em algum momento, o senhor acreditou que a poesia poderia mudar o mundo ?

QUINTANA: "Para mudar o mundo, caberia ao poeta candidatar-se a vereador,a deputado ou a outro cargo assim- e não fazer poemas que as classes necessitadas não têm tempo de ler. Ou não sabem ler.
É verdade que Castro Alves influiu na abolição da escravatura. Mas acontece que Castro Alves era genial. Já nós temos apenas algum talento...."

O senhor é autor de uma sugestão original: a nação lucraria se pudesse escolher livremente os ministros - e não apenas o presidente. De onde nasceu essa constatação ?

QUINTANA: "Não me lembro de ter feito tal sugestão. Mas agora gostei! O povo poderia influir mais diretamente no Executivo - que não ficaria só com o presidente e seus amiguinhos..."

O senhor escreveu que a poesia é a "invenção da verdade". Conseguiu inventar todas as verdades que queria através da poesia ?

QUINTANA: O que meu cérebro lógico pensa não é exatamente o que pensa a parte não lógica do cérebro. Além da mera geometria euclidiana, existe a geometria não-euclidiana. Isso parece meio confuso, mas me faz lembrar uma verdade que escrevi um dia: a poesia não se entrega a quem sabe defini-la".

Aos oitenta e dois anos, o senhor é otimista ou pessimista diante do destino do homem neste fim de século?

QUINTANA: "Sou otimista. Há mais liberdade de expressão e mais comunicação. Não há, como nos meus tempos de menino, aquela proibitiva divisão entre as faixas etárias"

Num livro lançado há exatamente quarenta anos, Sapato Florido, o senhor escreveu que “os verdadeiros poetas não lêem os outros poetas. Os verdadeiros poetas lêem os pequenos anúncios dos jornais”. Qual foi, então, o melhor anúncio que o senhor já leu?

QUITANA: "Não sei se foi o melhor, mas o mais divertido foi este: “Alugam-se duas salas para mulheres bem-arejadas”. Ler os pequenos anúncios, em todo caso, é pôr-se em contato com as necessidades do povo"

Saber que “o vôo do poema não pode parar”, como o senhor diz em “O Vento e a Canção”, é um consolo para quem escreve?

QUINTANA: "Para quem escreve, saber que o vôo do poema não pode parar é sinal de que a vida continua deslizando, apesar dos solavancos"

O poema “No Meio do Caminho”, escrito por Carlos Drummond de Andrade no final dos anos vinte, foi ridicularizado e bastante criticado quando surgiu. O senhor, no entanto, incluiu o poema entre os que gostaria de ter escrito. De que maneira o senhor reagiria às críticas que foram feitas ao poema?

QUINTANA: "Quando alguém pergunta a um autor o que é que ele quis dizer, um dos dois é burro..."

Se "os caminhos estão cheios de tentações", qual a grande tentação do poeta Mario Quintana hoje ?

QUINTANA: "Os caminhos continuam cheios de tentações. Mas.....cabem,aqui, reticências"

Os jovens poetas sempre esperam ensinamentos dos mais experientes. Se um poeta de vinte anos pedisse um conselho a Mário Quintana, que resposta o senhor daria a ele ?

QUINTANA: "Que ele não exigisse conselho de ninguém - e seguisse o próprio nariz"

Quem - ou o quê - atravanca o caminho do senhor hoje ?

QUINTANA :"Ah, a popularidade!"

E sobre a Academia Brasileira de Letras ?(N: Quintana foi derrotado nas três vezes em que tentou entrar para a Academia). O senhor não quer dizer nada ?

QUINTANA: "Não. Nem para dizer que não pretendo falar"


(1988)

Posted by geneton at 11:15 PM

junho 05, 2008

BERT KEIZER, O MÉDICO QUE MATA ( SE O PACIENTE PEDIR PARA MORRER)

Relato de um encontro com um personagem fascinante: o médico-filósofo que tenta salvar vidas mas , a pedido dos pacientes, pode também ajudá-los a morrer

CENA 1.EXTERIOR DIA. AMSTERDÃ, HOLANDA

O Dr.Morte anda por uma rua chamada Vondelstraat, no centro de Amsterdã, numa bicicleta de aros cor de prata. Veste um casaco de couro preto. Os cabelos, embranquecidos pelos cinqüenta e nove anos, estão ralos. Os óculos de aros finos ampliam um olhar inquisidor. O céu encoberto por nuvens escuras dá à paisagem um toque apropriadamente melancólico.

Depois de prender a bicicleta a um poste com uma corrente, numa atitude que revela uma precaução exagerada, o Dr. Morte caminha para o encontro marcado com o entrevistador.

CENA 2. FLASH BACK: O AVISO DA CIGANA

Pausa para uma digressão: a visão da bicicleta de aros cor de prata evoca a lembrança da única consulta que fiz a uma cigana, a serviço de uma edição especial do Almanaque Fantástico, em 2005. A Cigana Esmeralda disse que eu tomasse todo cuidado antes de viajar em carros prateados, porque as cartas do baralho que ele manuseava diante de meus olhos descrentes revelavam que havia risco de um grave acidente. Problemas no freio. Mas ela nada disse sobre bicicletas de aro prateado circulando sob o céu de chumbo de Amsterdã. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres, sopra-me com uma voz claudicante: “Vá em frente! Sinal verde para a entrevista”

CENA 3. PEQUENA INTERVENÇÃO DO NARRADOR

É bom prestar toda atenção ao que este homem diz. Porque o que ele diz tem tudo a ver com o destino de cem por cento dos seres humanos: a morte. Não é recomendável fazer de conta que o assunto não é fascinante. Porque é. Não adianta chamar o assunto de “mórbido”, “deprimente”, “lastimoso”, “incômodo”, “desagradável”. É bobagem recorrer a este velho arsenal de adjetivos, porque eles, no fim das contas, servem apenas como desculpa para que não se encare um fato irrevogável: um dia, o planeta seguirá existindo sem nossa presença.

“Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a idéia morte faz que com tudo passe a valer a pena. E torna tudo impossível, também. É, portanto, um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas!”, ele diria, durante nossa entrevista. “Não, eu não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”.

CENA 4. O PERSONAGEM PRINCIPAL ENTRA EM CENA

Hora das apresentações. O homem se chama Bert Keizer. É um caso raro de médico que é filósofo. Ou filósofo que é médico. Formou-se em Filosofia na Inglaterra. Em seguida, decidiu estudar medicina, na Holanda, no início dos anos setenta. Formado, passou uma temporada no Quênia. Desde o início dos anos oitenta trabalha com pacientes terminais.

Pai de um casal de filhos, Bert Keizer pratica eutanásia, quando um paciente terminal lhe pede. Ou seja: ajuda o paciente a morrer. O debate jamais terminará: um médico – o profissional encarregado de zelar a todo custo pela vida – deve ou não apressar a morte de um paciente? Deve, sim, se médico e paciente estiverem na Holanda. Keizer faz um cálculo aproximado: já deve ter tratado de cerca de 1.500 pacientes terminais. Destes, 25 optaram pela eutanásia. Pediram – e receberam – ajuda do médico para que morressem logo.

A bem da verdade, é injusto chamar Keizer de “Doutor Morte”. O médico-filósofo pratica, sim, eutanásia, a pedido de pacientes, mas é incapaz de pronunciar uma palavra de simpatia à morte. Prefere, sempre, oferecer consolação e alívio a quem vê o apagão final se aproximar.

]
CENA 5: DE COMO O MÉDICO SE TORNOU UM SUCESSO EDITORIAL

Durante anos, Keizer fez anotações sobre a morte. Nunca publicara nada. Um dia, resolveu reunir as anotações num livro, publicado por uma pequena editora holandesa. Sucesso imediato. O texto do médico-filósofo é envolvente, inspirado. Não resvala jamais na pieguice. Uma grande editora inglesa se interessou pela aventura literária do médico, uma espécie de Drauzio Varella holandês. O livro “Dancing With Mister D” (“Dançando com a Sra. Morte”) fez sucesso na Inglaterra. Boa notícia: vai ser publicado no Brasil pela Editora Globo

Neste momento, o narrador passa a palavra para o médico-filósofo. O que ele diz nos ajuda a falar sobre o indizível, a entender o incompreensível.

CENA 6. O NARRADOR SAI DE CENA. CLOSE DO MÉDICO – QUE FALA OLHANDO PARA A CÂMERA

“ Nem sempre é possível salvar vidas. Uma das coisas que devemos lembrar é que a porcentagem de pessoas que morrem é de cem por cento! Todo mundo vai morrer um dia. A medicina tenta nos afastar da morte. Mas não funciona. Porque todos nós temos de morrer.

Uma das razões por que entrei na Medicina foi a vontade de procurar formas de diminuir o sofrimento alheio. Ao insistir, por exemplo, em lançar mão de recursos tradicionais, a Medicina pode até aumentar o sofrimento de quem se aproxima da morte. Mas o médico pode diminuir o sofrimento se tiver a coragem de encarar o fato de que aquela pessoa vai morrer. Assim, ele poderá transformar este processo em algo suportável”.



“O que ocorre na eutanásia é que você dá ao paciente um comprimido para dormir. Barbitúricos . Você não dá em forma de comprimido. Dá em forma de pó, dissolvido em glicerina e álcool. É uma poção, um drinque. Metade de uma xícara de café. Você dá. O paciente bebe. Em um, dois minutos, minuto, adormece. Não morre: adormece. Você, médico, faz uma promessa ao paciente: se ele, depois de adormecer, não tiver morrido depois de cerca de quarenta e cinco minutos, você dará uma pequena injeção letal, uma substância que se usa em cirurgias. Mas o paciente sabe que, quando tomar o comprimido dissolvido, morrerá. Se o paciente não puder engolir, você dará uma injeção, para administrar os barbitúricos. Também neste caso, os pacientes,primeiro, adormecem. Depois, morrem durante o sono. Parece terrível, mas não é uma maneira ruim de morrer.

É cair no sono na melhor das companhias”

CENA NUM QUARTO DE HOSPITAL: O MÉDICO ESPERA PELO SUSPIRO FINAL DA MULHER QUE TINHA PEDIDO PARA MORRER. MAS ELA DIZ: “AINDA ESTOU PENSANDO....”


“Aconteceu uma vez com uma senhora que tinha tomado esta poção de barbitúricos. Eu e a filha desta mulher estávamos em pé, ao lado da cama, à espera do momento em que ela adormecesse e, em seguida, morresse. A mulher sentiu esse silêncio, notou nossa expectativa de que ela perdesse a consciência. Neste momento, ela nos disse: “Ainda estou pensando....”, o que foi, realmente, engraçado. Mas sei que ela tinha a sensação de estar deslizando rumo a um abismo. Mas o que ela disse trouxe alívio para aquele momento.

EUTANÁSIA SÓ EXISTE QUANDO O PACIENTE, CONSCIENTE, PEDE PARA MORRER. QUALQUER OUTRO CASO NÃO É EUTANÁSIA: É MEDICINA PALIATIVA


“Aqui, no meu país, a eutanásia é definida como “suicídio assistido por um médico”. Ou seja: o médico dá a você uma overdose, em caso de sofrimento insuportável sem qualquer perspectiva de recuperação. O médico pode, ao invés de dar a dose a você, administrá-la ele mesmo, se você pedir. Isso é que é eutanásia.

Mas as pessoas têm idéias confusas sobre a eutanásia, porque pensam que é o que ocorre quando, ao tratar de um paciente terminal, que entrou mais ou menos em coma, o médico dá a ele uma dose extra de morfina, para que ele morra um pouco mais rápido. Isso não é eutanásia! Isso é tratar de um paciente terminal. Para nós, o pedido feito pelo próprio paciente para que se pratique a eutanásia é fundamental.
Para que haja eutanásia, é preciso que alguém, em plena consciência, peça para morrer. Somente nestes casos, a eutanásia é possível. Em todos os outros casos, fala-se de medicina paliativa. Ou seja : o bom tratamento de um
paciente terminal”.

UM INSTANTE DE DÚVIDA: DEVERIA OU NÃO TER AJUDADO UM HOMEM “COM RAIVA DA VIDA” A MORRER ?


“Em me lembro de um caso de eutanásia que me deixou intrigado...Um homem me fez ajudá-lo a se suicidar. Era um doente terminal de câncer de pulmão. Ia morrer. Mas ele fez aquilo com raiva. Estava com raiva dos médicos que o trataram, porque ele pensou que seria curado. Mas os médicos não o curaral. O homem ficou, então, furioso. Nesta raiva, ele contou com minha ajuda para se “vingar” da vida. Hoje, acho que é errado, não é um ato equilibrado de um homem sábio, mas um ato raivoso de um homem ferido. Não me sinto bem com relação a este caso”.

O MEDO ÍNTIMO DO MÉDICO QUE MATA: MORRER NAS MÃOS DE UM MÉDICO INÁBIL

“Tenho medo da extinção, sim. Isso me preocupa. Mas,biologicamente, sei que não existe escolha. Tenho também medo de morrer nas mãos de um médico que não saiba como cuidar de mim. Ou seja: um médico que continue tirando raios-x, em vez de me consolar e me dar analgésicos.

Não entendo gente que não é fascinada pela morte. Porque a morte faz com que tudo valha a pena. E torna tudo impossível. É um dos mais terríveis e mais fascinantes temas de nossas vidas”.


SÓ HÁ DUAS MANEIRAS DE PENSAR NA MORTE. UMA É BOBA. A OUTRA É ESTÚPIDA

“Há duas maneiras de pensar na morte. Você pode pensar na morte o tempo todo, o que é uma bobagem. Também pode não pensar nunca, o que é igualmente estúpido. É difícil encontrar um meio termo. Há quem diga que perco tempo demais me preocupando com a morte. Mas, quando a gente envelhece, estatisticamente passa a ficar mais próximo da morte do que quando tínhamos quinze anos, por exemplo. Não penso na morte o tempo todo. Mas, o tempo todo, a morte pensa em mim”

NÃO SE PODE OLHAR DIRETAMENTE PARA O SOL. NEM PARA A MORTE: “A GENTE NÃO PODE ENCARAR O NADA”


“Penso em La Rochefoucauld – que disse: “Não se pode olhar diretamente para o sol - ou para a morte”. É verdade: a gente não pode encarar o Nada, assim como não pode treinar os olhos para encarar o brilho do sol. Não se pode olhar para o Nada. É um abismo. Nem os que estão se aproximando da morte olham para ela! Pelo contrário. Preferem olhar para os que estão próximos e dizer: “Obrigado”, “aproveite”, “você é inesquecível”.

A morte é, portanto, uma daquelas condições que não podemos imaginar. Podemos, por exemplo, olhar para a noite passada. Ali, estávamos “mortos”. Porque estar dormindo sem sonhar é como estar morto. É o que todo mundo faz toda noite. Não é nada de grandioso. Mas o medo de uma situação irrecuperável – o “não-ser” – é uma das piores coisas sobre as quais temos de pensar. Porque não podemos imaginar o universo sem nós. A gente pensa: se morremos, todo o universo morre. É inimaginável que as coisas continuem depois”


A GRANDE SÁIDA É IMAGINAR: “DURANTE MILHÕES DE ANOS NÃO ÉRAMOS NASCIDOS. ISSO NUNCA FOI UM PROBLEMA PARA NÓS!”


“A vida não é perfeita. O que acho que serve de consolo é o fato de que podemos olhar para a morte com alguma distância, com clareza. Não se pode viver sem ilusões. Mas deve-se ter o menor número possível de ilusões. A tarefa de se livrar das ilusões é a Filosofia. Buscar a clareza na vida é uma atitude que nos ajuda a combater o pessimismo. A filosofia é uma maneira de criar clareza sobre nossas confusões.
É impossível contemplar o nada, o não-ser. Mas devemos pensar nos milhões de anos em que não éramos nascidos. O fato de não termos existido antes não é um problema para nenhum de nós. Qualquer criança pode entender!
É algo que não incomoda a ninguém. Mas aí nós nascemos, vivemos por sessenta anos – por exemplo - e morremos. Por milhões de anos adiante, estaremos mortos. O fato de não termos existindo antes não é um problema, mas o fato de que estaremos mortos por milhões de anos adiante nos incomoda! É engraçado este incômodo, porque não faz sentido. Creio que este incômodo acontece porque, neste caso, estamos falando de nossa própria morte, algo que não podemos imaginar. Não podemos nos imaginar não estando aqui!

Mas, antes de nascer, você esteve morto por milhões de anos. Isso não foi nada difícil. Ou foi ? Claro que não”.


Posted by geneton at 01:55 PM

THEODORE VAN KIRK, NAVEGADOR DO AVIÃO QUE JOGOU A BOMBA ATÔMICA EM HIROSHIMA

O HOMEM QUE PARTICIPOU DAQUELE QUE JÁ FOI CONSIDERADO “O MAIS VIOLENTO ATO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE” - O LANÇAMENTO DE UMA BOMBA ATÔMICA SOBRE A CIDADE DE HIROSHIMA, NO JAPÃO – DIZ QUE HOJE SE LEMBRA DAS VÍTIMAS “UMA VEZ POR MÊS,EM MÉDIA”

Eis um dos cavaleiros do apocalipse: um homem de oitenta e dois anos colhe peras no pequeno pomar que cultiva no jardim de casa, num subúrbio de São Francisco, Califórnia. Oferece-me a fruta. “É boa e doce”. Faz sol. O azul escancarado do céu só é maculado pelo rastro deixado por um avião a jato.

Enquanto saboreia a pêra que acabou de colher, ele se dirige, a passos lentos, para uma cadeira na beira da piscina. Os raios de sol acentuam a brancura dos cabelos ralos. O pomar em casa e o conforto sugerido pela piscina podem dar a impressão de que o homem que colhe peras é um milionário. Não é. O homem que colhe peras é apenas um militar aposentado.

A biografia deste octogenário não seria diferente da de tantos outros veteranos de guerra se ele não tivesse levantado vôo, na madrugada de agosto de 1945, a bordo do Enola Gay – o avião que conduzia a primeira bomba atômica usada numa guerra. Ao embarcar no Enola Gay, Van Kirk entrou para a História – para o bem e para o mal.

Os que criticam o uso da arma atômica chamam os militares que participaram do ataque de mensageiros da morte. Os que encontram uma justificativa histórica chamam-nos de guerreiros da paz. A polêmica durará séculos.

A missão que Theodore Van Kirk cumpriu há seis décadas mudou a história da humanidade. Todos os superlativos já foram usados para descrever a enormidade do ataque nuclear a Hiroshima. “Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra” - diz Bob Greene, autor de um livro recém-lançado, “Duty: a Father, His Son and The Man Who Won The War” - um jornalista que desde criança era fascinado pela Missão Hiroshima.

Que fantasmas povoam hoje os dias calmos deste homem ?

Se ele não tivesse embarcado há meio século para a Missão Hiroshima , certamente não teria o descanso dos seus dias de aposentadoria quebrado pela impertinência de repórteres que o procuram para tirar velhas dúvidas.

É o que faço agora. Van Kirk nos recebe com um sorriso largo , uma pergunta bem-humorada (“vocês conseguiram chegar ? Pensei que tinham ficado presos no engarrafamento !”) e a disposição de abrir o armário onde se escondem os fantasmas de Hiroshima.

Pergunto se ele levou algum objeto pessoal quando embarcou no vôo histórico. Van Kirk me surpreende com a resposta: o único “objeto pessoal” que ele levou a bordo do avião que carregava a bomba atômica foi uma Bíblia. Se precisasse de conforto espiritual durante a Missão, poderia recorrer àquela pequena relíquia familiar:

- A única peça pessoal que carreguei comigo foi uma Bíblia – que eu tinha recebido de minha mãe e de meu pai. Era pequena. Cabia no bolso. Durante o vôo, eu me lembro de ter tocado a Bíblia com a mão. Mas não cheguei a ler nenhuma passagem. O exemplar da Bíblia não tinha meu nome, nada que pudesse identificar quem eu era. Se o avião por acaso fosse derrubado em território inimigo, os japoneses não poderiam me identificar pela Bíblia. Terminei perdendo-a, tempos depois.

Além do pequeno exemplar da Bíblia, Van Kirk carregava consigo uma pistola automática – que poderia ser usada numa situação extrema:

- Não havia rifles a bordo. Mas cada um de nós tinha uma pistola automática, calibre 45. Carreguei uma comigo, na missão rumo a Hiroshima. Se fôssemos derrubados sobre território japonês, poderíamos usar as pistolar para nos proteger ou – Deus nos livre – para destruir a nós mesmos, se necessário (Van Kirk evita a palavra “suicídio”). Mas, se algo desse errado na missão, a cena seria tão catastrófica que teríamos pouca chance de usar as pistolas.

Ninguém participa impunemente de uma missão tão devastadora.

Van Kirk orgulha-se de ter contribuído para o fim da guerra. É um fato histórico indiscutível. O uso das armas atômicas – primeiro, em Hiroshima e depois em Nagasaki - obrigou o Japão à rendição incondicional . Se o Japão continuasse em guerra, seria invadido por terra. O número de mortos poderia ter sido maior do que o causado pelas bombas – dizem os estrategistas. Mas o preço do uso das armas atômicas foi altíssimo. O horror causado pelo cogumelo atômico jamais se dissipou. Calcula-se que cem mil pessoas tiveram morte instantânea, nos dez segundos seguintes à explosão. As cicatrizes deixadas pelas explosões atômicas vão atravessar os tempos.

Que tipo de pensamento terá passado pela cabeça de Van Kirk quando ele viu Hiroshima pela primeira vez, ainda a bordo do Enola Gay?

Van Kirk faz uma pausa, reconstitui o cenário do apocalipse:

- Era um dia perfeitamente claro. A gente podia ver a cidade a milhas de distância. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a de que nossa missão tinha sido bem sucedida: nós tínhamos encontrado a cidade, cumprimos os horários previstos, tudo estava perfeito. O primeiro pensamento que tive depois da explosão da bomba foi de alívio. Porque aquilo era algo que tinha exigido um treinamento que durara meses. O segundo pensamento que tive foi: a guerra acabou!


A História dos tempos de guerra não é feita apenas de ordens militares grandiosas e decisões sem rosto. Há sempre alguém que cumpre as ordens. As decisões tomadas no Salão Oval da casa Branca pelo Presidente dos Estados Unidos podem exigir - por exemplo – que um grupo de militares entre num avião de madrugada, invada o espaço aéreo japonês, mire numa cidade lá embaixo e abra as comportas para que seja lançada, naquele alvo povoado por homens,mulheres e crianças, a arma mais mortífera já concebida pelo homem- uma bomba atômica.

O avião Enola Gay levanta vôo da ilha de Tinian, no Oceano Pacífico, às 2 e 45 da manhã de seis de agosto de 1945 rumo a Hiroshima, com doze homens – e uma bomba atômica a bordo. A bomba explode às 9h16. Cem mil pessoas morrem instantâneamente na explosão. O número de vítimas chegaria a 145.000 no final de 1945.

“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastaram até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas seiscentos leitos e todos já estavam ocupados”, diria o jornalista americano John Hersey em "Hiroshima", texto clássico sobre o bombardeio.
“Nuvens de fumaça, próximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um céu silencioso ter causado tanta destruição (...) Zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos”

A Missão Hiroshima foi o momento mais grave vivido por Van Kirk. Mas, para decepção dos fanáticos por guerra, ele constata:

- A guerra é mais interessante na TV do que na vida real. Guerra pode significar cinco minutos de extrema atividade – e um ano de monotonia....

Não havia lugar para monotonia a bordo de um avião que voava rumo ao Japão para cumprir uma missão que – não é exagero dizer - entraria para a história da humanidade:

- Havia a possibilidade de a bomba explodir no avião, o que seria desastroso. Poderíamos ter problemas no motor. Nós estávamos preparados para o pior – que, felizmente, não aconteceu. Não estávamos preocupados com os japoneses durante o vôo em direção a Hiroshima, porque sabíamos que eles não tinham como nos alcançar naquela altitude – confessa Van Kirk . Mas sabíamos que nosso avião seria atingido por ondas provocadas pelo deslocamento de ar, depois da explosão. Disseram-nos que, depois da explosão, iríamos sofrer o impacto. Houve até especulações sobre o risco de a explosão atingir o nosso avião. De volta à base, cheguei a ouvir de um dos cientistas o seguinte: “Quando vocês partiram para a missão, pensei que aquela seria a última vez que eu os veria....”. A turbulência durou pouco. O vôo de volta pôde continuar.

O calor que se espalhou por Hiroshima e Nagasaki era o de “mil sóis”. Seres humanos “se desintegraram sem deixar qualquer vestígio”. O inferno se instalou na terra. O grande paradoxo é que tanta destruição foi cometida – em última instância - em nome da paz – para acabar com a guerra. O Japão se rendeu. A Segunda Guerra Mundial acabou ali. Mas Hiroshima e Nagasaki entraram para sempre na História como provas de que o homem é tecnicamente capaz de destruir a vida sobre a terra. Basta tomar a decisão.

“Os cientistas tinham dito que a temperatura no centro da explosão seria mais forte que a do sol – diz Van Kirk. Quando a bomba explodiu lá embaixo, nós já estávamos nos afastando de Hiroshima. Não havia janelas na parte traseira do avião. Usávamos equipamentos para proteger nosso olhos. Ainda assim, pudemos ver um clarão parecido com o de um flash fotográfico numa sala escura. Hiroshima estava inteiramente encoberta por uma fumaça negra e por poeira. Não se via a cidade. A nuvem que se formou tinha várias cores: eram tons de cor púrpura, rosa, branca – todos os tipos de cores".

A visão era bonita? – pergunto ao navegador.

“Não se pode chamar algo assim de belo. Era algo mais horrível do que bonito”.

Adiante, ele aprofunda a descrição:

- Minha primeira reação, ao ver as primeiras imagens de Hiroshima, foi de surpresa: como aquilo tudo pôde ser feito com apenas uma bomba? Aquilo reforçou a nossa certeza de que não havia meio de os japoneses resistirem a uma arma daquele tipo. O Japão iria se render logo depois.

O que é que a palavra Hiroshima significa hoje para este homem?

“Para mim, Hiroshima significa, hoje, a ressurreição de uma cidade que foi destruída”, diz Van Kirk. “Hiroshima é também a prova de que o homem pode corrigir seus erros. Não é que a bomba atômica tenha sido um equívoco. O bombardeio foi perfeitamente legítimo como ato de guerra. A população de Hiroshima é hoje devotada à paz.É uma mensagem que vai para todo o mundo”.

Que resposta o navegador do Enola Gay dá, hoje, aos críticos da Missão Hiroshima, gente que condena o uso de armas atômicas?

- Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento específico e qual a alternativa que existia ao uso da bomba. O que aconteceu é que a bomba salvou vidas. Se não tivéssemos jogado a bomba, a guerra não teria terminado em agosto. Teria se estendido por um, dois meses. Durante este período, o Japão estaria exposto a um horrível bombardeio – com grande perda de vidas. Embora tenha havido uma horrível perda de vidas em Hiroshima – e também em Nagasaki – a alternativa seria pior : basta levar em conta o número de vidas que teriam sido perdidas se a guerra continuasse.

Ao contrário do esperado, o Japão não se rendeu depois da explosão da bomba em Hiroshima. Os Estados Unidos decidem,então, lançar uma segunda bomba atômica. O alvo era a cidade de Kokura. Mas, como a cidade estava encoberta por nuvens, a bomba foi jogada em Nagasaki. O Japão finalmente se rende. O documento da rendição incondicional é assinado no dia 2 de setembro

Pergunto se Van Kirk já teve pesadelo com Hiroshima:

- Nunca. Há quem me critique pelo fato de eu nunca ter tido pesadelo com a bomba atômica. Mas devo dizer que não tive. Porque acho que o que fizemos em Hiroshima foi apropriado.

E ele faria tudo de novo?

- Eu faria – diz Van Kirk , sem titubear. Faria tudo de novo, se as circunstâncias que a gente tinha ali se repetissem : um conflito que se estendia por anos, com muita matança, com feridos, com o país inteiro em estado de guerra, não apenas as forças armadas. Mas creio que as circunstâncias não se repetiriam. Não acredito que nenhuma outra guerra dure mais que uma semana ou duas.

Se tivesse tido a chance de falar aos habitantes de Hiroshima momentos antes do lançamento da bomba, o que Van Kirka diria a eles?

- Eu diria: lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade. É um ato necessário. Vocês não aceitaram os termos da rendição incondicional – que nós oferecemos. O resultado é este.


Aos que dizem que o ataque a Hiroshima é discutível porque atingiu indiscriminadamente alvos civis, Van Kirk responde que não : Hiroshima era a sede das instalações militares japonesas encarregadas de defender o país em caso de invasão. Havia na cidade pelo menos cem “alvos militares”. Mas a população civil pagou o preço.

Van Kirk acha absurda qualquer comparação entre o ataque atômico ao Japão – um ato de tempos de guerra – e, por exemplo, o ataque dos guerreiros de Bin Laden ao World Trade Center. O sentimento antiamericano, aguçado na era Bush, deu margem a comparações desse tipo.

- Quando vi o ataque ao World Trade Center me perguntei: que tipo de gente pode fazer algo assim? É algo que não consigo imaginar : que eles tenham achado que algo de bom poderia sair dali. Quando houve Hiroshima, nós estávamos em guerra. Havia legitimidade. Não apenas nós estávamos envolvidos na guerra,mas todo mundo – os britânicos, os russos, todos. Mas o ataque ao World Trade Center foi feito em tempos de paz. Como puderam fazer? Não consigo entender. Eu não o faria – nunca. Nunca.

Tento provocá-lo : o senhor iria a uma guerra hoje para capturar Bin Laden?

- Sim. Mas não creio que seja necessária uma guerra.

Vida de personagem da história é assim: o navegador do avião que jogou a bomba atômica oferece ao repórter um autógrafo sobre uma foto do Enola Gay. A relíquia vai para meus arquivos implacáveis. Pai de dois filhos e duas filhas, avô de sete netos, Van Kirk vive sozinho, com a mulher parcialmente inválida.

Em seus momentos de solidão, Van Kirk hoje se lembra das vítimas da bomba?


- Eu hoje me lembro das vítimas com menos freqüência do que antes. Mas a cada vez que vejo uma foto, um filme ou uma menção de alguém, me lembro das vítimas da bomba atômica. É algo que acontece menos e menos, à medida em que envelheço e o tempo vai passando. Hoje, devo me lembrar das vítimas uma vez por mês. Pode acontecer de eu me lembrar das vítimas duas vezes em um mês e, em seguida, passar três meses sem me lembrar. Mas a média é de uma vez por mês.

Van Kirk fica em silêncio. Nessas horas, ele parece rever intimamente os fantasmas de Hiroshima : o pesadelo da guerra, o imenso cogumelo atômico, a decisão dramática, a destruição indizível.

É sempre assim: quando uma notícia qualquer de TV fala da guerra ou quando um repórter vem de longe para ouví-lo sobre o dia histórico, Van Kirk embarca numa viagem feita de palavras, lembranças e silêncios - como agora. Não se recusa a falar. Não se esconde. Porque, desde o momento em que entrou no Enola Gay para voar rumo a Hiroshima, ele sabia que aquela viagem não acabaria nunca.




Posted by geneton at 01:22 PM

maio 25, 2008

CARL BERNSTEIN, O REPÓRTER DO CASO WATERGATE


ATENÇÃO, ESTUDANTES DE JORNALISMO! EIS AS LIÇÕES DO REPÓRTER QUE DERRUBOU UM PRESIDENTE!


Quem ? Carl Bernstein e Bob Woodward. O quê ? Publicaram no Washington Post reportagens que levaram um presidente dos Estados Unidos a renunciar. Quando ? Entre 1972 e 1974. Onde ? Em Washington. Por quê ? Porque são repórteres puro-sangue.

Se o Quarto Poder existe, ei-lo , então: os cabelos estão cem por cento grisalhos; os olhos fixam com firmeza o interlocutor; o sorriso parece sincero e cativante; a mão esquerda exibe uma aliança; a barriga ligeiramente saliente clama por uma boa dieta. Nome da fera: Carl Bernstein. Se fosse dado a bravatas, Bernstein poderia bater no peito e dizer que, em parceria com Woodward, derrubou um presidente americano. Jamais alguém encarnou com tanta propriedade, portanto, o chamado “Quarto Poder”.

Quando o Washington Post começou a publicar insistentes reportagens sobre o arrombamento dos escritórios do Partido Democrata no Edifício Watergate, a dona do jornal, Katharina Graham, ficou intrigada com o desdém com que outros jornalistas tratavam do assunto. Perguntou ao editor-chefe Ben Bradlee:

“Se esta história é tão boa, cadê o resto da imprensa?”.

O arrombamento – ocorrido no dia dezesseis de junho de 1972 - parecia um caso policial sem importância. Mas a persistência dos repórteres do Washington Post expôs um escândalo: os arrombadores estavam, na verdade, fazendo espionagem política, a serviço de assessores do presidente Richard Nixon. A Casa Branca estava envolvida no jogo sujo.

O escândalo revelado pelos repórteres terminou obrigando o presidente a renunciar. Mas ali, no início de tudo, ninguém seria capaz de imaginar a dimensão que o escândalo alcançaria. O que havia eram apenas indícios, pistas, fumaça. O fogo apareceria adiante.

“Cadê o resto da imprensa ?”

Não se sabe. Mas, aos vinte e oito anos de idade, Carl Bernstein estava no território que é o habitat natural de todo repórter: a rua. Sob a bênção de Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, padroeira dos repórteres puro-sangue, buscava pistas que esclarecessem o arrombamento do Edifício Watergate, sede do Partido Democrata - que fazia oposição ao presidente Richard Nixon, eleito pelo Partido Republicano.

O fio da meada não demorou a ser descoberto: um dos arrombadores do Edifício Watergate trazia, no bolso, um pedaço de papel com a anotação “W. House”. Parecia ser a abreviação de White House, Casa Branca. E um nome: Howard Hunt.

Bob Woodward arriscou: deu um telefonema para a Casa Branca, para checar se por acaso existiria algum sr. Hunt entre os servidores. A telefonista disse que sim. Iria transferir a ligação. Ninguém atendeu no ramal. A ligação voltou para a telefonista – que informou a “Talvez o sr. Hunt esteja no escritório do sr. Colson”.

Tratava-se de Charles Colson, um dos principais assessores do presidente.

Washington Post 1 x Nixon 0.

A descoberta provocaria uma “nova descarga de adrenalina” na equipe do Washington Post– diria, tempos depois, o editor-chefe Bem Bradlee, ao descrever a cena.

Quando finalmente conseguiu falar com Hunt, o repórter foi direto ao assunto: “Como é que o nome do senhor foi parar numa anotação encontrada com os arrombadores do Edifício Watergate ?”.

O assessor de Nixon fez silêncio, antes de suspirar, desolado:

“Meu bom Deus.....”

Washington Post 2 x Nixon 0.


Carl Bernstein juntou as duas pontas do fio que provocaria um curto-circuito fatal no governo Nixon

O caminho estava aberto para que o jornal estabelecesse uma ligação indesmentível entre o governo do presidente Nixon e os arrombadores que tentavam instalar equipamentos de escuta na sede do Partido Democrata, no Edifício Watergate.

Carl Bernstein juntou as duas pontas do fio que provocaria um curto-circuito fatal no governo Nixon: com ajuda de um investigador que estava trabalhando no caso por conta própria, descobriu que as notas de dólar – novas em folha - encontradas com os arrombadores tinham saído de um banco em Miami.

Próximo passo: descobrir se algum dos arrombadores tinha conta na agência. Tinha. Bernard Barker, um dos homens presos na sede do partido, tinha aberto não apenas uma, mas duas contas.

Cartada final: quem tinha abastecido esta conta ? Descobriu-se um cheque de vinte e cinco mil dólares, emitido por um certo Kenneth H. Dahlberg. Depois de uma nova e frenética busca nos catálogos telefônicos, os repórteres conseguem encontrar mister Dahlberg – que informa: como simpatizante de Richard Nixon, tinha recolhido doações em dinheiro para a campanha de reeleição do presidente. As doações foram transformadas em cheque, devidamente encaminhado ao chefe do Comitê de Reeleição do Presidente. Dali, o dinheiro foi parar nas mãos dos homens que tentavam espionar a sede do Partido Democrata.

Washington Post 3 x Nixon 0. Placar final.

“Bingo!”, escreveria Bradlee.

O cerco tinha se fechado. A partir daí, em meio a uma crise política que se arrastou por dois anos, o Escândalo de Watergate engoliu o governo Nixon. Gravações de diálogos entre Nixon e assessores provaram que o presidente tinha conhecimento das operações de espionagem e sabotagem de adversários políticos. A Suprema Corte obrigou o presidente a divulgar as gravações.
O Senado abriu uma investigação que, fatalmente, levaria ao impeachment do presidente. Nixon convocou uma rede nacional de rádio e televisão para as nove horas da noite de de oito de agosto de 1974 para entregar os pontos: anunciou que, ao meio-dia do dia nove, entregaria o cargo ao vice-presidente Gerald Ford.


A dupla Woodward-Bernstein ganhou fama, dinheiro e reconhecimento. Em dois livros de sucesso internacional – “Todos os Homens do Presidente” e “Os Últimos Dias” - os dois descreveram a saga iniciada com a cobertura de um arrombamento que parecia banal.

Dirigido por Alan Pakula, o filme baseado no livro “Todos os Homens do Presidente” virou um clássico do cinema político. Os atores foram escolhidos a dedo entre o primeiro time de Hollywood: Dustin Hoffman encarnou Carl Bernstein nas telas. Robert Redford fez o papel de Bob Woodward.


O anônimo repórter que, até então, se ocupava da cobertura de assuntos locais, como arrombamentos sem grande importância, viu-se transformado em modelo de um dos maiores atores do cinema: Dustin Hoffmann passou a freqüentar a redação do Washington Post para observar os maneirismos de Bernstein.


O autor de um perfil biográfico de Bernstein notou que, em apenas dois anos, a vida do repórter sofreu uma transformação inimaginável. O anônimo repórter que, até então, se ocupava da cobertura de assuntos locais, como arrombamentos sem grande importância, viu-se transformado em modelo de um dos maiores atores do cinema: Dustin Hoffmann passou a freqüentar a redação do Washington Post para observar os maneirismos de Bernstein.

A dupla virou espelho de uma geração inteira de jornalistas. O chefe dos dois, Ben Bradlee, diz que, nos anos seguintes ao Escândalo de Watergate, se divertia com a voracidade demonstrada por jovens repórteres na redação do jornal. Inspirados pelo rigor que a dupla Woodward-Bernstein demonstrava na apuração de informações, os aprendizes voltavam da cobertura de um incêndio banal, num subúrbio remoto, dizendo coisas como “descobri que o chefe dos bombeiros era anti-semita!”.

Bradlee diz que a mitologia criada em torno dos dois repórteres teve um efeito positivo: atraiu para o jornalismo “jovens, brilhantes e talentosos homens e mulheres que poderiam ter se encaminhado para outras profissões”.

Ao contrário de Woodward – que, na vida pessoal, fez a opção pela discrição - Bernstein enfrentou turbulências pós-fama: teve problemas com álcool, torrou o dinheiro que ganhou com os livros e o filme sobre o escândalo, freqüentou as páginas dos tablóides como personagem de fofocas.

Três décadas depois de Watergate, no entanto, os dois exibem um fôlego admirável: não deixaram de ser repórteres. Permanecem produzindo.
Bob Woodward pediu e, surpreso, recebeu autorização para freqüentar os bastidores da Casa Branca porque queria documentar o que levou o governo Bush a intervir militarmente no Iraque, em nome do combate ao terrorismo. Resultado: o livro “Plano de Ataque”.

Bernstein lançou, nos anos noventa, uma alentada biografia do Papa João Paulo II, em parceria com um jornalista italiano. Em seguida, embarcou numa empreitada ambiciosa: a biografia da ex-primeira dama Hillary Clinton, lançada em 2007.

A grande lição que o repórter Bernstein dá pode ser resumida em poucas linhas: quando vai apurar uma reportagem, o repórter não deve cair, jamais, na tentação de fazer pré-julgamentos sobre fatos e personagens. Bernstein é claro e direto: os jornalistas devem reaprender a ouvir. É uma obsessão que ele cultiva. Diz que só obteve sucesso na investigação sobre o Escândalo de Watergate porque ouvia,ouvia e ouvia ( daqui a pouco, na entrevista, ele falará sobre esta virtude que todo repórter deve cultivar incondicionalmente). Ao contrário do que tantos jornalistas fazem, não se comportava como se fosse um político: não simpatizava, claro, com as tramóias armadas por integrantes do Partido Republicano nos bastidores do governo Nixon, mas tratou de cultivar fontes de informação importantíssimas entre os republicanos. É assim que se faz jornalismo. Bernstein é inimigo do jornalismo engajado.

Bernstein e Woodward poderiam cair na tentação de articular teses grandiosas sobre a renúncia de Nixon. Mas, não. Em “Os Últimas Dias”, eles apegam-se aos fatos: informam, por exemplo, que o presidente dormiu apenas três horas no dia em que anunciaria ao mundo que iria renunciar ao cargo


O papel do repórter, diz, é e sempre será o de apurar os fatos com rigor para apresentar ao público “a melhor versão possível da verdade”. Numa apuração, todo detalhe é importante. Bernstein e Woodward poderiam cair na tentação de articular teses grandiosas sobre a renúncia de Nixon. Mas, não. Em “Os Últimas Dias”, eles apegam-se aos fatos: informam, por exemplo, que o presidente dormiu apenas três horas no dia em que anunciaria ao mundo que iria renunciar ao cargo. Ocupado na preparação do discurso que faria em rede nacional de rádio e TV, o presidente disparou um último telefonema para um assessor às 5 e 14 da manhã. Três horas depois, Richard Nixon estava de pé. O café da manhã, informam os repórteres, foi à base de cereal, leite e um suco de laranja. Milton Pitts, o barbeiro que há anos atendia a Nixon, recebeu às dez da manhã um telefonema da Casa Branca: o presidente queria que ele estivesse lá às dez e quinze. Pitts chegou na hora. Ficou sozinho com o presidente durante o tempo em que durou o corte de cabelo: vinte e dois minutos.
Terminada a sessão, Nixon estava pronto para o mais longo dos dias: pela primeira vez na história, um presidente americano renunciaria ao cargo. Os últimos dias de Nixon na Casa Branca foram registrados minuciosamente por Bernstein e Woodward nas 470 páginas de “The Final Days”. Os dois produziram o que o jornalismo faz: o primeiro rascunho da História.

Agora, ei-lo, numa passagem rápida por São Paulo e pelo Rio de Janeiro. Resolvo embarcar numa Maratona Bernstein, com um gravador, um bloco de anotações e uma câmera. Missão: importunar o repórter do Caso Watergate. A Maratona se dividiu em três frentes. Primeira: uma entrevista exclusiva com Bernstein – que desembarcara em São Paulo para fazer uma conferência na Câmara Americana do Comércio. Segunda: um encontro no Rio de Janeiro, a convite do próprio Bernstein, numa noite que reservaria pelo menos uma cena surpreendente. “O repórter que derrubou um presidente” empunhou uma guitarra para tocar clássicos do rock. Terceira: uma garimpagem de tudo o que ele disse na rápida expedição brasileira.

PRIMEIRA CENA: FRENTE A FRENTE COM A FERA

Uma velha pergunta: qual seria o primeiro conselho que você daria a um jovem repórter ?

“Seja um bom ouvinte! Penso que jornalistas se tornaram maus ouvintes. Com frequência, vão fazer uma reportagem a partir de noções pré-concebidas sobre o assunto, especialmente quando trabalham com câmeras. Fazem perguntas apressadas e vão embora.

Minha experiência me ensinou que o que eu pensava que a reportagem seria - tanto no caso de Watergate quanto no de Hillary Clinton, por exemplo - era muito diferente do que acabou acontecendo. Porque eu ouço as pessoas. Eu as respeito, sejam elas quem forem. A maioria de nossas fontes no caso Watergate era gente do Partido Republicano que trabalhava ao lado de Richard Nixon ! E eu os respeitava.

Penso que hoje há cada vez menos algo assim. Quando você se senta para ouvir um entrevistado, precisa dar a ele tempo para se explicar. Você termina aprendendo coisas incríveis! Quase sempre, é algo diferente daquilo que a gente esperava quando chega com a lista de perguntas.

Se você tivesse a chance de fazer uma última pergunta a Richard Nixon, que pergunta seria esta ?

" Perguntaria: por quê ? Para quê ?"
( Bernstein fica em silêncio, como se estivesse acalentando até hoje uma dúvida irrespondida: como é que um presidente que batia records de popularidade precisava espionar o partido adversário, num ano eleitoral ?).

Por que é você não vai agora para o Afeganistão, à procura de Bin Laden ? Qual a primeira pergunta que você faria a ele ?

"Não tenho idéia. Perguntaria: como é que você justifica a natureza bárbara dos seus atos contra gente inocente ? Penso que ele é um monstro".

Você disse que "torrou" os três milhões de dólares que ganhou com os livros e o filme sobre o Escândalo de Watergate. Você diria que não soube lidar com a fama, naquele período ?

"Eu não era particularmente bom neste aspecto, no início de tudo. Precisa-se de tempo para lidar com este dinheiro....Mas gostei. Não tenho muitos lamentos a fazer sobre como o dinheiro foi gasto : com casas ou seja o que for....

O importante é : precisa-se de um tempo para se acostumar com a atenção que é dispensada a você e não ficar convencido. Hoje, espero que tenha adquirido alguma lucidez para não levar as coisas tão a sério e não exagerar...

A resposta é : o melhor é continuar a trabalhar.Continue escrevendo livros. Continue fazendo coisas para a TV. Continue escrevendo seus artigos. Não seja imodesto"

Como é que o senhor define a intervenção americana no Iraque ?

"É uma catástrofe, um desastre. É o resultado de um tipo de inabilidade e desonestidade por parte de George Bush. Os subterfúgios e informações que ele sabia que não eram exatos foram usados para convencer o Congresso e o povo dos Estados Unidos de que deveríamos entrar numa guerra que, na verdade, era mal-conduzida e ideológica.

É uma guerra que não nos protege contra o terrorismo, ao contrário do que aconteceu com a decisão - acertada - de lançar um ataque contra forças baseadas no Afeganistão.

Eu estive no Iraque. Visitei o país meses antes da primeira Guerra do Golfo. Não era um estado terrorista. Era um estado totalitário, um estado estalinista, um estado laico. Parte da dificuldade vem do fato de que George Bush tem demonstrado não apenas incompetência,mas falta de sinceridade e de honestidade. O Iraque tem sido uma catástrofe para nosso país e para as centenas de milhares de americanos e de iraquianos que têm sido mortos. O pior é que ele tem intensificado o terrorismo.

Além de tudo, Bush tem, no âmbito interno, enfraquecido princípios constitucionais e legais. A presidência de George Bush vai ser vista como, talvez, a mais desastrosa da moderna história americana. Precisaremos de décadas para nos recuperar de seus excessos e do que ele tem feito".


Com outras palavras, você tem chamado Bush de "mentiroso". Bush mente melhor ou pior do que Richard Nixon ?


"Não estou certo de ter usado a palavra mentiroso. Mas há uma história de inabilidades, inverdades e manipulação cometidas por George Bush, não apenas sobre a guerra, mas até sobre coisas tão básicas quanto um furacão.

O que aconteceu? Um furacão iria atingir Nova Orleans. Bush foi avisado por funcionários da área meteorológica diante das câmeras. Disseram que os níveis de segurança poderiam ser ultrapassados. Durante meses e meses, Bush dizia que não sabia que os níveis poderiam ser ultrapassados pela tempestade.


Bush é sui-generis, comparado com a história da presidência. Porque ele tem um desprezo pelos fatos e pela verdade que é diferente do de Nixon - que tinha uma grande capacidade intelectual, independentemente do que se poderia pensar sobre suas políticas ou sobre o tipo psicológico que ele tinha. Já George Bush trouxe para a presidência uma falta de habilidade, uma faltas de sutileza, uma falta de curiosidade e de preocupação com os fatos e com a vida real.

Bush tem uma visão fantasiosa sobre o que é o mundo. E também sobre o papel dos Estados Unidos. Ainda que sejamos uma superportência, o exercício de poderes numa condição dessas é um mecanismo delicado.

Não há sutileza ou delicadeza que Bush seja capaz de praticar"


Você compraria um carro usado de George Bush ?

"Sim. Porque ele entende de carros"

Repórteres gostam de expor a vida privada dos outros. O que é que você sentiu quando a imprensa publicou que você teve um caso com Elizabeth Taylor ?

"É verdade...." ( ri)

Isso é uma pergunta ou uma resposta ?

"Não chegou a ser um sacrifício ter conhecido Elizabeth Taylor - e também ver a notícia publicada. É um pequeno momento na vida.

Há um problema real quando jornalistas se intrometem na vida dos seus personagens: quando apuram informações que, na verdade, são irrelevantes para entender um assunto estão cometendo um excesso. Isso aconteceu comigo uma vez ? Aconteceu. Mas não vou ficar reclamando....

Só espero que eu consiga ver a vida inteira da maneira como vi - por exemplo - a vida de Hilary Clinton: tento ver quem ela é , quais são os valores que ela cultiva, assim como fiz com Bill Clinton - que também é personagem da biografia.

Olho para os fatos e tento mostrar o contexto e o peso de cada um, em seus vários aspectos. É tudo o que eu poderia pedir a quem fosse escrever sobre mim. Livros foram publicados sobre mim e Bob Woodward. Mas estamos esperando um que seja realmente bom.

Não aconteceu ainda. Gostaríamos que o livro "Todos os Homens do Presidente" fosse o texto básico. Mas a vida segue. Um dia alguém vai fazer a coisa certa. Certamente não será da maneira que nós pensamos que deveria ser. Mas penso que acontecerá. Não estamos numa posição de reclamar da maneira com que os jornalistas nos olham"....

Uma dúvida - e desculpe perguntar: Elizabeth Taylor não era velha demais para você ?

" Isso aconteceu há muito tempo. Aconteceu em minha juventude. E na juventude relativa de Elizabeth Taylor. É uma pessoa maravilhosa. É uma dessas experiências de vida que você fica satisfeito em ter"
Ter sido preso por estar dirigindo alcoolizado foi a coisa mais embaraçosa que você já fez em público?

"Não sei. Certamente, não foi. Fiquei feliz por ter sido apanhado, porque vi que era tempo de parar de beber. Faz vinte e dois anos que não tomo um drinque. Parei. Hoje, bebo Coca-Cola"

Qual foi a informação mais embaraçosa que você descobriu sobre a família Clinton ? É verdade que o presidente eleito Bill Clinton recebeu a visita íntima de uma ex-amante no dia em que ele estava seguindo para Washington para assumir a presidência ?

"Não estou preocupado com embaraços. Não estou interessado em algo assim. O objetivo de escrever um livro não é causar embaraço. É tentar entender o que a personagem do meu livro é. E como ela tem vivido a vida. Uma das coisas que tive grande cuidado em fazer foi não escrever um balanço sensacionalista da vida sexual de Bill Clinton. Não me preocupo tanto com algo assim.

O que me parece importante é o seguinte: desde jovem, Bill Clinton era visto - por muitos - como o maior talento político de uma geração. Hilary Clinton reconhecia este fato. Mas ela também sabia que o que ela chamava de "compulsão sexual" de Bill Clinton poderia fazer com que ele deixasse de ser politicamente viável. Hilary Clinton começou, então,a encobrir os efeitos dessas compulsões e a lidar com as consequências.

Isso se tornou uma grande preocupação para ela: que ele pudesse se tornar politicamente viável. Isso é que é importante. Mas saber se alguém o visitou um dia antes ou se ele viu alguém não é algo que realmente me interesse. Não é a questão"

( Em “A Woman in Charge”, Bernstein passa em revista os anos de formação da ex-primeira dama: "Hillary chegou à maioridade numa época nos Estados Unidos em que a sexualidade das mulheres, especialmente das jovens mulheres, estava passando por uma mudança profunda, em grande medida por causa da disponibilidade fácil da "pílula".
Desde o começo do romance com Hillary, Geoff Shields tinha consciência tanto do desejo dela por experiências sexuais "responsáveis" como da extraordinária seriedade de propósito, disciplina e foco. Que ela era "pessalmente muito conservadora" ficou óbvio desde o início da relação, que floresceu no auge da permissividade do fim dos anos 60 (...) Shields nunca ficou sabendo se ela fumou maconha (embora o cheiro de baseado pairasse nos halls de entrada do dormitório. Nunca a viu se exceder na bebida - e ela não era promíscua. Ainda assim, ela com certeza não era uma daquelas mulheres de Wellesley que eram consideradas "caxias" Gostava de festas e de dançar ao som de Elvis, Beatles e Supremes”)


Depois de entrevistar duzentas pessoas, trabalhar dezoito horas por dia por um ano e escrever seiscentas e quarenta páginas, o senhor pode definir Hilary Clinton em apenas uma frase ?

"Não. E é por esta razão que se escreve um livro - e se gasta tanta tempo. O que posso dizer é que ela é a mulher mais famosa do mundo e, provavelmente, a menos conhecida, em termos do que a realidade da vida tem sido para ela.

É por este motivo que passei sete anos trabalhando no assunto. O resultado foram seiscentas e quarenta páginas. É um lugar-comum dizer que alguém é complicado. Mas Hilary Clinton é - de verdade"


Por que Hilary Clinton se recusou a dar entrevista você ? Isso é um caso de falta de confiança no repórter ?

" Não. Acontece que ela gosta de controlar a maneira como é vista. Disse-me que poderia se sentar para falar comigo. Mas, quando decidiu concorrer à presidência, desistiu da entrevista. É alguém que vive sempre tentando talhar a própria imagem. Não gosta da imprensa. Temos amigos em comum.

Hilary disse aos amigos: "Se vocês quiserem falar com Carl, falem. Depende de vocês". Mas ela não chega a ser fanática por investigações independentes......

O desapreço de Hilary pela imprensa é um dos temas da biografia. É - de certa maneira - um subtexto. Em alguns casos, o desapreço é justificado. Em outros, é um caso de arrogância. Hilary Clinton conhece o meu trabalho. Nós nos conhecemos.

Se ela tivesse se sentado para falar comigo, o conteúdo básico da biografia não seria afetado, mas ela teria uma chance de dizer: "Carl, você deve ouvir fulano ou sicrano.Você perdeu este ponto. Você não entendeu bem o que aconteceu aqui. Deve encarar de outra maneira...." . Hilary poderia ter esta oportunidade.

Isso a ajudaria a complementar o retrato que eu estava traçando - de uma tal maneira que ela poderia ficar mais satisfeita com o resultado. Mas, ao mesmo tempo, os assessores de Clinton entendem. As resenhas sobre a biografia foram ótimas. Porque a biografia humaniza Hilary.

Penso que este lado humano é algo com o qual ela tem tido muitos problemas, especialmente porque os balanços que Hilary Clinton fez da própria vida - em textos e falas - deixam de fora boa parte da história".


( Bernstein escreveria na biografia: "Em seus primeiros meses de Casa Branca, tanto Bill como Hillary foram alimentados à força com uma verdade impalatável: ao contrário de suas expectativas, não dava para comandar a capital tão facilmente como eles tinham dominado a política de um pequeno estado do sul. Bill amadureceu politicamente durante seus oito anos como presidente. Mas, no caráter, ele permaneceu basicamente o mesmo: ambicioso, narcisista, charmoso, brilhante, esperto, indisciplinado, incrivelmente capaz - e, com freqüência, uma decepção pessoalmente”)


O Washington Post escreveu que a eterna fascinação provocada pelo trabalho que você fez durante o escândalo de Watergate é como se fosse uma medalha que você jamais poderá tirar do peito; uma honra da qual você jamais poderá fugir. Você se incomoda em ser citado pelo resto da vida como um dos repórteres que, no fim das contas, acabaram com a carreira de um presidente americano ?

" As coisas são assim. É como um jogador de beisebol que será lembrado por uma jogada. Não é algo que me preocupe. Eu e Bob nos sentimos muito bem com o trabalho que fizemos na época e as oportunidades que tivemos desde então. Nós dois tivemos vidas plenas e maravilhosas, além de oportunidades que nos foram oferecidas. Posso estar aqui, por exemplo, para falar com gente maravilhosa, ver o mundo de uma maneira diferente da de outros jornalistas, talvez. Tivemos sorte. Aprecio realmente o lado sortudo de tudo. É bom"


Você e Bob Woodward venderam para a Universidade do Texas todas as anotações e documentos que vocês reuniram durante o escândalo de Watergate. Qual foi o preço ?


"Cinco milhões de dólares. Não sei como responder a esta pergunta, a não ser dizendo que nós queríamos ter a certeza de que todas as anotações e os registros do que fizemos ficassem protegidos e abertos a pesquisadores - se bem que há fontes que foram mantidas em sigilo. Era óbvio que o material tinha um valor histórico . Quando você vende um trabalho, como um livro, por exemplo, há um valor monetário envolvido. Tiramos partido desse fato. Mas obedecemos, espero, todos as questões éticas envolvidas"

É este o preço da história ?

"Se ninguém tivesse oferecido dinheiro por estes papéis, nós os teríamos doado, de qualquer maneira. O importante era que eles ficassem disponíveis para a História. Há um mercado para itens de interesse histórico. Nós participamos desse mercado, assim como participaríamos com um livro ou algo que tivesse um aspecto comercial. Descobrimos que havia um mercado para documentos assim. Mas, ainda que não existisse, nossa intenção era,sempre,a de que os documentos ficassem protegidos e disponíveis"


Que tipo de pergunta inconveniente faria você encerrar esta entrevista agora ?

"Algo que eu achasse que tivesse a intenção de atingir meus filhos"



Um de seus filhos toca guitarra numa banda punk. Alguma vez ele vez alguma pergunta a você sobre Richard Nixon ?

"Em primeiro lugar, todos devem ir ao site My Space ponto com e procurar pela banda do meu filho, Max Bernstein. A banda é The Actual. É produzido por Scott Weiland - do grupo Velvet Revolver. É um grande músico. Fico orgulhoso , porque é meu filho. Também tenho orgulho do meu filho jornalista. Todos dois me perguntaram muitas vezes sobre Richard Nixon e sobre Watergate. Os dois têm uma saudável irreverência para levar a sério demais o trabalho dos pais"


Você é um ídolo - e um herói - para muitos repórteres. Quem é o herói de Carl Bernstein ?

"Quando eu tinha dezesseis anos de idade, fui trabalhar um belo e velho jornal que jjá nem existe, o Washington Star, como mensageiro. Havia um grande editor de assuntos locais, chamado Sid Epstein, que morreu há poucos anos. Falei no funeral. Sid me ensinou muito do que sei . Era um repórter e editor da velha guarda. Se eu pudesse citar o nome de uma pessoa, seria ele. (Sid Epstein trabalhou durante décadas no Washington Star - um jornal vespertino que circulou durante cento e trinta anos na capital americana, até fechar as portas, em 1981, em meio a uma crise financeira)
.
O outro seria I.F. Stone, que era um grande jornalista de esquerda. Era mantido fora da grande imprensa, mas vivia fuçando e persistindo. Sem ter grande acesso a fontes dos governos, ele usava fontes públicas de informação para obter a melhor versão possível da verdade. ( Jornalista independente americano, I.F. Stone (1907-1989) publicava por conta própria uma jornal que chegou a ter uma circulação de setenta mil exemplares nos anos sessenta. Fazia oposição à guerra do Vietnam. Conseguiu vários furos de reportagem)


H.L Mencken também"

Mencken escreveu uma vez um artigo contra os zoológicos! É o único jornalista do mundo que escreveu um artigo contra os zoológicos.

........"Era um cínico profissional! Eu não faria coisas como as que ele fez, mas adoro lê-lo . (H.L.Mencken ( 1880- 1956), jornalista considerado iconoclasta, era conhecido por seus textos irônicos e pelas críticas ácidas que dirigia contra todo tipo de alvo. Chegou a escrever artigos contra os jardins zoológicos)
Há grandes jornalistas na geração anterior à minha, como David Halberstam, que teve um livro publicado nos Estados Unidos agora sobre a Guerra da Coréia (Premiado jornalista americano, autor de livros-reportagem sobre os barões da imprensa e sobre a Guerra do Vietnam, morreu em 2007, aos 73 anos, num acidente de carro, a caminho de uma entrevista. Deixou um livro inédito sobre a Guerra da Coréia, lançado postumamente).

E Gay Talese (Considerado um dos criadores do chamado Novo Jornalismo americano, marcado pelo uso de recursos literários em textos jornalísticos. Uma de suas reportagens mais conhecidas é um perfil do cantor Frank Sinatra)
São jornalistas notáveis que também tinham ótimos textos. Não nos preocupamos tanto hoje - como deveríamos - com o texto. A maioria dos grandes jornalistas tinha excelentes textos.

SEGUNDA CENA: ANOTAÇÕES LIGEIRAS SOBRE OS BASTIDORES DE UMA COBERTURA: NUMA MADRUGADA NA URCA, O SUPER-REPÓRTER EMPUNHA UMA GUITARRA

Uma cena inesperada na noite do Rio de Janeiro: o repórter que derrubou o presidente dos Estados Unidos empunha uma guitarra de madrugada na Urca para tocar rock-and-roll.

Aconteceu diante de uma reduzidíssima platéia. Quando o concerto improvisado do repórter mais famoso do mundo acabou, o público era formado por exatamente seis espectadores, sentados diante da fera. Testemunhei a cena.

Ao final de uma recepção oferecida a ele por Ana Maria Tornaghi num casarão na Urca, Carl Bernstein - de passagem pelo Rio depois de fazer uma conferência em São Paulo na Câmara Americana de Comércio - surpreendeu a todos: pegou uma guitarra, cantou e tocou pérolas como "Sweet Little Sixteen", "Love is Strange" ( música gravada por Paul McCartney no começo dos anos setenta), a bela "Goodnight, Irene" ( folclore americano, regravada "n" vezes por feras como Little Richard) , “Bye,Bye Love" ( aquela que diz "Bye bye, happiness /Hello, loneliness /I think I´m gonna cry") e "Blue Sued Shoes" e “La Bamba”.
Bernstein já foi crítico de rock. Tinha vinte anos em 1964. Ou seja: é um legítimo representante da geração que dançou ao som de Elvis Presley. A bem da verdade, diga-se que, como cantor, Bernstein é um excelente repórter. Como instrumentista, dá para o gasto. Se tivesse tentado a carreira nos palcos, estaria hoje tocando num boate do Alabama. A família é chegada a música: um dos dois filhos de Bernstein, como se sabe, é músico numa banda "punk-rock" chamada The Actual. O outro seguiu a carreira do pai.
Quando acabou de tocar, o super-repórter disse-me: "Hey, você tem uma matéria!".

Eu já estava ligeiramente constrangido: em São Paulo, tinha seguido os passos de Bernstein durante a conferência na Câmara Americana de Comércio. Acompanhei a entrevista coletiva. Gravei uma longa exclusiva. Tirei fotos. Pedi autógrafo num livro ( não é coisa que entrevistador faça normalmente com entrevistado. Mas, desculpe, Bernstein é meu ídolo profissional há séculos). Aqui no Rio, o assédio se repetia. Não seria hora de parar a "caçada" ? Minha porção chacal me soprou: não!

Satisfeito com o jogo de perguntas-e-respostas de nossa entrevista em São Paulo , o generoso Bernstein me fez, diante da câmera, o maior elogio que ouvi na minha vida profissional ( “é uma das melhores entrevistas que já dei para televisão”). Pensei comigo : ok, stranger, agora já posso ir morar num rancho em Santa Maria da Boa Vista.

Em seguida, pediu meus contatos: telefone, e-mail, celular. Perguntou se eu estaria no Rio nos próximos dias. Eu disse que sim. Pensei que o gesto de Bernstein fosse apenas uma daquelas cortesias que caem no esquecimento cinco minutos depois.

Sorte minha: não foi.

Três dias depois, quando abro o computador, o que é que pisca na tela ? Um e-mail de Carl Bernstein me convidando para um jantar. Dei uma saída. Quando chego em casa, nova surpresa: um recado na secretária eletrônica. Bernstein em pessoa. Por fim, quando pego o celular,outro recado do homem. Dois recados nos telefones, dois e-mails ( ele mandaria outro). O convite já não era um convite: era uma convocação.

Fui. Ganhei outro autógrafo, em que ele chama nossa entrevista de "terrific". Brincalhão, faz uma ressalva : diz que tinha adorado a gravação da entrevista, mas quer ver como é que ela seria editada. Tranquilizo-o : pretendo usar a entrevista na íntegra, sem cortes, porque em TVs a cabo, como a Globonews, os entrevistados podem falar. Ficou de me passar um endereço, porque queria receber uma cópia da fita, em casa, em Nova York. Prometo, claro, despachar uma cópia em DVD. Juro por Nossa Senhora do Perpétuo Espanto que mandarei.

Próximo assunto: falamos sobre a última empreitada jornalística de Bernstein: a biografia de Hilary Clinton. Bernstein informa que a biografia já sai com uma primeira fornada de 250 mil exemplares.
O espírito de repórter de Bernstein se manifesta a toda hora: em meio à recepção, ele sai perguntando aos convidados quem é que gosta e quem é que não gosta da Catedral Metropolitana do Rio. Tinha visitado a Catedral. Ficou impressionado com a quantidade de gente que fala mal do prédio. "Você gosta da Catedral? Você gosta da Catedral", é o que repete. Depois, a cada vez que é apresentado a alguém, repete em voz alta o nome do convidado.

A uma jornalista em início de carreira, Clara Passi , que aproveitou a chance para perguntar qual seria o primeiro conselho que ele daria a um iniciante, Bernstein respondeu: "O repórter precisa saber ouvir!".

A mulher de Bernstein, uma loura altíssima, que dançou enquanto o marido tirava acordes da guitarra, disse que ele tem mania de fazer perguntas. Pudera. "Quando volto do supermercado, ele fica me perguntando o que é que comprei e onde fica a loja", ela diz.
(Eu já tinha experimentado a fúria perguntadora de Bernstein. Terminada a gravação de nossa entrevista, ele fez um bombardeio de perguntas: “Quando vai para o ar? Como se escreve o seu nome ? É português ? Quando você vai voltar ? Onde é que você mora ? Como estará o tempo amanhã no Rio ?”).

Perguntar, perguntar, perguntar. Bernstein nunca quis fazer outra coisa na vida. Pouco importa que a situação seja banal, como esta.

As perguntas que ele fez obsessivamente terminaram obrigando um presidente dos Estados Unidos a renunciar ao cargo.


TERCEIRA CENA: O JORNALISTA QUE É ÍDOLO DOS JORNALISTAS COMBATE MITOS. DEZ OPINIÕES DE CARL BERNSTEIN

As palavras que o super-repórter pronunciou na passagem-relâmpago pelo Brasil servem de lição valiosíssima para jornalistas que, equivocadamente, defendem um jornalismo “engajado”.


Carl Bernstein virou sinônimo de jornalismo investigativo. Mas, surpresa, ele é o primeiro a se insurgir quando alguém se refere ao “jornalismo investigativo” como se fosse o Cálice Sagrado.
Gravando!

1

"Não acredito que o jornalismo investigativo seja diferente do resto do jornalismo. Todo bom jornalismo é o mesmo. Seja no esporte, na economia ou em qualquer área, fazer bom jornalismo é apresentar a melhor versão que se pode obter da verdade. Jornalismo é persistência, é ser um bom ouvinte, é respeitar quem você aborda, é ter tempo. O mito do repórter investigativo - que eu o Bob Woodward contribuímos involutariamente para criar - não é necessariamente uma boa coisa"
.
2
"A história não se repete. Cada situação existe num contexto próprio. É errado ter uma visão nostálgica do Escândalo de Watergate ou do caso da divulgação dos Papéis do Pentágono. O melhor é tirar as lições que pudermos desses acontecimentos - e olhar para o nosso tempo"
. 3
"Não acredito que o tempo de Watergate tenha sido necessariamente um tempo de alguma grandeza jornalística. A idéia de olhar para aquele tempo como uma época de ouro - que de fato nunca existiu – é, portanto, um grande engano"....
.

4
"Não acredito que o papel da imprensa seja dizer às pessoas no que é que elas devem acreditar. Não acredito! O papel da imprensa é divulgar a melhor versão possível da verdade. Cabe a cada cidadão reagir. Em qualquer democracia, o cidadão pode - ou não - reagir da maneira que você espera. Mas o papel de um repórter não é o de se levantar e dizer: "É nisso que vocês devem acreditar".
.
5
"A imprensa dá a informação. Se o cidadão resolver votar em George Bush e reelegê-lo, como aconteceu, eu, pessoalmente, posso até não gostar, mas é assim que os cidadãos agiram! O que a imprensa não deve fazer é forçar o público a se comportar de uma determinada maneira".

"É sempre muito fácil jogar na imprensa a culpa pela reação lenta e - algumas vezes - pela indesejável resposta política de um país ou um povo"...
.
6
"Acontece o tempo todo. Sou parado na rua por gente que me pergunta: por que é a imprensa não informa sobre George Bush ? Olho para eles e digo: Vocês estão loucos? Como é que vocês acham que todos soubemos sobre as coisas terríveis que este presidente tem feito? Pela imprensa! Onde é que a gente soube tanto sobre do aquecimento global? Pela imprensa!".
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7
"A imprensa frequentemente faz trapalhadas. Não somos diferentes de outras instituições - que refletem a cultura em que vivemos. Somos feito médicos, por exemplo. Você vai a um médico. Em dez por cento dos casos, você precisa sair do consultório para ficar melhor. Um pode lhe salvar . Trinta por cento dos médicos farão com que você possa se sentir melhor. Vinte por cento farão você se sentir um pouco pior. Outros vinte por cento farão com que você fique muito pior. E dez por cento vão matar você. Não acho que nós, jornalistas, sejamos diferentes. Somos diferentes num ponto: quando outras instituições falham, a imprensa precisa estar lá.Mas a imprensa não pode ter um tratamento especial. É tão capaz de cometer erros ou de praticar corrupção quanto qualquer outra instituição. Talvez um pouco menos capaz”.
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8
“A imprensa chegou atrasada no caso do Iraque porque não fomos suficientemente céticos no começo, no momento em que Bush decidiu ir para a guerra. Falhamos na hora de examinar aquela que foi, talvez, a mais desastrosa decisão tomada por qualquer presidência americana nos tempos modernos”.

9
“O presidente Nixon resistiu. Disse: “não,vocês não podem ter minhas gravações. Não me importo se vocês são o Congresso dos Estados Unidos. Não me importo se vocês são juízes. Não vou dar as minhas gravações” ( Bernstein refere-se às célebres fitas que registravam tudo o que era dito nas audiências do presidente com assessores, na Casa Branca. As fitas eram gravadas com o conhecimento do presidente, mas terminaram usadas contra ele) . E o que aconteceu? A Suprema Corte dos Estados Unidos – inclusive juízes que Nixon tinha nomeado e de quem esperava apoio – votou por nove a zero ao decidir que o presidente dos Estados Unidos estava sujeito a lei, tal como você e eu.

Nixon teve de dar as fitas. O que ocorreu,então? As fitas mostraram que o presidente dos Estados Unidos era culpado por ter conspirado, por ter desrespeitado a Constituição dos Estados Unidos e por ter atingido princípios democráticos. Houve uma investigação que resultaria no impeachment do presidente. O presidente disse : “Não saio. Vocês terão de me levar a julgamento!”.

Mas, antes até da votação do impeachment, senadores e deputados republicanos, integrantes do partido do próprio presidente, liderados por Barry Goldwater, um senador corajoso, um grande conservador, o homem que é de fato o moderno inventor do movimento conservador dos Estados Unidos, foram à Casa Branca para dizer a Nixon: “Não vamos apoiá-lo. Se o senhor não deixar o poder voluntariamente, vamos votar pela condenação. O senhor será o primeiro presidente a ser condenado e forçado a deixar o poder” .

Nixon desistiu. Neste caso, as instituições funcionaram, não porque o país inteiro desde o inicio estivesse pronto para entender o que tinha acontecido e o que o caso envolvia, mas porque cada elemento do sistema - a imprensa, a justiça, o Congresso - fez o que devia. Em alguns casos, fazer este trabalho exigia atos corajosos de indivíduos”
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. 10
“Nós reportamos os fatos. O sistema funcionou. Mas, para o sistema funcionar, é preciso que a imprensa esteja empenhada em conseguir a melhor versão possível da verdade. É aí que reside a responsabilidade da imprensa!. Não é pegar corruptos , mas obter o que chamo sempre de a melhor versão possível da verdade. O que é ? É contextualizar. Não é apenas se ocupar de corrupção. É reportar sobre as condições de uma cultura. E pôr os fatos num contexto. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, é escrever sobre pobreza endêmica- que é uma parte da corrupção. O trabalho da imprensa não é derrubar governos. É procurar pela melhor versão possível da verdade dentro de uma determinada cultura - com toda a vibração, com toda a dificuldade, com toda a alegria e toda a miséria aí incluídas. Que seja esta a nossa agenda jornalística”.


*******


“Se esta história é tão boa, cadê o resto da imprensa?” . A pergunta da senhora Graham foi devidamente imortalizada na página 364 da excelente autobiografia de Ben Bradlee, “A Good Life”.

( Ao final da minha Maratona Bernstein,divago, solitário, com meus botões: quem já passou quinze minutos numa redação pode apostar, sem margem de erro, onde estava “o resto da imprensa”. É pule de dez: é muitíssimo provável que o “resto da imprensa” estivesse fazendo o que, incrivelmente, a esmagadora maioria dos jornalistas faz nas redações. Ou seja: dar de ombros para o que é notícia; inventar pretextos risíveis para não publicar uma reportagem; pontificar com patética auto-suficiência sobre todo e qualquer assunto. Paulo Francis dizia que o melhor jornal é aquele que não é publicado. Bingo!


É um fato cientificamente demonstrável: o maior, o mais nocivo, o mais intransigente, o mais pretensioso, o mais impermeável, o mais destrutivo, o mais indefensável inimigo do Jornalismo é....o jornalista! Não existe outro.

Diante de tal quadro, um leigo que entrasse por engano numa redação espicharia as sobrancelhas para cima e deixaria o queixo pender dois centímetros para baixo, para transmitir aos passantes um ar de espanto. Mas ninguém prestaria atenção ao espanto do leigo. Pelo seguinte: a desfaçatez de jornalistas que se julgam intérpretes iluminados da mente do público é algo que faz parte da natureza da profissão .


Um belo dia, o jornalista simplesmente se declara, diante do espelho, porta-voz dos interesses e da curiosidade desta abstração chamada "leitor" ou "telespectador". Bota a faixa imaginária no peito, passa um pente no cabelo, apruma o andar, sobe a rampa e lá vai ele assumir o mandato de presidente plenipotenciário da opinião pública.

Reinam nas redações leis que, aos olhos de um leigo, podem soar absurdas. Exemplo: o concorrente divulgou a notícia "x" ou fez uma reportagem sobre o assunto "y"? Divulgou. Então, a notícia ou a reportagem - que o jornal iria publicar ou a TV iria levar ao ar- vão para o lixo .

O JNJ ( Jornalista Nocivo ao Jornalismo) age como se o leitor e o telespectador fossem maníacos de hospício que lêem todos os jornais, vêem todas as emissoras de TV, ouvem todos os programas de rádio e acessam todos os sites. Parece que o tal leitor ou o tal espectador vão se dar ao trabalho de comparar, página a página, matéria a matéria, tudo o que o jornal, a revista ou a TV publicaram. Não vão. Nunca se deram ao trabalho. Jamais se darão. Querem apenas se informar. Mas JNJ comporta-se como se os leitores e telespectadores fossem maníacos.

Loucura.

Qual o resultado deste catálogo de insanidades? As reportagens precisam enfrentar uma corrida de obstáculos nas redações antes de chegarem às mãos e aos olhos de Sua Excelência, o Público! Parece exagero, mas é a mais cristalina verdade. Jornalista Nocivo ao Jornalismo, portanto, é o que faz jornal (ou revista ou TV ou rádio) para jornalista, não para o público. Passa a vida erguendo barricadas contra o que o jornalismo pode ter de vívido e interessante. É capaz de – entre outros inumeráveis absurdos - sonegar impunemente uma informação ao leitor ou ao espectador apenas porque um veículo concorrente tratou primeiro do assunto.

Jornalistas puro-sangue são os que acendem velas para Nossa Senhora do Perpétuo Espanto (a santa inventada por Kurt Vonnegut). Humildemente, pedem à santa padroeira que não lhes tire, jamais, a capacidade de encarar a vida como se estivessem vendo tudo pela primeira vez. Porque a capacidade de olhar para os fatos da vida como se estivessem vendo tudo pela primeira vez é o que distingue um jornalista puro-sangue de um jornalista burocrata, exterminador de reportagens. Nossa Senhora do Perpétuo Espanto deveria, portanto, reinar , soberana, em todas as redações. Porque o bom repórter jamais perderá a capacidade de exercitar um saudável espanto diante dos fatos e personagens. É desse saudabilíssimo espanto e desse saudabilíssimo interesse que nasce a matéria-prima do jornalismo: a reportagem.

Diante de um assunto interessante, um personagem atraente, um fato que merece ser contado, o Jornalista Nocivo ao Jornalismo saca a arma e imediatamente pergunta: “Por que publicar?”. O jornalista de verdade, é claro, perguntaria: por que não ?Fim da divagação ).


Termina a Maratona Bernstein. Dali a poucas horas ele deixaria o Brasil. Se teve a chance, certamente deve ter perguntado a algum transeunte no corredor do aeroporto: “E você ? O que é que acha da catedral ?”

Posted by geneton at 09:35 PM

dezembro 06, 2007

PELÉ

AS CONFISSÕES DO REI PELÉ EM NOVA YORK : O DIA EM QUE O REI SE COMPAROU A BEETHOVEN E MIGUELÂNGELO ( E NÃO É QUE ELE PODE TER RAZÃO ?)

Pelé estava nu quando finalmente consegui vê-lo.

A testemunha ocular da nudez real – o locutor que vos fala – dará daqui a pouco os devidos esclarecimentos sobre a cena.


Trinta e cinco anos depois de ter visto o Rei nu, invado o apartamento novaiorquino de Pelé, na rua 54, em busca de declarações para o Fantástico. A investida foi devidamente recompensada.

Jornalistas entediados espalharam a versão de que Pelé derrapa quando fala. É mentira. Provocado, nosso monarca é perfeitamente capaz de premiar a curiosidade dos repórteres com confissões surpreendentes, cenas de bastidores, eventuais inconfidências.

Aqui, Édson Arantes do Nascimento, a versão terráquea da entidade Pelé, apontará, por exemplo, quais eram os dois únicos defeitos do Rei do Futebol.
Descreverá pressões sofridas para disputar a Copa do Mundo de 1974 pela seleção brasileira. Falará de uma cena inusitada ocorrida nos vestiários do Brasil,no intervalo da final da Copa do Mundo de 1970, no México.


Sociólogos de botequim juram que em algum ponto do inconsciente coletivo brasileiro reluz uma difusa nostalgia da realeza. Quando querem reconhecer os talentos e virtudes de alguém, os habitantes da República Federativa do Brasil tratam de conceder-lhe um título monárquico. Roberto Carlos virou “Rei da Jovem Guarda”. Uma expedição por qualquer cidade brasileira revelará um rol de majestades de todo tipo: Rei da Bateria, Rei do Churrasco,Rei do Mate, Rei dos Pneus. Mas ninguém encarnou tanto a palavra Rei quanto Édson Arantes.

Sessenta e nove anos depois da proclamação da República, o Brasil ganhou, na Copa do Mundo de 1958, um Rei que até hoje não perdeu a majestade (fiz um teste: desafiei Pelé a ir conosco até a Quinta Avenida, para ver por quanto tempo ele poderia andar na rua sem ser reconhecido. Três décadas depois de ter abandonado os gramados, Pelé precisou de apenas dezesseis segundos para ser reconhecido por um africano. Em questão de minutos, o tumulto estava formado: pedidos de autógrafo, espoucar de flashs, assédio de admiradores. Pelé teve de voltar para a van. Tinha passado incólume pelo teste do reconhecimento público – em Nova York). Que outra celebridade seria capaz de criar um alvoroço numa das principais avenidas da cidade que é tida como a capital do planeta?

Agora publicado pela primeira vez na íntegra, sem qualquer corte, o depoimento do Atleta do Século ao Fantástico é um documento sobre uma das pouquíssimas personalidades que, durante um diálogo com um repórter, podem se dar ao desplante de se comparar, a sério, com gênios como Beethoven ou Miguelângelo. Pelé pode. Porque sabe que, no futebol, pode ter sido o que Beethoven foi na música – ou Miguelângelo na pintura.

Que outra celebridade pode se referir a si própria na terceira pessoa, como se Pelé fosse um mito há tempos desvinculado das miudezas do mundo real? Pelé pode.

O encontro foi marcado para o apartamento que Pelé mantém desde os anos setenta em Nova York. O “Rei” chega com o rosto semi-encoberto por um boné. É o truque que usa para tentar esconder uma das fisionomias mais reconhecíveis do mundo. O punho, machucado num jogo de tênis, estava enfaixado. Pelé pede licença para ir “lá dentro”. Volta de camisa trocada. Enquanto o cinegrafista prepara a câmera, ele lembra que, quando morava em Nova York, costumava jogar tênis com o jornalista Lucas Mendes. Confessa uma pequena frustração: não consegue ganhar nunca de Rivelino no tênis.

Diz que passou a se policiar para não ficar repetindo a pergunta “entende?” ao final de cada frase:

- “Percebi que sempre falava “entende”, em todas as entrevistas. Depois das gozações, comecei a me policiar. Perdi o hábito. Depois que me chamaram a atenção para esta mania, psicologicamente já eliminei a palavra “entende”. Mas de vez em quando escapa algum”.

A bem da verdade, diga-se que Pelé conseguiu atravessar a entrevista sem emitir um “entende ?” sequer.

O “Rei” se confessa, numa gravação preservada no Centro de Documentação da Rede Globo:

“Não me lembro de ter passado um dia sequer sem ter dado autógrafo”.

Você já passou um dia sem dar autógrafo?

Pelé: “Digo com toda honestidade: só quando não saio de casa. Em casa, ainda tenho de assinar cheques para fazer pagamentos.

Depois desta fase de Pelé – ou seja, desde a Copa de 1958 - não me lembro de ter passado um dia sequer sem ter dado autógrafo. Não me lembro!”.


Qual foi o pedido mais absurdo que você já recebeu?

Pelé: “Já recebi tantos pedidos e tantas propostas... A gente recebe, no escritório, cartas com todo tipo de pedidos - desde ajuda financeira até apartamento, casa e carro... Mas o pedido mais complicado que recebi foi feito, na África, por um pai, que me trouxe a filha e pediu para que eu casasse com ela. Era uma garota de 15 anos!”


Que resposta você deu?

Pelé: “Eu disse que não estava preparado ainda para casar....”.

“Pelé é o mito que não vai morrer. Vai ficar para sempre”


Você sempre fala de Pelé como se Pelé fosse outra pessoa. Isso não é delírio de grandeza de um “Rei”?

Pelé: “Talvez seja delírio de grandeza de um ”Rei”, mas, por outro lado, é até uma modéstia do Edson. Porque um novo Pelé, que todo mundo procura desde 1958, não vai aparecer. Dona Celeste e Dondinho, meus pais, fecharam a fábrica. O novo Pelé não vai aparecer, então.

Edson Arantes do Nascimento é o que sofre, é a pessoa. Já Pelé é o mito que não vai morrer. Vai ficar para sempre.

Édson morre : é uma pessoa normal, alguém que chora, tem sentimentos e sofre pelas coisas erradas. É esta a diferença que sempre tento fazer”.

Ninguém gosta de pensar em morte, mas, já que ela é inevitável, qual seria o epitáfio de Pelé?

Pelé: “Não tenho medo de morrer nem de falar sobre a morte. Mas acho que o epitáfio do Pelé seria “o eterno”.

“Eu às vezes falava: “Eu poderia ser um Nelson Mandela, um Juscelino Kubitscheck, um artista...”


Sinceramente: você tem inveja de quem?

Pelé: “Inveja não tenho de ninguém. Em todo este tempo em que viajei com o futebol, conheci grandes personalidades: reis, rainhas, políticos, atletas, artistas. Eu às vezes falava: “Eu poderia ser um Nelson Mandela, um Juscelino Kubitscheck, um artista...”. Fui abençoado pelo Papa várias vezes. Mas inveja nunca tive.

Quando eu era garoto, o jogador que tentei imitar, porque era minha inspiração na época de minha chegada ao Santos, foi Zizinho. Quando comecei, aos dezesseis, dezessete anos, Zizinho estava terminando a scarreira. Eu achava: “Um dia vou ser igual a Zizinho.....”

Você disse que gostaria de ter sido JK. Por quê?

Pelé: “Porque, dentro do pouco que a gente conhecia de política, Juscelino chegou com uma proposta avançada e decente para nosso país. A grande mudança do Brasil aconteceu com Brasília e com JK. Eu o admiro muito”..


Você se disfarça?

Pelé: “Já usei bigode. Uma vez, fui à China. Pus uma peruca afro, além do bigode, para ir a um restaurante. Havia lá um pessoal que falava português. De repente, vi o pessoal da cozinha chegando. Eu disse: “Alguma coisa deu errado....”. Um dos garçons terminou perguntando: “É Pelé? “. O professor Júlio Mazzei – que estava na mesa conosco – perguntou: “Como é que souberam? “. O garçom: “Ah, ele começou a rir. A gente reconheceu”.


“Pelé podia ser menos forte num tipo de jogada, mas defeito acho que ele não tinha”



Todo mundo já falou das qualidades do Pelé em campo, mas poucos foram capazes de apontar os defeitos. Para Pelé, qual era o grande defeito de Pelé dentro do campo?

Pelé: “Pergunta difícil ! Você perguntou para Pelé. Se tivesse perguntado para Édson....

Pelé corrigiu um defeito que tinha durante a carreira. Eu me lembro: o meu pai me dizia que jogador que é centroavante ou atacante tem que saber cabecear e chutar de esquerda e direita. Porque a bola – afinal- pode cair de qualquer um dos dois lados. Eu tinha uma dificuldade de esquerda. Mas fiquei treinando e batendo com a perna esquerda. Hoje há até quem ache que sou canhoto! Mas sempre fui destro.

E cabecear? Fico triste de ver jogadores profissionais que ganham uma grana danada mas não sabem cabecear, o que é um absurdo!.

O garoto não saber cabecear era um absurdo nos tempos do meu pai. Porque cabecear é um principio do futebol. Hoje existem profissionais, centroavantes, que não sabem cabecear.

Depois dessa correção, eu, como Edson, não sei se vejo muito defeito no Pelé como jogador.

Pelé podia ser menos forte num tipo de jogada, mas defeito acho que ele não tinha”.



Os dois pequenos defeitos de Pelé no início da carreira eram, então, não saber cabecear e não saber chutar com a esquerda?

Pelé: “Exatamente! Aprendi com meu pai. Aprendi a chutar com a esquerda depois que vim para o Santos. Ficava batendo bola depois dos treinos. Ficava batendo bola contra a parede. Pedia para os jogadores cruzarem a bola para que eu pudesse bater de esquerda. Fui, então, superando esta dificuldade”.



Quanto valeria hoje o passe de Pelé, se Pelé estivesse jogando?

Pelé: “Que pergunta! Hoje, tudo tem um valor, uma comparação. Se fôssemos fazer uma comparação com o que se paga hoje, se fizéssemos uma relação de custo e benefício, Pelé não teria preço. Porque não daria para pagar o tempo que Pelé jogou na Seleção Brasileira e no Santos - quase vinte e cinco anos de carreira, sem parar. Talvez desse para pagar a divída do Brasil....”.

“Pelé deveria valer uns 100 milhões de dólares por ano”



Que valor se aproximaria do talento de Pelé, em preço de passe?

Pelé: “ Se fosse feita uma comparação com os atletas de hoje, Pelé seria acima de qualquer um. O jogador mais caro foi - o quê? - 35, 40 milhões de dólares. Pelo que falei, Pelé deveria valer uns 100 milhões de dólares por ano”.

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É verdade que o governo militar quis forçar você a jogar a Copa de 74 pelo Brasil?

Pelé: “´Forçar´ é uma palavra forte, mas eles tentaram me persuadir a voltar a jogar, porque havia um interesse grande em que o Brasil fosse bem na Copa do Mundo de 1974,na Alemanha. Nós estávamos numa fase política muito difícil, no Brasil.

Eu me lembro de que tinha dado uma entrevista para Ziraldo, em que eu dizia que tinha ficado sabendo das barbaridades e das torturas que tinham sido feitas naquele tempo - de 1971 a 1973. Indignado com aquilo, uma das decisões que tomei foi a de não apoiar e não esconder o que estava acontecendo. Porque, cada vez que o Brasil ganha uma Copa do Mundo, esconde tudo: a fome, o desemprego, a saúde, a falta de moradia. O povo se envolve na alegria, naquela coisa de “Brasil” - e esquece de tudo.

Eu não queria aquilo porque eu já tinha conhecimento de muita coisa: já tinha conversado com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque. Já tinha me encontrado com eles; sabia de coisas que estavam acontecendo. Tomei realmente esta decisão. Como eu ainda estava em grande forma – afinal, o Santos foi campeão em 1973 e fui artilheiro do campeonato - , houve uma procura da filha do general Ernesto Geisel, e políticos como Pratini de Moraes e Jarbas Passarinho. Falei com vários políticos na época: todos achavam que eu tinha de jogar. Mas minha decisão foi a de não jogar”.

Você estava em perfeita forma em 1974: poderia ter jogado a Copa do Mundo na Alemanha sem qualquer problema. Você não se arrepende de não ter jogado?

Pelé: “Não. A decisão de me despedir como campeão do mundo foi a mais certa que tomei. Tenho convicção de que, se hoje os garotos de nove, dez anos de idade ficam gritando o nome de Pelé, é porque eles têm Pelé como um campeão. Por isso, não tenho nenhum arrependimento de não ter jogado a Copa de 74”.

É surpreendente ver Pelé dizer que, com a vitória do Brasil numa Copa do Mundo, o povo se esquece de tudo. Você sempre teve esta visão crítica?

Pelé: “Sempre. Sou uma pessoa que o Brasil todo conhece desde 1958. As minhas batalhas pela educação. Tenho procurado passar para o povo minha indignação por não termos um país que dê o mínino de condições para o povo - educação, moradia e saúde. Todo mundo sabe de minhas brigas, desde o milésimo gol que venho falando. Nem sei o que falar. Quando começo a falar, fico emocionado. É uma tristeza saber que o Brasil ainda hoje vive o que vive. Fomos o antepenúltimo país em educação. Isso é triste para quem, como eu, vive viajando - e vê que, em países que não têm a mínima condição, o povo vive melhor que brasileiro”.


“Se estivesse um Pelé, um Tostão ou um Jairzinho em campo, a postura da Holanda em 74 seria defensiva. Não iria para o ataque daquele jeito”

Se Pelé estivesse em campo, o Brasil teria perdido da Holanda em 74?

Pelé: “Talvez não!
Mas futebol é detalhe: em questão de segundos um lance pode decidir uma Copa do Mundo. O Brasil foi surpreendido na Copa de 1974 porque a Holanda veio com uma proposta de jogo que ninguém conhecia. Nem digo que o Brasil tenha jogado mal. O que aconteceu é que a surpresa provocada pelo tipo de jogo da Holanda tornou tudo difícil para o Brasil.

Não sei se, se eu tivesse jogado, a Holanda jogaria diferente - diante da preocupação de estar diante de um Pelé em campo - ou um Tostão. Porque se estivesse um Pelé, um Tostão ou um Jairzinho em campo, a postura da Holanda seria defensiva. Não iria para o ataque daquele jeito. Mas é dificil dizer se o Brasil, afinal, ganharia ou não”. ( N: O Brasil foi eliminado da Copa de 1974 ao perder para a Holanda por 2 a 0, no dia 3 de julho de 1974, em Dortmund).


Intimamente, em algum momento você se sentiu co-responsável pela derrota do Brasil em 74?

Pelé: “Fiquei triste, sofri. Mas é claro que ,durante a Copa, sempre dava aquela “cócega”, aquela vontade: “Puxa, eu poderia estar aí”. Eu, que amo o futebol, vivi realmente esta situação. Houve momentos em que eu disse : “Eu poderia ter jogado, eu poderia estar em campo....”.

Qual foi o argumento que a filha do Presidente Geisel usou pra tentar convencer você a disputar a copa de 74?

Pelé: “ Como faz muitos anos, não me lembro de detalhes. Porque muita gente me ligou. O deputado Athiê Jorge Cury, presidente do Santos na época, me passou o recado de que eu ira ser chamado pela Amália Lucy Geisel , que,na época, uma espécie de secretária do pai. Por telefone, ela me disse que eu deveria pensar bem, porque seria bom para o Brasil. A conversa foi amigável, num tom que chamava a atenção para o benefício que o Brasil poderia ter para o Brasil se eu aceitasse voltar”.


Que argumento você usou para não aceitar?

Pelé: “Eu disse exatamente o que vinha dizendo para todo mundo: eu já tinha me despedido em 1972, numa grande festa. Quando ocorreu a festa de despedida, no Maracanã, se o Presidente da CBF na época e se o próprio povo insistisse para eu ficar, talvez eu tivesse mais sensibilidade para ficar. Mas, como todo mundo aceitou a festa, todos acharam, ali, que era um momento bom para a despedida. Não havia, então, razão para eu ficar”.

“Maradona, primeiro, precisa ser o melhor da Argentina”



De todos os nomes que foram citados ao longo dos anos, quem realmente chegou perto de ser o sucessor de Pelé?

Pelé :“Desde que comecei a jogar, nomes vão aparecendo. Apareceram grandes e excelentes jogadores. Eu vi. Por exemplo: Di Stéfano, Beckenbauer, Bob Charlton, Zico, um excelente jogador.

Tivemos excelentes jogadores brasileiros,como Ronaldinho, Rivaldo. Há Maradona, Eusébio, Paolo Rossi, Sívoli. Poderia ficar aqui citando vários nomes.

Maradona foi a última polêmica de Pelé. Gostei muito de jogadores argentinos. Eu gostei do Sivoli , que jogou na Itália uma vez. Gosto de Di Stéfano, a grande figura do Real Madri. Maradona, primeiro, precisa ser o melhor da Argentina. Porque lá ainda há dúvida sobre se é ele ou o Di Stéfano. Precisaria aprender a chutar de direita e a cabecear, porque ele não cabeceava bem nem chutava bem de direita. Assim, eu poderia compará-lo com Pelé. Mas foi um excelente jogador. Tivemos também no Brasil Dirceu Lopes, Tostão, Garrincha - um jogador diferente- , e Didi.....”

De todos os brasileiros que você citou, quem chegou mais perto de Pelé como jogador?

Pelé: “Pela característica de jogo, o que chegou mais perto foi Zico. É aquela história que sempre falo: não adianta você querer procurar um novo Beethoven, um novo Hamlet .(aqui Édson se confunde ao falar de Pelé: certamente, ele queria citar William Shakespeare. Terminou citando Hamlet). Não adianta você querer procurar um novo Frank Sinatra ou Michelângelo, que pintava de cabeça pra baixo. Porque Deus faz mas, depois, quebra a fôrma. Podem até surgir outros melhores e diferentes, em outras épocas. Mas igual ao Pelé vai ser difícil”.

“Nós sentimos, no intervalo da final contra a Itália, um cheiro de cigarro”

Qual é o segredo dos bastidores da Copa do Mundo que você nunca contou pra ninguém?

Pelé: “Quando você é um jogador com mais experiência, fica sabendo de coisas. Há um segredo que já é nem segredo, porque até Gerson já comentou. Aconteceu na Copa de 70. Eu tinha dado entrevista dizendo que a Copa de 1970 seria a minha última. Carlos Alberto, Brito, o próprio Gerson, todos nós queríamos ganhar aquela Copa do Mundo. A gente fazia oração, fazia de tudo, porque aquela Copa iria encerrar nossa carreira.

Nós sentimos, no intervalo da final contra a Itália, um cheiro de cigarro. Fomos no banheiro - eu e Carlos Alberto. Gérson tinha acendido um cigarro lá, o “desgraçado”! . Acendeu um cigarrinho. Disse: “Ah, eu estou muito nervoso. É para desabafar”. Depois, ouvi dizer que Félix também. Não sei se já foi levado a público. Era um negócio absurdo!. Mas, realmente, aconteceu. Gérson sabe. É um segredo que eu não tinha falado para ninguém, mas, graças a Deus, ganhamos a Copa”.

Você reclamou de Gérson?

Pelé: Ali, na hora, quase saímos de porrada em cima de Gérson: “Oh, papagaio desgraçado, a gente aqui querendo ganhar a Copa do Mundo....”. E ele: “Mas estou nervoso....”. Gérson fumava mesmo antes. Nunca escondeu de ninguém”.

Gérson terminou fazendo o gol. Deu também o passe para eu fazer aquele outro gol em que matei a bola no peito. A gente não sabia o que aconteceria no segundo tempo. Se soubesse, mandava Gerson fumar em todos os intervalos”.


Você, afinal, é pão-duro?

Pelé: “Isso é uma coisa injusta! . Tudo começou com uma brincadeira com Gérson e Zagallo. Os dois é que são pão-duro, mão de vaca: não abrem a mão nem para o cafezinho. É aquela história de nunca ter dinheiro trocado para o café. Então, estes sim, eram pãos-duros,na seleção brasileira.
Sempre reservado: não gasto dinheiro à toa, o que é diferente. Contaminaram até o meu filho, o Edinho, com esta história. Quando conversam com ele, ele diz: “O meu pai é muito pão-duro....”. Mas meu filho tem tudo! Não acredito que eu seja pão-duro. Pelo contrário”.




Em algum momento você já se sentiu discriminado por ser negro?

Pelé: “Graças a Deus, não. Nem em Bauru: o meu pai jogava pelo Bauru Atlético Clube, o clube da elite. Em Bauru, meu irmão chegou a comentar alguma coisa. Mas, durante minha carreira, nunca.

Tive uma certa preocupação quando estava para vir para o Cosmos. Naquela época ,Muhammad Ali etava muito bem, ele que tinha sofrido, antes, aquela discriminação. Vir para os Estados Unidos com o futebol era uma coisa nova. Quando chegou a hora de decidir sobre vir ou não vir, pensei: “...Mas será que vou ter problema de racismo ? Vão me usar para alguma coisa?” Graças a Deus, minha vinda foi um grande sucesso - uma vitória do Brasil, porque hoje em dia o futebol é um dos grandes passatempos do jovem nos Estados Unidos. Pelé – acho- é o grande ídolo americano. O know-how que o Brasil vendeu para os Estados Unidos foi o futebol com Pelé. Nem nos Estados Unidos tive problema de racismo, graças a Deus”.

“Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada....”


Você já se apaixonou por mulheres famosas?A paixão foi correspondida?
Pelé: “Nunca me apaixonei por mulheres famosas. As mulheres com quem me casei – primeiro, Rose; depois, Assíria - não eram famosas. Assíria é cantora evangélica conhecida, mas não é famosa. Quando eu jogava, existia muita onda. Se eu saía para jantar com uma artista, com uma cantora, todo mundo dizia que eu estava apaixonado.

Houve aquele caso de Xuxa. Disseram também que fui apaixonado pela Luíza Brunet. Conheci Luíza, por coincidência, junto com Xuxa. Naquela época, a gente fez um trabalho junto na revista Manchete, para escolher a modelo do ano. Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada.... Devia ter 16, 17 anos. Não houve nada de paixão”.



A atenção que Luíza Brunet chamou em Pelé não chegou a se transformar em paixão?.

Pelé :”Não chegou porque,logo em seguida, tive todo o namoro com a Xuxa. Fala-se muito no Brasil: disseram também que fui apaixonado por Vera Fischer- minha amiga. Nunca tivemos nada. Falaram de Gal Costa. Disseram que fui apaixonado por uma menina que foi Miss Brasil, Flávia Cavalcanti. Sou apaixonado pela Assíria”.


Você já se encontrou com reis, papas, estrelas de cinema, celebridades de todo tipo. Qual é a celebridade que você gostaria de conhecer, mas ainda não teve oportunidade?

Pelé: “Você falou uma coisa certa: nesta terra, conheci quase todas as grandes celebridades. Dos brasileiros, conheci Ayrton Senna, Emérson Fittipaldi, Éder Jofre. Por falar em Éder Jofre: uma das grandes figuras que não conheci ainda é Popó, o lutador. Aproveito para parabenizar o Popó pela garra e pela técnica. Popó é a figura do momento que não tive oportunidade de conhecer ainda”. ( A TV Globo promoveu um encontro entre os dois poucas semanas depois desta declaração)


“Já joguei contra tantos pernas-de-pau que fica até difícil me lembrar de algum nome”
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Xuxa disse numa entrevista que os seus pés não eram bonitos. O que você não acha bonito na Xuxa?

Pelé: “Respeito –muito - Xuxa. É um exemplo pela batalha e pelo sucesso. Fico feliz de ter participado deste início. Não acho que Xuxa tenha nada feio”.

Qual foi o maior perna-de-pau que você já enfrentou?
Pelé: “Em trinta anos de carreira, já joguei contra tantos pernas-de-pau que fica até difícil me lembrar de algum nome”.

Você sempre teve fama de conquistador. Pelé já falhou na cama?

Pelé: “A fama de conquistador não é verdade. Sempre respeitei todo mundo. Graças a Deus, até hoje, onde chego as portas estão sempre abertas., o que não quer dizer que eu seja conquistador. O importante é respeitar as pessoas que me admiram, tratar bem as pessoas que me procuram. É o que faço com crianças, gente de idade, jovens , mulheres - bonitas, feias. Não acredito que esta atitude seja nenhum galanteio: é obrigação de qualquer pessoa tratar a outra bem, respeitar os outros. Por essa razão, sou respeitado em todo o mundo”.

Você acabou fugindo da pergunta...

Pelé: “Não estou fugindo. O que estou dizendo é uma coisa real. Além de tudo, não me considero nenhum galã. É respeitar quem me procura, tratar bem os outros e saber que vou morrer - como as outras pessoas : o respeito talvez faça com que as pessoas se aproximem de mim, sejam elas como forem”.


Você aguentaria hoje, passado dos sessenta anos, jogar por quanto tempo uma partida?

Pelé: “Não tenho dúvida de que o futebol de hoje é de muito mais pressão, muito mais corrido do que era antes. O condicionamento físico vem de acordo com a competição. Com cinqüenta anos de idade, joguei na Itália, com a Seleção Brasileira principal. Com sessenta anos, fiz a inauguração do Centro de Treinamento do Santos, com a garotada. Mas, no futebol atual, com este preparo físico que tenho hoje, não dava para fazer nem o aquecimento...”

Quais são os cuidados que você toma fisicamente?.

Pelé: “Sempre tive facilidade para manter o meu peso. Nunca deixei de fazer exercício. Sempre que posso, faço exercício em casa ou na praia. Cuido da minha alimentação. Quanto ao futebol, agora falando sério, é evidente que, se eu jogasse agora, estaria preparado. Por exemplo: com sessenta e dois anos da idade, se eu tivesse de fazer uma partida amistosa como fiz quando completei cinquenta anos, eu iria me preparar por dois, três meses. Jogaria. Com certeza: se conseguisse este tempo para parar e treinar, eu jogaria meio tempo. Mas não seria aquele Pelé que fazia gol de bicicleta. Não se pode exigir tanto: é o Pelé normal”.

Em nome de que causa Pelé entraria em campo hoje pra jogar meio tempo que fosse?

Pelé: “ Talvez para acabar definitivamente com uma guerra. Porque parar uma guerra o Santos já parou, nos anos sessenta. Depois, a guerra continuou. Ou para concretizar o desejo de Lula de acabar com a fome no Brasil. Penso que seria excelente fazer um jogo com a assinatura de “acabou a fome no Brasil” “.


Que reação você teria se visse hoje o Maracanã superlotado gritando o nome de Pelé e pedindo que ele entrasse em campo?.

Pelé: “Teria a mesma reação que tive na despedida, diante do Maracanã lotado, dentro daquela emoção: iria me despedir porque aprendi com seu Dondinho que parar no melhor da carreira é a coisa mais inteligente”. (N:Pelé se despediu da seleção brasileira em jogo no Maracanã, no dia 18 de julho de 1971, contra a seleção da Iugoslávia. O jogo terminou empatado: 2 a 2. Pelé deixou o gramado – chorando – sob o coro da torcida que pedia “fica, fica, fica” ).


“Fernando Henrique Cardoso disse que Pelé foi o Brasil que deu certo”


Qual foi a grande mudança na vida de Pelé nestes últimos trinta anos?

Pelé: “ Tive mudanças, graças a Deus, para melhor. A vinda aqui para os Estados Unidos, a parte de educação e cultura. Amadureci como ser humano. Aprendi muito. Posso até dizer, por exemplo, que peguei o “Fantástico” no colo. O Fantástico era uma criança quando conheci o programa ( a primeira edição do Fantástico foi ao ar em agosto de 1973). Eu melhorei muito, aprendi muitas coisas : não parei.

Há coisas que falo com o orgulho. Fernando Henrique Cardoso disse que Pelé foi o Brasil que deu certo. Tenho muito ainda o que aprender”.



Por quanto tempo você pode andar nas ruas de Nova York sem ser reconhecido?

Pelé: “ Depende do lugar. Sem disfarce, é difícil. Em qualquer lugar, sempre vem um ou outro. Quando vou sair - por exemplo, para a Igreja Saint Patrick, para rezar - ponho óculos ou bonezinho. Dizem que vou disfarçado de Milton Nascimento. Mas quando saio de cara limpa, basta descer do carro: vai ter sempre alguém chamando”.

“A marca “Pelé” é uma das mais valiosas no mundo”

Você sempre soube administrar muito bem a carreira. Você tem idéia do tamanho da fortuna de Pelé, em dólar?

Pelé: “Nunca me preocupei muito em parar para contar. Quem pára para contar perde dinheiro - a coisa material. E a coisa material nunca foi muito importante em minha vida. Já a marca “Pelé” é uma das mais valiosas no mundo, sem dúvida nenhuma”.



Você tem idéia do valor desta marca?

Pelé: “Não tenho idéia do valor. Mas a marca “Pelé” hoje é de um valor inestimável”.


Você conhece um ator de cinema pior que Pelé?
Pelé: “Conheço muitos. O que não é justo é o pessoal fazer, na época em que eu filmava, comparações entre Pelé ator e Pelé jogador de futebol. É injustica. Pelé nasceu para jogar futebol. Ator ele estava aprendendo a ser. Mas poucos atores, com todo o nome que têm, foram dirigidos por John Huston, trabalharam e foram dirigidos também por Silvester Stallone, Michael Caine, Ipojuca Pontes. Trabalharam com Paulo Goulart, Stênio Garcia, Regina Duarte. É bom, não é? “.


Qual foi, afinal, o gol mais bonito que você já fez ?

Pelé: “O gol mais bonito foi contra o Juventus, na Rua Javari.(N: o jogo Santos 2 x 1 Juventus, pelo campeonato paulista, foi disputado no dia dois de agosto de 1959). Todo mundo fala. A descrição feita pelos jogadores que estiveram no dia do jogo, tanto do Juventus quanto do Santos, é maravilhosa. Infelizmente a equipe de Aníbal Massaíni não conseguiu achar imagens deste gol , depois de quatro anos de pesquisas sobre jogadas e momentos importantes da vida de Pelé para o filme “Pelé Eterno”. Há também o “gol de placa” , lindo ( marcado contra o Fluminense, no Maracanã, pelo Torneio Rio-São Paulo de 1961. Pelé driblou sete jogadores do Fluminense antes de marcar o gol).

“Quando fiz este gol, fui para a torcida, desabafei, falei palavrão. Dei, então, um soco no ar”

Quanto ao gol da Rua Javari, eu me lembro de que três jogadores do Juventus foram “chapelados”. Quando Mão de Onça, o goleiro, veio na bola, também levou um chapéu. Fiz o gol de cabeça.

Todo mundo diz que criei o soco no ar na comemoração do gol. Não foi nada disso. O que aconteceu foi que, neste jogo em que fiz o gol, a torcida estava me perturbando. O Santos não estava jogando bem. Eu também não. Já o Juventus estava numa tarde boa. A torcida, então, ficou vaiando, vaiando, vaiando. Quando fiz este gol, fui para a torcida, desabafei, falei palavrão. Dei, então, um soco no ar. Porque tinha feito o gol mais bonito da minha vida”.


Quer dizer então que a origem do soco no ar na comemoração do gol foi um desabafo por este gol?

Pelé: “Exatamente! É esta a origem do soco no ar. Há quem diga que Pelé é tão pão-duro que até para comemorar o gol ele fica com a mão fechada.... Mas não é assim. O soco no ar, na verdade,foi para comemorar um gol que foi uma coisa maravilhosa. Se pudéssemos reconstituir este gol para os mais jovens, para que a nova geração não tenha nenhuma dúvida, seria maravilhoso”.


“Uma loucura: fiquei apavorado porque minha filha, que mora aqui, vivia perto do World Trade Center”



Aqui da varanda você tem esta bela vista de Nova York. Quanto tempo você passa aqui por ano?

Pelé: “Passo três meses por ano. Quando eu jogava com o Cosmos, tinha contrato com a Warner: ficava seis meses, a duração de uma temporada de esporte. A vista aqui é maravilhosa. Do topo do prédio, você vê o East River. Tive muita sorte de conseguir este lugar aqui no tempo que estava jogando no Cosmos. Agora, estou aqui para sempre”.

Onde você estava no dia do atentado de 11 de setembro de 2001?

Pelé: “Viajei na noite anterior. quando cheguei ao Brasil, pela manhã, soube do atentado pela televisão. Meu irmão, “Zoca”, tinha ficado aqui em Nova Iorque. Meu assessor também. Uma loucura: fiquei apavorado porque minha filha, que mora aqui, vivia perto do World Trade Center. Fiquei procurando saber e querendo me comunicar, mas, graças a Deus, com a família não aconteceu nada”.


Do que é que você mais gosta aqui em Nova York?

Pelé: “Tenho liberdade em Nova York. Vou ao supermercado, vou ao Central Park. Em algum lugar dá para ficar, especialmente se é dia de semana. Porque se é domingo ou feriado os lugares ficam cheios. O pessoal me descobre logo. A liberdade, esta coisa mais respeitosa do americano, é o que mais me cativa em Nova York”.


Com que frequência você vai à catedral rezar?

Pelé: “Sempre que estou em Nova Iork. Quando fiz o contrato com o Cosmos, eu cheguei aqui nos Estados Unidos; pedi a ela que me ajudasse, iluminasse meu caminho. Deu tudo certo, porque foi uma grande vitória. Agora, já me acostumei. Vou à Saint Patrick, para agradecer”.


Qual é o santo de devoção de Pelé?

Pelé: “Meu santo é Nossa Senhora Aparecida. Minha mãe sempre diz uma coisa engraçada: quando crinça, em Bauru, eu era tão levado que ela me entregou a São Benedito. Minha mãe pediu: “São Benedito, tome conta deste garoto!”.

São Benedito tomou conta bem”.

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O DIA EM QUE GRAMPEEI O REI PELÉ EM LONDRES



Cena londrina: o “Rei” se trancou durante uma tarde inteira num pequeno estúdio de televisão em Candem Town, no norte de Londres, para fazer confissões sobre uma carreira até hoje inigualada. Quando o vídeotape começa a rodar, Pelé revela, por exemplo, qual foi a única vez em que suas pernas tremeram no gramado do Maracanã.

Adiante, confessa que, quando criança, sonhava com uma profissão que igualmente o levaria às alturas, mas não tem nada a ver com o futebol. Saudoso, dá o nome do jogador da seleção brasileira com quem se entendia, dentro de campo, apenas pelo olhar: uma cumplicidade muda que enlouquecia os adversários. Um dos gols mais bonitos marcou quando oficialmente já tinha se despedido do futebol: jogava pelo Cosmos de Nova Iorque.

O depoimento traz surpresas. Ao contrário do que todos pensam, o jogo “mais duro” da desastrada campanha brasileira na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966, não foi a derrota que eliminou o Brasil. Pelé fala com orgulho sobre o dia em que o Santos parou uma guerra na África. Diverte-se quando descreve a odisséia do juiz colombiano que foi enxotado do estádio para que Pelé, expulso de campo, voltasse a jogar.

Por fim, lamenta que jamais conseguiu saciar uma curiosidade: diz que até hoje se interessa em saber o que é que, afinal, significa o nome Pelé – a marca registrada do Brasil no exterior.

Pelé tinha chegado ao estúdio numa limousine branca de seis portas. Pouca gente sabia deste compromisso do Rei. Quem testemunha, por puro acaso, a chegada do “atleta do século” a este prédio de tijolos aparentes paga reverências: o porteiro do prédio não perde a chance de posar para uma foto ao lado do ídolo. Lá dentro, zelosas funcionárias tratam de cumprir ao pé da letra o papel universalmente destinado a assessores: o de atrapalhar até onde for possível o trabalho de repórteres.

O astro vai cumprindo pacientemente o que as assessores decidem. Só ensaia uma reclamação bem-humorada quando a responsável pela maquiagem insiste em espalhar um pó pelo rosto do “Rei” para evitar o reflexo das luzes: “Não precisa! Não precisa! Todo mundo me conhece....”.

Um grupo de crianças – comandado pela sobrinha de uma das funcionárias – leva bolsas, camisas e fotos para Pelé autografar. O “Rei” improvisa, então, uma curta aula de futebol: pergunta a cada um o que é mais importante na hora de chutar. Ouve respostas desencontradas. Trata de esclarecer : o mais importante num chute é a posição da perna de apoio:

- Se você vai chutar com a perna esquerda, a perna direita deve estar bem equilibrada. Parece fácil, mas nem todo mundo se lembra...

Os meninos ouvem a explicação, silenciosos e atentos. Vão ter o que contar quando chegarem à escola, no dia seguinte.

Gravado em seis fitas de vídeotape, em dezembro de 1995, o depoimento terminou se transformando numa espécie de autobiografia eletrônica do Rei. Pelé gravou o depoimento ora em português, ora em inglês. A gravação foi patrocinada pelo cartão de crédito que contratou Pelé como garoto-propaganda de luxo, o Mastecard.

Correspondente do jornal O Globo em Londres, escondo um gravador junto a uma das caixas de som do estúdio, sem ser notado pelos funcionários da produtora contratada para filmar a performance verbal do Rei.

Sem saber que um repórter brasileiro estava “grampeando” suas palavras, o Rei Pelé começa a falar, para público estrangeiro, sobre as façanhas do maior jogador de futebol de todos os tempos:


A OUTRA PROFISSÃO: “Quando eu tinha uns doze anos de idade, sonhava em ser piloto de avião. Ficava olhando os aviões passando por sobre os campos. Pensava comigo: “Um dia, vou ser piloto”. Hoje, tanto tempo depois, acho que tenho mais hora de vôo do que muitos pilotos...Mas meus primeiros pensamentos, quando bem jovem, eram dirigidos para o senho de ser piloto”.

O DIA EM QUE O REI TREMEU: “Tive a felicidade de marcar 1.263 gols. Posso dizer que o gol mais importante, para mim, foi o que marquei na Copa do Mundo de 1958,na partida contra o País de Gales. Eu tinha dezessete anos de idade. O Brasil ganhou de um a zero. O gol foi meu. O Brasil, então, classificou-se para o final da Copa. O outro gol que foi importante, porque o mundo inteiro estava esperando, foi o milésimo, marcado de pênalti contra o Vasco da Gama, no Maracanã, em 1969. Todos dizem que gol de pênalti é fácil. Não é. Só é fácil quando o placar já foi definido. Numa final, ou quando todos estão olhando para você, não é fácil. Que eu me lembre, foi a primeira vez que minhas pernas tremeram no Maracanã, porque todos gritavam Pelé, Pelé, Pelé”. ( O milésimo gol foi marcado no Maracanã, às 23:11h do dia 19 de novembro de 1969, diante de 65.167 torcedores, em jogo que terminou com a vitória do Santos sobre o Vasco da Gama, por 2 a 1).

O MENINO QUE INSPIROU O MILÉSIMO: “Pouco antes de fazer o milésimo gol, eu tinha visto um menino de rua arrombando carros. Era um daqueles garotinhos de praia,em Santos. Eu disse a ele: “Não faça isso!”. O garotinho ainda brincou comigo: “Mas eu só estou roubando carros de São Paulo.Não são daqui de Santos,não....”. Reclamei: “Não pode ! Isso não é coisa de criança!”.

Uma semana depois, fiz o milésimo gol. A primeira coisa que me veio à cabeça foi pedir proteção às crianças. Comecei a jogar entre os profissionais aos dezesseis anos. Tinha – e tenho – ligação com as crianças. Chamei, então, a atenção da sociedade. Jornalistas disseram que era demagogia: o que eu estava querendo era “aparecer em cima das crianças”....
Mas a verdade é que eu já estava vendo o problema. Infelizmente, hoje, tanto tempo depois, a gente vê o problema da violência em todos os lugares, principalmente no Brasil. Tudo porque o governo e a sociedade não se preocuparam com a educação das crianças. Daquela época para cá, já se passaram trinta anos. Teríamos tido uma geração diferente,se fosse feita alguma coisa”.

O GOL AMERICANO: “Vi meus gols em vídeotape. Porque a verdade é que, na hora do jogo, a gente não vê. O gol de bicicleta que fiz pelo Cosmos de Nova Iorque foi um dos mais bonitos que vi, entre os que fiz. Igualmente, o gol que ganhou uma placa no Maracanã, contra o Fluminense.O gol de bicicleta foi um dos melhores. Em toda a minha carreira, fiz três gols assim: este pelo Cosmos, um no Brasil e outro na Europa”.

O MELHOR PARCEIRO EM CAMPO: “Joguei na Copa do Mundo de 1958 com um jogador que, para mim, era excelente, porque combinávamos muito bem: Garrincha. Era excelente jogar com Garrincha, porque ele ia à linha de fundo. Didi,no meio-de-campo, também foi um grande parceiro. Depois, tive em Coutinho, centro-avante do Santos, um excelente parceiro. Coutinho é que criou a tabelinha com Pelé. Por fim, na última Copa do Mundo que joguei, no México, tive um grande parceiro em Tostão. Era um jogador muito inteligente, sabia tocar a bola, sabia voltar: pelo olhar, ele já sabia para onde a bola ia. São estes os jogadores com quem mais me adaptei. Mas, em vinte e cinco anos de carreira, joguei com outros muito bons”.

A VITÓRIA MAIS DURA, EM 1966: “A partida contra a Bulgária,na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, terminou com vitória do Brasil por dois a zero,mas, para mim, este jogo foi mais duro do que contra Portugal – que nos venceu por 3 a 1. O que aconteceu comigo contra Portugal foi uma fatalidade ( N : Pelé teve de deixar o campo amparado,porque não conseguia andar. Desde o início do jogo, Pelé foi perseguido em camop pelo zagueiro Vicente ). É evidente em todo caso, que aquela falta foi cometida por trás. Hoje, aquele jogador português seria expulso, sem dúvida. Mas houve também problemas no jogo da Inglaterra contra a Argentina – partida dura e difícil – e na decisão entre Inglaterra e Alemanha. A copa de 1966 foi dura e violenta”.

O DESABAFO AOS MARCADORES: “VOCÊ PARECE MINHA MULHER!” : “Os treinadores adversários sempre diziam a um dos jogadores: “Você vai marcar Pelé”. Então, este jogador ficava o tempo todo colado comigo. De vez em quando, eu tinha de dizer a eles: “Mas você parece minha mulher! Não me deixa sozinho nunca!”. Eu tinha dificuldade para jogar assim. Pedia a eles:”Vá jogar um pouco! E aí então você me marca!”. Tínhamos esse tipo de discussão dentro de campo. Era problemático. De qualquer forma, em vinte e cinco anos de carreira, só tive duas contusões sérias. É um saldo positivo. Uma foi contra Portugal,na Copa de 1966. Fui atingido por trás. Da outra vez que tive um problema sério, me machuquei sozinho, ao chutar uma bola. Tive uma distensão grave. Agradeço a Deus por ter tido somente estes dois problemas sérios, em tanto tempo de carreira”.

O PREÇO DA FAMA: “Ser tão conhecido me traz uma grande responsabilidade. Você perde um pouco de privacidade, sem dúvida. De vez em quando, nas viagens, preciso usar um chapéu e um bigode postiço. Por outro lado, é bom saber que as pessoas gostam de mim. Sou uma das poucas figuras, no mundo, que podem dizer: “Tenho as portas abertas no mundo inteiro....”. Onde quer que eu vá – na África, na Ásia, na América do Sul – tenho uma grande responsabilidade. Não posso cometer enganos”.

A CRÍTICA AOS TREINADORES: “O treinador, primeiro, tem de fazer o papel de psicólogo; precisa atuar como um amigo do garoto em início de carreira. É como se ele fosse um irmão mais velho, mais do que um treinador de futebol. Independentemente de qualquer coisa, o treinador precisa ser um bom observador. O que vejo hoje, em quase todos os treinadores de divisões inferiores, infantis ou juvenis, é que eles querem impor uma maneira de ser, querem impor estratégias, querem que o jogador jogue feito uma máquina. As crianças não têm liberdade. Isso é ruim! Treinador de infantil e juvenil tem de dar liberdade ao jogador para que ele possa criar. Somente depois é que o treinador deve tirar os defeitos”.

1970: “EU NÃO SABIA SE RIA OU SE CHORAVA”: “Quando fui para o México, em 1970, já pensava em me despedir do futebol depois daquela Copa. Poder me despedir por cima, como campeão, foi maravilhoso. Eu não sabia se ria, se chorava, se pulava. A verdade é que todos os jogadores ali, como Gérson, Carlos Alberto, Félix, Brito e até Jairzinho pensavam em disputar no México a última Copa de suas carreiras. Das quatro Copas do Mundo que disputei, a de 1970 foi a melhor para mim. Não tive contusão, joguei todas as partidas. A seleção brasileira de 1970 foi a melhor de todos os tempos”.

HOJE, JOGADORES QUEREM DINHEIRO: “Quando comecei a jogar, entre 15 e 16 anos de idade, recebia algum dinheiro do Santos – que usava para ajudar minha família. Um ano depois, fui chamado para a Seleção Brasileira. Aos 17 anos, já estava na Copa do Mundo, na Suécia. Clubes estrangeiros começaram a me chamar, principalmente italianos e espanhóis. Alguns jogadores brasileiros se transferiram, como Didi ou Garrincha. Mas eu nunca quis deixar o Santos. Depois, ao longo de minha carreira, recebi outras propostas. Mas nunca quis jogar apenas pelo dinheiro. Fui jogar no Cosmos depois de abandonar o futebol porque queria promover o esporte nos Estados Unidos. Hoje, é diferente. Jogadores já não se ligam tanto aos clubes. Atuam um ano num lugar; no ano seguinte, em outro. Querem o dinheiro. É uma abordagem diferente.

Eu, pessoalmente, nunca quis sair do Brasil. O dinheiro que eu ganharia fora do país seria umas três vezes maior. Mas eu estava bem no Brasil, porque nunca joguei por dinheiro”.

UMA CURIOSIDADE QUE RESISTE: “Tento até hoje descobrir – na África, por exemplo – algo que me ajude a entender o que significa a palavra Pelé. Comecei a jogar futebol na rua quando tinha uns seis, sete anos. Meu pai era jogador. Um dos meninos que jogavam na rua com a gente, em Bauru, passou a me chamar de “Pelé”. Eu não entendia, porque o meu nome era Édson. Tinha orgulho do meu nome, porque Thomas Édison era um grande homem. Tinha inventado a lâmpada...Quando este menino começou a me chamar de “Pelé”, briguei com ele: “Meu nome é Édson! Por que é que você me chama de Pelé? “. Ninguém sabia o que Pelé significava. Fui,então, para a escola. O mesmo grupo de garotos passou a brincar comigo na sala de aula. Briguei com um deles. Peguei dois dias de suspensão. O meu pai foi chamado à escola. O professor disse que eu tinha brigado por causa do nome – “Pelé”. A escola inteira, então, começou a me chamar de Pelé, para gozar comigo. Eu detestava o nome “Pelé” no início. Hoje, gosto”.

O REI PÁRA UMA GUERRA: “Guardo até hoje com alegria o fato de ter estado na delegação do Santos durante uma viagem à África, em que pudemos dizer que paramos uma guerra por uma semana. Primeiro, jogamos numa ilha. Fizemos uma grande partida. Fiz uns três gols. Quando íamos sair para jogar em outra ilha, disseram que havia uma guerra lá.”Mas, se vocês forem, a guerra pára”. Isso foi uma coisa maravilhosa em nossa vida. O Santos,com Pelé, parou uma guerra na África – pelo menos, enquanto a gente estava lá. O ideal seria que tivéssemos parado a guerra para sempre”

O JUIZ É EXPULSO, PARA QUE PELÉ VOLTE A JOGAR: “Viajamos para jogar na Colômbia, numa época em que o Santos sempre ganhava. Tínhamos sido campeões do mundo interclubes por duas vezes. O estádio estava lotado. Houve, então, uma briga no meio-de-campo. Eu, Pelé e Doval estávamos juntos. Os dois eram negros, parecidos comigo. Tinham o mesmo porte físico, tudo igual. Armaram a confusão. O juiz não viu direito quem foi. Eu estava tentando resolver a briga quando o juiz decidiu expulsar um jogador de cada lado. E me expulsou! Eu disse: “Mas eu não estava brigando!”. O juiz respondeu: “Não quero saber!”. Então, saí de campo. De repente, já no vestiário, ouvi um barulho, uma confusão do lado de fora. A polícia chegou. Vieram me chamar: “Volta!”. Eu disse que não poderia voltar, porque tinha sido expulso. E eles: “Volte, porque o juiz é que vai sair. Quem vai apitar o jogo é o bandeirinha. Você vai jogar!”. Voltei. O juiz é que foi expulso....”. ( O jogo contra o Millionarios, no estádio El Campin, terminou com a vitória do Santos por 5 a 1).

OS MAIORES : “É difícil dizer, porque joguei contra grandes jogadores. Mas poderia citar George Best – que seria um grande jogador, se não fossem os pequenos problemas de cabeça que teve. Atuei contra Bob Charlton, excelente jogador. Igualmente, Cruiff, Eusébio,Beckenbauer, Bob Moore. Di Stefano e Puskas foram excelentes. Tivemos uma boa fase de Maradona.. Nestes últimos tempos, foi o jogador que apareceu melhor. Um pouco antes, tivemos Zico. Alguns dos melhores foram estes”.

OS GRANDES MARCADORES: “Nunca foi fácil jogar, principalmente na minha situação, eu que era sempre marcado homem a homem. Tive marcadores que admirava, como Passarela, Nilton Santos,Beckenbauer e Bob Moore. O italiano Fachetti também foi um bom marcador”.

A VIDA EM VÁRIAS FRENTES: “Tenho a base ( financeira) que obtive no futebol. Toda vez que há eleição no Brasil, alguém me oferece: quer ser candidato a presidente? Digo que não. Não quero fazer política diretamente.Quero ajudar, mas não como presidente. De vez em quando, me oferecem a possibilidade de ser candidato a presidente da Fifa. Não sinto que deva”.

O DESCANSO DO REI: “Gosto de passar meu tempo livre com meu violão – fazendo música. Tenho algumas gravadas. Gosto também de fazer música para crianças. Outra coisa que gosto de fazer, quando tenho tempo de relaxar, é pescar. Vou pescar no barco de um amigo. Ou então me recolho a meu sítio, no interior de São Paulo, onde existe uma lagoa. Lá, passo uma semana, dez dias, depois de um ano inteiro de trabalho. Volto relaxado”.

O DESTINO: “Meu pai era jogador. Quando eu via meu pai jogando, pensava: “Um dia, vou ser igual a ele”. Mas nem sempre ele ganhava. Quando meu pai perdia, chegava em casa inseguro. Pensei: tenho de me preparar para não perder nunca- e ganhar sempre. Nasci para jogar futebol. Deus me deu esse destino”

PEQUENO RELATO SOBRE
A NUDEZ NO “REI”


A primeira vez em que vi Pelé permanece guardada na memória, quatro décadas depois. O meu pai, um agrônomo e fazendeiro de poucas palavras, me arrastou para o Estádio da Ilha do Retiro, no Recife, para ver o jogo do Santos de Pelé contra o Náutico, pela Taça Brasil. Placar: Santos 2 x 0 Náutico. Data: nove de novembro de 1966.

Eu tinha dez anos de idade. Jamais tinha ido a um estádio de futebol. Hoje, posso dizer que meu currículo de torcedor eventual exibe pelo menos este pequeno troféu: posso dizer que, criança, vivi o privilégio de ter visto Pelé, ao vivo, justamente na primeira vez em que em que fui a um estádio.

O apelo que a presença do Rei Pelé exercia sobre os fãs de futebol pode ser medido por um detalhe: meu pai era apaixonado pelo Sport Club do Recife. Reagia com olímpica indiferença aos grandes feitos do Náutico – à época, um timaço que engolia adversários com a facilidade de quem bailava em campo. Mas se animou a ir ao estádio em dia do jogo do Náutico - não para ver o rival jogar, mas para testemunhar o desfile do Rei do Futebol pelo gramado do Estádio da Ilha do Retiro.

Pelé fez um gol naquela noite – o 688@ de uma odisséia que o levaria a marcar cerca de 1.200 gols, recorde até hoje inigualado . Pepe, ponta-esquerda que desferia chutes mortais em cobrança de falta, marcou o segundo.

Agora, os esclarecimentos sobre a nudez de Pelé.
Quero fazer uma confissão: eu estava banhado de suor no exato momento em que descobri que "das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante" (quem terá sido o autor de uma definição tão perfeita?). Não, eu não estava disputando uma final de campeonato. Como um celerado, eu corria desembestadamente atrás do ônibus da seleção brasileira, na avenida Rosa e Silva, no Recife, no já jurássico ano de 1969.
Em minhas mãos, carregava uma folha de papel em branco. Não estava à procura de nenhuma declaração, não esperava por nenhuma entrevista. Nem sonhava em ser repórter. O que eu queria - como, provavelmente, todo menino brasileiro apaixonado por futebol - era um autógrafo de um dos meus ídolos. Fui a pé de minha casa até o estádio do Náutico, na avenida Rosa e Silva. Uma multidão de torcedores esperava pela chegada da seleção, para o treino.

Lá vem o ônibus. Tumulto. Gritaria. Empurrões. Eu me lembro de ter visto Tostão e Clodoaldo acenando na janela. Ou terá sido Gérson? Quem sabe, Jairzinho. Não importa: os craques dos meus times de botão estavam ali, materializados, a dois palmos de distância.
O treino ia ser fechado. Mas eram tantos os torcedores correndo atrás do ônibus que a Federação resolveu abrir os portões do estádio. Aquele punhado de fanáticos teve, então, o privilégio de assistir a um treino da seleção que, meses depois, entraria para a história do futebol mundial nos gramados do México como o melhor time de futebol de todos os tempos.

O que diabos eu estava fazendo na arquibancada do estádio dos Aflitos, na manhã de um dia de semana? Aos doze anos de idade, eu estava descobrindo que o futebol é a mais importante das coisas menos importantes da vida.
Dizem que a gente só guarda na memória rostos, datas e nomes que, por um ou outro motivo, são de fato importantes para nós. O trator dos neurônios soterra o resto. Pois bem: meu professor de desenho no Colégio São Luís - que Deus o perdoe - passou o ano tentando me fazer entender que "o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos".

Passei o ano preocupado com outro problema: o Sport Clube do Recife, afinal de contas, iria ou não barrar a caminhada do Náutico rumo ao título de heptacampeão pernambucano? O meu time de botão ia ou não ganhar o dificílimo campeonato que a gente organizava na rua Dom Manoel da Costa, no bairro da Torre?

Enquanto o professor - com cara de zagueiro alemão - tentava me familiarizar com o fantástico mundo da geometria, eu ficava pensando com meus botões: quem é hipotenusa? O que significa cateto? Onde fica a saída, pelo amor de Deus?
Hoje, tanto tempo depois, declaro-me formalmente incapaz de explicar o que significa a soma dos quadrados dos catetos. Mas sei de cor a escalação do time do Santos: Cláudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manoel Maria, Toninho, Pelé e Edu. Era um dos meus times de botão no ano da graça de 1969.
E o Sport? Eis o esquadrão: Miltão; Baixa, Bibiu, Gílson e Altair; Válter e Vadinho; Dema, Zezinho, Acelino e Fernando Lima. Não preciso consultar nenhum jornal antigo para recitar de trás pra frente a escalação de outro dos meus times de botão - o Palmeiras de 1968: Perez; Scalera, Baldochi, Minuca e Ferrari; Dudu e Ademir da Guia, Gildo, Sevílio, Tupãzinho e Rinaldo. Eis uma prova matemática dessa verdade fundamental: das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante. Se não fosse, eu não teria guardado tantos nomes.
O meu exercício de memória, obviamente, não vale nada. Mas o que é a vida, se não uma coleção de gloriosas inutilidades? Sou igualmente capaz de recitar o meu time de botão do Botafogo de 1969: Cao , Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César.

Minha memória sepultou no cemitério dos esquecimentos todo o palavrório que meu professor mobilizou na inglória missão de me apresentar aos mistérios dos catetos e hipotenusas.

Não tive coragem de dizer a ele, mas, desde o primeiro dia de aula, eu tinha certeza absoluta de que o futebol era mais importante do que a soma dos quadrados dos catetos. Não me perguntem por quê. Eu era um menino brasileiro. Não se deve pedir explicação a nenhum menino brasileiro apaixonado por futebol. A paixão nascera no dia em que eu fora a um estádio pela primeira vez, para ver os dribles de Pelé.
Esquecido das hipotenusas, guardei na memória duas cenas do dia em que corri desembestado atrás do ônibus da seleção brasileira.

Primeira cena: o meio-de-campo Clodoaldo saiu de campo chorando, machucado.

Segunda cena: termina o treino. Nós, os desocupados meninos do Brasil que saímos de casa numa manhã de dia de semana para correr atrás do ônibus da seleção, tentávamos agora vislumbrar por uma fresta numa das paredes do estádio nossos craques se preparando para ir embora. Havia, entre um degrau e outro da arquibancada do estádio, uma espécie de fenda que oferecia, aos eventuais bisbilhoteiros, uma visão do interior dos vestiários.

Parecia filme de Fellini. Nós nos revezávamos no posto de observação. Cada um podia olhar por cinco, dez segundos o que estava acontecendo no vestiário dos nossos deuses. Quando chegou minha vez, o que vi? Clara, nítida, diante de mim, a imagem do Rei Pelé ensaboado da cabeça aos pés. O Rei estava nu, no vestiário do estádio do Náutico.

Quando os jogadores voltaram para o ônibus, pararam para saciar nossa fome de autógrafos. Devo ter guardado em algum lugar esta relíquia. Onde estará este meu pequeno tesouro, pessoal e intransferível? Acabo de achar em meio a velhos papéis. Lá estão os autógrafos de Tostão, Rivelino, Brito, entre outros que terminaram ficando no caminho, na odisséia rumo ao México - como Paulo Borges,ponta-direita do Corinthians.

A seleção que foi treinar no campo dos Aflitos trazia as estrelas que reluziriam na campanha do México, meses depois : Félix, Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho,Tostão e Pelé. Quando o ônibus partiu, repetiu-se a gritaria, o tumulto, a vibração, os acenos. Nova correria atrás do ônibus.
O que terá acontecido naquele ano na vida do menino brasileiro apaixonado por futebol? O meu professor de desenho me reprovou, é claro. Meu pai me deu uma bronca de dimensões bíblicas: disse que eu passaria os próximos meses proibido de ir ao estádio. O meu time do Palmeiras perdeu o campeonato da rua Dom Manoel da Costa na penúltima rodada. O juiz com certeza deve ter roubado. O Santa Cruz - tragédia - venceu o campeonato pernambucano. O Sport ficou a ver navios, na Ilha do Retiro.
O menino brasileiro - um entre milhões - aprendeu ali que a vida é feita também de derrotas, fracassos, reprovações. Mas é também feita de lembranças que só aparentemente são desimportantes. Minha paixão pelo escrete deve ter começado ali, na corrida atrás daquele ônibus.
Então, dou um conselho aos meninos brasileiros: corram atrás do ônibus da seleção, se tiverem a chance. Ou do carro de bombeiros no desfile da vitória. Quantas lembranças, quantas paixões pelo escrete não surgirão entre esses meninos que correrão, desembestados, com uma folha de papel em branco nas mãos?
Quase quadro décadas depois daquelas expedições do menino recifense aos estádios da cidade em busca de uma visão do Rei Pelé, eis-me diante de Sua Majestade, em Nova York , para gravar uma entrevista que iria ao ar no “Fantástico”, em agosto de 2003.

É como se uma história - que começara em 1966 com um menino de dez anos indo pela primeira vez a um estádio de futebol - finalmente se completasse.

O menino que corria atrás do ônibus da Seleção Brasileira com um pedaço de papel nas mãos não conseguiu o autógrafo do “Rei” no estádio do Náutico, em 1969. O tumulto impediu a façanha.

Tanto tempo depois, o repórter quebrou a “liturgia” do cargo: terminada a gravação, pediu um autógrafo ao entrevistado. Não é coisa que se faça. Fiz.

Demorou quase quarenta anos - mas a mini-coleção de autógrafos finalmente ficou completa.


*Publicado no Livro das Grandes Reportagens ( Editora Globo, 2006)

Posted by geneton at 04:38 PM

julho 08, 2007

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

“LULA METALÚRGICO” FAZ UMA CONFISSÃO: “NÃO TENHO VOCAÇÃO POLÍTICA”


O sobrenome não era um sobrenome. Era uma profissão: metalúrgico. O nome não era um nome. Era um apelido: Lula. A combinação esquisita de um nome que era apelido e um sobrenome que era uma profissão servia para identificar aquele sindicalista que despontava para a fama: Lula Metalúrgico. Era assim que nós, repórteres que cobríamos a visita do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva ao Recife, no remoto ano de 1979, o chamávamos.

Lula já tinha sido capa de uma revista semanal. Começava a atrair a atenção do Brasil como o primeiro líder sindical surgido sob o regime militar. Fazia, ali, a primeira visita a Pernambuco depois de ficar conhecido. Ainda não era uma celebridade.

Quem poderia imaginar que aquele pernambucano que voltava ao Recife para defender um “novo sindicalismo” iria, um dia, subir a rampa do Palácio do Planalto como presidente? Ninguém. O Partido dos Trabalhadores não existia. Era apenas uma idéia na cabeça daquele sindicalista, que, ao abrir a boca diante de platéias, subtraía o “s” do plural das palavras com a mesma desenvoltura com que soltava imprecações contra governos militares que manipulavam os índices de inflação.

O Lula que desembarcou no Recife era um líder sindical que resistia às cantadas para se engajar em partidos políticos – não importa quais fossem. Descubro em meus arquivos uma gravação em que ele avisa: “Não sou filiado a partido político algum. Não sou filiado à Arena, não sou filiado ao MDB. Fui contra o bipartidarismo quando ele foi instituído. Por uma questão pessoal, enquanto houver bipartidarismo, não vou me filiar a partido político algum. Quem sabe, um dia, surja um partido em que os trabalhadores tenham voz, onde os trabalhadores sejam maioria. Quando surgir esse partido, serei – não tenham dúvida – um dos filiados”.

O sindicalista Lula estava a um milhão de anos-luz do candidato Lula que, quase um quarto de século depois, seria capaz de dar bom-dia a poste em troca de um voto – como faz todo candidato que se preza. O Lula Metalúrgico pichava gente da Arena e do MDB, dispensava a ajuda de estudantes que se ofereciam para distribuir panfletos a operários, acabrunhava-se com a intromissão de intelectuais na atuação do sindicato, fazia restrições à ótica das pastorais operárias da Igreja Católica, esculachava a conduta da chamada “grande imprensa”. Aos que tentavam sondar seus planos futuros, oferecia uma resposta que, hoje, soa como curiosidade arqueológica. Lula dizia que, simplesmente, não tinha vocação política. Dava-se por satisfeito no exercício da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos.

O então presidente da seção estadual do MDB – Jarbas Vasconcelos, oposicionista brigão que, duas décadas depois, se elegeria duas vezes governador de Pernambuco – é o cicerone na visita que o sindicalista barbudo faz ao arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara. O arcebispo vivia numa casa modestíssima, nos fundos da Igreja das Fronteiras, no bairro das Graças, no Recife. Um pôster de Martin Luther King – com a inscrição “Eu tenho um sonho” – ornamentava a parede da sala. Lula troca gentilezas com Dom Hélder. Diz que a trajetória do arcebispo servia de exemplo para os trabalhadores. Dom Hélder ouve o elogio com um meio-sorriso nos lábios. Lula apresenta aos anfitriões o filho caçula, um menino de um ano e poucos meses: “Ele tem esse nome de costureiro, Sandro, mas é macho!” Dom Hélder, Jarbas Vasconcelos e a mulher de Lula, Marisa, riem.


Aquela viúva que atraíra os olhares do também viúvo Luiz Inácio Lula da Silva se tornaria, tanto tempo depois, a primeira-dama do país. O primeiro marido de Marisa, um motorista de táxi, morreu assassinado num assalto. A primeira mulher de Lula morreu de parto – junto com o primeiro filho do casal.
Depois da visita a Dom Hélder, a estrela emergente do sindicalismo brasileiro faz uma pausa no périplo recifense para conversar com os repórteres. Hoje a cena seria impensável, mas na época era assim que acontecia: em vez de convocar a imprensa para o local da entrevista, Lula é que se dava ao trabalho de ir a uma redação. O “sapo barbudo” (apelido que ganharia dez anos depois, durante a campanha presidencial de 1989) revisita, então, memórias distantes:

Em que situação você saiu de Pernambuco para morar em São Paulo?
Não me lembro se foi em 1951 ou 1952. Mas saí de Pernambuco para não morrer de fome. Fui com toda a família. Meu pai já estava lá. Minha mãe tinha um pedaço de terra em Garanhuns, trabalhava na roça e não conseguia sustentar a família. Então, a única forma que ela encontrou para sobreviver – na época, eu era criança – foi ir embora, para onde estava o marido, para poder tentar cuidar dos filhos. Eu tinha uns seis anos.

Quando você começou a trabalhar em São Paulo?
Comecei a trabalhar em 1958, com 13 anos de idade. Trabalhava como tintureiro, numa tinturaria. Trabalhei quase três anos como tintureiro. Depois, entrei numa empresa metalúrgica. Trabalho hoje nas Indústrias Villares.

Como é que você entrou no sindicato?
Eu entrei no sindicato em 1969. Um dia, fui lá ver uma assembléia, gostei e fiquei.

Você reconhece que é o primeiro líder político que surgiu fora do âmbito parlamentar nesses últimos tempos?
Nem me considero uma liderança. Eu me considero, muito mais, um elemento que conseguiu captar os desejos de uma classe. Tentei levar os desejos dessa classe adiante e transformá-los numa bandeira de luta. Acho que a sociedade inteira tem muita responsabilidade – como os estudantes, com aqueles movimentos de 1977- e os intelectuais. Nós, os trabalhadores, somos um dos setores que entraram na briga.

Você se considera, então, um resultado da abertura comandada pela sociedade civil?
Exatamente. Porque faço parte dessa sociedade.

Além da circunstância política concreta da abertura, o fato de você ter conseguido se tornar porta-bandeira de uma classe pode ser atribuído a quê? Haveria uma vocação pessoal ou foram apenas as circunstâncias políticas que favoreceram?
Já começa a ficar difícil falar a gente... Gostaria que, aí, você colocasse de sua cabeça como é que você vê a coisa. Porque, para mim, fica muito difícil falar...

Alguma experiência passada de partidos políticos no Brasil entusiasmou você?
Não. Lamentavelmente, nenhuma.

Que experiência chegou perto do que você espera de um partido representativo?
Nenhum partido me entusiasmou. O Partido Comunista, por exemplo, sucumbiu da mesma forma que nasceu. Quer dizer: nasceu e morreu. Não foi obra dos trabalhadores. Veio de cima para baixo, um negócio imposto à classe trabalhadora. Alguns partidos que se diziam representantes da classe trabalhadora, como o PTB, o PC e o próprio Partido Socialista, nunca foram legitimamente representantes dos trabalhadores, porque não nasceram da classe trabalhadora. Foram impostos à classe.

Quais são, afinal, os planos de Lula na política?
Não sei. Não pensei ainda. Deixe contar uma coisa: toda essa vida que tenho levado tem me afastado muito de minha mulher e dos meus filhos. Hoje, praticamente, não disponho de um horário para minha família. Não posso permitir que minha mulher fique sozinha na hora de cuidar da família. A única coisa de que tenho certeza é que, no dia 25 de abril de 1981, eu me desligo do sindicato. O que vai acontecer depois daí só vou saber a partir do dia 25. Não tenho vocação política. Por enquanto, o que pretendo é continuar o trabalho no sindicato.

Vinte e três anos depois dessa entrevista, eis Luiz Inácio Lula da Silva aos primeiros minutos de um sábado, véspera da eleição presidencial de 2002. Diante de uma massa compacta de fotógrafos, repórteres e cinegrafistas, ele faz, num púlpito, um pequeno pronunciamento sobre o debate com José Serra, o candidato do PSDB. Depois dos agradecimentos de praxe, volta a exercitar o humor que, há tempos, diante de Dom Hélder, levou-o a brincar com o nome do filho Sandro.
Lula pede uma trégua de “seis horas” aos repórteres e fotógrafos. Diz que, ao final da campanha, já não agüenta encarar microfones e máquinas fotográficas de manhã, à tarde e à noite. “Depois de uma campanha como essa, sou capaz de pegar o barbeador para fazer a barba de manhã e começar a falar, porque vou pensar que o barbeador é microfone. Um candidato pode abrir a geladeira para pegar água: quando a luz da geladeira acender, ele vai fazer uma declaração, porque vai pensar que a luz é de uma câmera...”
De fato: os momentos de solidão de Lula foram raríssimos naquela campanha. Quem observou com atenção o balé dos candidatos durante o debate nos estúdios da Central Globo de Produção flagrou uma imagem rara. Minutos antes de serem chamados ao palco, ambos se concentravam longe dos olhos do público, numa espécie de baia, em extremidades opostas do palco. José Serra trocava confidências com assessores. Num espaço de tempo que deve ter parecido uma eternidade para um homem assediado a cada aparição pública, Lula vivia seus três minutos de solidão. Caminhou de um lado para o outro, no espaço exíguo. Olhava para o chão. Em que estaria pensando?
O líder sindical que em 1979 se incomodava com a falta de tempo para se dedicar à família transformara-se no candidato que, em 2002, clamava por uma trégua no bombardeio dos flashes fotográficos. Eleito presidente, ele teria de aprender a ser observado o tempo todo – pelo resto da vida, como acontece com todos os que um dia subiram a rampa com a faixa no peito.

(TRECHO DO LIVRO "DOSSIÊ BRASÍLIA : OS SEGREDOS DOS PRESIDENTES")

Posted by geneton at 01:21 PM

julho 07, 2007

ARIANO SUASSUNA

ARIANO APONTA OS NOMES QUE, SEGUNDO ELE, MERECEM IR PARA O TRONO DA CULTURA BRASILEIRA


Autor de um dos mais belos livros publicados nas últimas décadas no Brasil, o imerecidamente pouco conhecido ''Romance da Pedra do Reino'', o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna vem se dedicando a uma grande tarefa. Em nome da defesa da cultura brasileira contra a infiltração do ''lixo cultural'' despejado goela abaixo de países satélites como o Brasil, Ariano vem se dedicando a uma cruzada solitária em defesa de manifestações da criatividade popular.

O cruzado Ariano se esquece até de que tem horror a viajar. Há pouco tempo,foi parar no Rio Grande do Sul, para dar uma ''aula-espetáculo'' - uma façanha digna de registro, na biografia de um homem que se contenta em ver aviões em fotografias. Segunda tarefa: conhecido como autor do ''Auto da Compadecida'', texto teatral que virou até filme dos Trapalhões, este sertanejo da Paraíba radicado há décadas no Recife pretende lançar em breve um livro em que simplesmente recria e reescreve tudo o que já' produziu na vida.A tarefa se arrasta há anos. Não é para menos. Nesta entrevista, além de acusar de ''equivocados'' os que defendem a abertura dos portos ao ''lixo cultural'' estrangeiro, ele faz uma lista dos artistas e escritores que, segundo ele, realmente representam o Brasil.


O chamado ''gosto médio'', a que o senhor se refere com desprezo, é' ''pior do que o mau gosto''. Quais são, na produção cultural brasileira de hoje, os piores exemplos da vitória do ''gosto médio'' sobre a qualidade artística ?

ARIANO SUASSUNA : '' O gosto médio a que me refiro é ligado àquele mesmo lixo produzido pela indústria cultural de massas. É fácil identificar na produção cultural brasileira de hoje quem segue tais padrões ou com eles se acumplicia''.

Há quem diga que quem defende a preservação da chamada ''arte popular'' defende, na verdade,a manutenção da pobreza. Porque, se conseguissem vencer a pobreza e se tivessem acesso à educação, os artistas populares certamente deixariam de produzir obras formalmente rústicas e primitivas. O que o senhor diz a estes críticos ?

ARIANO SUASSUNA : "Digo, em primeiro lugar, que se realmente a opção fosse esta eu não teria dúvida : seria melhor que a injustiça desaparecesse, mesmo que a Arte popular desaparecesse com ela. Mas acontece que este é' somente um sofisma, criado por por pessoas que, na verdade, detestam as manifestações populares da nossa Cultura. Em segundo lugar, eu gostaria de refutar o lugar-comum segundo o qual as obras criadas no âmbito na Arte popular são necessariamente rústicas e primitivas quanto à forma. Veja-se, por exemplo, a seguinte Décima que poderia ter sido escrita por Calderon de la Barca - e é' do cantador Dimas Batista :

Na vida material
cumpriu sagrado destino :
o Filho de Deus, divino,
nos deu glória espiritual.
Deu o bem, tirou o mal,
livrando-nos da má sorte.
Padeceu suplício forte,
como o maior dos heróis.
Morreu pra dar vida a nós :
a vida venceu a morte.

Ou então esta,que Mallarmé assinaria :

No tempo em que os ventos suis
faziam estragos gerais,
fiz barrocas nos quintais,
semeei cravos azuis.
Nasceram estes tafuis,
amarelos como cidro.
Prometi a Santo Izidro,
com muito jeito e amor,
leva-los, quando lá for,
em uma taça de vidro.

Assim, caso os Poetas, hoje populares, recebessem educação universitária, o que poderia acontecer é que passassem todos a compor seus versos com o rigor das duas Décimas citadas. Não acredito que o Povo pobre do Brasil perdesse a força criadora caso melhorasse de vida. Melhorou, na China - e nem por isso o Teatro nacional e popular chinês desapareceu ou piorou. Pelo contrário. Ou, para falar em termos brasileiros: J. Borges é um grande gravador popular. Se tivesse tido formação ''erudita'', continuaria a ser o grande artista brasileiro que é, somente tratando seus universos pessoais e peculiares com o rigor formal de um Gilvan Samico''.

Quem é, afinal, para o senhor,o artista que, em qualquer área de produção cultural brasileira, melhor representa o Brasil ?

ARIANO SUASSUNA : ''Artes plásticas : Aleijadinho, Francisco Brennand e Gilvan Samico. Artes cênicas : Antonio José da Silva, o Judeu; Martins Pena, Qorpo Santo e Artur Azevedo. Literatura : Euclydes da Cunha, Augusto dos Anjos. Música : José Mauricio Nunes Garcia, Villa-Lobos, Guerra Peixe, Ernesto Nazaré, Capiba e Antônio José Madureira. Védeo e cinema : Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Vladimir Carvalho, Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho''.

O senhor reclama de que ''o patrocínio de multinacionais nos eventos é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais''. Quais são os patrocínios ou promoções que o senhor considera exemplos de ''tentativas de suborno'' ?

ARIANO SUASSUNA : ''Recusei indicações para o Prêmio Shell e para o Sharp. Recusei-me a participar da Bienal Nestlé de Literatura. Não fui eu que passei a notícia das recusas para os jornais, porque não fiz isto para me exibir nem para incorrer em falta de fraternidade com escritores e artistas que não têm as mesmas idéias nem as mesmas condições que eu tenho. Tais condições me deixam à vontade para recusar. Por isso, peço licença para, de uma vez por todas, encerrar aqui este desagradável assunto''.


Se a cultura é inevitavelmente afetada pela economia, não é ingenuidade querer que manifestações culturais brasileiras sejam preservadas numa espécie de redoma à prova de influências externas, numa época em que as relações econômicas sofrem um processo radical de internacionalização ?

ARIANO SUASSUNA : ''Colocar a Cultura brasileira numa redoma, além de ser uma coisa impossível, é algo de absolutamente indesejável. Faz muito tempo que venho fazendo afirmações em tal sentido. Por exemplo : no dia primeiro de dezembro de 1963, publiquei no jornal ''Última Hora'' um artigo no qual dizia que ''a Arte que se tornasse uniforme não se tornaria mais pura, tornar-se-ia, isto sim, mais pobre''. Depois, em 1974, ao reunir as ideias centrais do Movimento Armorial, eu afirmava que, ao valorizar o tronco negro, indígena e ibérico da nossa Cultura, não estávamos esquecidos de outras etnias e manifestações culturais que também são importantíssimas para o Brasil. Tomávamos tal posição por estarmos convencidos de que somente fortalecendo aquele tronco cultural é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga e nos massifica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece.

O que não posso aceitar é que brasileiros equivocados queiram que, em nome de nossa bela e fecunda diversidade, aqui seja acolhido também o lixo cultural que é sub-produto da indústria cultural americana espalhado pelo resto do mundo como se fosse coisa tão importante - e até mais importante - do que os romances de Faulkner. Ou seja: não tenho nada contra Melville. Mas não é possível que queiram exigir que eu ache que Michael Jackson e Madonna tem a mesma importância que Melville ou Euclides da Cunha. Quero deixar claro que tenho pelo ''lixo cultural'' brasileiro horror igual ao que tenho por qualquer outro''.

Se tivesse de escolher entre passar um fim de semana passeando com Woody Allen pelas ruas de Manhattan ou cavalgando com um vaqueiro pelos morros do sertão da Paraíba, com qual dos dois o senhor ficaria ?

ARIANO SUASSUNA : ''Passear por Manhattan, com Woody Allen ou com qualquer pessoa de tal tipo, é coisa que, para mim, não representa qualquer atrativo. Nunca saí do Brasil, mas, já que estamos no terreno das hipóteses, por que você, que é meu amigo, não pensa em alguém melhor e num lugar melhor? Quanto à outra alternativa, não tenho mais a resistência para sair por aí afora cavalgando pelos morros do sertão da Paraíba''.

O senhor não acredita que manifestações culturais e artísticas de um povo possam absorver criativamente influências externas ? Um violeiro que vê televisão não pode se enriquecer com as novas informações que recebe ?

ARIANO SUASSUNA - Qualquer um de nós pode se enriquecer com as novas (e boas) informações que recebe. Eu leio jornais e vejo televisão. Os cantadores e violeiros nordestinos também. Nenhum de nós perde, com isso, a garra brasileira e o senso crítico e satírico. Pelo contrário. Ouvi recentemente o cantador nordestino Edmílson Ferreira comentar assim, num Martelo-de-Seis-Linhas, as desventuras conjugais da família real inglesa :

Na Inglaterra,as coisas andam feias,
todo mundo por lá endoidecendo.
Toda dia é uma princesa sem marido,
ou um príncipe que, só,fica vivendo.
Ou a carne de vaca fez efeito,
ou o chifre do boi está fazendo.

Qual é a pior doença e qual é a melhor cura para o Brasil de hoje, às vésperas do ano dois mil ?

ARIANO SUASSUNA : ''Machado de Assis fez uma distinção definitiva entre o Brasil oficial e o Brasil real que, a meu ver, é o do Povo, o do ''Quarto Estado''. As maiores doenças nossas têm origem no Brasil oficial e a cura só lhe pode vir do Brasil real. As pessoas que sustentam idéias diferentes das nossas parecem pensar: ''O Brasil oficial é o problema; na Europa e nos Estados Unidos está' a solução''. Eu acho que o Brasil oficial é o problema, no Brasil real está' a solução '' .Ou,um pouco à moda de Unamuno: ''Brasil é o problema, Brasil é a solução''.

O senhor ainda reclama das guitarras elétricas. Isto não é uma discussão superada desde os anos sessenta ?

ARIANO SUASSUNA : ''Vou mais longe, até: esta é uma discussão que não tem o menor interesse - e desde muito antes. Nem nos anos sessenta ela fez parte das minhas preocupações. Em música, gosto de Monteverdi, Vivaldi, Scarlatti, Stravinsky, Erik Sati, José Mauricio Nunes Garcia, Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, Villa Lobos, Guerra Peixe ou Antonio José Madureira. Quando vão me entrevistar, fazem-me pergunta sobre guitarra elétrica, Michael Jackson e Orlando Silva. É' por isso que apareço falando sobre assuntos ou pessoas sobre as quais não tenho o menor interesse. Nunca me viriam à lembrança - se não me fizessem tais perguntas''.

O senhor diz que não tem interesse pela obra de compositores da MPB, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque eles são influenciados pela ''massificação cultural americana''. O senhor não reconhece na obra de compositores como estes nenhuma contribuição para a modernização da música popular brasileira ?

ARIANO SUASSUNA : ''Por iniciativa minha, jamais fiz qualquer referência a Caetano Veloso e Gilberto Gil. As pessoas que me entrevistam é que fazem perguntas a respeito deles e de outros. Depois, na maioria dos casos, quando publicam as matérias, ficam me acusando de radical e intolerante por causa das respostas que dou, porque não costumo esconder nem disfarçar o que penso. Quanto a mim, não gosto de estar falando mal de nenhum companheiro de trabalho, principalmente quando se trata de pessoas que antes estavam do nosso lado e depois passaram a emprestar seu talento ao outro''.

O senhor, secretario de um governador - Miguel Arraes - que se declara intransigentemente nacionalista, gostaria de ser ministro de um presidente neo-liberal ?

ARIANO SUASSUNA : ''Sou amigo do governador Arraes, mas só concordei em ser Secretário porque acho que ele representa, no campo da Politica brasileira, o mesmo que eu procuro ser no campo da Cultura. O convite foi honroso. O cargo tem me trazido muitas e ardentes alegrias. Mas está me obrigando também a fazer coisas que detesto - como, por exemplo, viajar. Imagino o que não aconteceria como Ministro, motivo pelo qual não gostaria de exercer tal cargo com nenhum Presidente, neo-liberal ou não. Eu teria até de me mudar para Brasilia, o que, para mim, seria uma verdadeira catástrofe. Felizmente, pertenço à oposição. Não existe qualquer perspectiva a tal respeito; de modo que não vou me preocupar com a possibilidade colocada na pergunta''.

Como se chama e do que tratará o livro que o senhor vem escrevendo há anos ? Que impacto o senhor gostaria que este livro tivesse no meio literário brasileiro ?

ARIANO SUASSUNA : '' O livro,ainda sem título, é um romance que, se for concluído como pretendo, será uma espécie de revisão e recriação de tudo o que escrevi. Terminará a historia que comecei a narrar com ''A Pedra do Reino''. Quanto ao ''impacto'', não tenho nenhuma originalidade : gostaria que o livro tivesse boa aceitação de público e de crítica. Mas, infelizmente, tenho consciência de que sou um escritor de poucos livros e de poucos leitores. Já me darei por muito feliz se meu corajoso editor não tiver prejuízo''.

Se um violeiro procurasse o senhor com uma guitarra ,o que é que o senhor faria ?

ARIANO SUASSUNA : ''Um violeiro com uma guitarra na mão seria aquilo que, em Lógica, se chama uma contradição em seus próprios termos : ele não seria mais um violeiro e sim um guitarrista. E provaria, com a nova opção, que nem como violeiro ele prestava. Mas só estou respondendo porque, como se diz nos depoimentos judiciais, com grande alivio meu e dos leitores, chegou a hora do "nada mais disse nem foi perguntado''.

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1996

Posted by geneton at 12:16 AM

junho 23, 2007

PETE BEST, EX-BEATLE

JOHN, PAUL, GEORGE E......PETE! ( OU : A BALADA DO BEATLE QUE FICOU SOZINHO)

O ex-Beatle conta a história sincera do maior grupo de rock surgido até hoje! – Uma aventura com John Lennon na Alemanha: roubar a carteira de um fã endinheirado! – O trauma da saída dos Beatles – “Paul McCartney era mesquinho!” – As críticas a Ringo Starr – O que os Beatles esperavam no início da carreira – Quais eram os gurus do grupo – Os bastidores de dois anos de convivência diária com John, Paul McCartney e George Harrison - Os olhos cheios de lágrimas na hora de falar de Lennon.

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O trabalho de repórter deu, a este beatlemaníaco, a chance de passar uma manhã ouvindo as confidências do Beatle que perdeu o bonde : Pete Best, o baterista que, depois de dois anos tocando com o grupo, foi substituído por Ringo Starr. Já foi chamado de "o homem mais azarado do mundo". Deixou de ganhar rios de dinheiro. Enquanto os outros conquistavam fama planetária, Pete Best ligava o gás do banheiro para tentar o suicídio. Os meus arquivos implacáveis guardam a transcrição completa da entrevista ( eu teria uma nova chance de entrevistar Pete Best anos depois, em Liverpool, em plene Mathew Street, a rua onde existia o Cavern Club. Ao final desta segunda entrevista, Pete Best nos convidou - a mim e ao cinegrafista Paulo Pimentel - para beber uma cerveja num pub que fica em frente ao Cavern. Lá pelas tantas, confessou: assim que recebeu a notícia de que saíra dos Beatles, foi a este mesmíssimo pub para afogar as mágoas bebendo. Pensei: quem diria que um dia um ex-beatle estaria afogando suas mágoas, diante de um copo de cerveja, justamente comigo.....). A entrevista que se segue foi gravada em Londres.
Como diria a revista Veja, "eis o relato" deste repórter:

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Há quem diga? Não, nem pensar: não há quem diga que aquele hóspede que, agora, toma café com leite instalado solitariamente num imenso salão do andar térreo do Royal Horse Gardens Hotel, em Whitehall Court, Londres, tenha sido co-fundador e instrumentista do maior e melhor grupo de rock surgido até hoje no Planeta Terra. Sozinho, absorvido pela leitura de um jornal, ele nem nota o trânsito de executivos norte-americanos do outro lado do salão, em direção à entrada principal do hotel.

Não fosse pelo traje informal, bem que Pete Best (Madras, Índia, 24/11/1941) poderia ser confundido com um destes executivos por um transeunte desavisado. A confusão, a bem da verdade, não seria tão absurda: o ex-Beatle Pete Best passa os dias sentado atrás de um birô, no Old Swan Job Center, uma agência de empregos estatal de Liverpool, onde trabalha desde 1969.

O caminho entre o posto de baterista dos Beatles - ao lado de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison - e os afazeres de funcionário público não foi nada fácil. Deixou traumas profundos - incluída, aí, uma tentativa de suicidio. Ninguém é de ferro. Quem passaria sem marcas pela experiência de deixar de ser um Beatle do dia para a noite para se tornar um funcionário público?

A saída de Pete Best dos Beatles, depois de dois anos no grupo, é um ponto obs- curo na história dos 'quatro rapazes de Liverpool '. Ninguém sabe ao certo, até hoje, por que Pete Best foi trocado por Ringo Starr. Os jornais da época documentam que Pete Best era um ídolo entre os fãs dos Beatles. Quando a notícia de que ele tinha saldo do grupo começou a circular, os beatlemaníacos promoveram uma manifestação pública, com faixas e cartazes, para que ele fosse reintegrado ao grupo.

Tempos depois, John Lennon se penitenciou, numa entrevista, sobre a maneira como Pete Best foi afastado do grupo: nem ele nem Paul McCartney nem George Hamson se deram ao trabalho de comunicar a Best que, a partir dali, o posto de baterista ficaria com Ringo Starr. Quem deu a notícia foi o empresário dos Beatles, Brian Epstein. Pete Best foi para um pub, beber. Depois, seguiu para casa. Passou a noite chorando.

Mas ninguém é um ex-Beatle impunemente. Pete Best é citado com destaque na copiosa bibliografia sobre os Beatles publicada na Inglaterra. Quando viajou de Liverpool a Londres, para lançar um livro em que dá um depoimento pessoal sobre os primeiros anos dos Beatles, ganhou largos espaços no "The Times", foi convidado para aparecer na BBC em rede nacional e não é só: a CBS norte-americana entrou no páreo para disputar, na agenda de Best, um horário para uma entrevista. O mito dos Beatles subsiste bravamente ao tempo.

O ex-beatle vai começar a falar. Parece surpreso por ter sido procurado, pela primeira vez, por um repórter brasileiro. E entusiasmado: a entrevista termina se estendendo por toda a manhã, para desespero da assessora de imprensa que o acompanhava, preocupada com a falta de tempo para o cumprimento de outros compromissos.

Best faz confidências, descreve até episódios pouco recomendáveis que viveu com um velho companheiro de aventuras chamado John Winston Lennon. Quando termina a entrevista, Best sai do hotel e caminha, anônimo, pela Whitehall Court. Reclama do frio. "O último inverno foi terrível". Quer saber quem é quem na música brasileira. Brinca: "Lá deve ter estrelas de rock. Talvez não tão boas quanto as de Liverpool ... ".

Best nasceu na Índia por puro acaso. O pai, um ex-promotor de lutas de boxe em Liverpool, tinha sido enviado à India pelo governo inglês, durante a Segunda Guerra Mundial, para trabalhar como preparador físico do exército. Lá, casou com uma indiana que prestava serviços à Cruz Vermelha Internacional. Teve dois filhos com ela. Assim que a guerra acabou, voltou para Liverpool. Anos depois, na casa da família Best, a de número oito numa rua chamada Hayman's Green, começava a funcionar um clube de jovens batizado de 'Casbah' e freqüentado por dezenas de adolescentes deslumbrados com guitarras elétricas.

Pete Best e a mãe - que até hoje mora na casa - se encarregaram de organizar o clube. Entre os freqüentadores, três rapazes, chamados John Lennon, Paul McCartney e George Harrison.

A casa da família Best ia entrar para a história do rock. Pete também. O endereço faz parte do périplo cumprido até hoje por beatlemaníacos de todas as nacionalidades que visitam Liverpool à procura de estilhaços do sonho. Mas ali, no começo da década de sessenta, a aventura estava apenas começando.

Quem convidou você a entrar para os Beatles?

Pete Best: "Era agosto de 1960. Nesta época, tinha surgido o convite para a viagem dos Beatles à Alemanha, a primeira excursão do grupo a Hamburgo. Eles não tinham baterista. Paul McCartney sabia que eu tocava e me disse, ao telefone: "Pete, surgiu uma chance de ir para Hamburgo. Você gostaria de vir conosco? Precisamos de um baterista!". Eu disse: "Sim!". Paul me convidou para que eu fizesse uma apresentação para eles. Durou cerca de quinze minutos. Toquei seis músicas. Em vinte minutos, eu era um Beatle. Dois dias depois, nós todos estávamos em Hamburgo, no Indra Club".

Você já conhecia Paul McCartney antes do telefonema?

Pete Best: "Sim. Paul, John, George e Sutcliff - que morreu tragicamente - tinham formado os Quarrymen, um grupo que tocava num clube criado por minha mãe, chamado Casbah. Eu já os conhecia daí. E, já antes, eles tinham nos ajudado a decorar o clube. Dois anos antes de ser um Beatle, eu já os conhecia".

Quando foi convidado, qual foi a primeira reação: você pensou duas vezes ou aceitou logo?

Pete Best: "Era o caso de dizer sim de primeira. Meus pais estavam lá. Havia o convite para ir à Alemanha. Eles me disseram: "Então, ok! Se você quer, vá em frente!". Tudo foi rápido. Paul já tinha me dito: "Vamos à Alemanha! Antes, faça urna apresentação pra gente". Tudo foi resolvido assim, em questão de minutos".

Você esperava, naquele momento, que a música dos Beatles fosse significar algo de especial?

Pete Best: "Não sei o que esperávamos naquele tempo. Quanto mais ficávamos juntos, mais tínhamos um sentimento unânime: uma autoconfiança maior do que qualquer outra coisa. Nós iríamos chegar a algum ponto! Bem que poderia ser o primeiro lugar, pelo menos uma vez, nas paradas inglesas. Mas eu não achava que eles próprios, neste tempo, imaginassem que os Beatles pudessem se transformar em superstars - apesar de outras pessoas demonstrarem crença no grupo".

Que tipo de comentário John Lennon fazia sobre música, com você, neste período? Ele era bem informado?

Pete Best: "Todo o grupo tinha o que poderíamos chamar de habilidade musical. John estava interessado em nomes como Chuck Berry e Gene Vincent. Éramos bons guitarristas e bons vocalistas. Todo o grupo era. John - eu sentia, pelo meu gosto pessoal - era o líder do grupo".

Elvis Presley significava o quê, para você?
Pete Best: "Era o ídolo de cada rapaz na Inglaterra. Nós, os Beatles, gostávamos de Gene Vincent, Chuck Berry, Elvis Presley, Little Richard, Jerry Lee Lewis, todos. Nós estávamos construindo o nosso estilo tocando a música que eles faziam. Era o padrão americano - no qual nós nos baseávamos".

Os outros Beatles tiveram ciúme de você? Os jornais de Liverpool davam sempre um destaque especial a você e falavam do grande sucesso que Pete Best fazia com as fãs...

Pete Best: "Quando saí dos Beatles, chegavam para mim e diziam: "Você não notou, mas havia tantos fãs seguindo você que o ciúme já começava a aparecer!". Era o que me diziam".

Você, afinal, era tão popular assim em Liverpool?

Pete Best: "Era algo de que eu tinha consciência na época. Houve uma grande manifestação em frente ao Cavern Club, com cartazes como "Pete Forever!", "Ringo Never!" e coisas assim. E aí eu percebi que sim, eu estava me tornando popular".

Você chegou a ter problemas pessoais com os outros Beatles?

Pete Best: "Não. De maneira nenhuma! Não chegamos nunca a brigar. O que tínhamos eram as discussões normais entre músicos sobre as músicas que estávamos tocando. Não chegamos a ter brigas sérias. Neste tempo, nós estávamos ganhando força. Eu pensava: "Somos quatro rapazes. Somos os Beatles. Continuaremos a ser".

Você culpa alguém por ter saído dos Beatles depois de dois anos tocando no grupo?

Pete Best: "Quando viam o que tinha acontecido,as pessoas me diziam: "O mais passível de culpa pode ser Paul McCartney". Não me interprete mal! (neste ponto, Pete Best assume um ar sério, faz questão de pronunciar cada palavra pausadamente). Não se pode virar para ele e dizer: "Foi ele!". Isto pode ser totalmente falso, porque, na verdade, eu não saberia dizer. Mas me diziam: "Paul é o que teria mais tendência de ficar
enciumado se alguém dentro do grupo se tornasse mais popular".

Você esperava o enorme sucesso dos Eeatles ou tudo foi uma surpresa para você, quando aconteceu?

Pete Best: "Eu imaginava que poderíamos estourar nas paradas inglesas. Era a maior façanha que poderíamos cometer, pelo que eu sentia. Mas atingir o primeiro lugar na Europa logo depois da minha saída, conquistar a América e o mundo com a Beatlemania, tudo me surpreendeu. Os Beatles tinham o talento e também a promoção da mídia por trás. Tudo estava a favor do grupo. Era, portanto, uma bola de neve. E a partir daí
criou-se a Beatlemania".

"Quando viam o que tinha acontecido, as pessoas me diziam:
"A culpa pode ser de Paul McCartney"

Depois de deixar os Beatles, você teve algum tipo de contato com John Lennon, Paul McCartney e George Harrison?

Pete Best: "O engraçado é que não. Uma vez, quando a BBC fez um filme no Cavern Club, logo depois de eu ter saído do grupo, encontrei com eles. Houve outras ocasiões, como no Majestic BalI Room. Eu já fazia parte de um grupo chamado All Stars. Era o segundo melhor grupo de Liverpool, depois dos Beatles. Nós nos apresentamos, todos, num só show de entrega de prêmios. Quando o All Stars estava saindo do palco, os Beatles estavam chegando. Nós nos cruzamos, a poucos centímetros. Não se trocou nenhuma palavra.

Desde o dia 15 de agosto de 1962, não tive contatos com John, Paul e George. Jamais recebi uma explicação satisfatória sobre o episódio da minha saída. Durante os dois anos como um dos Beatles, jamais ouvi de qualquer um deles qualquer restrição à minha atuação como músico. Aliás, bem na época da minha saída, logo antes, nós estávamos todos bebendo juntos e parecíamos os melhores amigos do mundo. Depois, ao ler o livro de Brian Epstein, o empresário que levou os Beatles para o sucesso, vi que ele escreveu o seguinte: eu era "bastante convencional para ser um Beatle e, embora bastante amigo de John, não o era de George e Paul"... Já outras pessoas estavam convencidas de que eu fui retirado do grupo porque me recusei a mudar o corte do meu cabelo...
Quando nos cruzamos, na saída do palco, o que houve foi um silêncio de pedra. Não os vi mais".

Você é parte da história dos Beatles. Quando o grupo se separou, que reação você teve?

Pete Best: "Isto me surpreendeu. Naquele estágio, com toda a organização montada, o grupo continuava indo em frente. A popularidade estava lá! Eles tinham deixado de fazer excursões, estavam só gravando discos. Mas é certo que terminariam voltando para a estrada. Com a Beatlemania e os fãs, eles poderiam ir adiante ainda".

Mas, quando ouviu a notícia de que os Beatles tinham se separado, o que foi exa- tamente que você sentiu? Você tinha passado por uma situação parecida...

Pete Best: "Fiquei sem entender. Tive uma surpresa. Por que eles tinham se separado? Tudo caminhava a favor dos Beatles. Eles ainda eram os Beatles, os fãs todos estavam em volta. Mas só depois é que entendi que havia problemas entre eles. As discussões que já existiam internamente eram suprimidas pela publicidade - que apresentava os Beatles como os quatro rapazes que circulavam pelo mundo..."

Que lembrança mais forte você guarda da longa convivência com John Lennon?

Pete Best: "As mais fortes são do tempo em que fazíamos farra juntos, principalmente quando estávamos na Alemanha, na primeira viagem que fizemos para lá. Nós tínhamos pouco dinheiro (ri). Numa noite, um marinheiro alemão foi ver uma apresentação nossa. Pagou uma rodada de cerveja para nós, os Beatles, como os alemães gostam de fazer. Nós vimos, então, o tamanho da carteira do tal marinheiro: era gorda e recheada. John pensou: "Vamos roubá-Ia!". Nós discutimos a idéia. Para mim e para John, parecia boa. Paul e George não pareciam tão convencidos, porque achavam perigoso. Eram quatro da manhã quando o marinheiro de carteira cheia resolveu ir embora. Nós quatro - eu, John, Paul e George - saímos no frio de novembro para segui-Io. Quando nos aproximamos de um estacionamento deserto, o local ideal para o "golpe", Paul e George resolveram ir embora. George dizia que estava cansado. Eu e John avançamos em cima do marinheiro - que não estava tão bêbado quanto esperávamos... Tanto é que ele reagiu imediatamente. John deu um soco no marinheiro - que ficou de joelhos. Eu tentei agarrar a carteira cheia de dinheiro. Mas o marinheiro, um homem de experiência, logo ficou de pé de novo. Deu um empurrão em Lennon - que foi parar longe. E meteu a mão por trás da calça. Nós vimos que ele ia apanhar um revólver. Nós ainda avançamos de novo sobre ele com as cabeças protegidas. Ele começou a disparar. Tudo que a gente queria naquele momento era ir embora dali correndo. Por sorte nossa, o revólver apenas expelia gás. Era um tipo de revólver que se usava em Hamburgo para defesa pessoal. Nunca esqueci esta história, porque é um bom exemplo de como éramos impossíveis e selvagens o bastante para fazer uma coisa desta. Há um Iado humorado nesta história. E também um lado amargo - que mostra o quanto desesperados nós éramos. Quando olho para trás, vejo: Lennon era o rapaz! Que loucura!.

Sempre houve dois lados de John Lennon. Um era o lado público, o John sarcástico, abusivo. Mas há um outro lado - que conheci bem quando convivemos. Era um lado mais amável. Nós nos sentávamos e discutíamos sobre namoradas e o que sentiríamos quando estivéssemos longe delas... um lado que não se nota tanto. Nós nos sentávamos num clube. Se tínhamos acabado um namoro, ficávamos diante de uma cerveja e começávamos a ter uma conversa sentimental. É algo que precisamos conhecer, para descobrir o outro lado de John".

Numa entrevista ao jornal "The Times", você disse que John Lennon era o Beatle de quem você mais gostava, quando estava no grupo. Por quê?

Pete Best: "Eu gostei de John já na primeira vez que me encontrei com ele, quando ele veio para o clube de minha mãe. Ele era o cômico do grupo, fazia qualquer coisa por uma boa gargalhada. Nós nos demos tão bem que, quando voltamos a Liverpool depois das apresentações em Hamburgo, ele ficou lá em casa. Nós pegávamos drinques e Coca-Cola no clube - que era bem embaixo da minha casa, em Liverpool. Nós nos sentávamos, ouvíamos as músicas juntos, saíamos para tomar alguma coisa. Era uma relação de camaradagem. É por esta razão que eu gostava mais de John".

Você era melhor músico que os outros, naquele tempo?

Pete Best: "Sim. Podiam dizer: eles não me quiseram mais porque eu não tocava tão bem bateria. Ora, ainda hoje, admito que eu era melhor do que Ringo Starr. O que acontece é que, quando ocorreu a minha saída, eu não tinha poder de interferência. Tudo foi preparado já antes de Ringo vir. Algumas semanas depois, cheguei a uma situação em que Brian chegou para mim e disse: "Você não é bom baterista para o grupo. Quero chamá-Io para ficar comigo. Você já não irá tocar com os Beatles, mas há um outro grupo em Liverpool chamado Mersey Beats" - que, na época, eram os Beatles mais novos. Brian me chamou para que eu me juntasse ao grupo para transformá-lo num segundo Beatles. Ora, pode-se dizer: eu não era bom suficientemente para tocar com os Beatles. Eles me tiraram. Mas, por outro lado, eu era bom suficientemente para que Brian me chamasse para tentar fazer de um outro grupo os novos Beatles...

Dizem também que foi George Martin, o produtor dos discos dos Beatles, que teria dito que eu não era bom o bastante. Eu falei com George Martin. Ele achou, na gravação de estúdio, que aquele som não estava no ponto para os Beatles, naquele tempo. Mas ele não quis dizer que eu deveria sair do grupo. O que acontece no estúdio de gravação não faz qualquer diferença com o que acontece no palco. O argumento não cola. Não há elementos que justifiquem".

“John Lennon pensou:
“Vamos roubá-Ia!”. Para mim e para ele, a idéia parecia boa”

Você tinha mais experiência que Ringo Starr?

Pete Best: “Eu não diria que era "maior experiência". Eu desenvolvi, na Alemanha, um estilo marcante. Quem ouvia dizia: "Bem, este é o som de Mersey Beats". Algo como Beatlemania. Quando voltamos a Liverpool, os bateristas começaram a copiar este estilo - ninguém tinha tocado antes. Os grupos de Liverpool estavam tentando copiar o som e o estilo dos Beatles. Ringo vinha tocando há mais tempo como baterista. Eu tinha menos tempo. Mas era o melhor”.

Você viveu e trabalhou com o grupo que mudou a cabeça de milhões de jovens em todo o mundo. Você não vê o fato de ter sido um BeatIe como um privilégio, apesar dos problemas?

Pete Best: “Ah, sim! O que aconteceu ninguém pode levar de minhas lembranças e de minha vida. Eu fui, por dois anos, um Beatle. É parte de minha herança, parte de minha história. É algo que posso olhar, sem me importar com o que aconteceu depois, principalmente o meu afastamento. Aqueles dois anos me trazem orgulho. Sou um privilegiado, por ser parte da lembrança e da história dos Beatles”.

A imagem pública de John Lennon era a de um rebelde, talvez o único entre os BeatIes. Pelo que você conhece, é verdade?

Pete Best: “John era, provavelmente, o mais rebelde, simplesmente porque não ligava para nada. Não queria nem saber. Fazia as coisas por divertimento, por raiva, porque estava bêbado (ri) ou porque era corajoso. Mas, provavelmente, por causa da ansiedade que adquiriu. A imagem pública, naquele tempo, tendia a fazer de John mais rebelde que o resto do grupo. Ele explodia e saía da linha de vez em quando, para se fixar como o mais rebelde. Mas se levarmos tudo em consideração, havia quatro rebeldes entre os BeatIes... As ansiedades e as inquietações do comportamento de John é que o
retrataram como o mais rebelde.

O que acontece é que, ainda no tempo da escola, ele era do tipo que, se quisesse fazer alguma coisa, fazia. Depois, se ele queria ofender a platéia, ofendia e não precisava ter alguma razão para agir assim. Se alguém - até um fã - mencionava alguma coisa, ele, literalmente, perdia a paciência. E explodia com o fã. Cinco minutos depois, esquecia tudo e estava rindo e brincando com o fã. O pobre fã devia estar pensando: "Meu Deus, o que foi que eu fiz para ele de repente explodir em cima de mim?". John mudava de temperamento todo o tempo".

Todo mundo conhece os Beatles como figuras públicas. Mas eu gostaria que você fizesse um retrato falado de cada um, a partir das experiências pessoais e de convivência íntima que você teve com o grupo. Primeiro, Paul McCartney.

Pete Best: "Paul, ali, era, provavelmente, o mais ligado em "relações públicas". Era o mediador, o que queria ser o centro das atenções. Fazia qualquer coisa - como dar declarações bobas e falar com fãs. Queria estar na linha. Comparado com o resto de nós... Nós, os outros, dizíamos: se os fãs vierem, a gente conversa. Se não, tudo bem. Mas Paul fazia tudo para tentar impressionar os fãs. Já neste tempo, acredite ou não, ele era extremamente mesquinho com o dinheiro. Era o único que pensava duas vezes antes de gastar dinheiro com alguma coisa. Mas você não pode dizer que ele era culpado só porque tomava cuidado com seus vinténs... Paul, na verdade, tentava impressionar as pessoas todo o tempo, se comparado com o resto de nós".

George Harrison...

Pete Best: "Ele vivia mergulhado na música, sempre preocupado em melhorar o estilo e procurar equipamentos melhores. E melhorou. Em dois anos, conseguiu uma guitarra que ninguém tinha em Liverpool. É uma pessoa assim. Era
verdadeiramente interessado em melhorar a música e o equipamento, mas não chegou a contribuir para o grupo naquele tempo. George simplesmente acompanhava os outros. Quando dizíamos "não vamos fazer assim, mas de outro jeito" ele aceitava ...

Ringo Starr...

Pete Best: "Eu conhecia Ringo anos antes de ele se tornar um Beatle. Eu o conheci quando eu era um Beatle. Eu prestei atenção em Ringo, simplesmente porque foi ele quem me substituiu. Nós saíamos juntos em Liverpool. Ele era um sujeito que se guardava para se mostrar no palco. Mas era meio deixado de lado. Ringo pensava um bocado sobre a maneira de tocar. Não era o melhor de Liverpool. Era apenas um dos rapazes ali...".

Ringo, na verdade, ficou sempre com a imagem de o menos brilhante entre os Beatles. Você diria que é verdade?

Pete Best: "Ringo, naquele tempo, era o que ficava lá atrás. Não podia compor músicas, não tinha estilo de cantar. Nós tínhamos Lennon e McCartney - que podiam compor as músicas. George Harrison também podia. Os três tinham coisas em comum, um completava o outro. Se os Beatles tivessem continuado, Ringo estaria com eles. Mas só quando a separação ocorreu ele entendeu de repente que deveria fazer alguma coisa diferente. Por esta razão, começou a fazer filmes e a produzir seus próprios discos. Viu que a onda dos Beatles tinha acabado. Era hora de viver dos próprios recursos. É um
homem rico. Você não pode tirar a riqueza de Ringo, mas, em matéria de talento e de negócios, estava um pouco atrás dos outros. Porque os outros comandavam o grupo. Ringo estava atrás".

Brian Epstein criou os Beatles? Os que dizem que ele criou o fenômeno estão errados? Você, como ex-Beatle da época de Brian Epstein, pode dizer que tipo de influência ele teve?

Pete Best: "Como empresário, ele tinha grandes planos. Começou aos poucos mudando a imagem dos Beatles. Fez o grupo vestir paletó e tudo o mais. Tentou um bom contrato numa boa gravadora inglesa. Depois, fomos rejeitados pela DECA e pela maioria das grandes companhias. De repente, surgiu o convite da EMI, a gravadora que, afinal, lançou as músicas dos Beatles. Ali, ele era interessado. Queria progredir financeira e
profissionalmente. Acreditou nos Beatles porque gostava da música que tocávamos e das pessoas. Não é só: acreditava na música.

Tanto quanto se sabe, nós éramos melhores que Elvis Presley. É o que de fato aconteceu: os Beatles terminaram iguais ou até maiores do que tudo que EIvis Presley jamais foi. Mas quem ouvia Brian dizer que os Beatles iam ser maiores que Presley dizia: "Vamos! Que história é essa?" (faz ar de desânimo, ao imitar um interlocutor imaginário). Nesta época, saí dos Beatles e passei a ter um ponto de vista exterior sobre o percurso dos Beatles.

Dizer que Brian Epstein não era tão bom em show business porque provavelmente fez os Beatles perderem milhões de pounds é difícil. Brian pode ter sido ingênuo. As outras pessoas puderam explorar os Beatles, propor negócios ruins. Você não sabe, porque não participa dessa organização. Mas, com todo o dinheiro que possa ter perdido, Brian fez de cada um multimilionário. Ninguém pode negar! Fez daqueles caras os Beatles! Criou a Beatlemania. Não importa como ele fez, se através de promoções, trapaças no show business ou contatos. O fato é que usou todos os recursos disponíveis naquele tempo. Deve ter um crédito por tudo. Pode-se dizer que, em matéria de show business, ele não foi tão bom. Mas conseguiu - de repente - se transformar de simples dono de uma loja de discos em responsável pelos Beatles. Comandou uma organização. Brian não criou só os Beatles. Criou o sucesso dos Beatles e de outros grupos. Alguma coisa havia ali. Era um bom empresário".

“John Lennon explodia e saía da linha de vez em quando,
para se fixar como rebelde"

George Martin, o produtor dos Beatles envolvido no episódio em que você deixou o grupo...

Pete Best: "Só o encontrei uma vez, quando fomos tocar no estúdio para ele. Quando o vi depois, já não estava com os Beatles. Suas técnicas de gravação captavam a música dos Beatles bastante bem. Se você ouvir as primeiras gravações, você dirá: "Eis uma gravação é inteiramente diferente de qualquer outra coisa!". Basta comparar com os outros. Era algo original. Se foi a sabedoria de George Martin ou o brilho dos Beatles, não sei. George Martin era talentoso. Não me interprete mal. Já antes, ele tinha gravado sucessos. Mas os Beatles não faziam o tipo de música que ele tinha gravado antes. E ele entendeu - de repente - que o tipo de música dos Beatles que ele gravou como produtor era só dos Beatles - ninguém mais. George Martin progrediu a partir daí. Enquanto os Beatles avançavam, ele progredia também, através de mudanças na música. E aí veio o psicodelismo, o Magical Mistery Tour e outras coisas. George Martin até pensou em se aposentar cedo, ir morar numa ilha e só gravar quando quisesse. É sinal de sucesso".

Stuart Sutcliff, morto aos vinte e um anos de um tumor no cérebro, depois de ter tocado nos Beatles, foi a primeira tragédia na vida do grupo. Que tipo de artista era ele?

Pete Best: "Tinha talento como artista. Como pessoa, era o que se poderia chamar de um sujeito legal. Baixinho. Tinha consciência de suas limitações. E mantinha uma relação de mútua estima com o grupo. Ele se preocupava com tudo quando os Beatles atuavam; envolvia- se totalmente. Stu se apaixonou à primeira vista por uma moça chamada Astrud. A decisão de deixar o grupo deve ter custado a ele noites e noites de sono. Ele gostava de ser parte dos Beatles. Mas sempre se dividiu entre ser um artista plástico e um músico. Logo antes de sair dos Beatles, entendeu que o verdadeiro talento que ele tinha era como artista plástico. Um incrível artista. Tudo que posso dizer é que foi uma grande tragédia".

Como é que você se sente, hoje, ajudando os desempregados de Liverpool numa agência de emprego?

Pete Best: "É um outro desafio. Não é fácil encontrar trabalho para os desempregados em Liverpool. A taxa de desemprego é alta. Meu trabalho é como qualquer outro: passa por sucessos e fracassos. Eu, felizmente, posso me colocar numa posição melhor do que a maioria das pessoas, porque estive no fundo do poço, tanto quanto alguém possa estar, envolvido numa depressão total (N: em 1965, em situação financeira difícil e deprimido pela frustração de ter perdido a chance de repartir o sucesso mundial dos Beatles, Pete Best veda todas as entradas de ar do banheiro da casa onde morava em Liverpool, abre o gás e deita-se no chão, à espera da morte. Um irmão sente o cheiro do gás do lado de fora, consegue entrar no banheiro e salvar a vida de Pete Best, a esta altura já
inconsciente. Ele guardou em segredo durante vinte anos a história da tentativa de suicídio).

Embora não diga aos desempregados que me procuram o que é que eu acho, eu sei o que eles sentem. Tenho simpatia por eles. Eu estive lá, afinal! Tento ajudar os outros tanto quanto posso. É o meu trabalho. Tenho prazer - e paciência - quando tento
ajudá-Ios".

Você vive satisfeito com este trabalho?

Pete Best: "Quando deixei o show business, mudei totalmente o meu estilo de vida. Vou ser honesto: agora, posso dormir bem. Eu estive no show business desde que deixei a escola. Naquele tempo, quando resolvi dar uma parada, eu já tinha minha mulher e uma criança para tomar conta. Depois de pensar um bocado, finalmente decidi que era tempo de me dedicar a elas - e não apenas a mim. O que houve, então, foi uma ruptura completa. Desde 1968, estou inteiramente afastado do show business. Fiz apenas uma ou outra aparição em shows de TV. Meu estilo de vida, como disse a você, mudou.

Passei a viver o que podemos chamar de uma vida normal: ir ao trabalho, voltar, sair para tomar uma cerveja, coisas assim. Mas, lá no fundo, ainda existe aquela sensação: "Meu Deus, se eu tivesse continuado como um Beatle!". Hoje, penso que não faz diferença. Quando chego em casa, encontro as contas a pagar que o correio deixou embaixo da porta. Vem alguém e me diz: "pague!". E vou vivendo, afinal, todas essas coisas normais que todos vivem. Trabalho duro. Tenho orgulho de tudo. Com a vida que levo, desenvolvi o meu estilo. Faço o que quero, quando quero. Não fico remoendo o passado. É bom".

Que sensação ficou até hoje do dia em que você recebeu a notícia de que já não era um Beatle? Deve ter sido um dia doloroso...

Pete Best: "Não chegou a ser exatamente, porque foi como se uma bomba caísse na minha cabeça, assim, de repente. Só no dia seguinte é que tudo começou a entrar na minha cabeça, quando entendi que tinha acabado. Já era. É aí que a dor começa. Não se tem como voltar. Aquele terminou se transformando no dia mais doloroso, no sentido de que mudou a minha vida. Tive outros tempos duros, desde então. Mas aquele foi o dia que mudou todo o curso de minha vida. Eu me lembro bem. Era agosto de mil novecentos e sessenta e dois".

"Eu estive no fundo do poço, tanto quanto é possível estar.
A depressão era total"


O "Times" recontou a história há pouco tempo. Você foi a um pub beber umas cervejas...

Pete Best: "Umas? Muitas! (ri). Eu tinha acabado de falar com Brian Epstein, às 10 e meia da manhã. Um amigo estava me esperando do lado de fora. Recebi a notícia de que tinha saído dos Beatles e fui para fora. Meu amigo notou que algo diferente tinha acontecido comigo. Perguntou: "o que foi que houve?". Eu disse: "Eu saí! Não sou mais um Beatle!". Ele respondeu: "Meu Deus! Não pode ser verdade! O que é que aconteceu?" Eu disse: "Tudo o que quero fazer é tomar uma cerveja, afundar a minha cabeça!".

Fomos para um pub. Derrubamos um bocado de cerveja. Chegou um momento em que eu disse: "Ok! Vamos para casa!". Quando fui para casa é que senti a pancada. E comecei a chorar. Chorei a noite inteira. É o tipo do choque de efeito
retardado. Bem aí é que entendi: tudo tinha acabado" .

Por que Brian Epstein foi quem deu a você a notícia, e não um dos outros Beatles?

Pete Best: "Não sei. Anos depois, John Lennon disse: "Se todos nós estivéssemos presentes - eu, Paul e George - para dizer a Pete, haveria uma briga!". Se ele estava se referindo a socos na cara ou qualquer coisa assim, não sei. John sentia que Brian era o empresário. Cabia a ele a responsabilidade de fazer as coisas. "Então, nós passamos para você. Faça o trabalho sujo, Brian!". É assim que parece".

Você viu o filme da BBC sobre a vida dos Beatles? Nesta passagem, Lennon diz a Brian Epstein que você não era tão profissional quanto Ringo Starr. Aconteceu assim?

Pete Best: "Talvez os autores dos scripts tenham entrevistado as pessoas e reconstituído assim o curso do diálogo. Se Ringo era mais profissional ou se eu não era tão profissional quanto Ringo... tudo é uma alusão ao fato de eu estar no show business e à nossa habilidade como bateristas. O que aconteceu - do ponto de vista do filme realizado pela BBC e exibido na televisão - é que John instigava as decisões do grupo. O que de fato aconteceu no diálogo entre ele e Brian é difícil dizer".

Você entendeu o que aconteceu depois com John Lennon?

Pete Best: "Guardo o dia em que John Lennon foi baleado como uma lembrança viva. Eu estava no primeiro andar da minha casa. Fazia a barba para ir trabalhar. Minha mulher, Cat, estava no térreo. Eram seis e meia da manhã. Ela me disse, lá de baixo: "Pete! John está morto!". Aquilo não me alterou, porque não imaginava jamais que fosse John Lennon. Pensei que era um dos amigos ou alguém do trabalho. Perguntei: "John quem?". E ela: "John! John! Com quem você tocava nos Beatles!". Eu disse: "Estão brincando no rádio! É algum jogo sujo, alguma brincadeira estúpida que estão fazendo. Isto acontece no rádio!". Ela: "Não! A cada dois minutos, há novas notícias! Venha logo ouvir! Os rádios só falam em John Lennon!" (nesta altura, os olhos de Pete Best estão marejados).

Corri para ouvir. Cada estação de rádio trazia flashs e flashs e repetia a notícia, sempre com maiores informações. De repente, entendi, naquela manhã de dezembro: não era alguma publicidade suja. Aquele cara tinha sido brutalmente atingido! Houve quem me dissesse, depois: "Que diferença faz para você? Só porque você estava com os Beatles há tanto tempo?". Mas aquilo me chocou, porque trouxe de volta todas as boas lembranças de tudo que vivi com John, o bom tempo que vivemos juntos. Para ser honesto, eu conheci John inteiramente, não só no tempo em que vivi com ele nos Beatles. Nós fomos íntimos por quatro ou cinco anos. Um bom tempo que vivemos reunidos. A morte de John me arrasou. Não havia necessidade de algo como aquilo. Não havia razão alguma. Ele tinha voltado para o show business. Talvez o lugar seja de John e não de Paul McCartney. E ele estava lá de novo".

Você imagina por que Mark Chapmann matou John Lennon?

Pete Best: "Era alguém que tinha uma obsessão, uma fixação na morte de Lennon. Bang! Não posso acrescentar nada. Razão? Não há. Lennon fazia suas próprias coisas: tinha deixado o show business, vivia uma vida reclusa em Nova lorque. Não afetava ninguém! O que ele estava tentando era viver com uma identidade própria. Depois de alguns anos de reclusão ele decide voltar e bang! (imita o estampido de um revólver). Lennon agora não está mais lá. É algo completamente estúpido".


Há dezenas de diferentes versões sobre a convivência de Pete Best com os Beatles. Qual será a versão definitiva?

Pete Best: "Ao longo dos anos, a história desta época não tem sido contada em detalhes. Não se cobriu esta parte dos episódios entre o grupo no início da carreira: as tragédias, as escapadas e até as brincadeiras e tudo o mais. O livro que escrevi com Patrick Doncaster, "Beatle! The Pete Best Story", dá a atmosfera em Liverpool na época. E mostra Como éramos, antes de formarmos os Beatles. O livro mostra os primeiros sucessos e o que aconteceu comigo. A maior parte do que conto é sobre o início dos Beatles. É o que interessa mais (N: O livro "Beatle! The Pete Best Story" foi publicado pela Plexus Publishing Limited)

Por que você não tenta uma carreira solo, ainda hoje?

Pete Best: "Porque eu ficaria um pouco assustado! Gosto do meu trabalho atual. Preciso levar em conta uma coisa: hoje, consegui "segurança". É um mundo engraçado. Por que é que eu tenho de encarar as coisas dessa maneira? É preciso ter sorte para que dê certo voltar ao show business depois de não fazer nada por vinte anos. Eu já considerei o que uma eventual volta poderia ser. Mas não sei. Eu passaria noites mal dormidas...".


Como um ex-Beatle, o que é que você diz da música pop de hoje? É melhor do que a dos anos sessenta?

Pete Best: "O engraçado é que, vinte e tantos anos depois, os grupos de Liverpool ainda se dão bem. "Frank Goes To Hollywood" faz grande sucesso nos Estados Unidos e chega aos primeiros lugares. Durante os anos, a preferência musical tende a mudar. Hoje, há de novo uma maior influência americana nas paradas, como já não acontecia há alguns anos.

Naquela época, era fácil os grupos ingleses irem para lá, mas era difícil os americanos chegarem à Inglaterra. Eu acompanho a cena pop. A competição, hoje, é maior, assim como a diversificação da música pop. Há bandas, sintetizadores, músicas folclóricas. A variedade é grande. Ainda assim, o panorama é bom".

Mas o tempo dos grandes nomes, como os Beatles e Elvis Presley, parece que acabou...

Pete Best: "Você pode dizer o contrário. Tenho 43 anos e minha herança e minha juventude vêm dos anos sessenta, não importa o que tenha acontecido nem que aquela já não seja a música que se tem hoje. Quando ouço alguma coisa dos anos cinqüenta ou sessenta, eu me acendo (dança com as mãos, animado). Há quem diga que nunca haverá outro Elvis Presley, outros Beatles. Antes, falavam assim de Frank Sinatra. Mas pode haver um outro grupo que, vindo de algum lugar, conquiste o mundo de repente. Se será com a intensidade dos Beatles, não sei. Mas você não pode escrever que ninguém chegará lá. Porque pode haver algo como os Beatles, deixando tudo para trás e
explodindo como mega-star".

Você ainda ouve as canções dos Beatles?

Pete Best: "A gente ouve no rádio, de qualquer maneira. Tenho, na minha coleção dos Beatles, quase tudo o que o grupo fez. Tenho, principalmente, os discos em que toco com eles, as gravações todas feitas em Hamburgo (ri) e tudo o mais. Tenho cinco ou seis discos, "Love Me Do", coisas assim, o tipo de música que me lembra o som que nós fazíamos juntos, nos Beatles, não o que eles fizeram quando evoluíram para o psicodelismo, as drogas, a influência dos gurus".

Você ouve as canções de Julian Lennon?

Pete Best: "Não ouvi o primeiro disco todo, mas faixas. Quando ouvi pela primeira vez, disse: parece com o que John fazia! Minha primeira reação foi esta. Julian se baseou no estilo do pai. O tom nasal e as coisas que ele faz quando fora do palco. Acredito em Julian. Você não pode dizer que ele apenas pegou carona no pai. Não é o caso de dizer: morreu John, chegou Julian! Entre uma coisa e outra, há um espaço de quatro anos. Mas Julian veio com um som que lembra John. Boa sorte para ele!".

Uma velha questão: Beatles ou Rolling Stones? Com quem você fica?

Pete Best: "Do meu ponto de vista, Beatles. Não estou dizendo simplesmente porque toquei com os Beatles. Mas o que ocorreu é que são dois grupos que surgiram simultaneamente, com dois estilos diferentes. Há os fanáticos pelos Beatles e os fanáticos pelos Rolling Stones. Ao longo de todos estes anos, os Rolling Stones vêm fazendo, ainda, excursões e shows ao vivo. O público ainda pode vê- los. Se os Beatles ainda estivessem juntos, poderiam estar fazendo todas essas coisas? Não sei. Gosto dos Rolling Stones, mas, entre os dois, eu escolheria os Beatles!".

O livro “Beatles-In Their Own Words” traz a seguinte declaração de Ringo: “Quando Pete Best ficava doente, eu assumia o posto”. É verdade?

Pete Best: "Fica até parecendo que eu era urna pessoa doente... Ringo, quando fala assim, provavelmente se baseia em dois ou três casos, no máximo. Urna vez foi numa apresentação no Cavern Club. A minha ausência não chegou a causar grandes inconvenientes para eles, porque havia outros bateristas. Outra, quando eu tinha negócios para resolver e não podia deixar de fazê-lo. Não pude tocar. Quem tocou foi Ringo, no meu lugar. E, finalmente, houve um dia em que eu estava lmpossibilitado de atuar, porque tinha pegado uma gripe forte. Não se pode dizer que eu vivia doente. Pelo contrário. Eu era saudável. É errado dizer coisas assim. Quando não pude tocar e fui substituído por ele não foi porque estivesse doente, mas porque tinha outros compromissos e ele, pelo contrário, estava disponível naquele dia".

Uma das histórias sobre John Lennon é que ele vivia à procura de uma mãe - e afinal encontrou uma na figura de Yoko Ono. Naquela época, em Liverpool, você notava esse lado da personalidade de Lennon?

Pete Best: "Nós tínhamos consciência. Mas John jamais falava sobre a mãe e a maneira trágica como ela foi morta, num acidente. Ele vivia com uma tia, chamada Mimi. Mas se dizia que a raiva, a amargura e a dor que ele suprimia e guardava dentro de si o levaram a fazer coisas loucas. John não falava sobre essas coisas, porque não queria. Guardava tudo consigo. A agressividade, a ansiedade e a dor teriam de ser externadas de alguma maneira. É esta a razão de alguns atos cometidos por John".

Yoko, pelo que você sabe, teve influência sobre a dissolução dos Beatles?

Pete Best: "John tendia a se apaixonar demais pelas mulheres. Yoko parecia significar estabilidade para ele. Era um outro mundo para John. Eles se trancaram e encontraram a felicidade. Qual terá sido a influência de Yoko para fazer John retornar? Quem sabe? Mas há ali, em Yoko, alguma coisa que John encontrou e o influenciou".

Como você se imagina quando tiver 64 anos?

Pete Best (rindo da referência à música "When I'm Sixty Four"): "Quando eu tiver sessenta e quatro anos? Terei algumas rugas a mais. Bem mais cabelos brancos. Só espero ser como sou hoje. E espero não mudar tão rapidamente. Aos sessenta e quatro anos, tentarei ser exatamente como sou, neste caminho...".


Você não pensa, afinal, em sair de Liverpool?

Pete Best: “A maior parte da minha vida eu passei em Liverpool. Meus melhores amigos estão em Liverpool agora. Minha vida, minha casa. Para ser honesto, não se criou nunca uma situação em que eu pudesse dizer: "Ok, deixe-me sair de Liverpool e ir para um outro lugar...". Se tivesse acontecido, não sei se teria me mudado, se teria ficado ou o que poderia ser. É algo que eu teria de decidir pessoalmente, se tivesse acontecido".

Que tipo de informação você tem sobre o Brasil?

Pete Best: "A única informação que tenho sobre a música brasileira é a que ouço no rádio e vejo na TV. São cenas de festivais em que aparecem, também, tangos e rumbas. Há um grupo - parece que do Brasil - formado por rapazes que, quando completam 16 ou 17 anos, são substituídos..."

O grupo não é do Brasil. É da Costa Rica. São os "Menudos" ...

Pete Best: "Perdoe-me. A música brasileira produz ritmos fortes, Nós conhecíamos, antes da Beatlemania. Há uma grande influência da América Latina. Os ritmos que estão por cima hoje se originam daí. Músicas que só agora aparecem sofreram influência destes ritmos - e os autores capitalizaram a influência. Gosto da música latino-americana e brasileira. Gostaria de ouvi-Ia".

Você esperou vinte e dois anos, até resolver dar um depoimento pessoal, em forma de livro e entrevistas como esta, sobre o início dos Beatles. Por que tanto tempo?

Pete Best: "Quando eu estava no show business, depois de ter saído dos Beatles, todo mundo pedia que eu escrevesse um livro. Eu dizia que não. Ainda não era tempo. Não queria ser visto como se quisesse me aproveitar da onda dos Beatles. Eu tinha meu orgulho, afinal. Então, me diziam: "Ok, mas ganhe dinheiro com essa coisa toda!", Eu insistia que não. Era preciso esperar. O momento certo de dizer tudo chegaria. O que aconteceu é que, durante todos estes anos, ao ler os livros e biografias escritas sobre os Beatles, notei que aquele período específico da nossa vida, logo antes de os Beatles se tornarem superstars, não foi coberto suficientemente com todos os detalhes reais.
Então, decidi: é hora de contar. Se não, jamais a história seria contada tal como ocorreu".


Há versões erradas sobre o início dos Beatles, em Liverpool?

Pete Best: "Há. As versões que existem dão um par de informações sobre o que aconteceu. "Foram para a Alemanha, voltaram e - de repente - se tornaram mega-stars. A Beatlemania surgiu assim!" - é o que escrevem. Não foi assim que aconteceu. É esta a razão por que decidi escrever um livro e falar agora. Só assim as pessoas teriam informação sobre as tragédias, as paixões, as brincadeiras e o tipo de vida que levávamos.
Fui, por dois anos, um Beatle. E o que digo: o que aconteceu ninguém pode levar de minhas lembranças.
Tenho minha casa em West Derby, Liverpool, não longe de onde minha mãe mora e da sede do já extinto Casbah Club. Por anos e anos, minhas duas filhas - Beba e Bonita -, hoje adolescentes, ficaram sem saber que eu tinha sido um Beatle. Isto não significaria nada para elas, de qualquer maneira. Somente depois, na escola, quando todos os colegas começaram a perguntar se era verdade que o pai das duas se chamava Pete Best, o ex-Beatle, é que eu contei tudo a elas.

Todas as lembranças dos bons e maus momentos são parte da minha vida. Vão ser sempre. Admiradores dos Beatles e membros de fãs-clubes espalhados por todas as partes do mundo, mas particularmente da América do Norte e do Japão, ainda hoje chegam a Liverpool e vão até Hayman's Green ver o que era o Casbah Club.
Disse em meu livro : de vez em quando, vou até lá e deixo as lembranças tomarem conta de mim. Parece que o tempo volta atrás. Ouço os sons e as risadas dos velhos tempos. Parece que vejo de novo o rosto dos músicos. Sozinho no Casbah, toco na bateria do meu irmão mais novo, Roag. Fecho os olhos para sentir toda a atmosfera de antes. Quando estou ali, no meu posto de baterista, no Casbah hoje deserto, a música e as lembranças se perdem numa nuvem. Para dizer a verdade, não seria difícil remodelar o Casbah e restaurar a antiga glória. Mas jamais tudo seria como antes".

(Entrevista gravada em Londres, 08/03/1985)

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Posted by geneton at 08:06 PM

junho 11, 2007

SID WATKINS, O MÉDICO DA FÓRMULA-UM

SID WATKINS, O MÉDICO QUE SOCORREU AYRTON SENNA NA PISTA, DESCREVE OS MINUTOS FINAIS DO CAMPEÃO : "SENNA DEU UM GRANDE RESPIRO. ESTAVA VIVO QUANDO FOI LEVADO PARA O HOSPITAL. O CORAÇÃO ESTAVA BATENDO"


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LONDRES - Quando uma nova temporada de Formula-Um começa, como agora,um personagem importante entra nas pistas, mas dificilmente chama a atençãoo do publico,porque nao vive frequentando as telas de TV ou as paginas dos jornais,ao contrario do que acontece com as superestrelas do espetaculo - os corredores.Quase nunca reconhecido,este personagem e’ uma peca fundamental na imensa engrenagem que move o automobilismo : chama-se Sid Watkins. E’ o diretor-medico da Formula-Um - o homem encarregado da dificil missao de dar os primeiros socorros aos corredores,quando o pior acontece. Neurocirurgiao ingles, Watkins e’ testemunha ocular de momentos dolorosos na historia da Formua-Um,como a morte de Ayrton Senna.

A historia completa do mais dramatico fim-de-semana da Formula-Um - em maio de 1994,no Grande Premio de San Marino,no circuito de Imola,na Italia - ainda nao pode ser contada : presidente da Comissao Medica e do Comite de Especialistas em Seguranca da Federacao Internacional de Automobilismo(FIA),Watkins diz,nesta entrevista,que houve, antes da corrida,discussoes que ate' hoje permanecem ''confidenciais''.

Autor do livro ''Life at The Limit'' - publicado no Brasil pela editora Edipromo,com o titulo de ''Vida nos Limites'' - o presidente da Comissao Medica revela que fez um apelo para que Senna nao disputasse a corrida em Imola.Um dia antes de morrer em Imola,Senna chorou no ombro do medico quando soube da morte do piloto austriaco Roland Ratzenberger.

O neurocirurgiao confessa que,no momento em que socorria Senna na pista,teve a ''estranha sensacao'' de que a alma do piloto ''tinha partido''.

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ANTES DA CORRIDA FATAL,
UMA CONVERSA SECRETA

O senhor diz que,durante o briefing dos pilotos antes da corrida em Imola,em l994,discutiram-se assuntos que devem permanecer ''confidenciais''.Que assuntos sao estes,exatamente ?

Watkins : ''As discussoes normalmente sao sobre o numero de voltas,problemas especificos na largada e problemas na primeira curva - o que pode variar de acordo com a pista.Temos discussoes tambem sobre a velocidade,assim como o que acontecera' numa primeira e numa segunda largada,se for o caso..Assim,os pilotos saberao o que podera' acontecer naquele circuito''.

Mas houve discussoes confidenciais antes da corrida em Imola ?

Watkins : ''Houve,sim''.

Havia algo de especial em relacao ao circuito de Imola naquele dia,em relacao 'a seguranca ?

Watkins : ''Nossa preocupacao em relacao ao circuito de Imola nao era maior do que antes.Posso dizer que nao houve discussoes previas sobre a curva de Tamburello,por exemplo.O que havia,antes do inicio da corrida,era uma tristeza que se abateu sobre todos depois da morte de Ratzenberger''.

O senhor nao quer dizer que tipo de discussoes confidenciais houve antes da corrida de Imola no dia 1 de maio de l994 ?

Watkins : ''Nao''.


O CONSELHO QUE O MEDICO DEU,MAS SENNA
NAO OUVIU : E’ HORA DE DEIXAR AS PISTAS


O que e' que o senhor disse a Ayrton Senna antes da c corrida de Imola,em meio ao luto provocado pela morte do piloto austriaco Roland Ratzenberger ?

Watkins : ''Ayrton Senna chorou no meu ombro. Eu disse a Senna,no sabado,que seria uma boa ideia se ele nao corresse em Imola no dia seguinte,primeiro de maio.Numa conversa a sos com Senna,eu disse que ele ja' tinha feito o suficiente.Ja' era tres vezes campeao do mundo.Eu disse a ele : ''Nos sabemos que voce e' o piloto mais rapido e mais corajoso.Voce ja' nao precisa provar nada ao mundo.Se voce deixar a Formula-Um agora,eu tambem deixarei.Nos dois,entao,poderemos ir pescar''.

Por que o senhor pediu a Senna que ele nao disputasse a corrida ?

Watkins : ''Porque Senna estava bastante chocado com o acidente fatal ocorrido em Imola no sabado''.

Que resposta ele deu ao senhor na hora ?

Watkins : ''Quando a gente fazia uma pergunta dificil a Senna,ele nao respondia imediatamente.Nao importava que pergunta era.Se a pergunta exigisse uma avaliacao antes da resposta,Senna demorava-se pensando. Antes de Imola,quando eu pedi que ele nao corresse,Senna olhou por cima do meu ombro,como se estivesse mirando o infinito.Nao estava olhando para mim nem para nada.Entao,ele se virou para mim e disse : ''Sid,ha' coisas sobre as quais nos nao temos escolha.Eu tenho de ir adiante''.

‘’TIVE A SENSACAO DE QUE A ALMA
DE SENNA TINHA IDO EMBORA’’


Num texto que escreveu sobre o acidente com Senna,o senhor diz que e' ''totalmente agnostico'' ,mas teve a impressao de que ''a alma de Senna o deixou ali,no chao da pista de Imola,no momento em que o senhor o socorria.O que e' que deu ao senhor a impressao de que Senna perdeu a alma na pista,em Imola ? Senna estava clinicamente morto ali ?

Watkins : ''Senna deu um grande suspiro.Seu rosto estava tranquilo.Parecia em repouso.Tive,ali,no momento em que o socorria,a estranha sensacao de que a alma de Senna tinha ido embora.Nao posso explicar o que senti''..

Ainda ha' controversias no Brasil sobre onde Senna morreu : se na pista ou se no hospital,para onde foi levado de helicoptero.Onde ele morreu ?

Watkins : ''Ayrton Senna morreu no hospital''.

O senhor tem certeza ?

Watkins : ''Totalmente .Senna ainda estava vivo quando foi levado para o hospital.Quero dizer : clinicamente vivo.O coracao estava batendo.Senna ainda respirava. A minha curiosa reacao foi que me fez sentir que ele nao poderia sobreviver.Mas eu nao suportava ficar ali por um tempo maior.Porque eu sabia que ele ia estar clinicamente morto em pouco tempo''.

AYRTON SENNA IGUALARIA O RECORDE
HISTORICO DO ARGENTINO FANGIO


A ''estranha sensacao'' que o senhor teve foi de natureza pessoal - e nao medica ?

Watkins : ''Exatamente.A explicacao correta e' esta.O que senti foi algo pessoal ,sobre o qual eu nunca tinha pensado antes.Talvez por que nos fossemos amigos que se amavam''.


O senhor sabia desde o inicio que ele iria morrer de qualquer maneira em consequencia do acidente ?

Watkins : ''Sim''.


Alain Prost e Juan Manoel Fangio ganharam um numero maior de titulos que Ayrton Senna.Que posicao Senna ocupa na historia da Formula-Um ?

Watkins :''Tanto Fangio quanto Prost tiveram um periodo maior de atuacao.Porque nao morreram correndo.Se Senna tivesse sobrevivido,ainda disputaria pelo menos outras quatro temporadas de Formula-Um.Quando ele morreu,tinha apenas 34 anos.Eu diria que ele levantaria dois outros titulos mundiais.Igualaria,entao,o recorde batido por Fangio - que foi cinco vezes campeao''.


Quando vai a uma corrida ,hoje,para trabalhar,o senhor ainda teme intimamente pela vida dos pilotos ?

Watkins(Depois que algum silencio): ''Sim.

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(1997)

Posted by geneton at 11:19 PM

junho 10, 2007

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

UMA AULA DO POETA QUE COMBATIA A "EMOÇÃO FÁCIL" NA POESIA


João Cabral de Melo Neto abre fogo contra os poetas que só sabem provocar “saudade, melancolia e tristeza”! – Por que ele é inimigo da emoção fácil – O autor de ‘Morte e Vida Severina’ garante: “A popularidade é uma coisa terrível!” – Por que ficou traumatizado com a música – O Hino Nacional e o Hino de Pernambuco são as duas únicas músicas que ele consegue distinguir de ouvido! – Um julgamento rigoroso: “Morte e Vida Severina não me satisfaz...” As memórias do jogador de futebol: a diretoria do Santa Cruz foi pedir à mãe de João Cabral a liberação do passe do craque!


O titular da cadeira número 37 da Academia Brasileira de Letras é um caso único de jogador de futebol que deu certo como diplomata e se consagrou como poeta e, seguramente, o único acadêmico que pode ostentar glórias tão díspares - como a de ter sido campeão pelo Santa Cruz Futebol Clube e autor dos versos de um clássico da literatura brasileira, o poema "Morte e Vida Severina". João Cabral de Melo Neto é um exemplo em carne e osso de que a força física do futebol pode conviver sem grandes traumas, em uma só pessoa, com um extremo apuro intelectual.

O jogador já se aposentou, é claro. Mas o poeta continua entregue a uma difícil, suada e elegante batalha com as palavras. João Cabral de Meio Neto (Recife, 06 de janeiro de 1920) é, acima de tudo, rigoroso com o que escreve. Trabalha as palavras com a precisão de um médico na mesa de cirurgia. Despreza as emoções fáceis. Não quer nem ouvir falar de poetas e escritores que não tenham "interesse intelectual'. E fala da própria obra com uma frieza que chocaria os não iniciados.

A longa carreira diplomática - com passagens pela Espanha, Inglaterra, França, Suíça, Paraguai, Senegal, Equador, Honduras e, finalmente, Portugal - deixou, no comportamento do poeta, traços de uma solenidade que ele mantém em qualquer situação. De férias, em casa, ele dá entrevista metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola. Uma vez, na casa de um irmão, na praia, combinou com um repórter uma entrevista para as dez e meia da manhã. A circunstância de estar de férias de frente para o mar não lhe alterou o gosto de cumprir os horários com rigor. O repórter chegou vinte minutos depois da hora marcada. João Cabral não perdeu a chance: "Você chegou com uma pontualidade nada britânica... " - foi a primeira saudação que ele pronunciou. Faz tempo que a cena ocorreu. Mas João Cabral não mudou.

Abatido por uma hemorragia gástrica que o obrigou a uma temporada num hospital no Rio de Janeiro e ainda profundamente tocado pela viuvez recente, o poeta não perde a elegância do diplomata nem o rigor do intelectual vigilante quando começa a falar diante do gravador ligado.
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O fato de conviver com outros idiomas durante anos a fio, como é o caso do senhor, traz alguma dificuldade para o ato de escrever?

João Cabral: "É uma das desvantagens do escritor que é diplomata e vive no estrangeiro. É difícil viver vinte e quatro horas falando uma língua e escrever em outra. Quando Vinícius de Moraes era cônsul em Los Angeles, Gabriela Mistral era cônsul do Chile : ela disse ao Vinícius que ia voltar para o Chile porque estava perdendo o espanho. Veja só: ela encontrava dificuldades para escrever em espanhol vivendo em Los Angeles. É uma desvantagem que o diplomata tem. O diplomata de carreira - não o diplomata ocasional - ou pára de escrever ou tem uma obra pequena. O caso de Aloísio de Azevedo é típico. Depois que foi nomeado cônsul, não publicou mais nenhum romance!".

O senhor se lembra de algum caso em que a palavra em português tenha fugido durante esse período todo no exterior?

João Cabral: "Ah, claro! e comum, inclusive, a pessoa abrasileirar uma palavra estrangeira, coisas que, às vezes, enriquece o vocabulário do autor, mas, outras vezes, você tem de substituir, porque não dá...".

Por que o senhor tem tanta prevenção contra a subjetividade? Há um conceito mais ou menos generalizado de que a poesia é uma manifestação extremada da subjetividade...

João Cabral: "Há uma diferença. Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras pedra ou faca ou maçg, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que tristeza, melancolia ou saudade. Mas é impossível não expressar a subjetividade. Então, a obrigação do poeta é expressar a subjetividade mas não diretamente. Ele não tem que dizer "eu estou triste". Ele tem é que encontrar uma imagem que dê idéia de tristeza ou do estado de espírito - seja ele qual for - por meio de palavras concretas e não simplesmente se confessando na base do "eu estou triste".

Qual é a relação do senhor com a escrita, no dia-a-dia? O senhor diz que tem horror a trocar cartas. Quer dizer, então, que o senhor evita escrever?

João Cabral: "O negócio da carta é o seguinte: eu não gosto - realmente - de escrever carta. É um resultado de minha vida de diplomata. Sou diplomata desde fins de 45. Já faz quarenta anos. Quando vive no exterior, você tem de fazer tudo por meio de carta. É uma das coisas que leva o sujeito a acabar escrevendo cartas, porque em todos negócios e todas as coisas que ele tem para fazer, ele precisa escrever - para a família, para um amigo, o que seja.

Em segundo lugar, não gosto de carta. E tem tanta gente que escreve até diário... Para mim, escrever o meu diário é uma coisa inconcebível. Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo. Em carta, você acaba falando de si próprio. É como num diário. Se você está lá fora, isolado, e escreve uma carta para um amigo, é inevitável que você fale de seus estados de espírito - e dessa maneira errada que é falar do estado de espírito descrevendo-o. Agora, quanto a escrever, eu estou, permanentemente, tomando notas para poemas. Não tenho nenhum poema acabado depois do meu último livro ("Agrestes", 1985). Tenho notas para poemas. Um dia trabalharei nelas. Ou não. Se estou numa fase com menos trabalho e menos preocupação, começo, então, a trabalhar aquelas notas que tenho".

Parece que o senhor não tem nenhuma ânsia de escrever, esta é que é a verdade...

João Cabral:" Ah, não tenho..."

O senhor pode anotar um poema e guardar durante anos, esperar...

João Cabral: "E nunca escrever, também. Outras vezes, descubro uma nota anterior, elaboro e faço um poema, naturalmente".

O senhor diz que a poesia que faz não é para ser amada. Não é porque o senhor não quer ou o senhor gostaria que suas poesias fossem amadas?

João Cabral: "Não gostaria. O escritor corre o grande risco de se baratear. A popularidade é uma coisa terrível, nesse sentido. A popularidade acaba cercando o escritor e o artista de um mundo artificial e um interesse inteiramente artificial. O sujeito acaba fazendo aquilo que sente que o público gosta, em vez de fazer aquilo que acha que deve ser feito. Eu lembro de quando Manuel Bandeira fez oitenta anos. Havia quase manifestações populares, nas homenagens que fizeram a ele. Mas você acha que aquele pessoal algum dia leu Manuel Bandeira?".

O senhor se considera, então, o quê? Um poeta popular ou um poeta conhecido? O senhor é conhecidíssimo, mas deve achar que só conhecem o nome João Cabral, não a obra ...

João Cabral: "É difícil dizer. O êxito teatral de "Morte e Vida Severina" é que tornou o meu nome conhecido. Mas não creio que minha poesia seja popular".

O senhor sempre diz que não gosta de fazer poesia dada a emoções porque o que se chama comumente de emoção é algo feito à base de um sentimentalismo fácil e barato. O senhor diz, pelo contrário, que "emoção é outra coisa". Mas nunca ficou exatamente clara a definição que o senhor tem de "emoção". Dá para explicar - de uma vez por todas?

João Cabral: "Minha definição de emoção não é nada de especial. É o que todos chamam de "emoção". O que acontece é que me recuso a explorar essa coisa diretamente. O interesse do poeta não é descrever suas emoções e criar emoções, é criar um objeto - se é poeta, um poema; se é pintor, um quadro - que provoque - emoções no espectador. Mas não explorar nem descrever a própria emoção. Quando digo que sou contra emoção é exatamente neste sentido: o de usar a minha emoção para fazer com ela uma obra, descrevê-Ia primariamente e construir, com ela, um poema".

Quer dizer, afinal, que o senhor não é exatamente contra a emoção: é contra a exploração da emoção...
João Cabral: "Exatamente! (Faz ar de alívio, como se a charada estivesse resol- vida). Quanto a esse descrever da emoção e da sentimentalidade, a grande maioria da poesia que se escreve no mundo é assim. A obrigação do poeta, repito, é criar um objeto, um poema, que seja capaz de provocar emoção no leitor".


O que é que o senhor chama de "emoção intelectual"? Já vi o senhor usando esta expressão..:

João Cabral: "Um grande crítico americano uma vez disse o seguinte de uma poetisa americana, Edna Miller: que ele não gostava da poesia que ela fazia porque não tinha interesse intelectual. É nesse sentido que eu digo. Você pode ver perfeitamente quais são os escritores que têm um interesse intelectual e quais são os que não têm. Confesso que o escritor que não tem interesse intelectual não me interessa.

A mim, me interessa enormemente a poesia de Joaquim Cardozo, mas nunca me interessou a poesia de Emílio Moura - de Minas Gerais. Eu sinto que não tinha interesse intelectual. Não só a poesia de Emílio Moura, mas a grande maioria dos poetas brasileiros. Aliás, dos poetas brasileiros, não, mas do que se chama no mundo todo de poesia. Um homem de mediana inteligência não vê interesse intelectual naquilo. Tenho a impressão de que pode ser um defeito meu. Mas confesso. A atividade intelectual é uma coisa que seduz. Vivo para ela. Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa. Ora, se tenho minhas emoções, para que vou buscar emoções semelhantes numa outra coisa?".
Quando o senhor se auto-intitula um "poeta artificial", o senhor se refere ao trabalho quase artesanal que tem com a poesia?

João Cabral: "Não apenas. Os assuntos que uso na poesia são "tirados pelos cabelos", como se diz. Fiz um poema sobre o ato de catar feijão. Você não imagina Alfonso de Guimarães, o pai, grande simbolista, fazendo um poema sobre o ato de catar feijão..."

O resultado poético do trabalho do senhor é obviamente sofisticado, sob o ponto de vista intelectual. Isso contradiz a intenção de fazer uma coisa simples? A que é que o senhor atribui esta defasagem entre a intenção de fazer uma coisa simples e o resultado - que é indiscutivelmente sofisticado?
João Cabral: "A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. e difícil traduzir as coisas de que falo de uma maneira acessível a todo mundo. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso".


"Minha luta é tentar botar coisas complexas numa linguagem simples.
Geralmente, fracasso"

Além de dizer que é um poeta artificial, o senhor também se considera um poeta não espontâneo. Acontece que estes dois conceitos se chocam de novo com o conceito generalizado de que a poesia é algo não artificial e espontâneo...

João Cabral: "Exatamente. Valerie dizia que tudo que vinha a ele espontaneamente era eco de outra pessoa! Ele só acreditava numa coisa que ele fizesse com rigor intelectual, porque durante este trabalho rigoroso ele eliminava tudo o que, nele, era dos outros. O homem acha, em geral, que tudo o que se faz artificialmente é falso e não diz nada dele. Vejo exatamente o contrário: o que você faz espontaneamente é eco de alguma coisa que você leu, ouviu ou percebeu de qualquer maneira".

A popularidade - é o que o senhor diz - pode prejudicar o poeta. A popularidade prejudicou Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira?

João Cabral: "Não. Vinícius, no fim da vida, dedicou-se inteiramente à poesia popular, à música popular. Agora, Manuel Bandeira e Carlos Drummond são sujeitos de tal integridade que não foram corrompidos pela popularidade. Nem todo mundo tem integridade para resistir. Em geral, o sujeito acha bom e barateia a produção para ser agradável. Baixa o nível para ser agradável..."

O poema que é tido como marca registrada do João Cabral de Melo Neto é o 'Morte e Vida Severina'. E é justamente este que o senhor chama de "poema fracassado". Por que um julgamento tão cruel?

João Cabral: "Nunca chamei de fracassado. "Morte e Vida Severina" foi um poema que escrevi: não trabalhei. Eu escrevi a pedido de Maria Clara Machado e não trabalhei como trabalho em outras coisas minhas. Eu sinto que é um poema que não me satisfaz. Mas foi um poema bem levado para o teatro e a televisão. Ficou popular. Mas sinto: é um poema que não trabalhei, porque eu tinha um prazo para escrevê-lo".

O 'Morte e Vida Severina' é considerado uma obra-prima. O senhor, então, não assina embaixo desse julgamento...

João Cabral: "Não! Dentro de minhas coisas, acho "Morte e Vida Severina" a menos realizada. E a mais escrita na perna...

É frustrante saber que os Severinos e as Severinas da vida real não vão ler o 'Morte e Vida Severina'?

João Cabral: "Quando escrevi "Morte e Vida Severina", tinha a impressão de que seria uma coisa tão popular quanto os romances do Nordeste, os romances de cordel. Quando o livro saiu, vi que quem me elogiava eram os intelectuais. Eu lembro do entusiasmo de Vinícius de Moraes. Eu disse: "Vinícius, não escrevi para você! Para você, escrevi outras
coisas!". Eu tinha a impressão de que estava escrevendo aquele poema para o povo. Quase me danei...".

A condição de intelectual e poeta num país como este - em que a grande maioria da população não tem acesso à produção intelectual - é frustrante?

João Cabral: "Pelo meu temperamento, nunca gostaria de ser um escritor popularíssimo. O fato de não ser popular me dá tranqüilidade. Não vivo de escrita. Se vivesse de escrever, gostaria de ser popular, porque os direitos autorais seriam grandes. Mas, como não vivo de escrever, a falta de popularidade não me frustra. Ao contrário".

Um intelectual deve falar em nome do povo?

João Cabral: "O que é que você quer dizer?"

O senhor acha que o intelectual deve ser porta-voz dos anseios populares?

João Cabral: "Se ele está identificado com os anseios populares e se ele acha que é capaz de expressar os anseios populares, claro. Mas é preciso que ele esteja identificado com os anseios populares - e não com o programa de um partido político - que dura dois anos! Eis o negócio. Você fala em povo. Mas o que é povo? O que é o povo brasileiro? O que é o povo de qualquer país? É uma quantidade enorme de pessoas, com interesses contraditórios. Como falar em nome do povo? Você fala em nome de uma classe, em
nome de uma idéia - que pode estar no povo".

Quando o senhor estava em Barcelona, leu numa revista que a expectativa de vida no Recife era menor do que na Índia e se sentiu profundamente chocado. Depois, o senhor disse que deveria escrever algo denunciando...

João Cabral: "Eu escrevi "Cão Sem Plumas", já disposto a não escrever mais nada na minha vida".

O senhor acha, então, que o poeta deve reagir a estas agressões da realidade?

João Cabral: "Não sei se deve reagir. Eu reagi. Agora, se todo mundo é capaz de reagir ou se todo mundo deve reagir, é um problema que deixo a cada um".

Paul Eluard dizia que a função do artista é "dar a ver". Qual é a diferença entre o "dar a ver" e a denúncia?

João Cabral: "Eluard chamou de "Dar a Ver" um livro de poemas que ele fez sobre os pintores. Quando digo "dar a ver" é porque a minha poesia, em primeiro lugar, é mais visual do que musical. Em segundo lugar, digo "dar a ver" porque o poeta deve mostrar realidades sem tomar partido. Você mostra a realidade. Cada pessoa que veja como quiser. Depois de "Morte e Vida Severina", eu não botei no fim algo como "Façam assim!". Não apresentei solução, porque esta não é função do artista. A função do artista é expressar a realidade. Os administradores, os políticos, quem seja, que resolvam o que há de injustiça nessa realidade. Não é obrigação do artista".
O Brasil, hoje, como país, satisfaz o senhor? O país melhorou?

João Cabral: "Durante o ano de 1986 foram tomadas boas medidas. Tenho esperanças nelas. O negócio é que o mundo é complicado. Você pergunta a um francês... Ele votou no Partido Socialista na eleição de François Miterrand e imaginou que a França fosse melhorar. Depois, os socialistas perderam a maioria no Congresso. Isso não é uma coisa permanente. O Brasil está numa boa fase. Acredito que os políticos, os administradores estão querendo resolver certos problemas. Não quer dizer, no entanto, que daqui até o fim do mundo o Brasil tenha resolvido os seus problemas. Em primeiro lugar, porque estes homens podem mudar mas, depois, pode vir uma orientação diferente".

O senhor tem aversão total à música; só conhece de ouvido o Hino Nacional e o Hino de Pernambuco. De onde é que vem, afinal, esta aversão à música? Qual é a lembrança mais remota que o senhor tem desse horror à música?

João Cabral: "Não tenho nenhum ouvido musical. Você pode tocar uma música conhecidíssima. Eu não distinguirei uma da outra! O que lembro é que, desde menino, eu era o filho desentoado. Já no coro do Colégio Marista, mandavam que eu fingisse que estava cantando, mas não cantasse, porque saía tudo desentoado.
Você pode não ter ouvido musical, não saber cantar e, no entanto, gostar de música, a chamada música clássica.

Mas vou dizer uma coisa que aconteceu comigo. Tive minha infância e adolescência no Colégio Marista. Nós éramos obrigados a uma missa semanal. Era uma missa cantada. Nós éramos obrigados a ir diversos dias à Igreja, para ouvir canto sacro. O que estragou um possível gosto meu pela música foi a música religiosa que me era imposta, quando eu era menino e adolescente. A música significava, para mim, tédio. Eu ficava naquele banco de colégio ouvindo aquela música de órgão, aqueles sujeitos cantando... E era incapaz de me concentrar naquilo. Ficava pensando em outra coisa. A música religiosa extinguiu em mim qualquer possível futuro em música".

Depois desse trauma de infância, o senhor, então, não conseguiu ter interesse em música...

João Cabral: "Isso estragou até a minha capacidade de atenção. Se há uma coisa que me dá sofrimento é um concerto. De vez em quando, sou obrigado a ouvir um. Ir a um concerto é um inferno para mim. Você pode dizer o seguinte: "Eu estou impondo a este infeliz duas horas de sofrimento"... E essa coisa estragou minha capacidade de atenção auditiva. Quando estou conversando, sigo o que a pessoa diz. Mas essa coisa de rezar tantas vezes por dia e a música no colégio estragaram a minha capacidade de ter atenção para uma coisa que me entra pelo ouvido. Outro sofrimento é ir a uma conferência e ouvir um discurso. Sou incapaz de compreender. Fico pensando noutras coisas e não no que o conferencista diz. De repente, volto para o que ele está dizendo; sou até capaz de entender uma ou duas frases, mas minha atenção se perde outra vez. Fico como uma pessoa que está nadando debaixo do mar e de vez em quando sobe para respirar. Tenho a impressão de que estragaram a minha capacidade. Quando quero entender alguma coisa, leio".

O pior de tudo é que o senhor, como cônsul e embaixador, é obrigado, por dever de ofício, a ouvir discurso...

João Cabral: "Claro! De concerto eu fujo. Mas, numa solenidade, você não pode fugir. Eu confesso: o sujeito está falando e eu pensando noutra coisa... Sou incapaz de me concentrar numa conferência ou num discurso".

Naquele tempo das rezas no Colégio Marista que idade o senhor tinha, exatamente?

João Cabral: "Dos oito aos quinze anos. Era no Recife. Primeiro, no Colégio São Luís - que é Marista também -, em Ponto Uchoa. Depois passamos para o Colégio Marista, na avenida Conde da Boa Vista, no centro da cidade".
Que relação o senhor tem com Pernambuco, hoje? A presença de Pernambuco na poesia que o senhor escreve ainda é forte. Há, no livro "Agreste", várias passagens sobre Pernambuco - e particularmente a Zona da Mata.

João Cabral: "Eu saí de Pernambuco com vinte e dois anos, na véspera de fazer vinte e três. Da primeira vez que saí de Pernambuco, passei onze anos sem ir até lá. Eu saí em 1942 e voltei em 1953. Mas nunca superei o fato de ser obrigado a viver fora de Pernambuco. Sempre dou um pulo lá, embora Pernambuco seja bem diferente do que eu conheci. O Recife, então, está inteiramente mudado. Em todo caso, volto sempre. Toda oportunidade que tenho vou por lá. A gente não pode dizer o que é que vai falar no futuro. Mas tenho a impressão de que a gente escreve sempre sobre as impressões da infância e da adolescência. Nesta época, o homem é mais sensível. Grava mais as coisas. Então, forçosamente, nunca poderei me livrar dessa impressão de Pernambuco sobre mim. Imagino que ela continuará".

Onde é que o João Cabral poeta estará no futuro? O senhor deve abandonar a carreira de diplomata em 1990...

João Cabral: "Com a nova lei, tenho a impressão de que já devo me aposentar em 1987. Não creio que vá viver em Pernambuco. Gostaria, mas acontece que - dos meus cinco fIlhos - quatro moram no Rio e uma filha em Honduras. Quando me aposentar, irei morar em Petrópolis, porque estarei perto deles e ao mesmo tempo não estarei no Rio. É uma cidade que não me agrada nada. Nunca me agradou".

O que é que assusta o senhor no Rio de Janeiro?

João Cabral: "As distâncias, o movimento, o tráfego e o calor. É aquele calor desagradável... O calor aqui no Rio é abafado. O de Pernambuco é um calor ao ar livre. Até há um poema de Manuel Bandeira: "Vamos viver de brisa”. Faz calor no Nordeste, mas lá existe brisa. O calor do Rio é um calor sem brisa".

O senhor acha que, quando se aposentar e se dedicar somente à poesia e à literatura, essa relação acidentada que o senhor tem com o ato de escrever vai ser, afinal, pacificada?

João Cabral: "Eu estou com sessenta e seis anos. Escrever poesia me é difícil. Não sei se, nessa idade, ainda terei coragem de enfrentar o trabalho de um novo livro de poemas. Imagino, em minha aposentadoria, ter uma casa agradável em Petrópolis. Eu me imagino lá fazendo aquilo que gosto de fazer: não sair de casa. Detesto sair de casa. Em segundo lugar, ler. Neste negócio, sou caseiro. É um traço que, talvez, eu tenha puxado de minha mãe. Quase não vi minha mãe sair de casa. Ela ficava meses e meses e meses sem sair de casa. Não visitava nem os filhos. Os filhos é que iam visitá-Ia, porque ela não gostava de sair de casa. Eu sempre fui de ficar em casa. Com a idade, este traço vem se agravando cada vez mais".

O fato de levar uma vida mais descansada, sem compromissos sociais, vai acalmar esta relação do senhor com o ato de escrever - que é algo torturante...?

João Cabral: "Não. Eu escrevo com dificuldade. Mas, a mim, não me irrita só escrever com dificuldade. Se, um dia, eu escrever com facilidade deixarei de escrever de vez. A facilidade não leva a nada. Você vê, por exemplo, em matéria de futebol. A seleção brasileira jogou mal mas jogou melhor contra a Espanha. Por quê? Porque tinha um adversário forte pela frente. E estava acostumada a jogar com juvenis, contra os juvenis. Em jogos fáceis, a seleção não se revelava. A seleção, então, começou a jogar direito (N: João Cabral se refere ao jogo Brasil 1 x 0 Espanha, na Copa do México). A facilidade não conduz ninguém a nada. Ainda que, de repente, baixar o Espírito Santo e eu começar a escrever com facilidade, espero ter a coragem de deixar".

O senhor seria capaz de escrever uma coluna diária num jornal?

João Cabral: Acredito que não. Para mim, seria difícil. É uma atividade que não me seduz. Para mim, seria difícil escrever uma crônica diária. Não me seduz.
É como escrever carta. Quem escreve uma crônica acaba falando de si".

Nesses quarenta anos de vida diplomática, o senhor conheceu centenas de grandes personalidades da área intelectual e política. Qual foi a que mais marcou o senhor?

João Cabral: "Miró me impressionou enormemente. Eu o conheci da primeira vez que estive em Barcelona. Quando fui embaixador no Senegal, o presidente Senghor me impressionou enormemente, porque é um homem extraordinário".

Como ex-jogador de futebol, o senhor acha que o futebol faz bem à saúde mental do povo brasileiro?

João Cabral: "Ah, eu gosto de futebol! Mas, agora, como não vivo no Brasil, não vou a futebol. A grande vantagem do futebol brasileiro é que é o único futebol que você assiste sem estar interessado na vitória de um clube. Você assiste porque é um espetáculo bonito. Com futebol europeu não acontece. Você não vê uma jogada maliciosa, não vê um gesto harmônico, não vê elegância. Só aquela correria. E correria não me interessa. Só consigo me interessar pelo futebol brasileiro.

Há os que gostam de ver futebol porque gostam de ver o time predileto ganhar. Mas acontece que meu clube é o América. Ganha tão pouco... Então, gosto de futebol não para ganhar. Gosto pelo espetáculo. Eu era América no Recife. Quando voltei para o Rio, era normal que fosse América também. Joguei um campeonato pelo América, no Recife. O Santa Cruz tinha chegado ao fim do campeonato empatado com o Torre, um clube que nem existe mais. O Santa Cruz não tinha center-half. Então, descobriram que a minha mãe era fanática pelo Santa Cruz, embora nunca tenha ido a um jogo de futebol. A diretoria do Santa Cruz, então, foi pedir à minha mãe que me fizesse jogar pelo Santa Cruz. Joguei. Disputei o campeonato com o Torre e fui campeão juvenil pelo Santa Cruz, em 1935".

Daí é que surgiu a famosa dor de cabeça que o acompanhou durante décadas?

João Cabral: "Não. Minha dor de cabeça começou quando eu tinha dezesseis anos e foi uma das coisas que me fez largar o futebol. Naquele tempo, eu não podia correr, porque vinha a dor de cabeça...".

Já passou?

João Cabral: "Não. Hoje, talvez esteja um pouco melhor. Com a idade, talvez ela doa menos. Mas ainda sou obrigado a tomar remédios..."

Quantas aspirinas o senhor toma por dia?

João Cabral: "Não posso mais tomar aspirina. Depois dessa hemorragia gástrica que tive, em novembro de 85, os médicos me proibiram de tomar aspirina. Agora, tomo outros calmantes".

Que informação o senhor tem sobre a poesia que se faz hoje no Brasil?

João Cabral: "Não conheço bem a poesia brasileira posterior a mim. Só conheço os livros dos poetas que me mandam livro. Poucos são os que me mandam. Lá fora, não encontro estes livros para comprar. É difícil, para um escritor, julgar o pessoal que vem depois. Um sujeito pode julgar bem os anteriores a ele. Mas julgar uma geração mais nova é difícil, porque essa geração vem com uma experiência que o mais velho já não tem. Eles
escrevem sobre as experiências que eles têm e eu não tenho. Não vivo aquelas coisas. Sou de uma outra geração. Minha sensibilidade estava mais aguda em determinadas fases de minha vida.

O Brasil de minha mocidade não é o Brasil da mocidade desse pessoal. A vida que eu levava como jovem não é a vida que eles levam. Eu seria injusto se julgasse, porque eles falam de uma experiência e de uma visão de vida que não são as minhas. Em geral, não gosto de julgar os autores mais jovens do que eu. Viveram num tempo que não vivi, foram jovens num tempo em que eu já não era jovem e levam um tipo de vida que não é a que eu levei".

Desses poetas posteriores ao senhor, a poesia de um Afonso Romano de Santana, por exemplo, lhe agrada?

João Cabral: "Conheço. É um poeta interessante. Afonso Romano é um desses sujeitos que escrevem poesia sabendo que é poesia. Não escreve poesia de oitiva. É um homem culto, um professor. A.gente vê que ele leu um bocado. A poesia que ele escreve não é improvisação nem uma coisa gratuita. Não é o resultado de bossa. É o fruto de uma consciência intelectual".

(1986)

Posted by geneton at 12:02 AM

junho 09, 2007

FRANCISCO JULIÃO

UM DEPOIMENTO PARA A HISTÓRIA : O HOMEM QUE AGITOU OS CANAVIAIS
Francisco Julião revela os planos de Ernesto Che Guevara para chegar ao Brasil – A conversa entre os dois em Cuba – A autocrítica do criador das Ligas Camponesas – A confissão que Miguel Arraes fez a ele na prisão, em 1964 – Um padre católico é o guru de Arraes! – Por que Fidel Castro ficou fascinado por Jânio Quadros – A luta para reunir Miguel Arraes e Leonel Brizola no exílio – Por que Arraes não quer se aproximar de Brizola – A queixa de Julião contra João Goulart – A ascensão e queda das Ligas Camponesas.

Francisco Julião (Bom Jardim, Pernambuco, 16/02/1915) cumpriu uma penitência, por livre e espontânea vontade: durante quinze anos, entre 1940 e 1955, peregrinou pelos canaviais da zona da mata de Pernambuco usando a lei para defender camponeses. Era advogado. Tinha feito uma escolha. Não queria gastar energias defendendo poderosos. A penitência, ele sabia,”não dava dinheiro nem voto. Mas fui". O resto é história.

Transformado em líder das célebres Ligas Camponesas, Julião ganhou fama de santo entre os sem-terra. Aos olhos de quem o combatia, era o diabo em pessoa. Chamavam-no de agitador, incendiário, comunista, Julião agradece o título de "agitador". É e sempre foi. "Mas dentro da lei". Afinal de contas - diz ele - "até remédio você precisa agitar antes de usar”... E só ler a bula. A primeira instrução é: “Agite antes de usar".
Comunista nunca foi. “Minhas divergências com os comunistas permanecem
até hoje ". O que pouca gente sabe é que Julião é um dos fundadores do Partído Socialista Brasileiro, ao lado de Otávio Mangabeira.

Quando veio o primeiro de abril de 1964, Francisco Julião estava na Câmara dos Deputados, em Brasília. Era deputado federal. Conseguiu ficar lá até o dia 7 de abril. Neste dia, pegou uma carona no carro de Adaucto Lúcio Cardoso, líder da UDN. Talvez para não assustar o motorista do carro, o líder da UDN escreveu em cima de um jornal e mostrou a Julião: "Está tudo perdido". Ali, a certeza de que o golpe não tinha volta, se corporificava na forma de três palavras rabiscadas numa folha de jornal.

A tarde estava caindo em Brasília, num crepúsculo de cartão postal. Adaucto Lúcio Cardoso olha para o céu e constata: "Ah, essa cidade deveria se chamar Belo Horizonte!”. Veio o estalo. Julião tomou ali, dentro do carro, a decisão de fugir para Belo Horizonte, disfarçado de camponês. Terminou preso. Sobral Pinto o defendeu. Ganhou um habeas-corpus. Ia ser preso de novo. Correu para o Rio de Janeiro; tentou, em vão, obter asilo nas embaixadas da Iugoslávia e do Chile. Conseguiu um lugar na Embaixada do México. E lá se foi para dezesseis anos de exílio, a maioria vivida em Cuernavaca. Quando voltou ao Brasil, em 79, trouxe um saco de terra do México. E também a fórmula do Elixir da Juventude.

Quem vê Julião não diz que ele nasceu em 1915. Já tem dois bisnetos. Não esperava chegar a tanto. Tinha uma enxaqueca terrível - que o perseguiu por quarenta anos, desde a adolescência. Já dera a batalha contra a enxaqueca como perdida. Um dia, o milagre. Em meio à Conferência de Puebla, no México - para onde tinha ido porque, exilado, queria ver de perto os bispos brasileiros – esbarra com um jesuíta argentino chamado Alejandro.

Das mãos do jesuíta, saiu a fórmula criada por um bruxo sul-americano. Assim: primeiro, arranja-se meio quilo de alho. E meia garrafa de álcool etílico de 96 graus. Depois, é só colocar os dentes de alho no liquidificador e ir misturando com o álcool. O último passo: "Coloca-se esta emulsão em um frasco de vidro, onde deve permanecer durante quinze dias num canto. A partir do décimo sexto dia, deve-se tomar uma colherzinha da emulsão misturada em um copo de suco de fruta". A enxaqueca acabou. Julião, bisavô, ficou novo. Jamais deixou de beber a sagrada mistura.

O agitador Julião vem escrevendo, há anos e anos, um relato completo de tudo o que viveu. Cada vez que preenche um caderno com anotações, manda-o para o México. “Ninguém sabe o que pode acontecer amanhã neste País” – diz, para justificar tanto cuidado com o diário íntimo. Não é para menos. Em 1964, oficiais do Exército foram aos arquivos fotográficos dos jornais do Recife e recolheram toda a documentação que existia sobre Francisco Julião, Miguel Arraes e Gregório Bezerra. Onde andarão todas estas fotos?
Agora, o 'Chico Julião' que um dia foi personagem nas páginas da revista 'Time" passa as mãos nos cabelos revoltos - que lhe dão um certo ar messiânico - e embarca numa viagem pelo tempo, ao encontro de figuras como Ernesto Che Guevara, Salvador Allende, Leonel Brizola, João Goulart, Miguel Arraes, Fidel Castro, Jânio Quadros e todos os personagens que cruzaram o caminho do advogado que saiu das terras do Engenho Galiléia para a história das lutas políticas do Brasil.

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Qual foi o sentimento do Francisco Julião líder das Ligas Camponesas em abril de 1964 quando soube que o governo tinha mudado de mão? Qual foi a extensão da frustração pessoal ?

Julião: “A palavra frustração é pouco intensiva para exprimir este sentimento. Meu sentimento foi bem mais profundo. Era um sentimento de rebeldia e revolta, por ter sido interrompido bruscamente, pelas armas, com um golpe à Bonaparte, o processo de democratização popular do País. A Constituição foi rompida. E, o que é incrível, em nome da Democracia e da legalidade romperam-se a Democracia e a legalidade. Eu preferi, ali, permanecer no Brasil ao invés de buscar uma embaixada, apesar de saber que corria um grande risco. Então, lancei um manifesto no interior de Minas Gerais convocando o povo para a resistência armada. O manifesto caiu no vazio, porque ninguém estava, absolutamente, preparado para tomar as armas. Todos nós acreditávamos que as eleições de 64, em outubro, iriam se realizar. E todos estávamos preparados para enfrentar as urnas. Daí a razão por que caiu no vazio o meu manifesto com um apelo ao povo para que se unisse e defendesse a Constituição com armas na mão”.

O senhor faz alguma crítica, hoje, à atitude do ex-presidente João Goulart - que preferiu não resistir, segundo os historiadores, para evitar um derramamento de sangue?

Julião: “Faço. O comportamento de Goulart foi débil. Não chamaria de pusilânime, mas diria que foi débil (fala em tom de lamento). João Goulart era um homem ambivalente: como populista, oscilava feito um pêndulo entre a direita e a esquerda e queria simultaneamente atender aos patrões e aos operários. Acabou entrando em choque com o próprio sistema que ele queria que não se interrompesse, apesar de proclamar a necessidade de reformas de base.

Não se preparou nem se preveniu para dar um sustentáculo mais forte ao programa de reformas de base. Faltou a ele mais decisão, coragem cívica e valentia frente aos golpistas. Ele tinha informações. O próprio Brizola - cunhado de Goulart - prevenia e até alguns oficiais que percebiam a mobilização dos que estavam mais à direita dentro do Exército preveniam Jango. Mas ele acreditava que nada iria acontecer e estava convencido de que depois da Campanha da Legalidade - em que o Exército se dividiu e afinal ele conseguiu chegar à Presidência da República com o apoio de Leonel Brizola, general Lott e das forças legalistas do País - fatos assim não iriam ocorrer. E, no entanto, ocorreram.

Não era a primeira nem a segunda nem a terceira vez que se tentava dar um golpe de direita no País. Considero que Jango cometeu um erro quando deixou a Presidência sem oferecer resistência”.

Havia condições reais de oferecer resistência? A grande interrogação que existe até hoje é esta: há os que dizem que havia condições; há os que dizem que não, não havia de modo algum. E o senhor, como personagem central dos acontecimentos de 64, o que diz?

Julião: “Em escala bem menor, poderia se repetir o que houve em 1961, quando da luta pela legalidade democrática, iniciada no Rio Grande do Sul. Afinal de contas, João Goulart era o chefe supremo das Forças Armadas. E era dever de Goulart permanecer no Palácio lutando pelo mandato que o povo lhe concedera. Deveria ter seguido não o caminho de Getúlio Vargas, mas o caminho que Salvador Allende posteriormente adotou no Chile como presidente: preferiu sacrificar-se e oferecer resistência às forças armadas para defender o mandato, em vez de entregá-lo e aceitar simplesmente o exílio ou escapar ou fugir do País. Um presidente não pode desertar numa hora como aquela, porque o seu mandato é mais importante que sua vida”.

O escritor Antônio CaIlado - autor de um livro sobre as Ligas Camponesas - diz que a máxima aspiração de João Goulart era ser presidente do PTB - e não presidente da República. O senhor também tinha essa imagem de João Goulart? Ele não seria, segundo esses depoimentos, um homem talhado para a Presidência da República ...

Julião: “Goulart era, no fundo, um homem bom. Dotado de grandes ambições, não estava suficientemente talhado para atender a essas ambições que ele tinha pelo Poder. O que lhe faltava era convicção. Daí, a ambivalência e a facilidade com que se deixou apear do governo. Não era um bom gaúcho, como foi Vargas. Veja: Vargas não se deixou apear. A primeira vez sim, porque ele tinha um mandato que foi arrematado por um golpe. Mas quando ele recebeu um segundo mandato através do voto popular ele disse: “Do Palácio só me tiram morto”. Como estava só, preferiu o suicídio, o que é uma forma de resistência, no caso de Vargas. Sou contra o suicídio, mas ele deixou um manifesto que é um convite à rebelião do povo brasileiro em defesa do mandato que os trabalhadores lhe deram e uma denúncia em favor dos povos de Terceiro Mundo e contra a penetração do
capital multinacional”.

Qual é a autocrítica que o senhor faz hoje ao célebre “Chico Julião” das Ligas Camponesas?

Julião: “Naquele tempo, eu via os problemas do Brasil e da América Latina através das Ligas Camponesas, através do Nordeste, através da minha região conflitiva, atrasada e dominada pelas forças oligárquicas mais retrógradas. Hoje, tenho uma visão mais distinta, porque vejo Pernambuco, o Nordeste e o Brasil através do mundo - e não só do Terceiro Mundo mas do mundo industrializado e do campo socialista. A minha visão se universalizou.

É essa a primeira crítica que faço a mim mesmo: ter tido uma visão local, estreita e regional. É verdade que, num dado momento, essa visão local pode adquirir um sentimento universal. Mas em política não podemos usar essa expressão com tanta propriedade como se usa na Literatura e na Poesia...”.
Inclusive na poesia se diz que quanto mais local mais universal se é ...

Julião: “Em política, você tem de adquirir uma visão bem mais ampla dos problemas e analisar as situações desde um ponto de vista global, para então tomar posições dentro de uma região determinada.

A segunda crítica que me faço é que por falta de tempo - uma vez que eu dava 48 horas por dia ao movimento das Ligas Camponesas - eu vivi um praticismo bastante acelerado. Eu deveria ter respaldado esse praticismo com mais conhecimentos teóricos, para corrigir as distorções que se davam dentro do próprio movimento, o que é normal dentro de um movimento popular ou um partido político. É também uma crítica que me faço: a falta de uma melhor base teórica para conduzir o movimento de maneira a cometer o menor número possível de erros”.


O senhor pode dar um exemplo concreto, na prática, de como essa visão “local, estreita e regional” se traduziu em atos?

Julião: “Hoje penso - o que é válido também para aquela época - que não podemos conduzir um país com a extensão territorial e a diversidade de situações sociais como o Brasil ... Por exemplo: aquilo que ocorre no Nordeste não é válido para o que acontece em São Paulo ou no Rio. Então, nossas alianças deveriam ter sido mais amplas.

Eu me ative tanto ao problema camponês que cheguei a entrar em choque até com pequenos e médios agricultores - que eram aliados naturais do movimento camponês! Então, os pequenos e médios agricultores, pelo temor de perder seus pedaços de terra - o que era bastante explorado pela imprensa burguesa -, buscavam aliança junto ao grande latifúndio. E o latifúndio é inimigo do pequeno e médio agricultor.

Ora, o latifúndio empresta, compromete e acocha para se expandir. Ao latifúndio não importa absolutamente que o pequeno e o médio agricultor percam as suas terras, desde que ele, o latifúndio, possa se alargar, para fazer não a cultura de subsistência, mas a cultura de exportação. Então, perdemos aliados importantes entre os pequenos e médios agricultores. Hoje, considero que estes pequenos e médios agricultores são aliados incondicionais e necessários para que se lute por uma reforma agrária no País e se melhore a situação do próprio camponês que não tem trabalho. Ando até com essa preocupação de unificar os pequenos e médios agricultores. Assim como as Ligas Camponesas acabaram forçando a criação dos sindicatos, considero que a união dos pequenos e médios agricultores pode levar o País ao cooperativismo”.

Há espaço hoje para a reativação das Ligas Camponesas ou os sindicatos rurais podem cumprir o papel que foi das Ligas até 64?

Julião: “A Liga Camponesa era parte da luta dos camponeses pela democratização do trabalho no campo e pela democratização da terra. Sempre tive essa visão. O camponês que nós buscávamos naquele tempo era o que arrendava a terra; não era o assalariado. Não havia sindicato. E sempre considerei que o sindicato era um passo bem mais avançado que a Liga, porque o homem que vende a força de trabalho tem mais consciência política do que aquele que arrenda um pedaço de terra e só encontra o senhor, o proprietário, para pagar a renda no fim de cada ano ou quando vai levar a parte que lhe corresponde no cultivo de uma dada lavoura.

Eu achava que essa gente iria inevitavelmente ser liquidada dentro de um processo de capitalização do campo. A Liga era um passo que poderia contribuir para conduzir até o sindicato. Então, falar em Liga agora é um retrocesso. O Sindicato pode perfeitamente cumprir as funções da Liga e ir além”.

Durante a fase negra da repressão, a figura do “Chico Julião” foi “satanizada”, como o senhor diz. Durante anos e anos houve uma contrapropaganda bem forte. A imagem do Francisco Julião para a geração mais nova é de um agitador que fazia marchas de camponeses sobre o Recife e queria a reforma agrária “na marra”. Qual é a imagem que o senhor gostaria que ficasse do Francisco Julião das célebres Ligas Camponesas?

Julião: “A imprensa distorceu a minha imagem. Nunca saí da legalidade. Sempre utilizei o Código Civil e a Constituição para defender minhas idéias. Já naquele tempo eu sustentava a necessidade de uma “Revolução Francesa” no campo e achava que o Nordeste tinha ficado parado na história. O latifúndio no Nordeste utilizava ainda as sobrevivências feudais. E era preciso trazer o camponês para o processo de democratização da região. O camponês era utilizado como “besta de carga”, para usar a expressão de Engels. Sempre foi - durante toda a Colônia, todo o Império, toda a República. Sobre ele pesava a carga mais forte.

O que eu queria era libertá-Io dessa carga. Como não havia nenhuma forma de organização camponesa, surgiu a Liga - não das minhas mãos, mas de uma necessidade histórica. Houve um momento na história deste país que propiciou o surgimento da Liga. A imagem que eu gostaria que ficasse - e por ela continuarei lutando até o fim - é que fui um homem apegado à legalidade. Eu utilizava a legalidade para ir, pouco a pouco, unindo e organizando os camponeses. O que acontece é que toda vez que se une e se organiza o povo, ele próprio vai criando uma legalidade própria. Quer dizer: a legalidade é rompida pela legalidade, num processo democrático.

Se uma pessoa se conscientiza e verifica que a realidade em que ela vive é distinta daquela que ela pensava que era a realidade correta, ela trata de se libertar. Organização e unidade significam a ruptura de uma legalidade que historicamente já está morta. O que nós queríamos é que o latifúndio, com suas sobrevivências feudais, desaparecesse diante do avanço da sociedade brasileira para um mundo já industrializado”.

A imagem do senhor como uma figura demoníaca não foi criada somente pela imprensa: os próprios governos de depois de 64 tinham também interesse em criar esta imagem ...

Julião: “Ainda hoje passam filmes em certos centros de estudos para manter esta imagem sobre mim, sobre Brizola e sobre Miguel Arraes, figuras que tiveram atuação marcante naquela época. Acontece que ninguém deve subestimar a capacidade crítica e a inteligência de um homem humilde e analfabeto. Os analfabetos também são capazes de pensar, porque são gente, são povo! Eu estou convencido de que hoje, com esse meu comportamento e com a visão que tenho dos problemas do Brasil através dos problemas do mundo, é mais fácil chegar ao pequeno e médio agricultor, à classe média e até ao empresariado nacionalista, aquele que quer que o Brasil defenda a soberania econômica, aquele que quer evitar o saque das multinacionais - que, inclusive, prejudicam seus interesses de classe como empresários brasileiros”.

Gregório Bezerra nos disse, num depoimento, que em 1964 Brizola era exaltado, Arraes era moderado e Julião era mais exaltado ainda. O senhor confirma?

Julião: “Gregório está equivocado. Naquele tempo, ele tinha uma posição legalista. O Partido Comunista defendia posições sumamente legais. Sua posição era um tanto irreal, porque chegava ao extremo de admitir que já estava no governo. Recordo bem a expressão de Luís Carlos Prestes. Quando se deu início à luta pelas reformas de base - e Prestes freqüentava o Palácio do Governo e se encontrava com João Goulart - ele chegou a admitir que já estava no poder. Ora, Prestes poderia estar no governo, ter uma parte do governo, mas não estava absolutamente no Poder, porque o PC continuava na ilegalidade!

O que houve foi uma distorção da minha imagem pela imprensa e, inclusive, por companheiros que, embora estivessem comigo numa só trincheira, tinham interesse em diminuir o volume do movimento que estávamos liderando. Gregório, a quem sempre respeitei pelo passado, pela tenaz resistência contra toda e qualquer forma de opressão, pelo comportamento e pelo heroísmo, estava a serviço de um Partido. Se o Partido dava uma meta, uma linha, uma ordem, ele tinha de cumprir.

O Partido Comunista cometeu erros em relação aos camponeses e à própria classe operária. Tinha uma visão distorcida dos problemas e da realidade nacional, porque se preocupava mais em transplantar do que em plantar. E esse tem sido o erro dos Partidos Comunistas em geral na América Latina. É a razão por que todos eles fracassaram. Até hoje nenhum Partido Comunista conseguiu fazer uma revolução socialista na América Latina.

As revoluções sempre saíram de outros movimentos. Fidel Castro não era comunista quando desabou da Sierra Maestra, derrubou Batista e implantou uma sociedade socialista em Cuba. Assim tem ocorrido em todo o Continente, precisamente porque, apesar de se proclamarem marxistas, não analisavam as situações concretas dos países em que atuavam como partidos”.

O senhor teve um encontro com Fidel Castro em que ele fez referência ao governo de Jânio Quadros. O que é que ele disse a respeito do Brasil?

Julião: “Jânio Quadros é um homem tão astuto que foi capaz de enganar o próprio Fidel Castro ... Até Fidel Castro foi enganado por Jânio Quadros! Quando eu estive em Cuba, percebi que Castro ficou empolgado com a figura de Jânio Quadros. Acontece que Jânio Quadros tinha feito um discurso magnífico ao pé do monumento de José Martí na Praça da Revolução e, desde então, Castro guardou esta visão de Jânio. Custou um bocado para que essa visão fosse prescrita da mente de Fidel Castro...

Durante algum tempo, ele permaneceu convencido de que Jânio era um homem que poderia ter contribuído para uma transformação mais profunda da sociedade brasileira. Jânio era esse homem capaz de condecorar Che Guevara porque estava com raiva de Carlos Lacerda. É, portanto, um homem passional, emotivo, inesperado e esquizofrênico. Coisas assim acontecem com estas figuras.

Admito que Fidel Castro depois modificou inteiramente seus pensamentos sobre Jânio Quadros. Não basta tomar uma condecoração, chamar um homem como Che Guevara e condecorá-lo. Isso foi uma provocação de Jânio e até contribuiu para acelerar o golpe neste País. Jânio talvez tenha sido o tipo mais responsável pelo aceleramento do desencadeamento do golpe de 1964”.

O senhor, pessoalmente, contribuiu para que Fidel Castro mudasse a imagem que ele tinha de Jânio Quadros?

Julião: “A própria dinâmica da história, os fracassos dos movimentos guerrilheiros no Continente e a ampliação da visão de Castro em relação ao mundo... Porque ele também via o mundo através de Cuba; hoje é que ele vê Cuba através do mundo. Tudo, então, contribuiu para que ele chegasse ao ponto de ir à Nicarágua, como foi, depois da vitória da revolução nicaragüense, para dizer aos sandinistas que eles estavam certos quando defendiam o pluralismo democrático e a existência de mais de um partido político; que lamentavelmente Cuba não pôde seguir por este caminho mas que eles deveriam preservar este pluralismo.

Castro modificou a visão que tinha em relação ao Continente e em relação à própria Cuba. Hoje, a grande preocupação de Castro é fazer com que o Terceiro Mundo se unifique, apesar das divergências dos países que fazem parte dos não-alinhados, para que haja uma melhor coordenação na luta contra o imperialismo econômico".

Já que o senhor diz que tem hoje uma visão mais universal, existe, então, algum país que o senhor cita como modelo político para o Brasil?

Julião: “Não há nenhum modelo que se possa aplicar ao Brasil. Cada povo e cada país tem de construir um modelo próprio. O Brasil terá de buscar entre suas raízes históricas - com seu povo e sua realidade - o modelo adequado para poder desenvolver a sociedade e chegar ao socialismo”.

Moreno?

Julião: “O socialismo moreno é um socialismo baseado nas raízes históricas deste país, de acordo com suas realidades, seus problemas e cultura. É o que Brizola quer. Quando ele fala em “socialismo moreno”, ele dá, em primeiro lugar, um grande realce às populações negras e mestiças do Brasil; reconhece que o Brasil é um país de negros e mestiços. E o socialismo tem de ser moreno no Brasil porque a maioria da população é morena”.

A imagem das figuras que estavam no centro do palco em 1964 vai ser talhada pelos livros de História; os historiadores se encarregarão desta tarefa. Mas eu gostaria de um depoimento pessoal do senhor, a partir das experiências vividas pelo “Chico Julião”, sobre - para começar - o Miguel Arraes governador. O senhor foi companheiro de cela de Miguel Arraes logo depois do golpe. Qual foi a imagem que ficou do Arraes governador, para o senhor?

Julião: “O Arraes que conheci como governador era nacionalista. Ele defendia as teses que Getúlio Vargas defendia. A sensação que tenho é que Arraes quis ser uma espécie de Getúlio Vargas do Nordeste. Quis ocupar esse espaço e o grande vazio que, deixado por Vargas, não foi ocupado até hoje.
É possível que Brizola, homem que já entrou na idade da razão e voltou ao Brasil com um projeto bem mais inteligente e exeqüível, chegue a ocupar este espaço e dê uma maior dimensão ao pensamento de Vargas.

Arraes pretendeu ocupar. Mas acontece que Arraes é um homem do Nordeste, nascido numa cidadezinha do interior do Ceará e com uma visão bem mais localista e sertaneja. Com o exílio, ele avançou demais. De nacionalista, passou a ter uma visão de movimentos de libertação; movimentos armados. Talvez porque ele tenha ido para a Argélia e ficado na África. E a África é um continente em que as lutas políticas e sociais são bem distintas das lutas políticas e sociais da América Latina.

Nós começamos nossa luta de independência no início do século passado. E somente depois da Segunda Guerra Mundial é que a África começou seus movimentos de independência, já aí recorrendo à luta armada. A independência política da África se dá simultaneamente com a independência social e econômica. Os métodos que devemos aplicar na América Latina são distintos, porque somos um continente mais avançado que a África. Somos um continente em que há países já bastante industrializados; é o caso da Argentina, Brasil, México. E aí o processo adquire mais complexidade.

Creio que se Arraes tivesse permanecido como exilado num país da América Latina teria uma visão que coincidiria com a minha e a de Brizola. E aí teria sido bem mais fácil uma aliança com ele. A dificuldade é de enfoque. De qualquer modo, penso que no dia-a-dia, na medida. em que ele vá percebendo que não pode absolutamente trazer uma fórmula da África para o Brasil - mas sim uma fórmula que deve ser criada dentro do nosso país -, é possível que possa surgir uma aproximação.

Mas até agora tenho encontrado bastante dificuldade em fazer uma aproximação entre Arraes e Brizola. Atuei nos últimos anos como uma espécie de algodão entre cristais, na tentativa de aproximar os dois, por reconhecer que ambos têm liderança no país. Tenho sentido que, na medida em que Brizola cresce, Arraes como que vai se apagando, como uma estrela que vai para o ocaso. É o que tenho observado.
E ele precisa corrigir. De outra forma, pode perder-se”.

Qual foi a primeira tentativa que o senhor fez no exílio para aproximar Miguel Arraes e Leonel Brizola?

Julião: “A primeira tentativa que fiz para aproximar os dois foi meses depois da chegada ao exílio. Em 1966, fui à Argélia com essa preocupação. Sempre tive ligações estreitas com Brizola e Arraes. Talvez eu tivesse até mais coincidências com Arraes do que com Brizola. Eu tinha mais afinidades com Arraes. Em Brizola, eu via o condutor, o homem audaz e com bastante capacidade de aglutinar forças e conduzi-Ias. Arraes é um homem mais desconfiado.

Eu sempre dizia a ele: “Você às vezes me lembra um cacto. A gente olha, você está sempre se defendendo, cercado de espinho por todo lado. Eu sei que existe uma flor dentro de você. Mas ai de quem queira meter a mão para agarrar esta flor, porque fura os dedos...”

Já Brizola é o homem do Pampa e das largas caminhadas, capaz de repartir um churrasco com o inimigo. Ele tem essa virtude: é um homem mais cordial, aberto e expansivo. Arraes lembra algo do jagunço; é cerrado. Você não arranca facilmente um pensamento de Arraes. Ainda hoje é assim. Quando você se aproxima de Arraes, ele se prepara e se previne”.

O senhor tem também esta dificuldade? Eu pensei que era só dos repórteres que trabalham na cobertura política ...

Julião: “É de todo mundo. Os próprios companheiros que estão próximos de Arraes têm dificuldade. É um pouco esfinge. A gente tem de decifrar o pensamento de Arraes, porque ele não se deixa decifrar. Para um político, pode ser bom e pode ser péssimo. Tanto que se vê: Arraes não gosta de figurar em um partido político. Nunca passou pela cabeça de Arraes fundar um partido político, sequer. Toda vez que ele participou de um partido político o fez apenas para ter uma sigla onde se eleger. Já pertenceu a todos os partidos políticos deste país!

Arraes gosta de frentes. Não é por acaso que foi para o PMDB. Não é por acaso que suas eleições sempre se deram em função de frentes. Ele era frentista quando foi prefeito do Recife; era frentista quando foi governador de Pernambuco e agora, como deputado, ainda é frentista.

Desconfio que Arraes nunca virá a fundar um partido ou a participar de um com um programa claro, uma ideologia, uma doutrina, uma filosofia. Ele é homem de frente e enigmático. Não gosta que conheçam o que pensa. Há quase vinte anos tentei a primeira aproximação entre Arraes e Brizola e não foi possível”.

Qual era, então, o argumento de Miguel Arraes para não se aproximar de Brizola?

Julião: “Arraes acha que Brizola era um homem que não reunia as condições para poder participar de um movimento em que ele se engajasse. O que sempre houve, no fundo, foi uma competição, porque os dois foram as duas maiores lideranças que surgiram com a possibilidade - até - de chegar à presidência ou à vice-presidência da República. Havia, então, uma disputa.

O comportamento de Brizola tem sido bem mais modesto em relação a Arraes. Quando Willy Brandt, o ex-chanceler da Alemanha Federal, convidou-o a ir à Alemanha, porque queria conhecer o pensamento de Brizola, antes da anistia e da abertura, Brizola teve o cuidado de ir à Europa e, antes de seguir para a Alemanha, mandou convidar Arraes, para que o acompanhasse.

Brizola disse: “Eu gostaria que você participasse desse encontro. Você está mais informado sobre o que se passa na Europa, porque vivi a maior parte do meu tempo no Uruguai e estou chegando via Estados Unidos. Você poderá se encontrar comigo, para a gente fazer esta conferência”. Arraes foi. E colaborou. As perguntas que Brandt formulava a Brizola eram respondidas pelos dois, numa demonstração de que Brizola estava interessado na aproximação com Arraes.

Depois, fui à Argélia duas vezes, tentar a aproximação. Por último, com o próprio Brizola, quando nos reunimos em Lisboa, tentamos por telefone que Arraes viesse participar do encontro - com absoluta independência - e ver os amigos que tinham vindo do Brasil para a reunião de cerca de 150 brasileiros. Teria direito a voz, se quisesse falar. Se não quisesse, ficaria como simples observador. Arraes não aceitou e não veio.

Achava que uma aproximação com Brizola não tinha sentido, porque Brizola vinha para o Brasil para dividir as forças de oposição. É a arma que ele sempre utilizou. Tanto é que, quando houve o fracasso na fundação do PIB, eu fui informado de que um dos homens que mais exultaram com a derrota de Brizola foi Arraes. Ficou feliz.
Quando surgiu o PDT tentei mais uma vez, fui várias vezes à casa de Arraes no Recife e disse: “Vá pelo menos dialogar com este homem. Ele quer conversar contigo. Se você fala com todo mundo, por que não pode falar com Brizola?”. Houve um momento em que ele aceitou. Mas, afinal, como jagunço desconfiado, retrocedeu. E fez o que é de Arraes: ficar na retaguarda, na reserva, observando. Isso é do temperamento e do caráter de Arraes. Temos de assimilá-Io assim.

Meu comportamento foi sempre esse, nos nossos meses de cadeia: aberto, comunicativo e tratando de descobrir coisas de Arraes, em quem reconheço um homem de qualidades, um bom chefe de família, bom irmão, bom filho e bom pai. É um homem que, para o clã, é magnífico. Mas fica agarrado ao clã. Ele necessita - inclusive - de formar em torno de si um clã político. Não se abre. E faz algumas concessões quando verifica que conta com a absoluta lealdade de quem se aproxima. Qualquer crítica que se faça a Arraes, ele recebe sempre com uma certa desconfiança. Para esta fase em que estamos entrando, no Brasil, seria necessário que ele se abrisse mais, expusesse melhor o pensamento e não ficasse simplesmente nos enigmas”.

Que idéia exatamente o senhor tinha quando tentou aproximar Arraes e Brizola ainda no exílio: voltarem os três juntos - Julião, Arraes e Brizola - para criar um partido forte?

Julião: “Teria sido proveitoso. A união entre os dois poderia ter dado um avanço bem maior à consolidação da democracia no Brasil. Fico pensando que ainda é possível. Sou homem de esperança; nunca perco a esperança de uma aproximação entre os dois. Sempre que houver uma oportunidade me esforçarei, embora reconheça a dificuldade de trazer Arraes. Brizola é mais fácil, porque sempre se dispõe ao diálogo. Como eu digo: Brizola é o Pampa; Arraes é o mandacaru do Cariri”.

Como é que o senhor define ideologicamente Miguel Arraes?

Julião: “Tentei descobrir, na prisão, o pensamento, a ideologia e a filosofia de Arraes. Sempre me confessei marxista. Aderi ao marxismo aos dezenove anos. Era o melhor instrumento ideológico pa:ra interpretar a sociedade, o homem, a natureza e o mundo. Então, perguntei a Arraes: “Seu comportamento me leva a crer que você é um marxista ...”. Ele disse: “Pois você está equivocado. Não sou marxista”. E eu: “O que é que você é, afinal de contas?”. Então, ele me contou que era chardinista, seguia Theillard de Chardin, o teólogo avançado da Igreja.

A obra de Chardin continua lá guardada, para ser estudada. Chardin tem idéias interessantes, chega a admitir a possibilidade de um encontro entre a Ciência e a Religião. Toda a luta de Theillard de Chardin é mostrar que não existe incompatibilidade entre o pensamento científico e o pensamento místico-religioso. Arraes disse que se considerava próximo de Theillard de Chardin.

Arraes tem sofrido influência da Igreja e se ligado aos grandes da Igreja. O Cardeal da Bélgica naquele tempo, em 1964, era um homem com quem Arraes mantinha correspondência. E essa gente deve ter influenciado também para que os laços entre a Igreja e Arraes se estreitassem.

É algo que, acredito, continua a predominar na figura de Arraes. E aí predomina - de novo - o clã. Ele obedece um bocado. A mãe, a irmã e a mulher têm uma influência grande sobre ele. Arraes é fllho único; varão numa família de oito. Então, sempre foi envolvido por esta aura. É até bonito que a mulher tenha uma certa predominância na vida de Arraes, porque as mulheres, quando têm consciência política, são bem mais conseqüentes que os homens.
A gente tem de lutar um bocado no Brasil para que a mulher se incorpore às lutas políticas e sociais deste país. Porque, na medida em que elas se incorporem, daremos passos mais avançados no sentido da transformação da sociedade brasileira”.

É interessante esta revelação que o senhor faz sobre a predileção de Arraes por um teólogo. E a primeira vez que alguém diz. O que é que atraía Arraes na obra de Theillard de Chardin?

Julião: “Como eu conhecia o pensamento de Chardin - ele também - nós não discordamos. Eu quis, naquele momento, descobrir Arraes e saber se ele era materialista ou idealista. Ele escapou por este caminho: nem materialista nem idealista. Isso é bem de Arraes. Quando Theillard de Chardin prega a necessidade de um encontro inteligente entre a Ciência e a Religião, dá um passo tão avançado no sentido de uma Igreja moderna e científica que ainda não foi tirado do socavão das bibliotecas do Vaticano para figurar como teórico da religião católica. Arraes está bem a cavalheiro quando diz que é Theillard de Chardin, porque encarna esta visão”.

Qual foi a pior notícia que o senhor recebeu do Brasil no exílio?

Julião: “Todas as notícias que eu recebia do Brasil eram péssimas. Eram notícias de que se torturava, se assassinava; a perseguição era constante e qualquer movimento que surgia para fazer com que o Brasil retomasse à democracia era esmagado de forma violenta.
Sempre foram péssimas as notícias. Eu não seria capaz de distinguir uma entre elas. A notícia que mais me doeu no exílio foi o assassinato de Salvador Allende. Doeu bem mais que a morte de Che Guevara.

Eu senti um bocado a morte de Che Guevara porque tinha admiração por ele, cheguei a conhecê-Io e a tratá-Io pessoalmente em Cuba, quando ele era ministro da Indústria. Mas minha aproximação pessoal e minhas afinidades eram maiores com Salvador AIlende. Ele chegou ao poder no Chile e inaugurou um processo socialista na legalidade, com a Constituição na mão. Minha afinidade vem daí. Era uma experiência fabulosa: um homem conseguir, através do voto, instituir uma sociedade socialista.

O sacrifício e o assassinato de Salvador AIlende me doeram. Eu estava ligado efetivamente a Salvador AIlende. Ele era do Partido Socialista; eu também era. Sempre que ele passava no México me visitava. Ia até a minha casa e dialogávamos. Allende acreditava que estava inaugurando no Chile algo tão extraordinário para o mundo que, se vingasse, poderia ser a fórmula para a chegada ao socialismo sem precisar de uma grande convulsão e do uso das afinas e da violência”.

O que é que mais marcou o senhor nos contatos com Che Guevara?

Julião: “Numa de minhas visitas a Cuba, recebi um convite para visitar Che Guevara no Ministério da Indústria. Ele trabalhava de noite; passava toda a noite trabalhando. Sempre com a “bomba” perto, para aspirar, porque sempre tinha ataques de asma. Era como se fosse um chimarrão gaúcho. A “bomba” de Che Guevara lembrava um chimarrão. Eu fui convidado daquela vez porque a mãe de Guevara, Dona Célia, esteve no Recife e eu a recebi, como deputado estadual, no Centro Cívico-Literário Monteiro Lobato, no bairro da Iputinga. Tive a oportunidade de saudá-Ia.

E aí houve um negócio desagradável: quando me levantei para saudá-Ia, diante de uma massa imensa, alguém jogou uma bomba. Resultado: a bomba tocou na quina da janela e explodiu. Um negócio tremendo, gente ferida. O camarada que jogou foi embora. Era um terrorista. E esta mulher ficou impassível, sentada, enquanto todo mundo saltava as janelas, naquele pavor do estampido da bomba. Então, eu - que ia fazer um discurso detalhando a vida de Dona Célia e a influência que ela teve - levantei-me, tomei o microfone e limitei-me simplesmente a dizer, depois que se restabeleceu a ordem e desapareceu o pânico: “Senhores e senhoras, aqui está a mãe de Che Guevara!”. Fiz ali o discurso mais curto que já se fez na vida de um político.

Ficou influenciada por este episódio. Contou tudo a Che Guevara - e ele me chamou para falar sobre o Brasil e a América Latina. Só depois de alguns anos, quando ele já entrava na luta, é que eu percebi o sentido de suas perguntas. Ele perguntou um bocado sobre o Mato Grosso e sobre as fronteiras com a Bolívia. Queria saber o que era e como era o Mato Grosso. Queria saber quais eram os rios mais caudalosos, se tinha grandes florestas, quais eram as lideranças mais importantes. Guevara perguntou também se eu conhecia algum líder destacado no Mato Grosso, gente ligada às esquerdas. Quando eu já estava no México, exilado, tomei conhecimento de que ele estava na Bolívia, na guerrilha...

Nosso encontro se centralizou sobre estas questões: a América Latina, as lutas sociais, o Brasil, as fronteiras e a recordação da passagem pelo Recife. Sua mãe tinha lhe relatado. Mas foi um encontro afetuoso”.

Che Guevara fez referências aos projetos de criar vários Vietnãs na América?

Julião: “Não. Isto surgiu depois. Ele fez referências geográficas ao Brasil e, no entanto, não relacionei com nada. Só depois é que percebi qual era o sentido de suas perguntas e, talvez, a razão principal do convite que ele tinha me feito. Não era um convite sentimental ...”

Era um convite prático, ele já pensava na possibilidade de fazer guerrilhas na América Latina ...

Julião: “Era um convite prático...”

Que tipo de curiosidade Salvador AIlende tinha em relação aos problemas políticos do Brasil?

Julião: “A gente conversava sobre a América Latina. Sempre que nos encontrávamos era para falar sobre o desenvolvimento de uma estratégia latino-americana contra a penetração das multinacionais. A preocupação de Allende era libertar o Continente das garras do imperialismo econômico. Ele traduzia “imperialismo econômico” por multinacionais. Num grande discurso que fez na ONU, ele tratou de identificar perfeitamente bem o papel das multinacionais no imperialismo. Ele quis separar o povo norte-americano das grandes multinacionais, porque achava que o imperialismo eram as grandes multinacionais - e não o pensamento do povo norte-americano. Allende era um homem inteligente, distinguia perfeitamente bem. Como tinha uma visão bem mais ampla que o próprio Che Guevara, ele teve mais impacto. A Europa sentiu a morte de Salvador Allende como se fosse, mais do que um acontecimento latino-americano, um acontecimento europeu”.

Já Che Guevara, depois do episódio da bomba que botaram no dia da recepção a Dona Célia Guevara, deve ter ficado com medo do Recife ...

Julião: “Ele fez referências a este episódio com um sorriso. Eu narrei minha admiração pela serenidade com que Dona Célia recebeu aquele impacto”.

Já que nós estamos falando sobre suas experiências com Che Guevara e com Salvador Allende: existe uma canção anarquista italiana que diz que se devem
mandar flores para os rebeldes fracassados. Para que rebelde fracassado o senhor mandaria flores no Brasil?

Julião: “Para todos. Todo rebelde, sobretudo quando tem nas mãos uma bandeira que se identifica com as aspirações mais profundas de um povo, merece e rosas”.

Como é o Brasil com que o senhor sonha?

Julião: “O Brasil dos meus sonhos é um Brasil socialista. Um Brasil em que nossas riquezas possam beneficiar toda a população brasileira. O Brasil é tão rico, é tão grande, tão vasto, tão belo e tem um povo tão cordial, afetivo e carinhoso que não merece o que está aí. O que este povo merece é ser dono deste país e participar de toda esta grandeza. Nós – e sobretudo vocês, os jovens - temos a grande responsabilidade de conduzir o processo de transformação da sociedade brasileira em uma sociedade justa e igualitária, em que nós não vamos necessitar tirar de ninguém - mas dar. O Brasil tem tudo para dar. Não precisa tirar de ninguém. É tão grande, tão rico, tão potente e tão extraordinário este país que a gente pode dar.

E não só dar aos brasileiros, mas a outros povos que vivem em situação mais angustiosas e apertadas, sem possibilidade de se desenvolverem por falta de solo adequado e riquezas minerais. Nós podemos dar a nós e, ainda, oferecer algo aos demais povos.
Meu sonho é este: ver um Brasil e uma América Latina socialistas, sem fronteiras, em que a gente não tenha necessidade de utilizar o passaporte, mas apenas a simples identidade de uma nação em relação a outra. Se sou brasileiro, posso chegar ao Chile com minha carteira de brasileiro. E um chileno pode chegar ao Brasil sem encontrar dificuldade nas fronteiras.
Eu sonho com este mundo. Um mundo socialista, fraternal e igualitário, em que o homem não sinta a angústia de viver, mas sim a necessidade de realizar-se como ser humano".

(1983)

Posted by geneton at 11:45 PM

CAETANO VELOSO

O "QUASE PERNAMBUCANO" CAETANO VELOSO VÊ O BRASIL PELOS OLHOS DE JOAQUIM NABUCO

Rio de Janeiro - Caetano Veloso, o mais baiano dos artistas baianos, anuncia, a quem interessar possa: vem se sentindo “quase” um pernambucano. Motivo: o deslumbramento que lhe causou a leitura do livro “Minha Formação”,escrito há um século pelo abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco.

Depois de ganhar de presente um exemplar da nova edição do livro,publicado pela Editora Topbooks, Caetano Veloso ficou “deslumbrado” não apenas com a beleza do texto,mas também com as confissões feitas pelo abolicionista. O homem que combateu com todas as forças a escravidão escreveu, num belo texto confessional,que sentia saudade dos escravos.

O impacto da descoberta de Joaquim Nabuco foi imediato sobre o mais inquieto dos compositores brasileiros de primeiro time. Caetano Veloso extraiu de uma passagem de Joaquim Nabuco o título do disco que lançou em dezembro – “Noites do Norte”. Resolveu enfrentar o desafio de musicar um texto em prosa de Joaquim Nabuco sobre a escravidão – devidamente incluído no disco.Como se não bastasse,ficou bem impressionado com o artigo que o vice-presidente da República,o pernambucano Marco Maciel,escreveu na Folha de S.Paulo no Dia Nacional da Consciência Negra.Caetano Veloso elogia a firmeza do artigo em defesa do negro.Por fim,proclama que o melhor grupo em atividade na música brasileira vem do Recife : a banda Nação Zumbi.

Neste depoimento – que Continente Cultural publica na íntegra com exclusividade – Caetano Veloso explica com detalhes a origem da paixão intelectual por Joaquim Nabuco.Trechos desta entrevista exclusiva apareceram no site de Caetano Veloso na Internet. Agora,pela primeira vez,o depoimento é publicado sem cortes.

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Eis exemplos de textos de Joaquim Nabuco que emocionaram Caetano Veloso no livro “Minha Formação “ :

1."NENHUMA DAS MINHAS IDÉIAS POLÍTICAS SE ALTEROU NOS ESTADOS UNIDOS,MAS NINGUÉM ASPIRA O AR AMERICANO SEM ACHÁ-LO MAIS VIVO,MAIS LEVE,MAIS
ELÁSTICO DO QUE OS OUTROS,SATURADOS DE TRADIÇÃO E AUTORIDADE,DE
CONVENCIONALISMO E CERIMONIAL".

2."..COMBATI A ESCRAVIDÃO COM TODAS AS MINHAS FORÇAS,REPELIA-A COM
TODA A MINHA CONSCIÊNCIA- COMO A DEFORMAÇÃO UTILITÁRIA DA
CRIATURA, E NA HORA EM QUE A VI ACABAR PENSEI PODER PEDIR TAMBÉM MINHA
ALFORRIA,POR TER OUVIDO A MAIS BELA NOVA QUE EM MEUS DIAS DEUS PUDESSE
MANDAR AO MUNDO; E,NO ENTANTO,HOJE QUE ELA ESTÁ EXTINTA,EXPERIMENTO UMA SINGULAR NOSTALGIA : A SAUDADE DO ESCRAVO"...

3."A ESCRAVIDÃO PERMANECERÁ POR MUITO TEMPO COMO A CARACTERÍSTICA NACIONAL DO BRASIL.ELA ESPALHOU POR NOSSAS VASTAS SOLIDÕES UMA GRANDE
SUAVIDADE; SEU CONTATO FOI A PRIMEIRA FORMA QUE RECEBEU A NATUREZA
VIRGEM DO PAÍS -E FOI A QUE ELE GUARDOU; ELA POVOOU-O COMO SE FOSSE
UMA RELIGIÃO NATURAL E VIVA,COM OS SEUS MITOS,SUAS LEGENDAS,SEUS
ENCANTAMENTOS; INSUFLOU-LHE SUA ALMA INFANTIL,SUAS TRISTEZAS
SEM PESAR,SUAS LÁGRIMAS SEM AMARGOR,SEU SILÊNCIO SEM CONCENTRAÇÃO,SUAS ALEGRIAS SEM CAUSA,SUA FELICIDADE SEM DIA
SEGUINTE...É ELA O SUSPIRO INDEFINÍVEL QUE
EXALAM AO LUAR AS NOSSAS NOITES DO NORTE.

4.”QUANTO A MIM,ABSORVIA-A NO LEITE PRETO QUE ME AMAMENTOU; ELA
ENVOLVEU-ME COMO UMA CARÍCIA MUDA TODA A MINHA INFÂNCIA;ASPIREI-A
NA DEDICAÇÃO DE VELHOS SERVIDORES QUE ME REPUTAVAM O HERDEIRO
PRESUNTIVO DO PEQUENO DOMÍNIO DE QUE FAZIAM PARTE....ENTRE MIM E
ELES,DEVE TER-SE DADO UMA TROCA CONTÍNUA DE SIMPATIA - DE QUE
RESULTOU A TERNA E RECONHECIDA ADMIRAÇÃO QUE VIM MAIS TARDE A
SENTIR PELO SEU PAPEL".

5."PELA PEQUENA SACRISTIA ABANDONADA PENETREI NO CERCADO ONDE ERAM
ENTERRADOS OS ESCRAVOS...DEBAIXO DOS MEUS PÉS ESTAVA TUDO O
QUE RESTAVA DELES.SOZINHO ALI,INVOQUEI TODAS AS MINHAS REMINISCÊNCIAS,CHAMEI-OS A MUITOS PELOS NOMES,ASPIREI O AR
CARREGADO DE AROMAS AGRESTES,QUE ENTRETÉM A VEGETAÇÃO SOBRE SUAS
COVAS...".


6."OH,OS SANTOS PRETOS ! SERIAM ELES OS INTERCESSORES PELA NOSSA
INFELIZ TERRA,QUE REGARAM COM SEU SANGUE,MAS ABENÇOARAM
COM SEU AMOR !"....

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POR QUE O TEMA DA RACA BRASILEIRA APARECE TÃO FORTEMENTE EM SUAS ÚLTIMAS MUSICAS ? O QUE É QUE PROVOCOU O INTERESSE POR ESSE TEMA AGORA ?

Caetano Veloso : "Interesso-me por esse assunto desde
menino.Não parei de me interessar.Mas quando eu ia comecar a fazer esse novo
disco,eu so pensava nos sons : queria fazer experimentacoes com o modo de
gravar a voz com percussao.Eu nem sabia que cancoes eu iria cantar ou
compor.Mas,assim que recebi de presente o livro "Minha Formação",fiquei
maravilhado com Joaquim Nabuco.Desde o início,fiquei impressionado com a
amplidão da visão e o estilo de Joaquim Nabuco.O que me impressionou também foi
o modo de Joaquim Nabuco ver a política internacional no século XIX,a situação
na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos.O comentário que ele faz dos
Estados Unidos dá uma impressão uma lucidez total,uma total ausência de
provincianismo. É uma voz de uma verdadeira elite brasileira assim como a gente
gostaria de poder sonhar.E,no entanto,a gente tem ! Fiquei maravilhado com
Joaquim Nabuco antes de chegar a essa questão da raça.Quando Joaquim Nabuco
entra nas lembranças do abolicionismo - ele que foi um dos líderes mais
notáveis da campanha da abolição -,faz uma reflexão sobre uma lembrança de
infância quando o assunto da escravidão apareceu para ele como um problema a
ser resolvido.Fiquei apaixonado por um texto magnífico que comeca dizendo: a
escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do
Brasil.A frase entra com grande impacto.O que vem depois vai aprofundando o
problema para um lado que a gente não espera.Eu achei que ali estava um texto
de densidade e beleza,uma expressão profunda do Brasil.Eu disse assim : "Vou
imprimir este texto de Joaquim Nabuco na primeira página do libreto do meu novo
disco". Não pensei,num primeiro momento,em musicar aquelas palavras de Joaquim
Nabuco.Terminei musicando,coisa que me parecia muito difícil,porque era um
texto em prosa,reflexivo,mas com um certo tom lírico.O assunto entrou no meu
disco com mais peso do que eu imaginava".

JOAQUIM NABUCO CONFESSOU,EM "MINHA FORMAÇÃO",QUE TINHA UM SENTIMENTO CONTRADITÓRIO : ELE,QUE TINHA LUTADO COM TODAS AS FORÇAS CONTRA A ESCRAVIDÃO,CONFESSOU QUE SENTIA O QUE ELE CHAMAVA DE "SINGULAR NOSTALGIA" - A
SAUDADE DO ESCRAVO. O QUE DEIXOU VOCÊ FASCINADO COM JOAQUIM NABUCO FOI O SENTIMENTO AMBÍGUO QUE ELE TEVE EM RELAÇÃO A ESSE TEMA?

Caetano Veloso : "Eu já estava muito fascinado por ele antes de
ele confessar essa sutileza do espírito individual diante da questão.É um
momento complexo e ambíguo do "Minha Formação".Talvez seja o momento mais
intimamente confessional de todo o livro.Depois dessa confissão é que vem o
trecho que me levou a querer musicar.O assunto terminou dando o título a meu
disco - que se chama "Noites do Norte".Mas essa confissão permitiu que ele
retomasse a idéia de que a escravidão tinha organizado -ou desorganizado! - a
vida brasileira de tal maneira que o Brasil precisaria de muito tempo e muito
esforço para desfazer o trabalho da escravidão.É um bordão do pensamento de
Joaquim Nabuco,que,neste momento de "Minha Formação",aparece sob a luz do
reconhecimento de um sentimento contraditório : aquele que mais lutou pela
abolição da escravatura confessa que sentia saudade do escravo. Para mim, essa
reflexão pessoal de Joaquim Nabuco já é uma revelação de algo muito profundo
que é o Brasil. Quando vi que,logo em seguida,ele expande esse sentimento para
um retrato abrangente do Brasil,eu disse : é mais do que poesia !"..

QUE OUTRO HORROR BRASILEIRO, ALÉM DA ESCRAVIDÃO, SERIA CAPAZ DE DESPERTAR SENTIMENTOS AMBÍGUOS EM VOCÊ?

Caetano Veloso : "Eu estou embebido dessa visão do Joaquim
Nabuco.Venho lendo e relendo "Minha Formação".Já reli - muito! - "O
Abolicionismo".Assim como fêz Joaquim Nabuco,acho difícil,neste momento,não
atribuir todos os horrores nacionais à escravidão- que ele descreve como tendo
formado o Brasil.
Joaquim Nabuco atribuía à escravidão a estrutura do
pensamento do homem brasileiro como ser social : é a sensação paralisadora que
o brasileiro tem de que tudo se deve às autoridades oficiais; toda queixa deve
ser feita contra elas;todas as exigências devem ser feitas a elas;quase nenhuma
responsabilidade resta para o cidadão.É essa vontade louca de cada brasileiro
se tornar um funcionário público,uma estrutura que leva a coisas que me
indignam. Sou,por exemplo,um obsessivo pela obediência às leis do
trânsito.Sempre me pareceu absolutamente inaceitável que as pessoas no Brasil
não considerem o sinal de trânsito um sinal nítido e simples,uma lei de
convivência social paradigmática de todas as outras leis de convivência social.

Mas vejo também a linguagem corporal, extremamente sensual e
bonita dos brasileiros nas ruas.Estrangeiros - que às vezes trago ao Brasil -
ficam fascinados com esse jeito de ser e de andar na rua dos brasileiros - que
transmite uma impressão de felicidade física.O diretor do Museu Gugenheim,que
veio ao Brasil para escolher a cidade onde vao instalar uma filial do
museu,disse,depois de um dia : "Quero morar aqui !".Pelo modo de as pessoas de
moverem ! Isso me parece misteriosamente vinculado à dificuldade brasileira de
entender o aspecto abstrato de leis tão simples quanto as de
trânsito.Antes,muito antes de ler o que Joaquim Nabuco escreveu sobre a
escravidão,eu pensava assim.Eu manterei,sempre,minha posição pública contra
o desrespeito às leis do trânsito,mas,intimamente, olho para esse fenômeno com
amor e ternura.Vejo que é parte de alguma coisa preciosa que não devemos
perder - ainda que aprendamos a respeitar os sinais de trânsito !
Eduardo Gianetti - um sujeito que admiro imensamente,adoro o
jeito de ele pensar desde que li o livro que ele escreveu sobre economia - me
perguntou uma vez se eu achava que o Brasil poderia passar a ser
organizado,nesse sentido de parar no sinal de trânsito.Não vejo necessariamente
uma contradição insolúvel.

Isso leva também ao fato de o Brasil estar sempre visto como a
um milímetro de ser apenas um paraíso de turismo sexual.Tenho sentimentos
ambíguos semelhantes aos que encontrei em Joaquim Nabuco com relação à
escravidão. Talvez o desrespeito às leis de trânsito venha de muita coisa que a
escravidão nos deixou.O sujeito que,por possuir um automóvel,se julga no
direito de fazer o que quer que seja - e fura o sinal vermelho - se acostumou
a uma sociedade de senhores e escravos,não a uma sociedade de cidadãos que
devem se respeitar em pé de igualdade.A repressão se mostra tímida diante do
proprietário do automóvel,mas se mostra violenta diante dos despossuídos. Isso
é parte da formação do Brasil - uma vergonha,uma coisa tétrica;mas,algo em tudo
isso é precioso,é bonito,leva a essa sensualidade do modo de ser do brasileiro
na rua e a essa doçura no trato,uma série de coisas bonitas que o Brasil não
deve perder.
O modo de você ver as pessoas na rua leva o Brasil a estar sempre
em risco de se tornar uma espécie de paraíso do turismo sexual- um sintoma do
legado da escravidão,porque é uso do corpo do outro por quem pode usar. Mas o
país que corre o risco de ser um ambiente de turismo sexual tem,em
princípio,algo de precioso e maravilhoso - que não deve ser destruído por um
moralismo que venha a fazer uma assepsia da vida cotidiana que nos livrasse do
perigo de ver as nossas meninas, os nossos meninos prostituídos por
estrangeiros.
O risco que nós corremos,sob muitos aspectos,é maravilhoso.Não
havendo este reconhecimento,essa limpeza não interessa. Então é nessa vertente
de ambigüidades de julgamento moral que eu me identifiquei muito profundamente
com esse trecho de Joaquim Nabuco sobre a escravidão. Mas admiro também
imensamente todo o resto - que é mais racional e não ambíguo".

O QUE É QUE IMPRESSIONOU VOCÊ NO ARTIGO QUE O VICE-PRESIDENTE MARCO MACIEL ESCREVEU SOBRE O MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL?

CAETANO VELOSO : "Eu li o artigo de Marco Maciel no Dia Nacional
da Consciência Negra.Achei de grande importância,porque é um artigo que,alem de
correto, não teve pudores de ir nos pontos essenciais,ao propor a adoção
de medidas de reparação histórica aos negros.O vice-presidente da República,um
homem do PFL - um partido de centro-direita ou considerado no espectro político
brasileiro como estando à direita - escreveu um artigo em que diz não tudo o
que deve ser dito,mas o que uma autoridade como ele na melhor das hipóteses
diria. O artigo é muito bom ! Reputo de grande valor histórico.Não tenho lido
por parte de políticos de esquerda textos sobre o mesmo assunto tão nítidos e
tão corretos.Agora,vão dizer "olhem o Caetano Veloso com o PSDB,Fernando
Henrique Cardoso, Antônio Carlos Magalhães,Marco Maciel,ele está em cima do
muro...". Mas ninguém pode medir se artista é direita, esquerda ou centro.Não
pode julgar um artista como se o que ele faz devesse ser pesado a partir dessas
categorias !.

Dizer que um artista está em cima do muro é uma coisa
estúpida.Porque necessariamente o artista deve pairar muito acima do muro !.A
verdade 'e essa ! O jeito de Baden Powell tocar violao era direita ou esquerda
?.Gostaria que alguem me dissesse.Eu acho chato querer vincular".

HÁ EXATAMENTE UM SÉCULO, EM 1900, JOAQUIM NABUCO ESCREVEU A FRASE QUE HOJE VOCÊ CANTA, "A ESCRAVIDÃO PERMANECERÁ POR MUITO TEMPO COMO A CARACTERÍSTICA NACIONAL DO BRASIL", QUAL É HOJE O GRANDE TRAÇO DESSA HERANÇA NA VIDA BRASILEIRA ?

Caetano Veloso : "O mais evidente é a favelização das grandes
cidades e a estatística vergonhosa e escandalosa da predominância de negros
entre os que vivem na situação de favelado.Isso é o resultado mais imediato e
mais evidente. Mas há outros,muito mais sutis.Em "O Abolicionismo",Joaquim
Nabuco já registra esse fenomeno no nascedouro,ao dizer que estava se
formando uma aglomeração de pessoas jogadas perto das cidades".

VOCÊ UMA VEZ ESCREVEU QUE ESSA MISTURA DE RAÇAS NO BRASIL NÃO ERA GARANTIA "NEM DE DEGRADAÇÃO NEM DE UTOPIA GENÉTICA".SE VOCÊ FOSSE PROCURAR UMA
MÁ HERANÇA DESSA MISTURA, VOCÊ CITARIA O QUÊ ? E A BOA HERANÇA, QUAL FOI?

Caetano Veloso : "Eu estou muito impregnado de Joaquim
Nabuco.Já estou quase virando um pernambucano : é uma paixão. A maior honra
hoje em dia é que minha casa,no Rio,fica pertinho da saída da rua Joaquim
Nabuco.Fico honradíssimo.Eu estou tão embebido do pensamento de Joaquim Nabuco
que quando ouço uma pergunta como essa me lembro do que ele disse ainda na
campanha do abolicionismo - uma visão diferente da minha.É difícil citar,porque
é uma questão complexa,mas ele via uma coisa muito má na mistura de uma raça
que estava num estágio atrasado com uma raça que,por estar em estágio mais
adiantado de civilização,agia brutalmente.A combinação da submissão dos negros
com a brutalidade dos brancos era alguma coisa que só poderia criar uma
formação nacional débil e má.Mas Joaquim Nabuco diz coisas lindas,como,por
exemplo,que grande parte da atitude servil do negro apresentava uma
superioridade humana e moral que chegava às raias do sublime.Por essa
razão,ele diz que,em muitos casos,tinha saudade dos escravos - um sentimento
ambíguo. Joaquim Nabuco viu exemplos de abnegação,entrega,despojamento e
ausência de egoísmo em escravos que chegavam à raia da santidade.Isso poderia
vir a compensar o que havia de brutal na atitude do senhor.Para ele,
uma nação fundada nessa relação tem todas as probabilidades de não funcionar
bem e ter um futuro sombrio.

Há um momento em que ele cita um pensador inglês que disse que
os negros nos Estados Unidos nunca chegariam a uma verdadeira felicidade. Mas
ele via uma grande possiblidade de felicidade para os negros do Brasil,no
futuro,porque aqui não havia aquela separacao.Naturalmente,não é o que a
realidade de hoje confirma.Não podemos de forma alguma dizer que esta é a nossa
realidade.Em todo caso,os escravagistas do sul dos Estados Unidos mantinham a
nitidez da superioridade que justificava a escravização da raça negra.Nem os
escravos americanos nem os seus filhos podiam ter participação na
cidadania.Não podiam nem pleitear igualdade.Depois da abolição americana,era
essa a posição dos racistas do sul.Aqui no Brasil se deu algo que lá teria sido
um escândalo : os negros alforriados podiam ter escravos ! Podiam ser
senhores.O fato de ele poder ser escravo significa que ele poderia ter o status
de senhor.Joaquim Nabuco dizia que a escravidão no Brasil foi muito mais
hábil,porque ela mexe em todos os interstícios da sociedade, enquanto que nos
Estados Unidos,não.Isso dá uma possibilidade ao Brasil : se um dia superar os
problemas que a escravidão trouxe,o Brasil pode realizar possibilidades que os
Estados Unidos jamais poderão.

O fato de os escravos brasileiros,uma vez alforriados,poderem
ser senhores significava que não havia um impedimento de base racial,como nos
Estados Unidos,para que,em principio,pessoas de qualquer cor viessem a
participar da cidadania com plenitude. Joaquim Nabuco ja dizia no seculo
dezenove o que muita gente pensa que so se disse no Brasil depois dos anos
setenta,com o movimento negro e a influencia americana : a escravidao
brasileira se mostrou muito mais habil do que no sul dos Estados Unidos,porque
pode se perpetuar e se infiltrar por todos os meandros da sociedade
brasileira,os mais sutis,inclusive.Isso nao quer dizer que nao haja vantagem na
mistura e na confusao de hierarquia- uma caracteristica que faz com que o
movimento negro no Brasil nao possa ser parecido com o dos Estados Unidos.Isso
e' mau e bom.E' algo que os norte-americanos nunca tiveram nem pouderam ter.

Se nós conseguirmos crescer economicamente e superar
aleijões que a escravidão deixou na nossa sociedade,temos uma matéria prima
humana que os Estados Unidos nem sequer conhecem".


“A VONTADE DE SER AMERICANO”


NUMA DAS MÚSICAS,VOCÊ TRATA DA VONTADE DE RAUL SEIXAS DE "SER AMERICANO".HÁ UM SÉCULO JOAQUIM NABUCO TRATAVA DO PROBLEMA DE COMO NÓS BRASILEIROS VÍAMOS OS ESTRANGEIROS. NUM TRECHO DE MINHA FORMAÇÃ0O,ELE DIZ QUE O
AR LÁ É "MAIS VIVO E MAIS LEVE" QUE OUTROS,"SATURADOS DE TRADIÇÃO E CONVENCIONALISMO". OS AMERICANOS ESTARIAM, SEGUNDO JOAQUIM NABUCO,"INVENTANDO A VIDA, COMO SE NADA TIVESSE EXISTIDO ATÉ ENTÃO". VOCÊ, QUE ACABA DE SE
TRANSFORMAR EM DISCÍPULO DE JOAQUIM NABUCO, TEM OU TEVE ESSE SENTIMENTO DIANTE
DOS ESTADOS UNIDOS?

Caetano Veloso :"Joaquim Nabuco vai fundo também na crítica à
idéia de igualdade,tal como ela era vivida pelos americanos.Diz que os
americanos viviam a ilusão de que tinham uma liberdade individual que
resultava numa igualdade de cada indíviduo muito mais desenvolvida do que na
Inglaterra,por exemplo.Para ele,que era anglófilo,a Inglaterra tinha uma
solução que oferecia resultados melhores,porque a igualdade que se esboçava era
feita com conteúdos de nobreza moral que os americanos desconheciam"

MAS VOCÊ TEM O PENSAMENTO DE QUE,COMO JOAQUIM NABUCO DIZIA,OS AMERICANOS ESTAVAM REINVENTANDO A VIDA ?

Caetano Veloso : "Eu tenho esse pensamento.É o que a gente
sente estando nos Estados Unidos - ou de longe.É o aspecto mais positivo e
animador dos Estados Unidos.Interessa,porque parece um sopro de ar puro na
história da humanidade.Mas Joaquim Nabuco escreveu que os americanos,quando
dizem que cada indivíduo pode ter liberdade,estao falando de norte-americanos
brancos. Chineses e dos negros estao, na mente do americano,
abaixo da condição de humanidade.Joaquim Nabuco dizia que,
quando um americano olha para seus primeiros vizinhos na América Latina - o
mexicano ou cubano -,para não falar dos outros latino-americanos,ele faz com
um desprezo nunca visto de um ente humano para outro em nenhuma outra situação.
Aos olhos de Joaquim Nabuco,essa atitude desqualifica o valor espetacular da
individualidade que a grande democracia americana preconizava e
preconiza.Hoje,nos Estados Unidos,pensa-se em multiculturalismo,mas é um
prosseguimento de uma linha puritana que não se sabe onde pode dar.Quando a
gente olha para os Estados Unidos,no entando,sente uma atração por coisas como
" ar puro" de que Joaquim Nabuco falou".


VOCÊ AINDA ACREDITA INCONDICIONALMENTE NA IDÉIA DE QUE O BRASIL VAI SER -OU É- UM PAÍS ORIGINAL ?

Caetano Veloso : "Acredito- mas não incondicionalmente.Se os
países são originais,o Brasil é muito original ! O que aconteceu na Argentina
dá a ela características que fazem do país algo diferente do
Chile.Eu,sinceramente,quando estava no Chile,senti uma saudade horrível da
Argentina.Parecia que a Argentina era a Bahia ! O Chile era tão formal, trazia
uma mistura tão forte de europeísmo com neo-yuppismo americano que eu ficava
com saudade da Argentina e do Uruguai,sem falar no Brasil.

O fato de um país desse tamanho falar português e ter um autor
como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20
faz do Brasil um grande segredo que nós guardamos e queremos revelar.
É uma experiência única! Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e
sermos um país de dimensões continentais na América do Sul significam um
acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma graça.É tão grande o
acúmulo de desvantagens,num país ao mesmo tempo tão interessante,que a gente é
forçado a ler isso como uma benção.

Isso não é uma questão apenas de eu querer me salvar já que eu
nasci no Brasil e sou mulato do interior da Bahia,filho de gente do povo.
Minhas duas avós nunca se casaram.Cada uma teve filhos com mais de um homem.
Ou seja : é gente do povo brasileiro mesmo! Meu pai era mulato.Eu já estou
salvo !
Qualquer mente inteligente concluirá que o país tem um acúmulo
considerável de peculiaridades - desvantajosas em princípio, mas não malditas
em si mesmas - que nos leva a desconfiar,com toda razão,de que tudo significa
uma benção"..



ALÉM DA REFERÊNCIA DIRETA A JOAQUIM NABUCO,VOCÊ FAZ PELO MENOS DUAS HOMENAGENS NO DISCO, UMA A ANTONIONI, PARA QUEM VOCÊ COMPÔS UMA MÚSICA E OUTRA A JORGE BEM DE QUEM VOCÊ REGRAVOU ZUMBI. É POSSÍVEL COMPARAR O
SIGNIFICADO DE UM E DE OUTRO SOBRE O QUE VOCÊ FAZ?

Caetano Veloso : "Além do Joaquim Nabuco,tenho no disco três
personagens explicitamente homenageados : Raul Seixas, Michelangelo Antonioni e
Jorge Ben. Raul Seixas é homenageado numa canção que se chama "Rock in Raul".
Acabei de ouvir um disco de Tom Zé que tem uma música sobre Raul Seixas.
É como se fosse um cordel que narra a chegada de Lampião e Raul Seixas no
FMI.Os dois estão enfrentando o FMI e Washington.Já no meu disco,Raul aparece
como um sujeito que superexibia a "vontade fela da puta de ser americano".Era o
como Raul Seixas falava - um modo baiano antigo de falar;acho que em
Pernambuco tambem.Pode parecer,a ouvidos mais tolos,que a minha canção
apresenta uma desaprovação seja do Raul seja da vontade de imitar os
americanos. Em primeiro lugar,não desaprovo Raul,um dos meus artistas
favoritos. O primeiro disco de Raul Seixas é um dos melhores já feitos no
Brasil - uma obra-prima. Não havia quase nada feito por outros artistas
brasileiros - pode pensar nos maiores nomes - de que eu gostasse mais.
Havia muito pouca coisa que eu chegasse a gostar tanto quanto eu gostava de
"Ouro de Tolo".
Nunca vivi,como ele e muita gente viveu e vive,a vontade imediata
de ser americano.Não foi assim comigo e com muitas outras pessoas da minha
geração,como Chico Buarque,Paulinho da Viola, Glauber Rocha, Cacá Diegues.
Mas aquele sentimento - mundial diante do que os Estados Unidos se tornaram -
se manifestou ainda mais fortemente nos paises da América. Era a vontade de
chegar à situação do americano.
É como se a vida que podíamos levar não fosse a verdadeira vida.
E' como se,atraves dos filmes,canções e reportagens nas revistas,a gente
visse que ali e' que se vivia a verdadeira vida.Assim como tantos outros,Raul
não queria viver o que não fosse a verdadeira vida. Rita Lee contou numa
entrevista que Raul Seixas disse a ela : "Sou americano.Apenas nasci no país
errado".Todo o negócio do rock vem dessa vontade.

Mas não é só o rock : a Bossa Nova tem muito disso.João Gilberto é
que deu um nó,uma virada.Mas Johnny Alf,Dick Farney,os proprios nomes que eles
botaram em si mesmos,as musicas que eles fizeram....Aloísio de Oliveira - um
letrista espetacular,uma pessoa maravilhosa,um ghomerm que foi tudo para Carmen
Miranda,o namorado,o companheiro,o sujeito que amparou Carmen nos Estados
Unidos,autor de letras lindas com Tom Jobim - tinha aquela vontade louca de ser
americano.Mas,em primeiro lugar,é difícil querer exigir que essa vontade não
apareça.É alguma coisa vivida desde a infância.Também há a admiração do
desenvolvimento harmônico e da sofisticação da música popular americana em
comparação com as outras.Quem tem bom ouvido musical e ouve uma música
harmonicamente mais rica e ritmicamente mais inventiva se sente atraído por
ela,consegue entendê-la, quer reproduzí-la, quer participar daquele mundo.É uma
vontade legítima! O sujeito vê naqueles grupos de rock a sensação de que havia
uma pujança de energia que tinha de ser extravasada em música barulhenta e
roupas espalhafatosas.Então,o sujeito tem,desde criança,uma vontade genuína
de fazer aquilo.Depois de adulto,o que ele faz com aquela vontade genuína é uma
arte que ao mesmo tempo a exiba e e comente com alguma ironia. Não com a ironia
dos tropicalistas - que não vieram daí.Nós não viemos da vontade de
imitar.Eu,sobretudo,não - nem tão pouco Gil,Gal,Bethânia,Tom Zé.

Toda a linhagem do rock vem daí.A música de Raul Seixas trata
disso.Numa frase rápida,a letra diz "e hoje olha os mano..." . É uma menção aos
rappers brasileiros - que também demonstram uma grande vontade de se
identificarem com os americanos.Os nomes que eles escolhem para si são nomes em
ingles,parecidos com os dos negros americanos.É imensamente saudável,porque
apresenta uma vontade de discutir e problematizar o modo como se dispõe o
panorama racial no Brasil.Preferem se chamar Ice Blue,Mano Brown,Carlinhos
Brown.Ganham o nome de James Brown.Isso é tudo muito complexo para mim.É o
estÍmulo da minha vida.
Mas,quando vejo uma vontade muito destrutiva de simplesmente
imitar os americanos - e empobrecer a vida brasileira -,eu digo assim : " Essa
gente merece um Ariano Suassuna". Adoro quando Suassuna mantém aquela
ranzinzinice.Não penso como ele.Penso de uma maneira que ele já disse repetidas
vezes que não aceita.Eu entendo que as pessoas,se traírem essa vontade
genuína,estarão sendo menos brasileiras.Porque é muito profundo,num verdadeiro
brasileiro,sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os
norte-americanos ! Não é a única coisa que pode acontecer com os
brasileiros.Mas é um muito frequente,muito compreensível e muito profundo na
formação de uma personalidade brasileira.

Os rappers trazem uma conotação de crítica ao panorama racial
brasileiro.Dizem coisas que a gente não acha em outras áreas da produção.O
rap,para mim,é mais som do que conversa.Eu entendo mais uma letra de uma música
cantada do que um rap.Mas ouvi tanto o disco dos Racionais Mcs que já me
acostumei.Aquilo é de uma beleza enorme.Falam de versos "violentamente
pacíficos" .A gente vê ali uma pujança e uma liberdade de criação artística.Se
eles não tivessem a vontade louca de imitar os americanos,a gente não estaria
hoje contando com eles.Assim é o caso de Raul Seixas.Por esse motivo é que falo
na letra "e hoje olha os mano".Tudo e' exemplo de dignificação dessa atitude.

Quanto às outras personalidades que estão homenageadas no
disco: Jorge Ben é um caso espetacular de saúde cultural,é rock com samba,um
brasileiro preto do Salgueiro que terminou indo viver em São Paulo um período
crucial da vida.Ficou quase tão ligado a São Paulo quanto Chico Buarque ficou
ao Rio de Janeiro.Joge Ben se ligou ao iê-iê-iê em São Paulo porque não podia
aparecer no Fino Bossa : misturava rock com samba.O disco dos Racionais- por
sinal - abre com uma música de Jorge Ben,"Jorge da Capadócia". É preciso ver
que Jorge Ben,como João Gilberto de uma maneira totalmente diferente,fica num
lugar onde essas coisas acontecem.

Jorge Ben tem muito mais vontade de imitar o americano que João
Gilberto.Mas Jorge Ben criou uma solução única,em que a brasilidade entra não
apenas com um percentual importante,mas também como uma função na estruturação da personalidade artística.É diferente de Tim Maia - um artista
interessantíssimo.Por essa razão,Jorge Ben é mestre dos pagodeiros,rappers,
tropicalistas e roqueiros.A gente encontra Jorge Ben nos neo-bossanovistas,nos
discos do Milton Nascimento,nos pagodes,nos Racionais,nos meus discos.Desde os
anos setenta,sempre gravo músicas de Jorge Ben.Os Paralamas do Sucesso
gravam,todo mundo grava.Porque ele é uma solução espetacular.Dá uma sensação de
saúde cultural sem os amparos do status de uma educação de alta classe
média.Não é assim.Jorge Ben não é letrado : é um grande poeta,um grande
solucionador cultural,um sujeito imenso.

Eu me sinto presente ali dentro do disco dos Racionais que
começa com uma música de Jorge Ben que também gravei.Há uma coisa que precisa
ser dita,porque tem a ver com o falei sobre Raul Seixas e Jorge Ben : não é
verdade de maneira nenhuma que grupos de rap,como os Racionais,sejam alguma
coisa destacada da "MPB",algo que se opõe a ela.Tenho horror a esse negócio de
"MPB"- parece uma doença que deu na música popular brasileira.Eu acho errado.
Nunca me identifiquei com essa idéia.O Tropicalismo veio para dizer que não tem
nada a ver com isso.Eu mantenho até hoje essa atitude.Ouvem-se,no disco dos
Racionais Mcs,ecos da minha gravação da música de Jorge Ben - confirmados pelos
componentes dos Racionais,pessoalmente,em conversa comigo.É algo importante,
porque os vincula explicitamente - e o que eles fazem - à tradição da música
popular brasileira.O vínculo já existiria,necessariamente.Mas há um vínculo de
eleição por parte dos artistas.
Num momento crucial,numa das letras mais lindas do
disco,Mano Brown diz assim: "Eu sou apenas um rapaz latino-americano".É a frase
do Belchior que,ali citada,marca a continuidade de história da Música Popular
Brasileira,o diálogo interno da MPB,o que não quer dizer que não haja
diferenças enormes.Raul Seixas sempre foi meu amigo.Vi o último show que ele
fez,aqui no Rio,com Marcelo Nova.Raul já estava quase sem poder falar,sem poder
cantar.Fui homenageá-lo,conversar com ele,porque era meu amigo desde que
voltei de Londres.Nunca tivemos briga,rusga,discordância,nada - nem pessoal nem
artística.Raul Seixas queria ser feito um roqueiro que falava inglês,queria
estudar numa high school,usava bota como se fosse do oeste,vivia vestido de
Elvis Presley. Eu não : desde menino,nunca tive vontade disso.Meu negócio é
outro : eu gostava de Sílvio Caldas.Mas entendi essas pessoas.Vi o que
significava o gosto pelo rock,vejo nos manos hoje.

Quanto a Antonioni : tenho com o cinema italiano uma dívida
imensa -que venho pagando pouco a pouco.Eu gostava dos musicais americanos,mas
tinha uma grande paixão pelos filmes neo-realistas italianos e pelos
desdobramentos do neo-realismo.Fiz uma música sobre Julieta Masina,o que me
levou a ser convidado para fazer um espetáculo em homenagem a ela e a Federico
Felini - que,gravado,terminou saindo em disco.
Depois de ter visto todos os filmes de Antonioni,tive um
contato com ele.A admiração às vezes assombra.Tive um contato pessoal com
Antonioni,graças a meus dois amigos e cineastas brasileiros Júlio Bressane e
Cacá Diegues.Um não se dá com o outro,mas ambos adoram Antonioni.Os dois
convidaram-no para jantar.Antonioni aceitou os dois convites.Todos dois me
convidaram também.Antonioni,então,riu muito,porque eu estava nos dois
grupos,totalmente diferentes.Antonioni não fala,depois do derrame que
sofreu,mas se comunica através da mulher.Quando fui a Roma,tive a surpresa de
vê-lo na platéia do meu show "Fina Stampa".Nem vi que ele estava na
platéia,mas,quando acabou o show,eles vieram ao camarim para falar comigo.
Antonioni tinha ficado muito bem impressionado.
Quando fiz em Roma o show que saiu do disco Prenda Minha,
ele estala na platéia novamente.Voltamos a conversar.Curiosamente,ele não fala,
desde que sofreu o derrame,há oito anos,mas se comunica -muito- através da
mulher,dá opiniões através de gestos.É muito bem-humorado.Gostou muito do show.
Já devo tanto a essa gente,já devo tanto a esse homem.Tento ir pagando pouco a
pouco minha dívida com o cinema italiano - que,agora,acaba de crescer com o
filme de Bertolucci,"O Assédio".Nunca fui fã de Bertolucci,mas "O Assédio" é
uma obra-prima. Eu digo : meu Deus,continua crescendo o meu débito com os
cineastas italianos. Fiz,então,uma música que se chama "Michelangelo
Antonioni".Fiz a letra em italiano,uma língua que mal falo.Organizei os poucos
versos para ficar tudo direito e mandei para Antonioni,para que ele me dissesse
se tinha aprovação.Fiquei muito feliz ao receber uma resposta dizendo que ele e
a mulher tinham tinham aprovado com entusiasmo.Gostaram da canção".

AO EXPLICAR PORQUE ESTAVA LANÇANDO TÃO POUCOS DISCOS, CHICO BUARQUE DISSE TEXTUALMENTE,NUMA ENTREVISTA RECENTE,QUE A MÚSICA POPULAR TALVEZ
SEJA UMA ARTE DE JUVENTUDE.COM O PASAR DO TEMPO,OS COMPOSITORES JÁ NÃO TÊM AQUELA ESPONTANEIDADE DOS 20 ANOS. VOCÊ, QUE LANÇOU O ÚLTIMO DISCO AUTORAL HÁ 3
ANOS, TAMBÉM TEM TIDO ESSA SENSAÇÃO ?

Caetano Veloso : "Não tenho - e Tom Zé não me deixa ter.Tom
Zé fêz,aos sessenta e quatro anos,um disco que é o mais jovem que ele já fêz.
Fêz com uma tal vontade que parece que ele vai fazer trezentas músicas.Deve ser
porqueo disco foi feito no Brasil.Tom Zé voltou a gravar aqui.Desde os anos
setenta -ou oitenta,no máximo - ele não gravava no Brasil.O disco,então,ficou
vital.
Quando li esta declaração de Chico numa entrevista,eu me
identifiquei imediatamente com ela,concordei com ele : achei que a música
popular brasileira é uma arte de juventude.Você precisa de estar com disposição
para viajar,cantar,subir no palco,compor músicas,ter aquela animação ingênua de
quem acha que pode fazer mais canções.Escrever livros ou fazer filmes já se
assenta mais para uma pessoa mais velha.Por isso,fiz um filme nos anos oitenta
pensando em fazer outros.Pensei : já estou ficando velho.Então,faço só cinema -
um negócio que assenta mais do que música popular para alguém mais velho.Também
pensei em escrever livros,mas não gosto de ficção para mim.Eu tinha vontade de
escrever outro livro,porque gostei muito de escrever "Verdade Tropical".Pensei
em escrever um livro sobre raça no Brasil - não um livro de scholar,mas um
estudo,uma reflexão pessoal sobre minha experiência.Talvez um dia eu escreva".
Não escrevi,mas li Joaquim Nabuco".

O HISTORIADOR EVALDO CABRAL DE MELO RECLAMA DE QUE A OBSESSÃO EM PROCURAR UMA IDENTIDADE NACIONAL É TÍPICA DE PAÍSES INSEGUROS. VOCÊ ACHA QUE A MÚSICA, NO CASO DO BRASIL, PODE AJUDAR O PAÍS A ACHAR ESSA TAL
IDENTIDADE ? VOCÊ TEM ESSA PRETENSÃO ?

Caetano Veloso : "A obsessão em encontrar uma identidade
nacional evidentemente é sintoma de uma insegurança do país.O Brasil tem todas
as razões históricas para se sentir inseguro.
O que falo não pode nem se contrapor à fala de um
historiador - um sujeito que se dedica a estudar e a levantar
dados.Eu,compositor de música popular,tinha,pessoalmente,na época do
Tropicalismo,uma atitude de enfrentar e ao mesmo tempo "desconstruir",como se
diz hoje em dia,a questão da identidade nacional.Nós fizemos um grande
escândalo anti-nacionalista,demonstramos ostensivo desprezo pela idéia de busca
de raízes da autenticidade nacional.O primeiro apelido do Tropicalismo foi "som
universal".O nome "Tropicalismo" veio depois.

Gil gostava da expressão "som universal".Também gostava de
"pop".Eu não gostava tanto de que se chamasse Tropicalismo porque achava que
era um rótulo que ia prender a gente nos trópicos.Era o que não
queríamos.Gostávamos do desrespeito a um estilo nacional-popular que era
buscado então.A gente queria desrespeitar esse negócio.O filme "Terra em
Transe" tem um desespero em relação à identidade brasileira.Há uma grande
agressividade em relação a esse tema.Vivia-se,ali,o auge da obsessão com a
identidade nacional.Isso fêz a questão da busca de identidade entrar em crise
- ou em transe.Isso me interessou muito logo que vi o filme.
Talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade
do que o cinema e a literatura.Fizemos coisas que eram um desrespeito à própria
busca da identidade,embora tivessem a ambição de resolver o problema da
identidade nacional.Era como a gente quisesse passar por cima do tema,como se
a gente dissesse : eu considero que,com o desespero da busca de identidade,a
vontade louca de imitar os americanos,a falta de segurança,a incapacidade de
organizar uma sociedade respeitável,com tudo,acho que já tenho identidade
suficiente.Já estou falando diretamente para o mundo,como se dizia no Recife
numa famosa emissão radiofônica :"Pernambuco falando para o mundo".



O JORNALISMO EM DEBATE


O QUE INCOMODA VOCÊ NA POSTURA DA IMPRENSA DIANTE DE LANÇAMENTOS DE DISCOS E LIVROS? POR QUE É QUE VOCÊ RESOLVEU NESTE DISCO PRIMEIRO FALAR ATRAVÉS INTERNET PARA TODO MUNDO?

Caetano Veloso : "Faz algum tempo que sinto um pouco mal
quando vejo nos jornais os lançamentos de discos,livros,peças de teatro,
filmes.Vejo sair na primeira página dos segundos cadernos,no mesmo dia,
matérias parecidas,uma entrevista matada,uma crítica pequenininha,escrita sem
tempo,em consequência de uma combinação feita entre os jornais e as assessorias
de imprensa.Acho que o jornal perde e o produto perde.Porque o produto -um
disco,um livro,um filme - vira uma notícia que é disputada pelos jornais.
Parece que um vai furar o outro.Mas penso,na apreciação de um livro,não seria
cabível pensar que um jornal possa "furar" o outro.Ou alguém tem algo a dizer
de interessante sobre aquele livro -e o fará quando estiver preparado,para que
o jornal seja o melhor possível - ou então reduz-se tudo a uma notícia que será
disputada entre os jornais.O que acontece hoje é que se uma notícia sobre um
lançamento qualquer sair antes em um jornal,o outro não publica nada sobre o
assunto.! Se noticiar,noticia contra ou esconde ou boicota.É um problema que
desmerece a imprensa - e os produtos também,porque eles terminam mal
apreciados criticamente.Os críticos não têm tempo de ouvir !. Recebem um CD com
um press release,no mesmo dia todos entrevistam o artista e saem rapidamente
para as redações.

Eu já acho a cara da gente meio ridícula ali,a toda hora,
quando vai estrear um show ou quando vai ser lançado um disco.Quando se abre o
jornal nos segundos cadernos,lá está a gente,na primeira página.É o caso de
artistas como eu,Chico,Gil,Roberto,artistas de primeiro time que vão para a
primeira página.É sempre igual aquilo.Acho meio empobrecedor tanto para a
própria imprensa quanto para o produto que os jornais e revistas estão
apreciando.Então,tive uma vontade louca de procurar um meio de driblar isso.
Mas é muito difícil. Eu estou aqui fazendo de uma maneira que me parece que
pode mexer com esse quadro.Se a gente conseguir mexer e mudar...

As pessoas escrevem a crítica como e quando quiserem.Não faço
entrevista com eles agora.A que estou fazendo agora com você pode ser lida -ou
vista- na Internet por todo mundo,ao mesmo tempo, jornalistas e
não-jornalistas.Quem tiver acesso à Internet verá.Pode até conferir o que os
jornais publicarem.O que digo aqui pode também estimular entrevistas
particulares sobre determinados assuntos.Ou sobre um detalhe que não foi
falado.O jornalista pode dizer assim: "Quero "aporrinhar" Caetano sobre um
detalhe de que ele não falou". A gente faz,então,a entrevista.Se ninguém quiser
fazer,tudo bem : não se faz,contanto que se mude a prática.Eu realmente acho
que é saudável e necessário mudar.Os jornalistas também estão precisando ! Nós
estamos ! Não pode um jornal sair parecendo que é o release dos lançamentos.

Para as assessorias e para quem oferece o produto -
artistas,companhias de cinema, editoras,gravadoras - é como se o jornal fosse
um release,como se a página do jornal fosse um veículo de lançamento.
Quando se trata de uma notícia,acho compreensível.Há notícias que todo mundo
tem de dar mesmo.O sujeito se dá bem quando consegue um furo de reportagem com
a descoberta de uma tramóia.Mas,quando se trata de um produto cultural,não é
bem assim.Se sai um romance de Chico Buarque,qual é a vantagem de você sair na
frente ? A vantagem seria ler.O leitor pensará : "Não vou deixar de comprar o
Jornal do Brasil,porque as resenhas são muito bem feitas".Mas as resenhas não
podem ser muito bem feitas,porque são feitas às pressas para sair antes".

MAS VOCÊ ACHA QUE PODE QUEBRAR ESSE VÍCIO ATRAVÉS DA INTERNET ?

Caetano Veloso : "É uma maneira de tentar quebrar.Pelo menos a
entrevista sairá para todo mundo.Pode ser que haja um ritmo diferente.A gente
vê que,na própria imprensa,há esforço nesse sentido.Eu li,na Revista Bravo,um
artigo de Sérgio Augusto de Andrade que diz exatamente o que estou dizendo
aqui.Adorei ler porque ele diz com todas as letras exatamente o que eu vinha
observando.Faz uma análise com a qual concordo plenamente,não só em relação às
críticas,mas também quanto à feitura dos segundos cadernos.Um sujeito pode ir
fundo num artigo sobre um assunto que ninguém escolheu.A gente vê que há uma
certa reação.Mas esse negócio de sair,na primeira página de todos,o lançamento
de um filme da Sharon Stone é pobre,porque não se privilegia a apreciação.
Ou bem você tem uma apreciação interessante sobre um filme novo ou você não tem
mesmo muito o que dizer.É fraco,num jornal,dizer que fulana ia filmar com
beltrano mas deixou de filmar na última hora...".

ENSAISTAS CONSERVADORES,COMO O INGLÊS PAUL JOHNSON,QUE ESCREVEU UM LIVRO PARA DIZER QUE A ARTE MODERNA É UMA PORCARIA, DIZEM QUE A GRANDE PRAGA DESSE FINAL DE SÉCULO É O RELATIVISMO CULTURAL : TUDO É VÁLIDO,
NADA É RUIM. VOCÊ NÃO CORRE O RISCO DE ESTIMULAR ESSE RELATIVISMO CULTURAL AO CRITICAR OS CRÍTICOS DA PREDOMINÂNCIA DA CHAMADA MÚSICA COMERCIAL NO MERCADO?

Caetano Veloso : "Eu olho com desconfiança esses conservadores.Mas
não gosto desse negócio de vale tudo não.Por falar o que falo,compreendo que há
um risco de parecer que dou força ao que eles chamam de "relativismo cultural".
Mas,na crítica que estou fazendo aos jornalistas,não me sinto de maneira
nenhuma dando força ao relativismo cultural.Pelo contrário ! Porque acho que o
que vem acontecendo é um enfraquecimento da instância crítica.

Os jornalistas se comportam como artistas ultra-comerciais.Mas se
dão o direito de criticar artistas que são,sob o ponto de vista
profissional,muito mais responsáveis que eles ! Os jornalistas se dão o direito
de descartar a existência desses artistas como se eles,os artistas,fossem
comerciais.O que se vê,aí,é um relativismo inaceitável,uma confusão de valores
que não posso aceitar ! Sou muito mais exigente !

O sujeito que critica não sabe redigir bem.Mas Daniela Mercury
canta afinado, ensaia bem os números;Ivete Sangalo arrebenta cantando; Sandy é
uma cantora perfeita,sob o ponto de vista técnico. Eu peço,pelo menos,que o
sujeito que escreve na Folha ou o outro que escreve no Globo redijam a frase
corretamente.É o mínimo ! Como Sandy é afinada, que ele saiba pelo menos
escrever.Mas não ! Ele é uma estrela da agressão e da opinião moderna.Só gosta
de grupos de língua inglesa.Para ele,nada do que é brasileiro pode prestar
jamais! Isso já é um princípio simplório demais.Fazem personagens assim mas não
apresentam sequer um produto comparável ao que Sandy e Júnior
apresentam.Chitãozinho e Xororó cantam afinado, ensaiam bem os shows. Os
artigos são mal escritos ! Você vai ler : está errado o Português ! A idéia é
primária,o Português está errado e ele vai falar mal da Sandy? Vai falar mal de
Ivete Sangalo? Não dá ! É muito abaixo da Ivete Sangalo,como quem apresenta um
produto que vou consumir.Sou,então,muito mais exigente. Não há relativismo
possível aí ! O que estou dizendo é que essas pessoas são superiores àquelas
outras, naquilo que fazem ! De fato,são ! Posso mostrar a você que,numa
gravação da Sandy, a afinação é 100% ! Eu levo você ao show da Sandy.Digo assim
: você não vai ver aqui um buraco,porque ela entra no tempo certo,ela tem
intensidade de voz certa em relação aos instrumentos,as harmonias estão certas,
A afinação é em nível de Elis Regina ! Mas posso pegar o texto do crítico
Pedro Alexandre Sanches e dizer : venha cá, o que é que este parágrafo quer
dizer? É tudo errado,mal escrito.Posso pegar o texto de Mario Marques : isso
aqui está mal escrito ! Então,não existe nada de relativista nisso.Nada ! Ao
contrário : é possível mostrar claramente que o que estou dizendo é pertinente,
porque há valores universais que podem ser reconhecidos ali.Há redações bem
realizadas e há cantos afinados.Há cantos desafinados,você pode até medir a
afinação em aparelhos.Não há nada de relativismo.Há,sim,valores absolutos,
universais.Uma nota afinada é uma nota afinada ! Também há uma modernidade a
respeito da utilização da nota afinada,um interesse pela desafinação,pela
microfonização,pela negação da tonalidade.Mas são outros quinhentos.Isso é o
momento meu menos relativista : eu estou me atendo a valores reconhecíveis e
indiscutíveis".

VOCÊ DIRIA QUE A COMPETIÇÃO EXACERBADA ENTRE OS JORNAIS VEM PREJUDICANDO A COBERTURA CULTURAL ?

Caetano Veloso : "Eu acho que prejudica a cobertura cultural,
empobrece a prática do jornalismo e compromete a própria qualidade dos cadernos
ditos culturais.Não que não haja coisas boas e interessantes ! Mas existe uma
coisa que acho mais grave,porque é um sintoma de um grande comercialismo dos
jornais e de uma vulgarização do aspecto comercial do jornal : é a
transformação de jornalistas - que assinam o nome - em personagens que procuram
caricaturar-se para ver se se tornam figuras.Nesta área do jornalismo
cultural,dá-se muita ênfase a uma suposta agressividade dos apreciadores.É uma
agressividade forçada,para que o jornal fique polêmico ou seja a estrela do
acontecimento.Então,quando sai um disco,vê-se na maioria das redações uma
disputa para ver quem escreve de maneira mais chocante sobre os produtos e os
produtores de cultura.Isso é um negócio chato.

Sinceramente,não posso aceitar que as mesmas pessoas que agem por
uma motivação comercial reclamem contra o comercialismo da axé music ou da
música sertaneja ou do pagode ! Tenho vontade de rir quando vejo esse tipo de
jornal e esse tipo de jornalismo querendo torcer o nariz para a axé music ou
para duplas sertanejas. Digo : comparada com o que vejo nesses veículos,
Daniela Mercury é São Francisco de Assis ! É incomparável ! Há nos blocos de
axé a responsabilidade de apresentar um produto respeitável. Também há,nas
duplas caipiras e nos grupos de pagode,a responsabilidade de apresentar um
produto de alta qualidade,dentro daquilo a que se propõem - com exigência,com
trabalho,com profissionalismo,com respeito por quem vai consumir.
Não vejo nada disso na produção desses jornalistas que torcem o nariz para
música axé, pagode e sertaneja.

Eu li numa revista um artigo que citava números para dizer que
considerava auspiciosa a queda na vendagem da axé music e do pagode.A verdade é
que o mercado fonográfico brasileiro estava caindo em geral,mas essa revista se
dava ao direito de festejar dizendo "é bom,porque nós vamos nos livrar de ouvir
esse lixo".Mas a revista era um lixo - e essa música é que é bem feita,por
gente honesta. Para mim, não dá ! Dizem : "É corporativismo de Caetano
Veloso;não se pode falar nada contra a música popular...".Mas não é assim não.
Não sou corporativista ! Sou bom colega,tenho o maior orgulho de chegar a todo
lugar do mundo e me perguntarem com inveja : "Como é que isso acontece no
Brasil ? Como é que você se dá com Djavan, se dá com Lenine,conhece Ivete
Sangalo,freqüenta Daniela Mercury,fala com Sandy e Júnior,é amigo de Milton
Nascimento e janta com o Edu Lobo ? Não entendo como é que vocês se dão !
Porque não é o que acontece aqui na Inglaterra,aqui na França". Não pode,é
impensável essas pessoas aqui conviverem,se encontrarem,se admitirem umas às
outras.Tenho orgulho que seja assim,acho bonito,me sinto bem.É da minha
natureza. Não sou corporativista não, quando gente de música erra,eu digo e
tenho dito com a maior clareza,às vezes com grande agressividade !

Já houve coisas que desaprovei abertamente.Não fico procurando,não
sou palmatória do mundo,não vou ficar aqui dizendo "fulano é bom, fulano não
é",mas acontece que há limites.Eu reajo mesmo a pessoas que agem mal.Eu me
lembro da briga com Fagner nos anos setenta,oitenta.Durante uma entrevista,
respondi violentamente porque Fagner tinha sido desonesto e injusto comigo
publicamente.Tinha mentido a meu respeito.Respondi violentamente.Aldir Blanc -
que estava participando da entrevista - desligou o gravador e me mandou apagar,
Eu disse : "Não ! Faço questão de gravar para que saia o que quero dizer".

Agora mesmo tive uma discordância com Marcelo D2 - do Planet Hemp-
por causa de uma atitude pública que ele teve.Adorei a apresentação do Planet
Hemp na Festa da MTV,achei que foi o melhor número da noite.
Marcelo D2 disse no jornal que não gosta da minha música.Disse-me também
pessoalmente que não gosta da minha música,o que acho bom, porque se o fato de
ele não gostar contribui para ele ser como ele é,então ótimo.É bom que as
pessoas não gostem de algumas coisas para que possam ser mais intensamente o
que elas são. Mas ele agiu mal comigo de uma maneira imperdoável que não tem
nada a ver com o fato de ele gostar da minha música ou não.Marcelo D2 marcou
uma gravação para a trilha do filme "Orfeu" mas não foi.Ficamos esperando; ele
adiou para a segunda noite,mas não foi nem deu explicação.Nós procuramos o
procuramos,mas não o encontramos.Um mês depois,ele dá uma entrevista à Folha de
São Paulo para dizer que não foi porque soube que quem estava produzindo era
Caetano Veloso.Quis botar banca para agradar a um pessoalzinho que lê a Folha
de São Paulo e pensa que é bacaninha dizer que não gosta de Caetano Veloso.
Pensei : quando eu o encontrar vou dizer a ele : "Você não é homem.Você não
foi viril.Isso não está certo".E disse a ele - não foi gritando nem dando
escândalo.Falei firme com ele. Não tenho,então,esse problema.

Quando aconteceu aqui a polêmica sobre o pagamento dos cachês aos
artistas no show do Reveillon,achei que Paulinho da Viola não agiu certo. Eu
disse a ele numa carta.Reitero aqui.Eu estou seguro de que ele não estava !.
Muita gente me disse "não, não diga !".Gil tentou até a última das últimas
horas não desacreditar daquilo que estava sendo apresentado por Paulinho como
sendo a versão verdadeira.Mas eu já sabia que não era.Adoro Paulinho da
Viola.Para mim,ele é um dos deuses do Brasil,mas aquilo estava errado.Eu disse
com todas as letras,numa carta que escrevi para o Jornal do Brasil.Uma porção
de gente me esculhambou,em milhões de cartas.Vejo gente que hoje fala comigo na
rua mas escreveu me xingando.Comigo,então,não existe esse negócio de
corporativismo banana nenhuma !

Uma das melhores coisas que vi ultimamente foi o show da Nação Zumbi.
Fui ver sozinho em Santa Teresa.Achei maravilhoso;achei a banda a melhor coisa
do mundo.Mas,outro dia,Lírio,diretor de cinema,estava me dizendo que eles
tinham ficado zangados porque não gostam do meu som.Eu disse : se é para fazer
aquilo,então acho bom que não gostem do meu som. Porque,para mim,aquilo que a
Nação Zumbi faz é tudo o que há de bom.Talvez seja a melhor banda do Brasil
atualmente ! Desde o tempo de Chico Science,acho aquilo espetacular.Lírio
estava me dizendo que eles tinham um grilo porque eu tinha dito que aquilo veio
do Olodum. Era como se o ritmo do Nação Zumbi tivesse sido tirado do Olodum.

A idéia de um grupo de percussão de rua se modernizar com
influências internacionais e manter ligações com a tradição da música de
carnaval de rua é uma coisa que se tornou notória através do Olodum, não nego.
O Olodum não tem uma banda própria que se compare nem de longe ou que tenha
nível para lamber os pés da banda do Nação Zumbi.Mas o Olodum é o Olodum !
Historicamente,influenciou esse tipo de atitude no Brasil inteiro.Não posso ver
o Nação Zumbi sem pensar que,sem o Olodum,o estímulo para tomar aquela atitude
nunca teria aparecido.O Olodum precedeu e estimulou aquilo.É o que eu disse.
E é verdade.
Ninguém precisa gostar do meu som, mas não tem o direito de dizer que
eu disse uma coisa que eu não disse".

VOCÊ DIZ QUE A IMPRENSA RECLAMA DA QUALIDADE DA CHAMADA MÚSICA COMERCIAL,MAS A IMPRENSA DEVE SE LEMBRAR DE QUE TAMBÉM ELA SEGUE AS LEIS DO COMÉRCIO. VOCÊ QUER CONVOCAR A IMPRENSA A FAZER UMA COMPARAÇÃO ENTRE A
QUALIDADE DO PRODUTO OFERECIDO PELOS JORNALISTAS E A MÚSICA? É ESSE O DESAFIO QUE VOCÊ QUER FAZER?

Caetano Veloso : "Você falou exatamente o que eu podia ter falado em
poucas palavras.
Eu,pessoalmente,estou convencido de que a música comercial é de
melhor qualidade do que a imprensa comercial brasileira. Gostaria que os
jornalistas atentassem para isso".

VOCÊ JÁ RECLAMOU DE QUE AS CRÍTICAS QUE SE FAZEM À AXÉ MUSIC E AOS PAGODEIROS ESCONDEM, NA VERDADE, UM PRECONCEITO CONTRA A INCLUSÃO DE GENTE HUMILDE NO MERCADO CONSUMIDOR. O MOTIVO É ESSE ?

Caetano Veloso : "É o motivo principal escondido atrás de tudo.O
comentário que li celebrando o fato de o mercado ter caído foi publicado pela
revista Veja."Íamos deixar de ouvir esse lixo,axé,pagode,sertanejo..".Isso tudo
é um modo de dizer : "A inclusão no mercado dessa gentalha que passou a
consumir discos e a eleger esse ou aquele tipo de música é um negócio que o
Brasil nunca teve,mas é passageiro,vai acabar,Graças a Deus está passando e
vamos ficar nós aqui,com uma revista bacaninha,com uma gente de alto nível"...
Acontece que não é assim.Isso daí é pavor de que a superação da escravidão -que
Joaquim Nabuco preconizava - se realize".


VOCÊ DIZ QUE O BRASIL TEM UMA TENDÊNCIA PARA O APARTHEID TANTO SOCIAL TANTO CULTURAL. QUAIS SÃO AS MANIFESTAÇÕES CONCRETAS DESSE APARTHEID NA MÚSICA, NO TERRENO MUSICAL, DO GOSTO MUSICAL?

Caetano Veloso : "Fiquei assustado quando você disse que eu disse
que o Brasil tem uma tendência para o apartheid- tanto cultural quanto social.
O Brasil tem uma tendência para manter um grupo pequeno que termina funcionando
como uma elite,no sentido de ser líder intelectual das maiorias.Mas é apenas
uma elite dos que se salvaram da miséria.Isso é que é a elite,na verdade.
Quando você conhece um brasileiro de sua classe social,você fala dez minutos e
logo descobre que ela conhece quatro ou cinco pessoas com quem você tem algum
tipo de relacionamento ou é parente.É pequeno o grupo de pessoas que está fora
da grande massa miserável.Isso é que considero ser verdadeiramente um
apartheid.Não gosto de quem diz ou quem tenta dizer que a segregação racial no
Brasil é pior do que a que havia na África do Sul- onde existia um apartheid
oficial pior do que a segregação racial que o sul dos Estados Unidos conheceu.
Discordo.Não acho que seja pior. Penso mais como Joaquim Nabuco.Um pouco além
de Joaquim Nabuco quanto a este problema.

Não gosto da tendência de chamar uma área da criação de
música popular no Brasil de "MPB".É considerá-la como se fosse a parte elevada
de algo que,na maioria,é "vulgar e ruim". Isso é um erro total ! Eu me sinto
violentamente agredido por isso.


Quer dizer que eu sou MPB e Rauzito e os Racionais MCS não são ?
Ao mesmo tempo,eu,oficialmente,estaria junto com Chico Buarque, Chico
César,Gilberto Gil,Milton Nascimento.Mas aí a Daniela Mercury não é -ou agora
já quase é.Já o Chiclete com Banana não é.A turma que é "MPB" necessariamente
estaria num nível superior de produção musical.Não acho ! Não acho mesmo.As
duas coisas estão erradas. O que se pode chamar de MPB é só uma coisa : a
música popular que feita,no Brasil,pelos brasileiros".

VOCÊ UMA VEZ DISSE QUE OS ARTISTAS NÃO DEVEM E NÃO PODEM SEGUIR A MESMA HIERARQUIA QUE OS JORNALISTAS SEGUEM - E VICE-VERSA. QUAL É O MAIOR EQUÍVOCO DA IMPRENSA EM RELAÇÃO A VOCÊ?

Caetano Veloso : "Em primeiro lugar,para falar da imprensa em
termos gerais,o equívoco é a idéia de que há uma área mais respeitável que se
chama MPB,à qual eu pertenceria. Errado !.Mas há também brigas mais ou menos
alimentadas - que não deveriam ter razão de ser,mas chegam a níveis
baixíssimos,não por minha culpa.É o caso da revista Veja,por exemplo - uma
coisa chocante.Não falo com a revista Veja há 10 anos.Faz uns dois,três anos,
eu ia voltar a falar,ia voltar a aceitar.Eu estava começando a pensar a voltar
a falar com a revista,porque os responsáveis por um negócio imperdoável que
aconteceu há anos já tinham sido afastados. Eu digo : a revista começou em 68;
eu comecei em 67....A Veja tinha uma vontade louca de imitar a revista
americana Time,no tamanho,na frase com dois pontos embaixo da fotos,enfim,tudo
bem.A Veja até publica reportagens políticas boas,é a melhor revista semanal do
Brasil,assim de brincadeira,a mais respeitada,mas comigo é muito ruim,é muito
errada !
Quando eu estava pensando "agora vou falar" fizeram uma
reportagem sobre minha ida a Vigário Geral com o pessoal do Afro Reggae.São
meus afilhados,colaboro com eles na medida em que posso,admiro enormemente o
que eles vêm fazendo.O disco eles vão lançar é uma beleza,o show é um
acontecimento,todo mundo deveria ver.Eu espero que em breve todo mundo veja em
toda parte do Brasil,porque é espetacular.Mas eles têm um número em que eles
entram todos encapuzados no palco.O que eles me pediram ? Como eu ia cantar
logo em seguida,eles me pediram que eu entrasse encapuzado com eles.Eu iria
ficar lá no meio do palco.Depois,quando eles todos levantassem o capuz,eu
levantaria - e já sairia cantando.Já se veria que era eu.Depois,eu ficaria
sozinho cantando sozinho.Assim fizemos.Mas a Revista Veja publicou uma
reportagem mentindo descaradamente e dizendo que eu botei uma máscara preta
para fazer marketing. Parecia que só eu que é que tinha ido de máscara.
A revista dizia que aquilo era uma coisa terrível porque quem usa aquelas
máscaras são os matadores.Era como se eu fosse para um gueto judeu com uma
suástica. Tudo é marketing de Caetano...A revista,aí,me trata com desrespeito.
Isso é um negócio brutal,sob o ponto de vista do jornalismo.

Por que é feito isso ? Há pouco tempo,na TV, um sujeito que faz
programa de entrevistas na MTV pergunta para um garoto,num programa feito para
adolescentes : "O que é que você acha que se deve fazer para o rock no Brasil
ficar legal ? A gente deve matar Caetano Veloso ?".
Matar ? !!! Perguntar a um adolescente se é uma boa idéia matar
Caetano Veloso? Isso é horrível,é absurdo. O mesmo apresentador deu uma
entrevista na Isto é dizendo que tinha sido repreendido pela direção da
emissora.Mas diz assim : "Ah,Marcelo D2 tem razão : disse à Folha de São Paulo
que não se pode falar nada contra Caetano Veloso".

Mas o que vejo,o tempo todo,na Folhateen(N:suplemento semanal da
Folha de São Paulo) é aquele pessoal só falando mal de mim.Igualmente,na
Ilustrada (caderno de cultura da Folha).A Veja é assim.Agora,para dizer que
Tom Zé é bacana,"o verdadeiro rebelde",a Veja esculhamba comigo,diz que eu
gravei a música "Sozinho",uma música banal,para botar na trilha sonora de uma
novela.Mas eles sabem que não é verdade ! Não foi o que aconteceu ! Por que
faz,então ? Se a revista vai elogiar Tom Zé,por que tem de publicar um artigo
um negócio contra mim,Gal,Gil e Betânia? Aquilo desmerece Tom Zé,porque parece
que o que animou a redação a fazer duas páginas coloridas com Tom Zé não foi a
excelência real do trabalho que ele faz - e de fato é excelente-,mas a
oportunidade de meter o pau em mim e em Gil ! Não evitam mentir descaradamente.

Mas ver essa gente falar mal de Alexandre Pires - que canta bem,é
afinado,ensaia o show com responsabilidade e apresenta o produto perfeitamente
- não dá,não dá !".

Aliás, sobre Tom Zé eles nunca disseram nada nos anos 70.Quando os
discos de Tom Zé saíam,a imprensa nada fez por eles.Agora querem que seja minha
ou de Gil a culpa pelo fato de Tom Zé não ter sido noticiado pela imprensa na
época em que lançou discos maravilhosos,como,sobretudo,o "Estudando o Samba" -
uma obra-prima. Eu,pessoalmente,já tive raiva da revista Veja por outras
coisas.Quando Elis Regina morreu,achei abominável o tratamento que a Veja
deu.Disse isso de público.O modo como eles trataram foi um desrespeito
horrível,uma atitude sensacionalista,um comercialismo baixo.Com o caso do
cacique Paiakan também : sensacionalismo baixo ! Comparado com aquilo,Ivete
Sangalo é uma cantora de música religiosa estritamente pura,não fez nada por
dinheiro.Eu não entendo essa moral !

Parei de falar com a Veja foi quando eles fizeram uma reportagem em
que eles punham Tom Jobim,eu,Millor Fernandes e Chico Anísio,sob o título "O
Clube dos Ressentidos".A revista trouxe uma fotografia de uma ala da Comissão
de Frente da Mangueira,trabalhada por computador.Fêz-se uma fotomontagem com os
rostos dos personagens da matéria.A reportagem,horrenda de ponta a ponta,foi
escrita por Alfredo Ribeiro -que também se assina Tutty Vasquez.Era de uma
desonestidade brutal.Era a época de Collor,o que tornava mais perigoso o
negócio,porque dava uma sensação horrível.O artigo dizia que aquele era um
grupo de pessoas que se enchiam de dinheiro com o Brasil mas só falavam mal do
país.Incluíram-me num elenco criado artificialmente.Não há identidade nenhuma
entre Tom Jobim e Chico Anísio,Millor Fernandes e eu.Nem me dou com Millor
Fernandes -que,aliás,é uma das figuras da imprensa que eu admirava quando
criança. Depois de criarem o elenco artificialmente,atribuíram a todos uma
suposta vontade de depreciar o Brasil.É uma coisa disparatada em relação a mim.
Pode ser até que outra pessoa diga que quero salvar o Brasil a todo custo,ou
descobrir algum canto,alguma coisa fascinante ou maravilhosa,uma identidade
especial do país.Mas é uma coisa horrenda dizer que eu tendo a desmerecer o
país ou que eu demonstro uma grande ingratidão porque eu ganharia muito
dinheiro com o Brasil ! São termos inaceitáveis. Eu disse : assim não é
possível ! Não dá para entender como uma revista que se diz a mais respeitada
-ou que supostamente se dirige ao leitor mais sério- pode vir com um negócio
desses. Não dá para entender ! Eu disse : não falo mais com essa gente ! Chega
! Fiquei muitos anos sem falar.Quem dirigia a revista era esse Mário Sérgio
Conti - um sujeito que hoje escreve bem na Folha de S.Paulo.É um oásis na
Ilustrada,em meio a tanta gente que escreve mal.Deve escrever bem porque é
mais velho,já aprendeu a escrever um pouquinho mais.O fato é que ele - que
dirigia a revista - e Alfredo Ribeiro - que fêz o artigo- terminaram saindo da
"Veja" tempos depois.Eu disse : "Acho que vou falar com a Veja".Mas saiu a
matéria sobre Vigário Geral.Vi,então,que o problema não é Conti nem Ribeiro nem
Vasquez. O problema é que aquele ali tem tem que ser -infelizmente ! - inimigo
meu.Faz parte de um aspecto do apartheid brasileiro o fato de eu ter de estar
em oposição à revista Veja.Eu deveria poder apoiá-la,naturalmente,porque a Veja
é um amadurecimento do jornalismo brasileiro,representa alguma coisa,não sou
basicamente contra,mas vejo que há,ali,alguma coisa terrível.Ou eu é que sou
terrível de alguma maneira para algo ali que termina não dando certo.Não sei
porque saiu a matéria sobre Vigário Geral.Era mentira o que foi dito ali.Quem
fez sabia que era mentira,mas distorceu propositadamente,porque tinha vontade
de me agredir"..

VOCÊ CITOU O CADERNO FOLHA TEEN -DA FOLHA DE SÃO PAULO- COMO UM DOS LUGARES ONDE SE PUBLICAM CRÍTICAS A VOCÊ COM CERTA FREQÜÊNCIA. UM DOS COLUNISTAS,ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR,DIZ QUE AQUI NO BRASIL QUALQUER COMPOSITOR QUE
QUEIRA FAZER SUCESSO TEM DE ESTENDER O TAPETE VERMELHO PARA CAETANO VELOSO.É ESSE O TIPO DE CRÍTICA QUE IRRITA VOCÊ ?

Caetano Veloso : "Não propriamente.Porque,a Folha Teen acho
que é um pouco brincadeira.Mas é uma brincadeira que tem um problema : o do
comercialismo.Aquilo ali é feito para criar um tipo de público,um tipo de
platéia de que eles são os palhaços,os bem desenhados.É o negócio de Paulo
Francis.O sujeito escreve dizendo tudo o que pensa,não respeita fulano,eles
falam tudo,"sei de tudo","estou por dentro","sei onde as cobras dormem","não
tenho medo de dizer isto e aquilo".É aquele personagem da imprensa.Mas Paulo
Francis era um grande jornalista,um homem muito culto,muito inteligente,
escrevia rápido.Fez uma grande carreira de vedete.O grande confronto que houve
entre mim e Paulo Francis -e ele me agrediu violentamente - aconteceu porque,
mais cedo ou mais tarde,teria de haver um choque : sou uma vedete,um cantor
popular famoso,um personagem público do entretenimento com uma capacidade de
articular idéias e uma vocação crítica muito desenvolvida que apareceu no meu
trabalho e nas minhas entrevistas.Já ele era um crítico e um jornalista muito
articulado. Era um mau romancista,o que deve ter lhe causado amargura,porque
ele queria ser um homem de alta cultura.

Os meninos da Folha Teen -os mais novos- pegaram justamente a
última fase do Paulo Francis,a mais reacionária,ligada a tudo o que fosse de
direita.Todos os aspectos da direita ele enaltecia.Tornou-se até meio acrítico
quanto a isso.São meninos que lêem gibi.Acham que podem esculhambar comigo.Um
jornalista dá uma entrevista ao jornal Caros Amigos e esculhamba comigo.
Vem Roberto Freire - não o político pernambucano,mas o psicoterapeuta paulista-
e reitera as palavras do jornalista meio jovem da Folha que me esculhambou.
Roberto Freire,um homem velho,não tem vergonha na cara ? Que negócio chato !
Mas,na Folha Teen,fazem esse tipo,como o menino que deu a entrevista para
Caros Amigos.É um personagem que diz assim: "temos que destruir a máfia do
dendê !".Esculhambam comigo.Tenho cinquenta e oito anos.Já fiz coisa pra
caramba.Adoro o disco novo - que acabei de fazer.Tenho minhas limitações,não
sou um grande músico,não me acho o bacana.Não mesmo ! A maioria das pessoas a
que me referi aqui considero superiores a mim,na minha profissão.Alguns muito
superiores.João Gilberto muitíssimo ! Jorge Ben, muito; Chico Buarque muito,sob
certos aspectos; Lenine,muito,sob outros;Paulinho da Viola,muito sob outros
aspectos, musicalmente. São pessoas superiores a mim,mas tenho uma contribuição
a dar que inclui uma visão crítica,uma recolocação do modo de fazer a música
popular,pensar aquilo e apresentar algo do pensamento no meu trabalho,fazer
algumas canções que sejam mais ou menos relevantes,que fiquem aí.Eu me acho
assim.Não sou modesto : eu estou sendo objetivo ao máximo ! É assim que me
vejo.Não me acho grandes coisas. Mas esse pessoal me superestima.É preciso que
se reitere que sou o máximo para que seja pesado eles dizerem que sou uma
porcaria ! O que eles querem é que se intensifique o retrato que eles fazem de
si mesmos,como grandes figuras,como Paulo Francisinhos.

Não leio a Folha Teen,uma vez ou outra é que dou uma olhada.Eu sei
que não é todo mundo que diz,ali,que sou uma porcaria.É,sobretudo,esse cara que
era daqui de TV,já trabalhou no Fantástico.Mas não ligo muito.Isso é um
problema da imprensa,é comercialismo,é criação de personagem para vender aquele
veículo.Não tem nenhuma contribuição organizada a oferecer para o leitor".

SE O LIVRO "VERDADE TROPICAL" FOI ESCRITO CONTRA PAULO FRANCIS, QUE INFELIZMENTE MORREU ANTES DE O LIVRO SER CONCLUÍDO,O DISCO "NOITES
DO NORTE" É CONTRA OU A FAVOR DE QUEM?

Caetano Veloso : "É a favor do Joaquim Nabuco".

(2000)

Posted by geneton at 05:51 PM

RITA LEE

A SENHORA JONES CHAMA CHICO BUARQUE PARA A MÚSICA


O autor desta oitiva, brasileiro, jornalista, estabelecido profissionalmente na redação do Fantástico, na rua Von Martius, 22, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, declara, a quem interessar possa, que, no início de uma noite de quinta-feira, interrogou longamente, no estúdio 2 da Rede Globo de Televisão,na rua Dr. Chucre Zaidan, 46, no bairro de Vila Cordeiro, em São Paulo, a sra. Rita Lee Jones, brasileira, paulistana, cantora e compositora, mãe de três filhos homens e avó de uma criança chamada Isabela.

O estúdio em que foi feita a gravação estava inativo: é usado, no período das manhãs, pela apresentadora Ana Maria Braga. Enquanto aguardava a chegada da sra. Jones, a equipe não resistiu à curiosidade de inspecionar o esconderijo utilizado todas as manhãs pelo assistente da sra. Braga, o famoso Louro José – que, lastimavelmente, não se encontrava ali naquele início de noite.


Satisfeita a curiosidade a respeito do sr.José, a equipe passou a aguardar a chegada da entrevistada, o que ocorreu em questão de minutos. O pequeno atraso – perfeitamente tolerável, para os padrões tupiniquins - pode ser creditado ao fato de que a sra. Jones passou, antes, por um camarim, para retocar a maquiagem, reforçar o batom e revisar o penteado, cuidados compreensíveis numa profissional dos palcos.

A sra. Jones usava óculos de lentes azuis. Trajava uma blusa colorida de mangas compridas, com motivos cor de rosa, calça jeans e tênis. É como se uma fotografia dos anos sessenta de repente ganhasse cor, verve e movimento. Os cabelos tinham sido tingidos de cor vermelha, acentuada pela luz levemente âmbar, emitida por um dos refletores. Parecia à vontade, o que viria a se comprovar durante a gravação.

Enquanto o cinegrafista Bartolomeu Clemente e o técnico Pedrinho Tonelada ajustavam o equipamento para o início da entrevista, a sra. Jones fez dois pequenos comentários. Ao explicar por que estava usando o polegar para inspecionar a cutícula dos outros dedos da mão, declarou, em tom de brincadeira, que estava praticando o que chamou de “antropofagia”: comia a própria carne.

Em seguida, confessou que tem convivido nos últimos meses com um problema incômodo – o da insônia, um inconveniente que a persegue desde que resolveu suspender o uso de drogas, no início do ano de 2006. Disse que há dias em que só adormece às dez da manhã. O autor do interrogatório não disse, mas pensou: “Dos males, o menor. Boa sorte, sra.Jones”.

A essa altura, a sra. Jones perguntou ao autor do interrogatório se ele também tinha problemas de insônia. A resposta foi negativa. Mas, para não soar evasivo ou monossilábico, o perguntador comentou que a sra. Jones poderia usar as noites de insônia para cumprir tarefas criativas,tal como fazem tantos escritores confessadamente insones. Diante da sugestão, a sra. Jones retrucou: tocar guitarra todo dia às quatro da manhã não é tão fácil quanto parece.

O autor do interrogatório notou uma particularidade: a sra.Jones só irá completar sessenta anos de idade no dia 31 de dezembro de 2007. Mas, desde já, numa atitude que confronta a postura normalmente adotada por mulheres famosas, ela faz questão de se declarar sexagenária. É um exemplar raríssimo de mulher que aumenta a própria idade.

A sra. Jones comenta rapidamente sobre o trabalho de um fã, Henrique Bartsch - que, depois de trocar uma infinidade de e-mails com ela, terminou escrevendo o livro “Rita Lee Mora ao Lado/uma Biografia Alucinada da Rainha do Rock”. Quem estiver à procura de histórias indiscretas – ou meramente picantes – encontrará, na biografia, um repertório razoável, descrito na primeira pessoa pela própria sra. Jones : em e-mails de tom confessional, ela conta que flagrou um casal de astros da Jovem Guarda dedicado a um embate carnal, em cima de uma mesa, nos bastidores de um teatro. Diz que levou uma cantada do futuro campeão das pistas, Emérson Fittipaldi. Namorou com Jorge Ben. Viu os Beatles na Abbey Road, em Londres. Cortou o cabo de som que serviria a Edu Lobo, num show, em vingança contra a militância anti-rock do compositor. Em “Arrombou a Festa”, música que fez grande sucesso, copiou deslavadamente as opiniões de Raul Seixas sobre colegas da MPB. Passou dez dias trancada num apart-hotel com o papa da Bossa Nova, João Gilberto, às voltas com música, fumaça e sexo. Já foi ameaçada por traficantes armados ao subir um morro em companhia de Cazuza, para comprar droga. Teve um caso fortuito com o namorado de Elis Regina, César Camargo Mariano, durante a gravação de um especial para a TV. Ouviu do Rolling Stone Charlie Watts a sentença: “Não acredito nos Rolling Stones”. Já foi arrastada para um banheiro por Eric Clapton, numa festa na casa de um executivo de uma gravadora, no Rio.


Iniciado o interrogatório formal, a sra. Jones praticou os seguintes gestos: A) fez revelações sinceras sobre o fim daquela que é considerada a melhor banda de rock já surgida nesta República, os Mutantes; B) declarou – surpreendentemente – que só abandonara o uso de drogas no início de 2006; C) lançou um novo grito de guerra contra quem promove rodeios- segundo ela, um intolerável ritual de imposição de maus tratos a animais, o que seria um “péssimo exemplo para as crianças” ( o autor do interrogatório notou que, depois que se tornou avó da menina Isabela, a sra. Jones passou a citar crianças nas respostas ); d) criticou a atitude de artistas que usam um suposto engajamento político para comover o público, como seria o caso do irlandês Paul Hewson, conhecido internacionalmente pelo nome artístico de Bono Vox; E) deixou no ar uma inédita proposta de parceria com o sr. Francisco Buarque de Holanda; F) disse que morria de inveja de outro colega de profissão, o sr. Caetano Emanoel Viana Teles Veloso.

As declarações da sra. Jones foram integralmente gravadas. O que se lerá a seguir é uma suma do que se perguntou e do que se respondeu:


“ODEIO ACADEMIA E SHOPPING CENTER”


Interrogador: Você já declarou que odeia academia, salão de beleza e vitamina. Por quê? É medo de ser confundida com uma perua?

Sra. Jones: “Meu bem,eu realmente odeio academia e shopping center. Pago para não sair de casa. Minha vida se resume a antes e depois do computador. Sempre fui meio pão-dura. Nunca gastei muito. O que eu iria fazer nesses lugares? Eu mesma pinto o meu cabelinho e cuido de minha pele. Creme eu esqueço de passar. Mas dá para passar no pão, porque existem cremes deliciosos. Provo muito.

Há maneiras de envelhecer: ou você segue o caminho das peruas ou o caminho das feiticeiras. O grande inimigo das peruas – que perseguem a fonte da juventude – é o tempo. Já as feiticeiras contam com o tempo como o maior aliado.

Mas gosto de perua. São engraçadas as peruas “siliconadas” e “botocadas”. Também gosto das feiticeiras, com aquela coisa mais serena.

Não consigo – até hoje - deixar o meu cabelo grisalho. Com sessenta anos, tenho cabelos grisalhos. Já os meus pentelhos são grisalhos! Já estão grisalhos, mas não pinto”.


“EM VEZ DE “SEXO, DROGAS E ROCK-AND-ROLL”,EU ESTOU MAIS PARA “NEXO, IOGA E BOSSA-NOVA”

INTERROGADOR : O que vem em primeiro lugar na vida da Rita Lee quase sessentona : sexo, drogas, rock and roll, ou nenhum dos três?

SRA. JONES : “Em vez de sexo drogas e rock-and- roll, eu estaria mais para nexo, ioga e bossa-nova. Tenho neta agora, meu amor.Eu estou louca pela minha neta de nove meses! Já haviam me avisado que ser avó é muito mais legal do que ser mãe. É mesmo!”.


INTERROGADOR : Você diz que os rodeios são “um vergonhoso lixo cultural americano trazido ao Brasil por pura macaquice”. Os peões são, segundo você, “uma corja de sanguinários, profissionais da crueldade, que maltratam animais”. Você espera ganhar essa briga contra os rodeios?

SRA. JONES : “É uma indústria que ganha muito dinheiro em cima do sofrimento dos bichos. Odeio rodeio! Se o espaço daquela arena maravilhosa fosse aproveitado para atletas, circos, feiras, concursos de bunda, marchinhas e carnaval,o público continuaria indo. Usar bicho é péssimo exemplo para as crianças! Porque rodeios tratam bichos como se fossem objetos de uso pessoal. Não é assim: os bichos são companheiros de jornada. A gente não vai chegar às estrelas enquanto não respeitar todas as formas de vida.


A preocupação com animais tenho desde pequenininha. Vou continuar tendo. Faz parte de mim mesmo. Se fosse para escolher, eu faria passeatas e me deitaria na frente de arenas.

Já me deitei na frente da Embaixada da Espanha quando eles, uma época, queria trazer as touradas para cá. Falei: “Tragam Miró , tragam Almodóvar, tragam Picasso, mas trazer o lixo cultural que não nos pertence?”

Se o peão de boiadeiro foi promovido a “atleta”, o que é que vou falar para Ronaldinho Gaúcho e para Pelé? O meu “peão de boiadeiro” era Jeca Tatu. Hoje,é um John Wayne que, vestido de cowboy, rouba a festa junina, típica da gente!

Dizem-me assim: “...Mas você faz rock- que também é coisa de gringo.” Ora, futebol e rock-and-roll são coisas de gringo, que chegaram aqui e ganharam o trejeito brasileiro. Vocês – dos rodeios – não! Vocês estão copiando John Wayne- que só matava índio no cinema! É um péssimo exemplo!
Tiraram o espírito “Jeca Tatu” do peão que tratava dos bichos. Transformaram os peões em torturadores de animais, na frente das crianças. É duro, porque quem defende os animais é logo amaldiçoado com o estigma de “louco” e “desocupado”. Mas todos deveriam se preocupar com as crianças. Que exemplo é esse? Que barbaridade é essa?”.

INTERROGADOR: Que ídolo decepcionou você quando visto de perto?

SRA. JONES: “Quando me apresentaram a David Bowie, a quem sempre imitei muito, eu esperava que ele fosse mais alto do que eu. Não era. Isso é decepção?”.


INTERROGADOR: De quem você sente uma inveja inconfessável?

SRA.JONES: “A minha inveja é confessável. Fiquei espantadíssima quando Caetano Veloso disse que tinha inveja de mim. Porque eu é que tenho muita inveja de Caetano, há muito tempo, desde que eu o conheci. Aquela voz,aquele jeito de falar e de tocar, as letras...Invejoso que inveja outro invejoso tem cem anos de inspiração. Confesso : “Caetano, morro de inveja de você....”

“EU ESTAVA IMITANDO UMA CANTORA NO PALCO – E DEBOCHANDO.E ELA NA PLATÉIA! PODERIAM AO MENOS TER ME AVISADO!”


INTERROGADOR: Qual foi a última maldade que você fez?

SRA. JONES: “A última maldade que fiz para mim não é bem uma maldade. Era um filme que continuava no repeteco, até janeiro de 2006, quando fui para um hospício e decidi parar realmente com drogas. Porque droga era uma história antiga: você vai parar no hospital, acham que é suicídio. Mas não é suicídio, nunca foi: era overdose mesmo! Eu fazia limpeza, saía bonitinha, “paz e amor” . Depois que minha neta nasceu - e me vi nesse repeteco de filme -, achei tão careta esse rancinho que falei: “Quer saber? Não quero, chega, não quero!” (faz voz de desdém). Eu estou considerando que a caretice pode ser a maior loucura de todas!

Quanto a maldades com os outros: eu estava imitando uma cantora no palco e debochando. E ela estava na platéia! Que “micão”! Poderiam ao menos ter me avisado! Terrível. É esquisito até hoje. Ajoelho e peço perdão....”

( a sra. Jones prefere não citar publicamente o nome da cantora de quem se arrepende de ter debochado, mas o interrogador apurou, com cem por cento de certeza, que o alvo era Fafá de Belém).


INTERROGADOR : Que causa faria você liderar uma passeata hoje?

SRA.JONES: “Liderar passeata? Não gosto muito de artista que carrega plataformas ideológicas. Por exemplo: aquela coisa de Bono Vox ficar com discursinho de salvar o mundo é marketing. Botar terçinho no microfone...Não venha com esse discursinho”.


INTERROGADOR: Com que parceiro você gostaria de ter escrito uma música mas não teve a chance?

SRA. JONES: “Eu e Chico Buarque somos eramos de turmas diferentes. Chico se expressa muito bem no feminino. Eu gostaria de brincar com “aquellos ojos verdes” (cantando). Juro que eu não vou paquerar! Sou uma mulher casada! Não é assim. É ver no que é que vai dar. São tribos diferentes: Chico é MPB, tem um lado de literatura e uma importância política, porque dá opinião. Eu sou uma alienada total disso. Quem sabe se não dá uma boa “liga” ? Gostaria de tentar! E outro de quem gosto também é Chorão - do Charlie Brown Jr. Gostaria de brincar com ele também”.



“OS MUTANTES PERDERAM O DEBOCHE”


INTERROGADOR: Para efeito de registro: você pediu para sair dos Mutantes ou foi demitida do grupo?

SRA. JONES: “Fui expulsa. Tínhamos uma comunidade na Cantareira. Cheguei um dia, para ensaiar, com meu jipinho. O que encontrei na sala de ensaio foi um clima de “enterro”. E o comunicado: “Nós vamos seguir a linha progressiva, tipo Yes e Emerson, Lake and Palmer. Você não tem o virtuosismo para instrumentos.... Então, vai ficar fora.”

A facada no coração da Virgem Maria....(aqui,a sra. Jones passa a se referir a si própria na terceira pessoa): Ela segurou a pose e disse: “Legal.” Pegou os instrumentinhos e foi embora no jipe.

Mas, na primeira esquina, eu desabei (a sra. Jones volta a falar na primeira pessoa, faz voz de choro para ilustrar o que sentiu ao receber a notícia de que, a partir daquele dia, estaria fora dos Mutantes) Doeu muito, doeu muito. Chorei tanto, xinguei tanto...

Eis-me aqui, hoje: acho que foi um presente dos deuses ter sido expulsa dos Mutantes. Porque, modestamente falando, depois que saí, eles perderam o tempero. Os Mutantes eram o deboche, eram tropicalistas. A gente estava no meio do Caetano, Gil e Tom Zé, ali, aprendendo o Brasil de Chacrinha e Carmen Miranda, tudo aquilo que me foi oferecido, toda aquela riqueza. Sou filha de gringo! ( o pai da sra. Jones é americano). Os Mutantes perderam o deboche para copiar gringo e fazer música progressiva...”.


“EU PAGO O MEU GERIATRA, MAS NÃO FAÇO “REVIVAL””

INTERROGADOR: Você já disse que seus ex-companheiros dos Mutantes parecem hoje velhinhos em busca de dinheiro para pagar o geriatra...

SRA JONES: “....Desculpe interromper, mas é que desconfio de revivals. Sempre desconfiei! Porque uma coisa é você fazer um trabalho novo a partir de um gancho do passado. Não é assim que acontece: o revival é um bando de velhinhos espertos ,sim, tentando descolar grana para pagar geriatra! Eu pago o meu geriatra, mas não faço revival. Não vou fazer revival de Mutantes, mas nem a pau,a não ser com uma boa grana....”

INTERROGADOR: Você já calculou, então, quando é que vai procurar o geriatra para uma primeira consulta?

SRA.JONES : “Estou gostando muito de envelhecer. Sou capricorniana.Dizem que capricorniano nasce velho e vai rejuvenescendo com o tempo. Já digo “sessenta anos”. Mas vou fazer cinquenta nove. Acontece que cinquenta e nove é velho. O sessenta já zera tudo - e é mais chique. Então, meus geriatras: aguardem-me! Vou botar fogo nesse asilo! Um grupo do meu tempo se chamava “Os Velhinhos Transviados”. Eu era criança quando eles iam a um programa da TV Tupi, chamado “Almoço com as Estrelas”. Com meus oitentinha e noventinha, vou tascar fogo no asilo - e recuperar os velhinhos com suingue...”.

“TENHO CONSCIÊNCIA DE QUE ABRIMOS ESTRADAS E AVENIDAS – E A MOÇADA DESFILA POR ELAS”

INTERROGADOR : Você já reclamou duramente de um crítico que atacou os artistas que surgiram nos anos 60 e hoje estariam decadentes. Se uma candidata à roqueira lhe procurasse hoje e pedisse um conselho, você se sentiria ofendida?


SRA.JONES : “Por que me ofenderia? Tenho consciência de que abrimos estradas e avenidas - e a moçada desfila por elas. Um crítico disse que um trator deveria passar por cima de mim...Fino, não? Nossa vingança é assim: os críticos passam.

Em meus tempos de jovem, o ditadinho que corria em São Paulo era : “Para fazer rock-and-roll é preciso ter culhão!”. Eu não entendia bem aquilo! Falei: “Faço rock com meus ovários, com meu útero, querido!”

É um ditado que já não vale. Porque a gente vê meninas que são “band leaders”, compositoras, cantoras e instrumentistas. O único conselho que eu daria é: façam música!
Adoro fazer. A inspiração vem da alma. Não marca hora. É uma muito solitária. Ainda que se faça a dois, é uma única solidão. Duvido que um dia eu vá falar: “Ah,Não vou mais compor.”

Duvido!”.


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junho 04, 2006

JOÃO SALDANHA


ATENÇÃO, TORCIDA BRASILEIRA! O EX-TÉCNICO VAI REVELAR CENAS DOS BASTIDORES DA SELEÇÃO!

Guardo em meus arquivos implacáveis a fita (precariamente gravada) de uma entrevista que fiz com um homem que entrou para a história do futebol brasileiro: um cronista esportivo desbocado que virou técnico da Seleção Brasileira. Nome: João Saldanha.


Não era uma figura de "meias palavras". Ganhou fama de "desbocado", o que pode ser visto como uma virtude, num país habituado à cultura do ôba-ôba. Assim que assumiu o posto, foi logo anunciando o time titular - imediatamente batizado pela imprensa como "as feras de Saldanha". A situação de Saldanha no comando da seleção cedo ou tarde criaria desconfortos: era um comunista dirigindo a Seleção Brasileira sob uma ditadura militar.

Terminou batendo de frente com o governo - não por motivos políticos, mas, supostamente, por tentar ficar imune a ingerências indevidas. Telefonei num domingo à noite para a estação de rádio onde ele gravava comentários. Saldanha marcou o encontro para o dia seguinte, no início da tarde, na redação do Jornal do Brasil. Fiquei esperando pelo homem, na recepção. Quando ele chegou, foi direto ao assunto : não era de perder tempo falando sobre as fases da lua. A entrevista poderia começar um minuto depois, numa mesa da redação. Assim foi feito. O caminhar era ligeiramente torto. Usava a camisa por dentro das calças. Fumava.

Sete anos depois, morreria, em plena Copa do Mundo de 1990, na Itália, vítima de um enfisema pulmonar.


E agora, caros ouvintes, vai falar o homem que quer para o Brasil a alegria da geral do Maracanã, vai falar o homem que desagradou o ditador quando era técnico da seleção brasileira de futebol; vai falar o único convidado que teve coragem de ir jantar com o presidente João Goulart numa noite de exílio no Uruguai. A bola é tua, João Saldanha!".


GMN : Ainda hoje correm histórias de que o afastamento de João Saldanha do cargo de técnico da seleção brasileira de futebol se deveu a motivos políticos. De uma vez por todas, para passar a limpo esse caso: é verdade?

João Saldanha: "De uma vez por todas para você! (em tom irritado). Afirmei e reafirmei e outras fontes metidas no meio também. Claro: na época fui convocado para a seleção brasileira no governo Costa e Silva. E Costa e Silva, estranhamente, morreu no meio do caminho. O governo mudou. Houve uma série de modificações na cúpula. E entrou o governo Médici - que, como precisava de uma frente bem ampla, resolveu usar a seleção, como vários governos usam até hoje. Inclusive o governo Figueiredo usa a seleção. Por exemplo: eu estou chegando da Europa, fui acompanhar jogos de uma seleção brasileira que não representava coisíssima nenhuma, por motivo algum. Nem a Europa dava bola. A não ser na cidade onde a gente estava, a outra cidade ao lado não sabia que a seleção brasileira estava jogando. Isso nunca aconteceu! É jogada política. Naquela época, também.

O presidente ... Aliás, não chamo de presidente da República porque costumo chamar de presidentes os que foram eleitos; não os usurpadores do poder. Então, o usurpador do poder naquele momento era o senhor Médici - que desejava popularidade e quis fazer popularidade através da seleção. Não era um bom caminho. Eu não estava de acordo. Nós éramos apenas um time de futebol. Mais nada!

Quiseram impor a convocação de Dario - por sinal, um bom jogador.
Era de alto nível, mas não de tão alto nível como eram os jogadores de que a seleção precisava, como Pelé, um Tostão, um Dirceu Lopes, um Gérson, um Clodoaldo, um Rivelino, um Jairzinho. Embora Dario fosse um bom jogador do ranking brasileiro, não existia lugar para ele nessa turma.
Mas, como Dario era do Atlético Mineiro e o governo naquele tempo precisava uma barretada pra Minas Gerais, quiseram botar Dario à força. Recusei. Puseram para fora Toninho - do Santos - um grande goleador com quase novecentos gols, por causa de uma sinusite. Antônio do Passo e João Havelange diziam: "Pelo amor de Deus, convoque Dario, nem que seja pra ele nem mudar de roupa. Convoque pelo nome, porque vamos ficar bem com os homens e precisamos de dinheiro!".

Não convoquei. Convoquei até homens de meio-de-campo. Neste momento, entrei num atrito desvantajoso".

GMN: A pressão do general Médici para ver Dario na seleção brasileira era indireta, através de declarações, ou ele chegou a pressionar diretamente?

Saldanha: "Pressão direta se fazia através dos homens da CBD. Era indireta em relação a mim. A pressão direta era lá com os homens. Diziam: "Ou bota Dario ou sai fora". Chegaram e me disseram: "João, não podemos agüentar mais! Faça isto!".

João Havelange dizia: "Pelo amor de Deus, convoque Dario! Convoque pelo nome!" Se convoco Dario, tudo bem. Eu ia me avacalhar! Mas não tenho hábito de me avacalhar. Não me avacalhei. A seleção brasileira, felizmente, ganhou a Copa do Mundo no México, em 70. Se não, eu não poderia nem voltar para o Brasil (N: na época da Copa, João Saldanha já tinha sido substituído por Zagalo).

Quando eu ia sair do Brasil para o México, fui posto para fora do avião no Aeroporto do Galeão, embora tivesse passagem comprada, passaporte, tudo certinho. Tive de ir para o México. para ver a Copa, pelo caminho que Ronald Biggs, aquele ladrão de trem, fez. Fui parar em Port of Spain, via Pará-Paramaribo. Lá, vendem umas passagens estranhas de ida-e-volta, assim numa espécie de falso turismo, porque nem precisa de passaporte nem nada. Avião de vagabundo. Fui parar lá. De Paramaribo, não voltei. Comprei uma passagem com meu passaporte, tudo legal e fui para Port of Spain. Lá, peguei a Pan-American para a Guatemala e, só então, fui para o México. Cheguei três dias depois de quando tinha saído do Brasil".

GMN: Que argumento usaram para evitar o embarque do senhor no Galeão?

Saldanha: "O argumento da força! Nenhum outro. É o argumento da ditadura. Porque a ditadura faz a lei: "A Lei sou eu".

GMN: Não houve, então, explicação alguma?

Saldanha: "Não. Dizem: "Não pode ser; o senhor foi barrado". Digo: "Mas estou preso?". E eles: "Não". Ora, eles já me puseram nu no Aeroporto do Galeão duas vezes. Uma vez em 1968, quando fui para o Uruguai e lá visitei amigos que eram exilados políticos. Um foi exilado para o Uruguai junto com meu pai, há coisa de quarenta anos. Casou, ficou por lá. Não era nem exilado! Era um homem que morava no Uruguai. Mas morava embaixo do apartamento de Brizola. Era Brizola no sexto e ele no quinto. Um nem via o outro!

Almocei também com João Goulart - que tinha convidado toda a imprensa para ir almoçar com ele. Ninguém foi. Havia uma mesa para trinta pessoas, mas ninguém apareceu. Só nos dois: eu e João Goulart.

Nós estávamos com uma seleção brasileira, em Montevidéu. João Goulart disse: "Vamos almoçar lá em casa!". Nunca tinha visto João Goulart na vida; nunca tinha falado com ele. Mas, como eu tinha dito a ele que ia, fui. Aquela foi a primeira vez em que falei com ele, quando fui almoçar, uma conversa trivial. Quando voltei, me botaram nuzinho no Aeroporto, no Brasil. Arrancaram a sola do sapato, descoseram minha camisa, mexeram numa maleta vagabunda que eu tinha levado. Como eu só ia passar dois, três dias, não tinha levado bagagens. E me puseram nu. Fiquei lá horas e horas; cinco ou seis horas".

GMN ; Nesta viagem, o senhor nem era ainda técnico da seleção, viajava como jornalista ...

Saldanha: "Eu era jornalista da Rádio Globo e da TV Globo. Fui lá fazer a cobertura do jogo. Mas, como conversei com João Goulart, o presidente da República. . . Ele era presidente porque tinha sido eleito e foi posto para fora. O Estado não era ele e deu o que deu. Paciência. Tenho 40 anos de janela. Tiro esse troço de letra".

GMN: O que é que ficou desse encontro com João Goulart, já que foi o primeiro?

Saldanha: "João Goulart no Uruguai nadava que nem peixe na água. Era um grande fazendeiro; o mais rico fazendeiro do Uruguai. Era de uma famosa firma de fazendeiros do Rio Grande do Sul. Sou gaúcho. Conheci a firma de nome. João Goulart tinha uma grande fortuna. Ia e vinha para o Brasil no dia que queria, num avião particular. Descia numa fazenda, no Brasil. Tinha uma fazenda em Goiás, Ilha do Bananal. Era um grande fazendeiro. Batemos um papo alegre e informal. Política? O que é que adiantava entrar em política? "Eu penso isso. . ." Não adiantava pensar! A ditadura estava no Brasil - como até hoje existe uma meia-ditadura. Eu é que te pergunto agora: vai ter eleição direta ou não? Aposto que não vai ter; você aposta que vai ter, sei lá! Por que é que se faz assim? Porque não temos Constituição nem lei nem nada ".

GMN: Ainda a respeito do problema do envolvimento do futebol com política: já apareceram dezenas de sociólogos e antropólogos para tentar explicar o fascínio que o futebol brasileiro provoca no povo. O futebol - afinal de contas - o que é que representa, fora do gramado, para o Brasil?

Saldanha: "O futebol é um ramo da arte popular. O Brasil é um país eminentemente pobre. Para o futebol, basta uma bola. O menino descalço pode jogar. Uma rua, uma bola de pano ou de borracha, uma bola qualquer e pronto: o menino joga. Como esporte de pobre, é evidente que o futebol tem uma transa bem maior com o Brasil do que com a Dinamarca ... É só. É uma expressão da arte popular. Todo mundo tem necessidade de expandir a vocação artística em qualquer coisa. Há cantor de banheiro às dúzias e jogador de futebol aos milhões. Poucos, entretanto, conseguem atingir o estrelato".

GMN; O que é que o senhor diz das teorias de intelectuais que dizem que o futebol no Brasil é um fator de alienação do povo?

Saldanha: "É errado. Futebol não é alienação nem nada: é lazer. E lazer faz parte da vida. O homem precisa -para viver - de casa, comida, roupa; são indispensáveis ao ser humano. Para manter essas coisas, precisa de trabalho. Para viver, precisa de lazer. Precisa caminhar, passear, namorar, se divertir e tudo o mais. O futebol é um lazer que tem uma expressão de arte, como o tênis.

O futebol tem dois aspectos: um, daquele que o pratica - o artista; outro, daquele que o vê - é o torcedor no lazer. O Brasil é um país pobre e tropical, o que permite que este esporte seja praticado o ano inteiro, o que não é o caso da Suécia, norte da Europa nem Inglaterra nem o norte da França, onde não se pode jogar porque faz frio. Mas no Brasil pode-se jogar o ano inteiro- inclusive no Rio Grande do Sul - o lugar mais frio. Lá na Europa não dá, por causa da neve e do gelo. Isso cria uma massa de milhões de admiradores.

Por outro lado, nossa formação etnológica e a etnográfica deu, coincidentemente, ao brasileiro, condições para a prática do futebol. Os músculos flexíveis e aquecidos naturalmente são da nossa própria formação biológica. O negro veio da África como uma das raças mais primitivas: só tinha os braços e as pernas ... Você vai dizer: "E o índio?". O índio já não é primitivo; é anterior ao primitivismo... Então, nossa formação, essa etnologia toda nos permite os músculos e a vivacidade para executar bem esse ramo da arte. Veja bem que digo vivacidade. Nada tem a ver com outro ramo importante da vida que é a cultura. Nós somos paupérrimos em cultura, embora riquíssimos em esperteza e vivacidade. Quando Euclides da Cunha disse "o sertanejo é antes de tudo um forte", ele deveria ter dito "o sertanejo é antes de tudo um esperto". . . Não é tão forte não, porque morre cedo".

GMN: Durante a época do técnico Cláudio Coutinho, a imprensa publicou matérias que falavam na "militarização dos esquemas de trabalho na seleção ". Isso aconteceu?

SaIdanha: "Claro que aconteceu. Quando fui convocado, chamaram também Coutinho, Bonetti e uma série de militares. Tentaram impor um esquema militarista de vigilância e segurança, algo policial. Depois, de fato, quando fui posto para fora, havia seguranças, leões de chácara da seleção. Eram esquemas de homens armados com metralhadoras e o diabo a quatro. E foi ridículo na Argentina, onde deram rajadas de metralhadora num barulho de fundo de quintal que nada mais era do que uma cadela no cio e um monte de cachorro atrás. . . Gritavam:"Pára! Pára! Pára!". A cadela não entendeu e eles metralharam.... Houve um monte de coisas ridículas assim. Isso ainda existe. Dentro de vários clubes existe este esquema policial. É um derivativo do próprio sistema.

É um sistema policial em que qualquer terceiro escalão aí, qualquer sub-gerente de finanças do subnitrato do pó de mico tem dois, três seguranças. Você olha, vê três homens do tamanho de um armário guardando um cara e, quando você vai perguntar quem é, dizem: "Ah, é o caixa não sei de onde". . . Bolas! Isso faz parte do sistema - que parece, e felizmente - vem melhorando. Não sei. Ainda estou em dúvida se vamos ter eleições diretas ou se vão ser eleições palacianas de bolso de colete ".

GMN: Quem é o maior responsável pela conquista do tricampeonato mundial de futebol: João Saldanha - que deixou o time pronto - ou Zagalo - que completou a festa?

Saldanha: "Os responsáveis são: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson, Jair, Pelé, Tostão e Rivelino. A minha participação: foi coincidente. Tive a felicidade de encontrar no Brasil uma fertilidade tamanha de jogadores que me obrigava a deixar Ademir da Guia, Edu e outros cracões sem possibilidade de serem convocados. Quem é que eu ia botar para fora, para chamar Ademir da Guia? O Gérson? Rivelino? Clodoaldo? Tostão? Pelé? Quem? Não tinha jeito".

GMN: Ainda se compram juizes e jogadores no Brasil?

Saldanha: "Só em nível bem apodrecido de fim de carreira é que acontece. O fator corrupção vem desde os mais altos escalões da vida nacional até os mais subalternos. Futebol não é exceção, porque é uma parte da vida social brasileira. O que existe na vida social brasileira existe no futebol também. O tóxico, o homossexualismo e a corrupção existem em proporção igual".

GMN: Pelé foi sacana quando não apareceu na morte de Garrincha?

Saldanha: "Não, porque Pelé aí ia ser um agente funerário: qualquer jogador que morresse, ele ia ter de comparecer. Pelé até se manifestou da maneira mais simpática, porque estava lá longe, com uma série de compromissos. Tinha de pegar um avião e vir correndo ao Brasil, sem nem saber a hora, o dia nem coisa nenhuma? Se fosse assim, seria um ato demagógico. Não sei, porque eu não estava nem presente. Não fui.
Garrincha era um amigo meu. Fomos companheiros de clube anos e anos. Amigo íntimo, amigo de problemas os mais íntimos. Não pude comparecer nem ao enterro nem à missa nem coisa nenhuma, porque eu não estava no Brasil. Vontade não me faltou- se bem que, particularmente, não goste de enterro. Não tenho vocação de agente funerário. Prefiro a imagem dos amigos vivos.

Pelé foi apenas sincero. Ia vir da caixa-prego para chegar ao Brasil? Então, não seria enterro de Garrincha; seria a vinda de Pelé. Acontece um bocado em enterro de vedetes. Outro dia, durante quarenta e oito horas, no velório de Clara Nunes - que foi velada mais do que o comum - houve um desfile e um show de exibicionismo podre e sujo. A morte seria mais respeitada. . . A morte, não: a vida. A morte.... Morreu, dane-se, acabou, para mim.... Então, a vida seria mais respeitada com uma saudação póstuma, uma manifestação de tristeza através de um pronunciamento discreto, coisas que não são chocantes.
Mas não: a morte de uma vedete hoje em dia é um show de televisão, uma palhaçada. Pelé fez bem em não parti- cipar de palhaçada".

GMN: Os críticos de Pelé dizem que ele é um gênio dentro do campo e um desastre fora, pelas coisas que ele diz, etc. O senhor - que foi técnico de Pelé - o que é que diz da figura de Pelé fora do campo?

Saldanha: "Concordo em parte. Dentro de campo, Pelé foi um gênio, o maior que conheci. Fora do campo, é um homem comum. Querem que ele seja fora do campo o que ele foi dentro do campo. Isso talvez não seja compatível. Digo francamente, porque não tenho nenhum problema com jogador e ex-jogador nenhum. Nunca tive. Sempre os tratei com respeito e exigi respeito. A vida particular de cada um? Só me preocupava uma coisa: se joga bem, entra no time. Mas, se é homossexual, se é ladrão, se é isso ou aquilo, não sou nem nunca fui crítico de moral para dizer. Sempre entendi que eles fazem parte de uma sociedade tal qual ela é e não tal qual eu desejava que fosse.

Claro que eu desejaria que fosse uma sociedade boa e eles fossem bons em tudo. Não são. Paciência. Não conheci Pelé fora, uma vez ou outra comemos juntos e batemos papo à toa. Toda vez que a gente se encontra é aquilo: "Como vai, chefe?" - ele me chama de "chefe" e eu chamo "ôi, negão". É papo informal sem maior intimidade.

A crítica que se faz a Pelé traz um bocado de inveja. Um crioulo no Brasil que fica rico é "besta". Mas com branco rico não existe problema. Paulo César dá uma resposta boa quando perguntam por que é que todo crioulo rico pega logo uma loura. E aí ele diz: "Vamos inverter a posição: por que é que toda loura pega sempre um crioulo rico?". Então, pombas, vamos ser realistas e enfrentar a vida com a naturalidade que ela tem. Pelé só deve ser tratado como um grande gênio de uma arte popular. O resto não é um problema social, positivamente".

GMN: Como é aquela história da miopia famosa de Pelé, antes da Copa?

Saldanha: "Pelé, a meu ver, nunca teve problema de vista. Ele enxerga mais do que nós".

GMN: Como é que surgiu, então, aquela história?

Saldanha: "Ah, não foi minha! Aquela história deve ter surgido dentro do SNI ... Quem tinha problema de vista na seleção era Tostão e, ainda assim, fiz Tostão ser convocado à força. Quando ele foi se operar em Houston, no Texas, eu convoquei só vinte e um - e não vinte e dois jogadores, porque sabia que na operação de Tostão havia mais charlatanismo e publicidade do que propriamente uma lesão.

Quanto a Pelé, não tive nenhum problema. Os retrospectos estão aí. Todas as partidas em que fui treinador ele jogou. Nunca fiz um pronunciamento daqueles sobre a vista de Pelé por duas razões. Uma é que seria injusto: sou leigo e não entendo. Nós só tínhamos uma preocupação quanto à boa visão: com os goleiros. Dos goleiros, a gente exige que tenham uma visão igual aos exames que são feitos com os aeronavegadores, os pilotos de aviação. Quanto aos demais jogadores, o campo visual é tão vasto que nós nunca nos preocupamos. O importante é que enxerguem a bola. E Pelé enxergava!

A segunda razão é que não sou burro. Se eu vejo o cara jogar e ser o melhor jogador do mundo, eu vou dizer "não"? Nunca ele foi barrado por mim. Ao contrário: eu o defendia. Houve uma época em que Pelé não era tão querido nem tão publicitário. Era um simples jogador do Santos. E o Santos não "vendia" em São Paulo. Quem vende lá é Palmeiras, é Corinthians, é São Paulo. O Santos, não. É um time de cidade pequena. Então, ele não era bem visto lá.

A onda não era em cima de mim: era em cima de Pelé. Eu e Pelé já conversamos sobre essa coisa e rimos. Digo: foi um troço torpe. Desafio qualquer um que jamais tenha lido ou ouvido de mim qualquer coisa a esse respeito! "Nós tivemos vários jogadores homossexuais da melhor qualidade.Craques que dormiam com homem" Não sou idiota. E por que eu iria fazer algo tão gratuito, se ele não me devia nem eu a ele? Somos bons amigos".

GMN: A torcida até hoje não engoliu aquela derrota de 3 a 2 para a Itália na Copa do Mundo de 82 na Espanha, os famosos três gols de Paolo Rossi - nem jamais vai engolir. A culpa foi do técnico Telê Santana, foi dos jogadores ou foi de Paolo Rossi?

Saldanha: "Nós jogamos doze copas do mundo. Ganhamos três. A proporção é de uma para quatro. Nossa chance ali na Espanha foi aquela. Nós poderíamos ganhar, mas este é um julgamento subjetivo. Se tivéssemos um time melhor - que contasse com alguém que soubesse jogar pela direita, não tivesse um goleiro tão frágil e tivesse um ataque mais poderoso... Isso tudo são conjecturas subjetivas. Nós não somos obrigados a ganhar todas as Copas do Mundo. É bom que o brasileiro saiba que ele não é absoluto. É bom que o brasileiro saiba que lá fora há times tão bons quanto os nossos - e às vezes melhores. É bom que o brasileiro saiba que a Europa se atrasou perante nós por causa de uma guerra que dizimou quase toda a juventude entre 15 e 45 anos. Isso não se refaz com decreto-lei nem com planos qüinqüenais. É preciso esperar que nasçam outros, formem-se e reaprendam.

A Europa teve grandes prejuízos com a Guerra, o que nos permitiu um avanço enorme. Quando pegamos a Europa em 58 e 62, ela estava, exatamente, num período de decadência esportiva, porque lhe faltou a juventude que tinha morrido na guerra. E foi uma vantagem que nós tivemos.
Nosso futebol, no entanto, é do melhor nível. Nós estamos na primeira turma do futebol mundial, junto com Alemanha, Itália e Inglaterra. Qualquer um dos quatro é primeira turma. Os outros vêm em segundo escalão".

GMN; Tinha algum perna-de-pau na seleção brasileira de 82, na Espanha?

Saldanha: "Tinha vários ".

Quem são?

Saldanha: "Não gosto de citar. Não adianta nada. Deixe para o critério de cada um. Quando digo que tinha "vários" pernas-de-pau é que tinha mais de três (ri). Se não, eu diria: "Tinha dois ou três! ". Digo: tinha vários, mais de três, a meu ver. Mas, se digo três, acham que havia seis. Se digo cinco, acham que são três. É subjetivo. Havia jogadores ali que não têm nada a ver com seleção brasileira".

GMN: O senhor conhece algum caso de jogador profissional que tenha sido prejudicado por ser homossexual?

Saldanha: "Nós tivemos vários jogadores homossexuais da melhor qualidade. Quem é que vocé chama de homossexual? O que faz papel de homem ou o que faz papel de bicha? Homossexual é o homem que transa com homem; é a mulher que transa com mulher. Homem que dorme com homem quatro, cinco anos, quem é a bicha? Não. Eu conheci vários craques que dormiam com homem há não sei quanto tempo. Foram vários - e craques! Não estou ligando. Como apreciador e crítico do futebol, deixo para o "Caderno B" - que aprecia o outro lado da coisa".

GMN: Em que circunstância João Saldanha voltaria a ser técnico da seleção brasileira?

Saldanha: "Em nenhuma. Quando foi um desafio, eu topei. Deu certo, felizmente. Não perdemos e não atrapalhei. Eu saí oito dias antes da ida para o México. Não mexeram no time, as concentrações já estavam arrumadas. Nós chegamos dois meses antes da Copa ao México. Aliás, Copa no México é uma grande vantagem para nós - que podemos parar a vida do país e mandar um time para lá dois meses antes. Quando os europeus chegam, na véspera da competição, já estamos aclimatados e adaptados. Os europeus não.
Além de tudo, contávamos com um elenco maravilhoso. Para mandar 22 jogadores, tínhamos 40. Se eu errasse e, em vez de mandar Rivelino, mandasse Ademir da Guia, não era um erro. Era uma escolha. O nível era igual. O que sobrava de gente... Era uma época de ouro e de apogeu.

Não era vantagem nenhuma, não. Eu achava sempre que era uma barbada, pelas vantagens que nós tínhamos. O Brasil não perderia. Quando o nosso embaixador no México me disse: "Olhe, se não ganhar, você não volta para o Brasil", eu disse: "Embaixador, é uma barbada... ". O embaixador João Pinheiro me chamou na Avenida Paseo de la Reforma, número 400, para me dizer: "Se o Brasil não ganhar, acho bom que você não volte para o Brasil".

É que eu tinha dito que havia no Brasil três mil e tantos presos políticos e tinham sido assassinados mais de quatrocentos rapazes e moças, durante a ditadura Médici. Eu disse e saiu no "Observer" da Inglaterra; saiu no "Le Monde", saiu em um monte de jornais de milhões de exemplares. O governo não gostou. Se o Brasil perdesse eu estava fuzilado (ri). Não voltaria. Não tinha importância: eram mais alguns anos fora do Brasil. Já passei vários e não era mal nenhum".

GMN: A imagem do general Médici naquela época, com o radinho de pilha no ouvido para ganhar popularidade, incomodava João Saldanha?

Saldanha: "Devia incomodar a ele aquele rádio desligado. Pois, segundo as pessoas próximas, tratava-se de um rádio sempre desligado, o que era demagógico. Isso podia incomodar a ele, porque é chato ficar com o braço levantado fingindo que ouve rádio... E, francamente, não acho que seja atraente. Mas me incomodar, não. Eu estou pouco me incomodando. Não tenho nada pessoalmente com ele. Nem o conheço! Só o vi de longe. Não sei direito como é a cara. Nunca falei com ele nem ele comigo. Quando houve uma reunião em Porto Alegre com ele, chamaram a cúpula da seleção, mas não compareci.

Eu não teria prazer em apertar a mão de um homem que tinha matado vários amigos meus - ou mandado matar ou deixado matar. Não sei nem se foi ele que mandou ou deixou. O caso é que, coincidentemente, trezentos e tantos morreram naquele governo, o mais assassino da história do Brasil".

GMN: Hoje, nem convocado ou numa situação especial o senhor voltaria à seleção?

Saldanha: "Não vejo no que eu possa acreditar. Prefiro o meu trabalho, em que me dirijo diretamente ao público e com ele converso. Eu iria ficar lá dentro: "Olhe, fulano, jogue aqui ou jogue ali..." "devia jogar fulano e não beltrano!"... É um troço opcional. Para que vou ficar me aporrinhando com essas coisas? Aqui está bom" (olha para a redação do 'Jornal do Brasil', no Rio, onde foi feita esta entrevista).

GMN: Mas a torcida sente falta de um técnico como o senhor - que chega e vai logo dizendo qual é o time titular...

Saldanha: "A torcida tem uma opinião internacional. Não pense que fui original, não. Fui um copista, um reles copista. O que fiz é feito em todos os países civilizados do mundo. Nenhum mistério: os homens que dirigem as seleções são homens civilizados; não vão morrer. . . A Inglaterra, desde a guerra até hoje, teve apenas três treinadores. A Alemanha - duas vezes campeã do mundo - teve dois treinadores até hoje, desde o tempo da guerra. E a guerra acabou em 1945! Teve três treinadores; um morreu. A Itália teve dois treinadores até hoje e foi três vezes campeã do mundo. A não ser esses paisezinhos da América do Sul e esses clubinhos aí que trocam de treinador todo dia ...

Eu agora fui viajar, passei um mês fora e, quando chego de volta, vejo que mudou todo mundo. O Botafogo agora é um triunvirato; o outro é não sei o quê. . . é um troço ridículo - que expressa bem o sistema".

Quem é o melhor jogador brasileiro hoje?

Saldanha: “É Zico".

E Falcão? Também é um jogador completo?

Saldanha: "Um grande jogador. Mas como Pelé e Garrincha, não. Pelé e Garrincha são extra-série. Como Falcão e Zico tivemos muitos: muitos Zizinhos, muitos Gérsons, muitos Didis, Carlos Alberto, Djalma Santos, Nílton Santos, vários magníficos e notáveis jogadores. Só vi, como Pelé e Garrincha, talvez o Di Stéfano, um monstro sagrado. E depois, mais próximos, Puskas, Zizinho, Cruiff. Mas Pelé, Garrincha e Di Stéfano são os três extra-série. Vi Di Stéfano pela primeira vez em 50, 51; vi jogando dez, doze anos. Vi Pelé jogando dez, doze anos. Vi Garrincha uns quinze anos. Tenho opinião firmada e confirmada sobre eles: são monstros sagrados do futebol internacional. Formam na linha dos fora-de-série. Depois, você vem aí com trezentos: Antonioni, Ferrari, Beckenbauer, Shultz, Overheit, Rumenningue, Stanley Mathews..."

GMN: O senhor já disse que a Fifa - um órgão que reúne um número de países-flliados maior do que o da ONU - tem um papel de distensão política a nível internacional. O senhor pode dar um exemplo de como essa "distensão" funciona na prática?

Saldanha: "Ah, posso. A China era isolada do resto do mundo em matéria esportiva. O jogo de pingue-pongue - e aí não era a Fifa - deu uma certa abertura. Depois, em troca de Coca-Cola... São quase um bilhão de chineses. Se cada um tomar meia Coca-Cola por dia, são 450 milhões de Coca-Cola diariamente. Vende mais do que no Brasil no ano inteiro. Então, quando a Fifa botou a China no negócio, vendeu Coca- Cola. A Fifa tem mais facilidade de abertura do que os compromissos políticos, econômicos e de grupos dos países".

GMN: Dizem as más-línguas que João Havelange foi intermediário da entrada da China na Fifa, porque era intermediário -também - da venda de Coca-Cola. É verdade ou delírio?

Saldanha: "Delírio não é. Mentira também não é. Coincidentemente, dizem que Havelange é representante ou diretor da Coca-Cola e, a um só tempo, presidente da Fifa. Não há mal nenhum. O que o sujeito não pode é ser ladrão. A China entrou e foi bom, porque o isolamento da China, não só esportiva, mas econômica e politicamente, como o de qualquer país, não é bom no contexto mundial".


GMN: O centroavante Reinaldo - do Atlético Mineiro - diz que a estrutura do futebol brasileiro é fascista, porque beneficia, em primeiro lugar, os patrões. Quais são as propostas de João Saldanha para melhorar esta estrutura?

Saldanha: "Eleições livres e um governo democrático, porque essa estrutura é um reflexo do Brasil. Os desejos de Reinaldo coincidem com o meu. Pinochet fez igual no Chile. É a estrutura da América Latina - não digo que é fascista, porque nós não somos fascistas nem imperialistas. Nosso país não exporta capital. Somos apenas um país de ditadores, os famosos "ditadores da América Latina ". As coisas estão melhorando, há certas aberturas, mas aberturas dimensionadas e controladas.
Quando você pensa que pode dizer tudo, não diz. Determinadas coisas que eu quiser escrever aqui onde você está (N: redação do "Jornal do Brasil") não saem. Não é que eles vão cortar; eu é que já nem ponho, porque sei que não vai sair. O que Reinaldo quer eu também quero".

(Entrevista gravada no Rio de Janeiro, 04/07/1983)

Posted by geneton at 04:44 PM

abril 20, 2006

ANTHONY BURGESS

O AUTOR DE "A LARANJA MECÂNICA" ALERTA: "OS JOVENS QUE NÃO PENSAM QUEREM VIVER NUM ETERNO PRESENTE. JÁ NEM SE COMUNICAM ATRAVÉS DA LÍNGUA, MAS ATRAVÉS DO CORPO - TOCANDO UNS NOS OUTROS, OUVINDO MÚSICA E, PRINCIPALMENTE, USANDO DROGAS. É A REJEIÇÃO DE TUDO O QUE SE ENTENDE POR CIVILIZAÇÃO"


A cinza pende da extremidade do charuto de Anthony Burgess. Basta um movimento brusco na mão e pronto: o estrago foi feito. O chão imaculadamente limpo desta saleta do Durrent's Hotel, na George Street, no centro de Londres, ostenta, agora, uma pequena mancha escura. Anthony Burgess (Manchester, 1917) faz que não vê. Continua falando aos borbotões. Enquanto disfarça, pisa na cinza e esfrega o sapato no chão, para tentar desfazer o dano. Malandro.


O penteado meio ridículo para esconder o avanço da calvície dá a Burgess a aparência de um cientista maluco de revista em quadrinhos. Não seria de espantar se arregalasse os olhos ali, diante da câmera fotográfica, para estender a língua ao mundo, feito Einstein.

O gesto não seria gratuito: Burgess fuzila verbalmente, sem piedade, a juventude drogada e semi-analfabeta, as feministas, os ingleses e, surpresa, novelas brasileiras. Teve o trabalho de acompanhar a versão compacta de “Escrava Isaura” exibida pelo Channel Four. Detestou. Não é para menos. Quem já teve um livro, "Laranja Mecânica", transformado em obra-prima do cinema pelo talento de Stanley Kubrick não pode se furtar ao direito de ter náuseas diante da sinhazinha Lucélia Santos.


Burgess é um exemplo acabado metralhadora giratória. Cospe fogo. Impiedoso, intempestivo, não perdoa nem a si próprio. É o modelo clássico do intelectual brilhante, insubmisso, pouco preocupado em colecionar elogios fáceis ou em preservar a sensibilidade alheia.

A essa altura de nosso encontro, já limpou a cinza do chão, sem ninguém notar. De qualquer maneira, o Hotel estará livre de novos danos nos próximos momentos: a mulher de Burgess, uma italiana a quem ele dedica todas as frases que escreve, providenciou um cinzeiro. Pouco depois, ela irritaria Burgess, ao fazer um comentário em voz alta, durante a entrevista, sobre a música brasileira. O homem quase perde a
paciência. Reclama da mulher, pede que o gravador seja desligado por alguns segundos. O guerreiro Burgess vai entrar em ação. Agora.


Um crítico disse que o senhor usou um pseudônimo para assinar livros como "Inside Mr. Enderby" e "One Hand Clapping" porque não queria enfrentar a acusação de produzir em excesso. É este o verdadeiro motivo que o levou a inventar o pseudônimo "Joseph Kell"?

Burgess: "É verdade! O que digo é que estes fatos remontam a vinte e cinco anos. Naquele tempo, eu estava morrendo. Só teria poucos anos de vida. Pelo menos, foi o que me disseram. Então, tinha de produzir o máximo possível, para deixar algum dinheiro para a minha viúva!

Todo mundo dizia: "Não é certo escrever tantos livros...". Tive, então, de inventar outro nome. A verdade é que os críticos ainda dizem que escrevo além da conta. Pergunto-me: Quem diabo pode dizer o que é "além da conta"? Veja só: grandes escritores de outrora, como Arnold Bennett (N: Romancista, jornalista e dramaturgo, 1867-1931) e H.G. Wells (escritor e reformador social que fundou a Sociedade Fabiana; autor de "Uma Utopia Moderna", morreu em 1946 aos 80 anos) escreviam quatro livros por ano neste país! Balzac, Dickens, Alexandre Dumas, todos escreveram bastante. É a grande tradição.

Mas neste país, a Inglaterra, a tradição gentleman é escrever pouco. O que há são escritores como E.M.Forster - que escreveu cinco livros em noventa anos! (N: Burgess errou por pouco. Forster, na verdade, escreveu seis livros e morreu aos noventa e um anos. A obra mais conhecida é "A Passage to India" (1924), transformada em filme por David Lean). Ora, escrever cinco livros em noventa anos, como E.M.Forster, é que faz a tradição cavalheiresca neste país. A tradição do gentleman, na Inglaterra, é escrever pouco, Não é cavalheiresco escrever demais.."

O senhor ainda tem este problema de ser acusado de escrever em demasia?


Burgess: "Dizer que sou prolífico e prolífico virou uma acusação gratuita. Mas não é verdade. O que acontece é que sou um trabalhador. Acordo de manhã e tento escrever mil palavras por dia. Não é muito. Posso escrever estas mil palavras antes do café da manhã - e dispor do resto do dia para mim. Mil palavras por dia correspondem a 365 mil palavras por ano, o que é apenas a metade de "Guerra e Paz". O que é que há de errado em escrever mil palavras por dia? O que é que devo fazer, no lugar? Jogar golfe, passear de barco, jogar bridge? Prefiro trabalhar."

O senhor diz que as palavras não são mágicas. Se as palavras não são mágicas, qual é a mágica da literatura, afinal?

Burgess: "Onde é que fica a mágica da literatura? É difícil dizer. Mas é preciso lembrar que uma boa parte do que a gente escreve vem do inconsciente. E o que é o inconsciente? Uma grande floresta brasileira, com seus estranhos animais, seus estranhos pássaros, suas estranhas árvores. Não sabemos onde é que fica! Eis, então, a mágica.

Se a gente escreve a partir do consciente não vai encontrar tanta mágica. Os jornais são feitos da consciência. Não há mágica. A literatura é feita do inconsciente. É mágica!" (levanta a voz, agita os braços, dá um tom de incontida exclamação à palavra).

Em que circunstância o jornalismo pode ser mágico também? O senhor costuma escrever tanto em jornais...

Burgess: "Eu escrevo artigos e críticas (N: quinzenalmente, no jornal semanal "The Observer" - de Londres). Mas, no geral, o trabalho dos jornais é dar informação. Já a função de um romance é excitar a imaginação para apresentar o mundo de uma maneira nova.

Os jornais apenas representam o mundo tal como ele é. Acontece que os jornais estão deixando de ser informativos ou mágicos. Nestes dias que tenho passado na Inglaterra, venho lendo nos jornais artigos sobre os meus livros. Não me oponho de forma alguma aos que dizem que sou um mau escritor ou que escrevo maus livros. Mas me oponho à ignorância das pessoas que escrevem nos jornais.

Quem vem arruinando a crítica literária são as mulheres! Não sou adepto do machismo. Mas vejo que há nos jornais um grande número de mulheres estúpidas que só falam bem de livros escritos por mulheres igualmente estúpidas. Se um livro é escrito por um homem, deve ser ruim, pelo simples fato de que foi escrito por um homem! O que ocorre, no final das contas, é que esta guerra dos sexos vem aniquilando a crítica literária".

É um problema inglês ou o senhor diria que é internacional?

Burgess: "Não sei até que ponto vocês, no Brasil, já conseguiram superar a presença do feminismo militante. Mas esta é uma questão poderosa tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. As mulheres estão exagerando nas diferenças entre o sexo feminino e o meu sexo. É assim: se um livro foi escrito por um homem deve ser ruim pela simples razão de que foi escrito por um homem! É algo tão estúpido!". (Nesta altura, Burgess concede à voz um tom de franca indignação. Resmunga e reflui para o silêncio).

Escrever livros é a melhor maneira de chegar à imortalidade?

Burgess: "É a melhor maneira de chegar à imoralidade! Não sei...Antigamente, você poderia dizer que sim. Basta lembrar o que disse Horácio: "Erigi um monumento que vai durar mais que o bronze".

Nós não podemos dizer algo assim hoje. O que ocorre é o seguinte: publicamos um livro. Depois, a editora vende-o por algum tempo. E o livro desaparece! Queimam os livros e os enterram. Assim, os livros desaparecem do mercado. Ninguém hoje pode estar seguro da imortalidade..."

Quanto tempo o escritor Anthony Burgess vai durar?


Burgess: "Livros que escrevi há vinte e oito anos ainda estão vivos! Mas é preciso lutar para trazê-los de volta. Quando eu estiver morto, já não haverá quem brigue por eles. Então, meus livros podem desaparecer completamente".

Seu pai tocava piano num cinema em Manchester. Sua mãe cantava e dançava profissionalmente. O senhor é francamente fascinado por música, desde os tempos em que tocava piano nos pubs para conseguir um dinheiro extra. O que é, afinal, mais fascinante: a música ou a literatura?


Burgess: "São artes diferentes, é certo. Mas tenho de confessar que a minha não era uma família literária. Era uma família musical. É algo interessante, sob o ponto de vista social, porque não nos era permitido ser outra coisa.

Nossa família era católica num país protestante. Católicos não tinham permissão para freqüentar universidades na Inglaterra. Não podiam se tornar médicos, advogados ou professores. A única coisa que podiam fazer até 1829, quando veio o ato de emancipação, era se tornar 'entertainers'. É um traço que permaneceu. Minha mãe, como você bem lembrou, dançava e cantava. Meu pai tocava piano. E eu via minha vida como um músico, até que descobri que tinha de escrever livros (Burgess sublinha com a voz o "tinha de escrever", como se estivesse falando de um destino inevitável e irrecorrível). Tornei-me, então, o primeiro literato da família. E o último. Porque, comigo, minha família termina".

Por que o senhor abandonou a música - pelo menos profissionalmente - para se tornar um escritor?

Burgess: "Principalmente porque eu precisava sobreviver! E você não pode ganhar a vida fazendo música séria. Escrever uma sinfonia é algo trabalhoso, toma um tempo enorme. Se você compõe, é preciso, depois, copiar as partituras - o que custa dinheiro - e organizar uma performance. O público vai ou não vai. E é tudo. Não se ganha a vida assim.

Se você faz música pop, como os Beatles, você pode ganhar, pelo contrário, um bocado de dinheiro. Já na literatura há um pouco de dinheiro, sim. Mas não muito! Um pouco só! Ora, este é um problema para artistas de várias áreas. É difícil, bem difícil. Antigamente, havia os mecenas, grandes nobres e aristocratas que podiam
financiar os escritores e músicos.

A gente tem de viver! Não se pode viver de música. Ainda escrevo música. Venho planejando uma ópera baseada na vida de Sigmund Freud. Quem vai apresentá-la? Não sei. O que sei é que ela tem de ser feita (de novo, Burgess empresta um tom dramático às palavras, como se estivesse se rendendo ao destino).

O senhor vem tentando sempre reunir música e literatura. Sua música é baseada em personagens da literatura. Em seus livros, a música ocupa uma posição ostensiva. Basta lembrar do "Velho Ludwig van Beethoven" na "Laranja Mecânica", "Sinfonia Napoleão", etc. É este, afinal, o grande projeto? Reunir música e literatura numa só obra?


Burgess: "É verdade, até certo ponto. Se você foi preparado para ser um músico, você entenderá melhor o que é a literatura. Creio que há escritores brasileiros que vão concordar comigo. Escrever um romance é como compor uma sinfonia. Você tem de estar atento quanto à forma, ao equilíbrio, à harmonia, aos contrapontos e ao som das palavras, porque a gente não lê com os olhos: lê com os ouvidos.

A gente deve ler com os ouvidos, tal como se ouve música. Publiquei no Brasil um romance chamado "Sinfonia Napoleão", uma tentativa de apresentar a vida de Napoleão Bonaparte em forma de sinfonia, a "Heróica" de Beethoven. Poucos entenderam na Inglaterra. Em outros países, o público entendeu melhor. Os ingleses são lentos na hora de entender o que faço. Isso me deixa louco!".

É esta a razão que o levou a abandonar o país para viver no exterior?

Burgess: "De uma certa maneira, sim. Vivo em Mônaco, um país de língua latina onde falamos o monegasco, o italiano, o francês. Minha mulher é italiana. Eu me sinto mais próximo de países como o Brasil - onde se fala uma língua latina - do que da Inglaterra".

Existe vida inteligente na crítica literária?

Burgess: "A crítica é um negócio, uma ocupação, um metier, algo que os críticos fazem para viver. Sempre se esperou dos críticos da Inglaterra que divirtam os leitores e sejam "criativos" e destrutivos - não que eles façam o que deveriam fazer: estabelecer o que é um livro e examiná-lo seriamente. O que os críticos fazem não é sério.

Vou além: os ingleses não são sérios. Trocam qualquer coisa por uma boa risada, porque têm um grande senso de humor (Burgess fala dos ingleses na terceira pessoa do plural, sem se incluir).
Acontece que este senso de humor é excessivo. Os franceses levam as coisas demasiadamente a sério. Já os ingleses não levam nada a sério o bastante".

Qual é,então, a importância da opinião dos críticos?

Burgess: "Não importa tanto a opinião, porque os críticos não exercem influência sobre o número de cópias vendidas. Como escritor, espero encontrar alguma inteligência entre os que estão dedicados a ler livros e a escrever sobre eles.


Mas decepciono: quando tento, encontro mais inteligência entre os motoristas de táxi, os garçons e os
porteiros dos hotéis que tenham lido o livro do que entre os críticos
profissionais. É triste. É algo que me deprime".

A "Laranja Mecânica" é uma predição ou uma descrição do poder dos Estados modernos?

Burgess: "A "Laranja Mecânica" é uma predição. Mas uma predição escrita nos anos sessenta sobre o que o mundo poderia ser nos anos setenta. O livro, portanto, pertence ao passado. Não é exatamente uma predição no sentido de uma representação fantástica de certas tendências que eu via na vida pública. Mas é sobre o indivíduo e o Estado. Eu soube que houve dificuldades com o livro e com o filme no Brasil, assim como na Argentina. É que os Estados não gostam do livro. O Estado reconhece que a "Laranja Mecânica" ataca o poder dos governos".

Alex, o personagem principal de a "Laranja Mecânica", é um exemplo de um rebelde sem causa?

Burgess: "Alex é um rebelde. E estava preparado para levar a vida, ferir, matar, roubar e estuprar pessoas sem pensar em termos políticos. Alex apenas se diverte, até que descobre que há um limite neste "divertimento". Ao contrário de James Dean em "Juventude Transviada", Alex é um rapaz perfeitamente feliz - que gosta do vício e da violência. Também gosta de música!"

George Orwell deu um alerta em "1984". Aldous Huxley também, em "Admirável Mundo Novo". O senhor, idem, na "Laranja Mecânica". O medo do futuro é um sentimento comum entre os bons escritores?

Burgess: "Eis uma tradição bem britânica: escrever livros que chamamos de "distopias" ou "cacotopias". Não são utopias sobre o possível futuro. Os ingleses gostam. Começou-se com "Utopia" de Thomas Moore, Depois, a tradição continuou com J. Swift (N: autor de “Viagens de Gulliver”, 1667-1745), George Orwell...

Nós podemos evitar olhar para o futuro. Mas não acreditamos realmente que o futuro será assim. Tal como Thomas Moore imaginou uma ilha chamada utopia em algum lugar do mundo que não tinha sido imaginado, nós tentamos imaginar uma ilha em algum ponto do tempo - passado, presente ou futuro - que não podemos visitar. Quando se faz assim, é possível tornar claras certas tendências da vida real. É uma forma de crítica social. Os ingleses têm sido bons sob esse aspecto".

É difícil conviver com a tarefa de escrever mil palavras por dia?

Burgess: "Não sinto que é difícil. O difícil é ter a certeza de que as palavras escritas são boas. Qualquer um pode escrever mil palavras ruins por dia. O problema é, sempre, escrever bem estas mil palavras".

O que é uma palavra boa?

Burgess: "Uma palavra que seja como um acorde de música. Que contenha não só uma nota, mas várias notas, várias reverberações, várias ressonâncias, vários significados possíveis. Uma palavra ambígua, enfim. É uma lei que vale também para o português, para qualquer língua. Uma palavra não deve ser uma simples nota. Mas um acorde. Um contraponto. É esta a boa palavra".

Quando um entrevistador perguntou ao senhor, na televisão, o que é que torna um escritor bom, o senhor respondeu com uma palavra: "a morte". O que é que faz de um escritor um mau escritor?

Burgess: "O contrário: a vida! (ri). Não é bem assim... Escritores se tornam importantes quando morrem. Quando o escritor ainda vive é apenas uma pessoa entre todas as outras. Quando morre, dizem: "Ele escreveu todas estas coisas! Agora que ele se juntou aos grandes, aos mortos fantasmas, é melhor começar a levá-lo a sério. Talvez ele venha nos pegar!". É a verdade, especialmente na Inglaterra.

Quando você é vivo não é interessante. Quando morre, torna-se uma espécie de monumento. Os americanos preferem um cachorro vivo a um leão morto. É algo distante da atitude britânica de só se importar com os grandes escritores mortos, porque, assim, eles não vão ser lidos...".

Como é que o senhor gostaria, afinal, de ser lembrado no futuro?

Burgess: "Não pretendo ser lembrado. Não faz diferença para mim. Se você quer ter uma reputação que sobreviva à morte, basta querer ser olhado como um homem moderadamente bom. Alguém que não machucou os outros. Que tentou fazer a vida dos outros melhor. E, afinal, que acrescentou algo à vida - pouco, não muito, como Adolf Hitler!"

Por que o senhor deixou a Inglaterra? Não é um bom lugar para escrever bons livros?

Burgess: "A Inglaterra é um ótimo lugar. Você, como brasileiro, sabe que a Inglaterra é tolerante e democrática. Mas os ingleses são algo ignorantes. Não se preocupam o bastante com coisas como literatura. Se você tenta escrever um livro na Inglaterra, pensam que você vai perder tempo... Escrever não é visto como um verdadeiro trabalho... Mas atuar no Parlamento, tomar conta de uma loja ou se ocupar com negócios é considerado trabalho.

Acontece que na Europa - Itália, França e outros países - o ato de escrever é visto como uma ocupação séria (Burgess comete o hábito bem inglês de se referir aos outros países como "a Europa" e excluir, daí, a Inglaterra). Prefiro, então, estar onde escrever é visto como algo sério. Não é o caso da Inglaterra. Escrever um livro é algo olhado como uma disputa de uma partida qualquer. Se você toma conta de uma loja, se é a senhora Thatcher ou se trabalha na televisão, eis aí um trabalho. Mas escrever não é visto assim na Inglaterra. Eu tinha de ir, então, a um país onde escrever fosse levado a sério".

O senhor se preocupa, pelo menos, com a situação política na Inglaterra, apesar de viver fora do país?

Burgess: "Não há com o que se preocupar com a situação política na Inglaterra. Já a situação política na América do Sul... Meu Deus! Ali, há com o que se preocupar em cada um dos países. Nós temos na Inglaterra um sistema democrático que foi construído lenta e dolorosamente - mas que existe! Eu não tenderia a dizer que o futuro da Inglaterra é negro. Com o sistema democrático, o futuro não será negro.

Mas, quanto à América do Sul, eu me decepciono. A América do Sul seria a nova terra e o novo mundo, onde todos os erros da Europa seriam sepultados. Mas o que acontece é que os erros na América do Sul são bem piores do que qualquer erro da Europa! É como Vargas Llosa e Gabriel García Márquez dizem nos livros. Digo mais: as coisas podem não andar bem no Brasil, mas o Brasil produz uma grande literatura, algo que um país como Portugal já não produz".

O escritor italiano Umberto Eco diz que a verdadeira função do escritor é criar crises. Que tipo de crise o senhor quer criar, como escritor?

Burgess: "Qualquer romance é construído a partir do ritmo. E o ritmo é exatamente onde a crise atinge um clímax e se resolve. É difícil explicar. Mas um romance tem movimentos, como os de quem escala uma montanha. Várias montanhas, cada uma mais alta que a outra, até que se atinge a crise - o clímax.

Por fim, você vai descendo aos poucos, depois de ter resolvido os problemas. Parece fácil, assim da maneira como estou dizendo. Se você tenta comparar a crise do romance com a crise da vida real, descobre que não há conexão entre uma e outra, porque o romance é uma forma artificial.

Você veja Jorge Luís Borges - que, aliás, tem um nome igual ao meu. "Burgess" e "Borges" são um nome só. Ele se diz Burgess; eu me chamo Borges. Pois bem: Jorge Luís Borges diz que trabalhar na ficção é exercitar uma criação artificial que mantém uma escassa relação com a vida. Quando fala assim, Borges não acerta inteiramente, mas indica para algo concreto: não devemos tomar uma peça qualquer de ficção como se fosse, necessariamente, um comentário sobre a vida. São dois mundos separados. A crise na literatura, por essa razão, não guarda semelhanças com a crise da vida real".

Uma velha questão: o escritor tem uma função política na sociedade?

Burgess: "O escritor pode ter uma função política. Mas ele não deve escrever um romance com uma finalidade política. Pode escrever um livro político ou fazer um pronunciamento político, mas, quando transforma um romance num manifesto político, não se pode dizer que esteja escrevendo um romance. É o que percebo em autores como Vargas Llosa e García Márquez. Os dois têm um traço político forte. Penso que devem tratar da vida real, não sob o ponto de vista político.


A verdade é que a política é apenas uma pequena parte da vida. Como lembra o grande Malinowski (N: antropólogo inglês autor da teoria do "Funcionalismo", 1884-1942), a vida real consiste em levantar o rosto e olhar o pôr do sol. Já fazer política é decidir qual deve ser o sistema de galerias pluviais da cidade...

Ora, a política não é importante - a não ser em países onde é transformada em algo de importância. Decididamente, é loucura ter de gastar a vida inteira lutando pela causa mais simples do mundo – que é ter um governo moderado! É por essa razão que vocês não estão conseguindo. A literatura na América do Sul tem - cada vez mais - de se ocupar da representação dos erros políticos. Mas esta não é a tarefa da ficção.Homens como Henry James não tiveram de agir assim. Ele se ocupa das relações humanas, algo bem mais importante do que a política".

Numa entrevista à TV, Umberto Eco dizia que, se a função do escritor é criar crises, a dos políticos é resolvê-las...

Burgess: "Os escritores resolvem as crises que os políticos criam! A agonia da política é que as pessoas só se tornam líderes quando ganham poder. Poucos líderes políticos - especialmente na América do Sul - estão ansiosos por melhorar a vida do povo. Qerem poder! E a política é a maneira de conquistar poder...

Não vamos fingir que a senhora Thatcher ocupa o poder para ajudar os cidadãos a serem felizes. Admita ou não, ela ocupa o cargo porque quer o poder! Todos os políticos querem o poder! (Pelo tom de voz, parece que Burgess faz um discurso para uma platéia invisível). Escritores não querem ter poder desta forma. Querem um tipo diferente de poder - não o poder de prejudicar as pessoas.

O problema da política na América do Sul é, inteiramente, um problema de poder. Porque o poder traz doenças, tirania, violência, crueldade e inflação. A política na América do Sul, creia, preocupa-me bastante, como na África e na Europa. Mas na Inglaterra a maioria destes problemas políticos foi resolvida".

A função de um escritor, então, é igual em uma sociedade como a inglesa e em um país subdesenvolvido, como o Brasil?

Burgess: "Há um perigo: na América do Sul, escritores tornam-se figuras políticas. É o caso - provavelmente - de García Márquez, até certo ponto. Escritores se identificam com movimentos políticos. Inclino-me a dizer que esta é uma atitude errada, errada e totalmente errada!

Todos nós devemos tentar botar na cabeça escritores como Henry James ou William Shakespeare - se você quiser voltar no tempo - que se dedicaram ao trabalho de escrever peças. Nós não podemos dizer que linha política Shakespeare tinha! Tudo o que sabemos é que detestava o poder: queria que o povo fosse deixado em paz para levar a vida. Preocupava-se bastante com os problemas do poder político. Lá estão "Hamlet", "Júlio César", "Rei Lear". Suas peças se preocupavam com o poder. Mas, obviamente, ele pensava que, na vida real, as pessoas deveriam estar longe da política.

É o que me preocupa em relação aos escritores latino-americanos. São admirados na Inglaterra, é bom dizer. Gostamos de estrangeiros. Qualquer estrangeiro pode se dar melhor na Inglaterra do que qualquer inglês. Logo, um romance sul-americano é automaticamente considerado um grande livro. Isso significa que, se eu escrevo um romance qualquer sobre duas pessoas que se apaixonam, não estou fazendo tão bem quanto os grandes livros, porque não estou mexendo na política. Os próprios ingleses têm sido grandemente influenciados pela visão de que os grandes escritores são os escritores políticos. Não é verdade! De maneira nenhuma! Política é - ou deve ser - uma pequena parte de nossas vidas".

Já que falamos em livros e sinfonias, quem vai durar mais: William Shakespeare ou Beethoven?

Burgess: "Não há comparações. Os dois estarão permanentemente lá. Se você quer saber o que é a música, é melhor ouvir Beethoven. Se você quer saber o que é alguém ganhar a vida como escritor, você tem de lembrar de Shakespeare. A grande coisa sobre os dois é que nenhum foi um deus: ambos eram seres humanos imperfeitos que trabalhavam duro numa ocupação difícil".

O senhor já escreveu sobre o futuro - como em a "Laranja Mecânica - e sobre o passado, como em "Sinfonia de Napoleão". O que é mais importante para um escritor: tentar antecipar o futuro ou reescrever o passado?

Burgess: "Tudo que nós temos é o passado. Não temos o futuro. Ainda estamos esperando por ele. O presente não existe porque é apenas um micro-segundo! Mas o passado está aí - e cresce o tempo todo. Nós só nos entenderemos no presente -e no futuro- se entendermos o passado.

O que me preocupa, quando vejo a juventude na maioria dos países, é que ela abandonou o passado. Os jovens não querem aprender nada sobre o passado! Ora, não existe nada, além do passado! Então, o passado é importantíssimo! Nós devemos escrever ocasionalmente sobre o passado e mostrar o quanto ele é importante. É o que tento fazer".

A presença do passado é um traço marcante na Inglaterra. É uma boa ou uma má característica?

Burgess: "O passado nos ronda. Mas os jovens da Inglaterra não querem o passado. Querem somente o futuro - que pensam estar nos Estados Unidos...

Tudo o que querem é um eterno presente. E encontram - na música pop, no rock e nas drogas. Os jovens tomam drogas principalmente porque querem viver num eterno presente e libertar-se do passado. Neste sentido, são anarquistas e seguem Bakunin, o grande anarquista que disse que nós devemos destruir o passado.

Se há um vaso chinês, você deve destruí-lo, porque é algo do passado, é perigoso! Basta lembrar "1984", o livro de Orwell. O'Brien, o homem do Ministério da Verdade, diz a Winston Smith: "Vamos brindar o que, com nosso drinque? A vitória sobre os inimigos, a revolução, o futuro?" Winston diz:"Não, vamos beber pelo passado!" A resposta é:"Sim, o passado é importante". O'Brien não queria falar assim, mas sabia o que queria dizer".

Que tipo de informação o senhor tem sobre a literatura brasileira?

Burgess: "Eu e a minha mulher passamos um tempo tentando aprender a falar o português do Brasil. Tentamos ler,também. Temos amigos brasileiros em Roma, como Araújo Neto, correspondente de um jornal brasileiro (N: 'Jornal do Brasil'). Nós conhecemos algo da música (Antes, Burgess tinha se referido, com entusiasmo, a "Construção" - de Chico Buarque de Hollanda). Conhecemos também algo da literatura. Mas não dispomos de tradução.

Temos o sentimento de que, desde o início da colonização portuguesa, o Brasil é um centro para a experimentação artística. O romance brasileiro vem se dando notavelmente bem. Não sei sobre a poesia brasileira. Não temos informações suficientes. Agora, por exemplo, a TV britânica vem exibindo todas as tardes uma novela estúpida chamada "A Escrava Isaura", seguida por um programa chamado "Fantástico" - que mostra a dança brasileira (N: "A Escrava Isaura" e "Fantástico" foram exibidos, na Inglaterra, pelo 'Channel Four', um dos dois canais comerciais da Inglaterra).

Temos a impressão - na Inglaterra - de uma
imensa energia brasileira, uma vida erótica e poderosa, uma grande cor. Mas parece algo remoto. Gostaríamos que fosse mais próximo!

Durante a última grande guerra, começamos a ouvir referências ao Brasil. Se a América do Norte estava tão ansiosa, a América do Sul deveria ser nossa amiga. Os americanos fizeram filmes bobos - que poderiam, aliás, ter sido realizados por Walt Disney - tentando mostrar como o Brasil era. Descobrimos Carmem Miranda, gente assim. Dançávamos música brasileira, mas nunca tínhamos a sensação de que o que estávamos vendo era o Brasil real.

Agora, temos um maior número de informações. Romances brasileiros têm sido traduzidos, mas não chegam a um grande número de leitores. O Brasil parece longe. É, além de distante, assustador, exótico, colorido, mas não um país real, para nós".

Por que o senhor decidiu estudar o Português que se fala no Brasil?

Burgess: "Minha mulher é italiana. Vivemos num país latino, o principado de Mônaco. Desenvolvemos, então, um interesse natural por línguas latinas. O Português do Brasil sempre pareceu ser uma versão flexível e colorida da língua-mãe, o latim. Não estou particularmente interessado no português que se fala em Lisboa. Parece-me que é um pouco morto. Mas qualquer língua que se transforma numa manifestação de vivacidade na literatura é algo que devemos estudar. Não podemos, portanto, ignorar o Português do Brasil. É importante demais para que seja ignorado. É preciso entendê-lo. O problema é que, no nosso caso, não temos com quem falar Português. Onde vivemos, não temos amigos brasileiros".

Que tipo de informação o senhor tem da música brasileira?

Burgess:"Quando era estudante, numa escola Católica em Manchester, eu tinha um grande número de colegas sul-ameri- canos. Os pais destes colegas trabalhavam na diplomacia, na indústria ou no comércio. Tínhamos três ou quatro amigos brasileiros que importavam vários instrumentos musicais como a marimba.

Eu lembro que um dos líderes da escola era brasileiro. Através deste grupo, pudemos conhecer todos os tipos de música latina. Quero dizer: não somente a música brasileira ou argentina, mas a música espanhola, também. O brasileiro é que me falou da música de Manoel de Falla e outros músicos espanhóis. Quando eu tinha quinze ou dezesseis anos, conhecia os ritmos da música brasileira. Era algo excitante o brilho e a cor das orquestrações da música popular brasileira. O ritmo da música brasileira indica uma vida erótica poderosa, o que não ocorre com a música européia. A música brasileira - tal como a conheci - sugere florestas, flores silvestres, orquídeas, aves tropicais, algo selvagem e agressivo".

Os intelectuais tendem a encarar a televisão como algo que não é sério. O senhor - parece - gosta de ver TV. Tanto é que viu até uma novela brasileira exibida à tarde pela TV inglesa. Que tipo de relação o senhor tem com a televisão?

Burgess: "Onde vivemos, nós captamos a televisão francesa. Não é tão boa. Quando viajamos para a Inglaterra, nós nos convencemos sempre mais de que a televisão britânica é ótima. Não estou me referindo a esta novela brasileira, a "Escrava Isaura"... Mas a TV britânica - em geral - tenta falar a verdade e não apenas divertir. O que acontece é que nós não podemos ignorar a TV. Há, neste país, intelectuais que tentam ignorá-la. Mas não podemos. A TV é um dos fenômenos do nosso tempo. É um meio importantíssimo. Eu levo a TV a sério. Eu escrevo para a TV, eu vejo, eu participo de programas, porque penso que é um meio sério".

Se um jovem escritor brasileiro pedisse um conselho ao senhor - um autor conhecido internacionalmente -, que tipo de resposta o senhor daria?

Burgess: "Eu diria: você tem apenas de trabalhar! Fazer literatura é um trabalho que desaponta, é difícil, mas, em nossa época, é tão importante descobrir onde a verdade se encontra que os escritores devem ir à frente, na tentativa de falar a verdade.

Se de repente os escritores se desencorajarem ou pararem de escrever - tal como tantos fazem, diante da dificuldade de viver de literatura - estaremos diante de um perigo terrível: a voz da verdade estará muda. Ora, a voz da verdade não será encontrada nos jornais, porque os jornais são controlados por grandes negócios. A voz da verdade apenas se manifesta nos escritores livres, nos poetas e nos ficcionistas que lutam o tempo todo para que suas vozes sejam afinal ouvidas. Nós temos de prosseguir, nós temos de prosseguir falando quietamente a verdade. A tarefa do escritor é de uma imensa importância."

O senhor se preocupa com a questão da qualidade literária dos jovens escritores?

Burgess: "Não podemos fazer distinções entre jovens e velhos. Há uma tendência ao desencorajamento entre os jovens escritores, pelo menos neste país. Não têm sido lidos, não estão vivendo do trabalho que fazem, embora lutem imensamente. O que digo é que a luta deve continuar. Sem esta luta para apresentar a verdade, estamos perdidos".

Talvez, para a juventude inglesa, fazer música pop seja mais importante do que escrever livros...

Burgess: "Os jovens que não pensam querem viver num eterno presente. Querem estender o momento presente como se fosse algo sem fim. Só conseguem através da sensação pura, através da droga e da música pop. Já nem se comunicam através da língua, mas através do corpo- tocando uns nos outros, ouvindo música, e, principalmente, usando drogas. É a rejeição de tudo o que se entende por civilização.

Eu estou preocupado com a juventude. Se o Big Brother chegar, não será bem-vindo pelos da minha geração, mas pelos jovens, porque nós não nos chamamos uns aos outros de Big Father... Se cairmos no fascismo, será através dos jovens, não dos velhos. Os jovens estão prontos para o fascismo, porque não pensam".

O senhor não teme ser visto pelos jovens como um velho?

Burgess: "Não me preocupo. Sou velho. Eles são jovens. Já fui jovem. Todos eles serão velhos. Não há divisão entre ser jovem e ser velho. Nós apenas transitamos de uma condição para outra.

Você - de repente - acorda numa manhã e se acha jovem ou velho. Mas você ainda é um ser humano e ainda tem direitos! A divisão entre jovens e velhos é uma das coisas perigosas e estúpidas. Não há diferenças, porque os jovens, afinal, se tornam velhos. Sou o que eu era. Ocupo o espaço que ocupava quando tinha dezessete anos. Sou a mesma pessoa. Então, a divisão entre jovens e velhos é um dos mais terríveis males que podem existir. Os jovens não aprendem com os velhos. E, no entanto, somos os mesmos...".

O senhor já recebeu pagamento pelos livros que publicou no Brasil?

Burgess: "Anos atrás, quando o Brasil se tornou um pouco mais liberal, um dos meus livros, "Laranja Mecânica", que tinha sido censurado, foi liberado, assim como o filme. Você poderia ler o livro e ver o filme. Meu livro foi o primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Mas nunca vi a cor do dinheiro brasileiro! Aliás, não recebi nada pela maioria dos livros meus que foram publicados no Brasil.

Se foi o agente literário que ficou com o dinheiro ou se foi a editora, eu não sei. Eis um dos perigos em ser autor e publicar no Brasil... O país é longe demais para que eu vá lá brigar. Mas me devem dinheiro no Brasil! Meus amigos brasileiros: por favor, me ajudem! Os autores têm de sobreviver! Os autores têm de sobreviver! Um pouco de dinheiro brasileiro bem que ajudaria. Obrigado a vocês!".


(Entrevista gravada em Londres, 17/05/85)

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Posted by geneton at 06:48 PM

agosto 18, 2005

EVALDO CABRAL DE MELLO

O mais importante historiador do Brasil decreta: "O brasileiro é um dos povos mais piegas do mundo". (Quer uma prova? Vá a um aeroporto!)


Rio de Janeiro - Apontado como o mais importante historiador brasileiro em atividade, o pernambucano Evaldo Cabral de Mello treme nas bases ao pensar na possibilidade de ser reconhecido por estranhos na rua. Por essa razão, vem se esquivando dos pedidos de entrevista para a televisão. A luz dos refletores incomoda a timidez deste diplomata de carreira aposentado que escolheu o Rio de Janeiro como paradeiro depois de correr mundo. A árvore genealógica dos Cabral de Mello ostenta o brilho de outro astro: o poeta João Cabral de Mello Neto, irmão de Evaldo.

Desde que foi descoberto pela imprensa, o historiador Evaldo, autor de livros já clássicos sobre a dominação holandesa no Brasil, ganhou também o status de estrela. Irônico, dono de idéias originais sobre o Brasil e os brasileiros, Evaldo Cabral de Mello diz que só existe um povo tão piegas quanto o brasileiro: o português. Nesta entrevista gravada para a Globonews - a primeira que concedeu à TV - Evaldo Cabral de Mello faz um alerta: o subdesenvolvimento pode não ser uma condição passageira. O autor do recém-lançado "O Negócio do Brasil" reclama também de uma obsessão brasileira: a busca por uma identidade nacional". Somente países inseguros, diz ele, se preocupam com esta questão.

Geneton Moraes Neto - O senhor diz que a festa dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil será a "apoteose" da pieguice luso-brasileira. Quais são os sintomas dessa pieguice ?
Evaldo Cabral de Mello
- Vou citar apenas dois exemplos - que me parecem engraçados. Primeiro : a quantidade de pessoas que, no Brasil, se deslocam aos aeroportos para levar parentes e amigos. Se o você pensar bem, cada pessoa que pega um avião no Brasil é levada por outras cinco ao aeroporto...Ou vão cinco receber cada pessoa que chega. Em relação a Portugal, me lembro do caso que me contou o pintor Cícero Dias. Morador em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial, ele se divertia muito ao ver os barcos que faziam a ligação entre o Terreiro do Paço e Cacílias. É como a barca Rio-Niterói. A distância é até menor que do que a do Rio a Niterói. Cícero ficava sentado, às gargalhadas, vendo o número de pessoas que, aos prantos, se despediam de parentes que iam atravessar o rio...".

GMN - Qual é o maior mito, a maior mentira que existe na História do Brasil ?
ECM
- São tantos os mitos que o problema maior é o embaraço da escolha. Vou me referir a um, devido à atualidade do assunto : o mito do bom senso dos mineiros. A eleição de Itamar Franco provou que os mineiros são tão insensatos quanto o restante dos eleitores brasileiros. O mito da sensatez mineira, vis a vis da insensatez brasileira, caiu completamente".

GMN - De que figura histórica o senhor não compraria um carro sob hipótese alguma ?
ECM
- De várias ! Para individualizar, eu não compraria um carro de François Mitterrand, o ex-presidente da França. Todo o percurso político de Mitterrand foi bastante tortuoso. As pessoas, inclusive na França, só se deram conta deste fato nos últimos anos da presidência de Mitterrand, porque ele tinha conseguido, ao longo de toda a carreira política, escamotear a participação que teve inclusive no governo de Vichi, no tempo da dominação alemã. O grosso da população não conhecia. Os poucos que sabiam não falavam. O general De Gaulle, que evidentemente era inimigo político de Mitterrand, uma vez disse, sobre ele: "Este homem comeu em todos os cochos da República".

GMN - Nós temos a tendência de enxergar, no futebol e no carnaval, traços do caráter brasileiro. O futebol resumiria nosso talento para o improviso. O carnaval seria uma prova de nossa vitalidade. O senhor, como historiador, acha que o futebol e o carnaval são retratos fiéis do brasileiro ?

ECM - São retratos parciais do brasileiro do século vinte. A popularidade do futebol e do carnaval no Brasil são fenômenos bastante recentes. O carnaval que se conhecia no Brasil no período colonial e ao longo do século dezenove era o chamado entrudo português - que não tinha nada a ver com o carnaval que se faz atualmente no Brasil. Já o futebol foi um jogo transplantado para Brasil por funcionários ingleses de companhias de eletricidade e outras que operavam aqui no fim do século passado. Para o século vinte, compreender o Brasil sem o futebol e sem o carnaval é impossível. Mas é preciso ter presente que todas essas idéias de identidade nacional, tanto no Brasil como fora, têm muito de uma construção ideológica. Nenhum país tem identidade. Uma identidade é inventada para um país. O futebol e o carnaval, então, são dois elementos fundamentais através dos quais a cultura brasileira do século dezenove inventou uma identidade para o Brasil. A preocupação com a identidade nacional, que sempre houve desde o período colonial, só se tornou absorvente e monopolizou as preocupações do Brasil do Modernismo para cá, ao longo dos últimos oitenta anos".

GMN - O senhor diz que a busca permanente por uma identidade nacional é uma característica de "países inseguros". A busca por uma identidade não seria, pelo contrário, um sinal de vitalidade ?
ECM
- Pode ser um sinal de vitalidade, mas este detalhe não exclui o fato de que normalmente os países não se perguntam por suas identidades ! Os países vivem suas vidas sem perguntar e sem levantar este problema !. A tendência a proclamar a identidade em face do mundo, como ocorre hoje com o Brasil, me soa como uma espécie de narcisismo coletivo que acho desagradável, como todo tipo de narcisismo. Todo tipo de narcisismo ,individual ou coletivo, é uma agressão em relação ao próximo. A mania de ficar lançando aos olhos da humanidade a nossa grande originalidade nacional me parece uma coisa de gosto duvidoso".

GMN -...Mas a busca por uma identidade nacional gerou obras fundamentais, como Casa Grande & Senzala; livros importantes, como "Teoria do Brasil" - de Darcy Ribeiro - e até movimentos culturais, como o Manifesto Antropofágico, por exemplo. O senhor nega o valor dessas obras ?
ECM
- Claro que não nego o valor dessas obras, essenciais para a cultura brasileira no século vinte. O que estou dizendo apenas é que elas correspondem a uma receita cultural que, como toda receita cultural, se esgota ao longo do tempo, como as escolas literárias ou escolas de pintura se esgotam. Toda essa preocupação com a identidade na cultura brasileira já vem dando evidentes sinais de cansaço. Já não produz hoje os livros que produziu há cinqüenta, sessenta anos. Pelo contrário : nota-se um declínio pronunciado na qualidade dos livros. Porque não há como falar indefinidamente de um assunto que, por natureza, é esgotável".

GMN - Agora que o final do século vem se aproximando, há uma epidemia de listas dos maiores, melhores e piores. Quem foi o maior brasileiro do século vinte ?
ECM
- Eu perguntaria quem foi o brasileiro mais importante do século vinte, não o maior. O brasileiro de maior influência sobre o século, até diante do tempo em que exerceu o poder, foi Getúlio Vargas, assim como o brasileiro de maior impacto na história nacional no século passado foi Dom Pedro II -que ficou quase cinqüenta anos como imperador".

GMN - O julgamento da história vai ser favorável ou desfavorável a Getúlio Vargas ?
ECM
- Todo julgamento da história é misto. É raro a história fazer julgamentos completamente positivos ou completamente negativos. Getúlio deixou um herança que, como toda herança política, é ambígua. Podem-se ver pontos positivos, assim como podem-se ver falhas incríveis. É evidente, por exemplo, que ele foi o responsável por toda essa onda populista que se gerou no Brasil dos anos quarenta para cá. Igualmente, é inegável que ele tinha uma inclinação autoritária bastante pronunciada. Getúlio se beneficiou da inclinação autoritária que havia na sociedade e no regime político para permanecer longo tempo no poder. Mas é também inegável que, durante o governo de Getúlio Vargas, o Brasil alcançou metas importantes, sobretudo em matéria industrial. Pela primeira vez, teve-se a noção de planejar a economia brasileira no sentido da industrialização do país".

GMN - Por que é que o senhor ficou decepcionado com os diários de Getúlio Vargas ? O senhor acha que, na intimidade, faltava grandeza a ele ?
ECM
- O que me decepcionou é que, como historiador, eu esperava, talvez, revelações sensacionais. O diário, na verdade, é um documento de um burocratismo cansativo. Getúlio foi, sobretudo, um grande burocrata; um homem com um pronunciado gosto da administração, o que, aliás, é uma característica bem rara em políticos brasileiros. O fato é que os políticos brasileiros têm horror à administração. Se eles se dedicassem apenas ao poder legislativo, não haveria maior problema. Mas chega um momento em que o político transita do legislativo para o executivo. Quando chega ao executivo, evidentemente que ele não pode continuar a se comportar como um deputado ou um senador. É preciso que o político brasileiro que se proponha a exercer funções executivas tenha o gosto da administração. Mas o que observo é que há uma carência quase generalizada nos políticos brasileiros. Porque os políticos brasileiros gostam do debate político-ideológico, gostam da transação, mas, quando estão diante da possibilidade de administrar um estado ou um município de maneira objetiva, caem na tentação política! Não conseguem se desligar da antiga condição de deputado ou senador para transitar para a condição de um executivo. Getúlio tinha o gosto pela administração, se bem que este gosto fosse bastante burocrático, fosse muito pouco inovador".

GMN - O senhor já reclamou da falta de objetividade do brasileiro. Aqui, quem é pouco objetivo é "tido como inteligente". O senhor quer que o brasileiro se transforme num alemão - metódico, frio e eficiente ?
ECM
- Não. Ocorreria uma negação da autenticidade do brasileiro se ele se transformasse num alemão. Mas seria bom que o brasileiro tomasse consciência de uns tantos defeitos da sua formação cultural e procurasse corrigi-los num sentido mais compatível com as exigências de um mundo crescentemente globalizado. Não adianta, diante da globalização, fincar os pés no terreno ou fazer como um avestruz. Não se pode ignorá-la ou detê-la. É preciso encará-la e enfrentá-la como brasileiro, mas também com a consciência de que a globalização vem trazer mudanças completamente irresistíveis".

GMN - O senhor disse, numa entrevista, que o Brasil conseguirá, no máximo, ser um "Canadá dos Trópicos". Isso é uma avaliação otimista ou pessimista ?
ECM
- Bastante otimista! Afinal de contas, eu me sentiria muito bem se tivesse a certeza de que, em vinte, trinta anos, o Brasil teria a renda per capita, o grau de desenvolvimento, o respeito pelos direitos humanos e as instituições democráticas estáveis que existem no Canadá, a despeito de todos os problemas de separatismo que os canadenses têm. Eu quis me referir, com a expressão "Canadá dos Trópicos", a um país que fosse desenvolvido, ocidental, democrático - com a diferença de que fica nos trópicos. A mim não me parece que o povo brasileiro tenha vocação para grande potência. O Canadá é um país que conseguiu um nível de vida e certa projeção internacional, mas não reivindica um estatuto especial de grande potência, não tem ambições mundiais. Eu pessoalmente me pergunto se o Brasil, que ainda vive o processo de pôr a própria casa em ordem, é um país em condições de exercer uma influência internacional ampla. Nós podemos exercer influência dentro da América Latina, no Mercosul, nas nossas relações com a Europa ocidental, com os Estados Unidos, com países da África, em vista de nossa herança comum, mas acho otimista, pelos próximos vinte ou trinta anos, ver o Brasil como uma das potências mundiais".

GMN - Há autores que dizem que o subdesenvolvimento pode não ser apenas um estágio rumo ao desenvolvimento, mas uma condição permanente. Nós corremos este risco?
ECM
- Corremos, como todo país em desenvolvimento. Dos anos cinqüenta e sessenta, herdamos um otimismo fácil que pensava que normalmente todo país acaba se desenvolvendo. É uma idéia completamente equivocada ! Um país pode encontrar ao longo de seu percurso econômico obstáculos que não consiga resolver nem vencer. O país pode se ver numa situação de estagnação. Veja-se o caso da Holanda no século dezoito. A Holanda foi a primeira potência capitalista do ocidente, no século dezessete. Um século depois, devido a uma série de limitações, a Holanda foi passada para trás por um pelotão de países - sobretudo a Inglaterra, mas também a França. Passou, inclusive, por um período econômico de regressão bastante pronunciada, até que, no século dezenove, resolveu se recuperar para se tornar o grande país industrializado que é hoje - mas longe de pretender qualquer posição de primeiro plano no cenário mundial. Temos, realmente, uma noção linear do processo de desenvolvimento, como se saíssemos de uma posição de subdesenvolvimento para outra posição. De qualquer maneira, o Brasil tem grandes chances, por nossas dimensões continentais, por nossa estrutura de recursos naturais, pelo grau de desenvolvimento que já atingimos, pela existência de um parque industrial. Mas é evidente que a maioria dos países do Terceiro Mundo não tem condições de se desenvolverem no sentido do desenvolvimento dos países europeus"..

GMN - O senhor, então, não subscreve esta crença de que o Brasil um dia, no futuro, seria uma grande potência?
ECM
- Não há garantia nenhuma para um país, qualquer que ele seja, de que se tornará, em dez, vinte ou trinta anos, superdesenvolvido ou uma grande potência. Vai depender da capacidade das classes dirigentes - e da população em geral - para responder aos problemas que vão surgindo. Devo dizer que a experiência do Brasil no último meio século não é especialmente encorajadora. Se fomos capazes de resolver problemas e criar um parque industrial, o fato é que há uma série de problemas que o Brasil não vem conseguindo resolver a contento ! São problemas que o país não pode ficar indefinidamente sem resolver. Isso implica um atraso substancial no projeto desenvolvimentista. Um exemplo : reforma agrária é um negócio que já deveria ter sido feito no brasil desde os anos cinqüenta, sessenta. Controle demográfico é uma coisa que deveria ter sido feita no Brasil desde os anos cinqüenta. Eu sei que seria utópico esperar que tivéssemos feito este controle nos anos cinqüenta, quando havia obstáculos institucionais ao controle demográfico. Mas o fato é que, se o Brasil tivesse feito uma reforma agrária e um controle populacional a partir dos anos cinqüenta, a situação do país hoje seria incomparavelmente melhor, sobretudo do ponto de vista das disparidades de renda - que não seriam tão pronunciadas - e da violência humana, com a criação de enormes cidades com populações flutuantes e desempregadas. Não teríamos o grau de desemprego que estamos ameaçados agora de ter. Quando olho de volta no tempo, tenho a sensação de que o Brasil perdeu, nos anos cinqüenta, um momento essencial. Houve a presidência Kubitscheck, um ponto positivo, sem dúvida. Mas outras coisas foram completamente deixadas de lado. Os primeiros anos da década de cinqüenta me dão a impressão de anos perdidos".

GMN - A natureza tropical, grandiosa e barroca, é triste e deprimente, na opinião do senhor. Mas uma natureza grandiosa não poderia inspirar, o país, ideais de grandeza ? Por que é que o senhor não gosta dessa natureza tropical ?
ECM
- Se natureza grandiosa inspirasse ideais de grandeza, a Suíça seria uma grande potência mundial. É uma questão de gosto estético. Eu entendo perfeitamente que uma pessoa goste de paisagens tropicais. Mas não gosto de nada majestoso. Tudo o que é majestoso me deixa perfeitamente frio. Comparado com certas paisagens européias, a paisagem tropical é majestosa, monumental. Não me diz nada. Sou muito favorável á paisagem já marcada pelo homem; a paisagem que tem o seu lado histórico. Já a paisagem nua e virgem não me atrai, absolutamente".

GMN - O senhor é uma dos maiores especialistas brasileiros sobre o período de dominação holandesa no Brasil. Se os holandeses tivessem ficado no Brasil, nós estaríamos hoje numa situação melhor ou pior ?
ECM
- Não há historiador que possa dar resposta a uma pergunta dessas. Se der, não é historiador. Mas, no século dezenove, houve uma tendência nativista de negar o valor da colonização portuguesa e dizer que, se os holandeses tivessem permanecido no Brasil, o nosso país seria um país muito mais próximo dos padrões ocidentais de vida. O que existe por trás desse debate é uma opção ideológica. É preciso partir de um princípio determinado para dar uma resposta. Se o essencial da história brasileira é a preservação da unidade nacional e da integridade territorial, então é evidente que a colonização portuguesa foi preferível, porque garantiu essas condições. Mas, se você achar que o importante não é a unidade nacional ou a integridade territorial, mas a adoção de valores mais compatíveis com a democracia, com os direitos humanos e com o desenvolvimento capitalista, então é possível e plausível que a colonização holandesa tivesse sido mais favorável. De qualquer forma, não se deve esquecer que a Holanda colonizou a Indonésia atual, um país que, pelo que se sabe, não parece ter assimilado as grandes virtudes nacionais do povo holandês. Toda esta discussão me parece um pouco acadêmica.."

GMN - Em certas áreas, fala-se com um pouco de saudosismo sobre a passagem do príncipe holandês Maurício de Nassau pelo brasil. Afinal, ele trouxe uma corte de artistas, construiu o primeiro observatório astronômico das Américas no Brasil. O senhor acha que existe fundamento histórico nesse saudosismo ?
ECM
- É evidente que o governo de Nassau foi um episódio completamente excepcional na história colonial do Brasil. Mas toda nostalgia histórica é inútil, infecunda e improdutiva. O que temos de fazer é olhar para a frente; não para o período holandês".

GMN - Que avaliação o senhor faz do príncipe Maurício de Nassau ?
ECM
- É uma das personalidades mais simpáticas da história brasileira !".

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janeiro 26, 2005

"EU ESTAVA NO TITANIC"

Quando chegar o dia do Juízo Final, este pobre jornalista brasileiro confessará diante do Criador: quase matei de frio a mais jovem sobrevivente do Titanic.

Como? Quando? Onde e por quê? Aos fatos, pois: desembarquei no porto de Southampton, na Inglaterra, num dia gelado de inverno, em companhia do cinegrafista Sérgio Gilz, para um encontro marcado com Milvina Dean. Aos não familiarizados com a crônica das tragédias marítimas, diga-se que Milvina Dean foi manchete dos jornais no já remotíssimo ano de 1912. A façanha involuntária de Milvina: ter escapado do naufrágio do Titanic. Milvina - um bebê de colo - se salvou porque a mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas. O pai afundou junto com o navio.

Compreensivelmente, Milvina passou a ouvir a história do Titanic desde que se entende por gente. Quando tinha oito anos, ouviu da mãe um relato completo sobre tudo o que aconteceu. Por razões óbvias, passou a se interessar pela história do naufrágio. Hoje, nonagenária, é abordada a cada aparição pública pela legião de excêntricos que vivem à procura de personagens direta ou indiretamente ligados à história do mais famoso desastre marítimo de todos os tempos. Para quem não sabe: funciona na Inglaterra uma certa Titanic Society - uma espécie de clube que reúne fanáticos de carteirinha pela história do Titanic. Aceitam-se sócios de qualquer país.

Depois de obter um contato com Milvina Dean através da assessora de um museu marítimo que organizara uma exposição sobre o Titanic, partimos rumo a Southampton. O encontro ficou marcado para o restaurante de um hotel - um local confortável para quem, como Milvina, carrega sobre os ombros o peso de quase nove décadas de vida. Antes de seguir para o hotel, no entanto, decidimos percorrer o cais do porto de Southampton, em busca do local exato de onde o Titanic partiu para a viagem que não teve volta, em direção a Nova York. Um guarda indicou o ponto em que uma pequena placa de bronze foi afixada para marcar o mais notório acontecimento já registrado na história do porto de Southampton. Vindas do mar, lufadas de vento gelado fariam um pingüim reclamar do incômodo do frio. Era janeiro.

Não resistimos à tentação de convidar Milvina Dean para uma visita ao local de onde partiu o Titanic. Partimos em direção ao hotel. Com a esperada pontualidade britânica, ela desembarcou do carro de um amigo - sapeca e bem-humorada. Parecia velhinha de filme inglês. Fizemos o convite: e se ela fosse com a gente ao local de onde o Titanic zarpou? Milvina disse sim. Nossa mini-caravana seguiu de volta ao porto. Gravamos a entrevista com Milvina Dean no cenário dos sonhos: a mais jovem sobrevivente contemplando o mar exatamente no local em que começou uma saga que até hoje atrai a curiosidade de multidões no mundo todo (é só checar os números da bilheteria do filme Titanic, mega-sucesso de Hollywood). A viagem do Titanic começou no dia 10 de abril de 1912. Quatro dias depois, no fim da noite do dia 14, o navio se chocou contra um iceberg. A madrugada seguinte foi de pavor. Quando o dia amanheceu, o gigante estava no fundo do mar. Número de mortos: 1.500.

Quando se aproximava o final da entrevista, Milvina - sempre com uma das mãos na cabeça, para evitar que o chapéu, levado pelo vento, fosse enfeitar o mar de Southampton, tal qual o Titanic fizera em 1912 - começou a se queixar dos rigores da temperatura. "Eu estou ficando azul de frio", disse. A mulher que já contava, no currículo, com dezenas de invernos, não iria reclamar à toa. Por precaução, decidimos escoltá-la de volta ao hotel, num carro devidamente aquecido. Não queríamos correr o risco de matar de frio a passageira que, nove décadas atrás, escapara de um infortúnio maior que o de ser importunada por repórteres brasileiros num dia gelado de inverno. Enquanto o vento soprava gelado, gravamos a entrevista. Trechos foram ao ar no Fantástico, em 1995. Agora, pela primeira vez, a entrevista é publicada na íntegra:

Geneton Moraes Neto: O que é que o Titanic significa para a senhora hoje? O que é que significa, para a senhora, voltar a este cenário hoje?

Milvina Dean: Tudo o que sei sobre o Titanic me foi contado por minha mãe. Quando minha família - eu, meu pai, minha mãe e meu irmão - se preparava para embarcar no Titanic, meu avô e minha avó disseram: "Que navio maravilhoso! Não vai afundar nunca! Vocês vão ter uma viagem maravilhosa!". É o que penso quando volto a este lugar.

De qualquer maneira, devo admitir que o Titanic hoje significa para mim a oportunidade de encontrar gente. É o que faço. Penso que é extraordinária a chance que sempre tenho de me encontrar com gente de todas as partes do mundo.O Titanic desperta um grande interesse. O meu sentimento em relação a tudo que aconteceu é diferente de uma sobrevivente que, por exemplo, tenha uma lembrança vívida de parentes que morreram no naufrágio. O meu sentimento é de outro tipo. Não tenho lembrança do meu pai - que morreu na tragédia - porque eu era um bebê. Se eu o tivesse lembranças da convivência com o meu pai, este fato certamente teria um grande efeito sobre a natureza de meus sentimentos diante do Titanic.

GMN: Qual é a grande pergunta que ficou sem resposta sobre o Titanic?

MD: A pergunta que sempre me faço é a seguinte: por que será que o navio navegou em direção a um iceberg? Penso freqüentemente sobre este detalhe: o capitão sabia da existência de icebergs na região? O navio estava na rota errada? Eu me pergunto por que o desastre aconteceu. Mas acho que jamais terei uma resposta.

GMN: A senhora ficou satisfeita com as respostas que obteve até hoje?

MD: Nunca houve uma resposta apropriada. Ninguém sabe com exatidão por que o Titanic afundou. Não sei se adianta perguntar: o que fez o Titanic ir em direção aos icerbergs?

GMN: O que aconteceu exatamente com sua família?

MD: Meu pai morreu. Afundou junto com o Titanic. Meu irmão - que tinha menos de dois anos de idade - se salvou, junto com minha mãe e eu. O meu pai ouviu um barulho na noite do desastre. Correu para o convés, para ver o que é que tinha acontecido. Disseram a ele que, aparentemente, o navio tinha batido num iceberg. O melhor seria ir com as crianças para o convés. É o que minha mãe fez. Minha mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas de número 13. Eu - que era pequena demais para usar coisas como coletes - fui embrulhada numa espécie de saco. O pior é que, em meio à confusão que se formou no momento em que os passageiros eram retirados do Titanic para serem encaminhados aos botes salva-vidas, minha mãe se perdeu do meu irmão. Só conseguiu reencontrá-lo quando outro navio - que passava pela região - nos resgatou. Aquilo foi terrível para a minha mãe. Além de perder o meu pai, que afundou junto com o navio, ela simplesmente não conseguia encontrar o meu irmão, uma criança de menos de dois anos de idade. Minha mãe teve de ser levada ao hospital. Ficou em estado de choque. De volta à Inglaterra, minha mãe passou a receber uma pensão, para educar a mim e ao meu irmão. Quando eu tinha oito anos, minha mãe começou a me contar tudo o que se passara com nossa família no Titanic.

Um detalhe curioso: o meu irmão - que viria a ter quatro filhos - morreu, aos 82 anos de idade, exatamente no dia do aniversário do naufrágio do Titanic, em 1992. É extraordinario. Quero dizer que acredito em destino. Não foi por acaso que ele morreu.

GMN: A senhora diz que acredita em destino. Que outros fatos ligados ao Titanic que fizeram a senhora adquiria essa crença?

MD: Eu acredito na força do destino, em primeiro lugar, porque nossa família não iria viajar no Titanic. Nós, na verdade, iríamos embarcar em outro navio. Meu pai ia tentar a vida nos Estados Unidos, com nossa família - eu, minha mãe e meu irmão. Um dia antes da viagem, meu pai soube, na companhia de navegação, que tinha havido desistências entre os passageiros que viajariam no Titanic para os Estados Unidos. O funcionário da companhia perguntou se ele gostaria de trocar de navio. O meu pai ficou super-feliz com a chance de embarcar no Titanic. A outra coincidência - ocorrida tempos depois - foi, como eu disse, o fato de meu irmão morrer no dia do aniversário do naufrágio.

Houve outro detalhe: numa escala da viagem, minha mãe mandou um postal para o meu avô e minha avó dizendo "tudo bem até agora", como se tivesse tido uma premonição sobre o que viria a acontecer.

GMN: Por que o Titanic chama tanta atenção ainda hoje?

MD: O principal motivo da mística que se criou em torno do Titanic foi o fato de terem dito que o navio jamais afundaria. É esta a razão principal por que o navio desperta tanto interesse: um transatlântico tão maravilhoso não poderia afundar - mas afundou. Por esse motivo, o interesse sobre o Titanic continua. Não pára.

GMN: O que é que a senhora diz dessas expedições que tentam recolher objetos do Titanic no fundo do mar?

MD: Há uma distinção importante a ser feita. Não me oponho que se resgatem objetos que estão espalhados no fundo do mar, ao redor da área onde se encontram os destroços do navio. São parte da história. Eu sei que objetos ficaram espalhados num longo raio em torno do ponto exato do naufrágio. Mas não concordo que retirem objetos encontrados dentro da carcaça do navio.

Detesto a idéia de ver exploradores tirando objetos no interior dos destroços do Titanic. Fico pensando onde estariam os restos do meu pai. É horrível.

GMN: É verdade que a senhora nunca bebe água?

MD: Nunca bebo água. Por quê? Minha avó não bebia. Viveu 93 anos. Minha mãe não bebia. Viveu 95 anos. Minha tia-avó não bebia. Viveu 97. Por que eu deveria beber água? Além de tudo, não gosto.

GMN: Há alguma relação entre o Titanic e o fato de a senhora jamais beber água?

MD: Não existe nenhuma conexão. Afinal, o Titanic naufragou na água salgada. Não bebemos água do mar de maneira nenhuma... (ri).

GMN: A senhora culpa alguém pelo desastre?

MD: Honestamente, penso que o naufrágio não deveria ter acontecido de maneira nenhuma. Mas não tenho conhecimento suficiente para culpar alguém pelo desastre. Ninguém sabe realmente o que aconteceu naquela noite.

GMN: A lenda sobre o Titanic vai sobreviver para sempre?

MD: Vai, sim. Há um fenômeno interessante: não apenas gente idosa se interessa pelo Titanic. Fui a uma escola em que crianças me pediam autógrafo. Perguntam sobre minha idade, se não foi terrível perder meu pai, o que minha mãe pensava. São super-curiosas. A pergunta mais inteligente foi feita por um menino - que quis saber se minha família tinha perdido tudo no naufrágio, inclusive dinheiro, o que é que fizemos para sobreviver quando voltamos à Inglaterra? Eu disse a ele que minha mãe nos levou para a casa de nossos avós. A fascinação sobre o Titanic continuará - para sempre.

GMN: Uma das sobreviventes disse que o Titanic provou que o homem não pode desafiar Deus. A senhora diria o mesmo?

MD: Definitivamente, acredito que não podemos desafiar as forças da natureza. Fatos como o naufrágio do Titanic acontecerão sempre. Porque nada na vida é certo. O homem propõe. Mas Deus dispõe.

Aquela foi a única vez em que se disse que um navio não iria afundar de maneira nenhuma. Não se dirá tal coisa novamente.

Penso em tanta gente que pereceu no fundo do mar. A gente vê nos filmes os gritos de gente que não conseguiu escapar na hora do naufrágio. É horrível. Tudo parece tão bem na hora em que os passageiros embarcam. Fui a uma exposição que exibia objetos recolhidos no fundo do mar, perto do Titanic. Vi objetos de uso pessoal - como pentes, por exemplo. Fiquei pensando que os donos desses objetos morreram no mar. É triste.

(1995)

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julho 29, 2004

JOEL SILVEIRA 2

Joel Silveira,o repórter dos presidentes,diz o que ouviu de figuras como Getúlio Vargas,JK,Janio,Jango,Graciliano Ramos e Monteiro Lobato

QUEM DISSE QUE VÍBORA NAO FALA ?


Crianças : silêncio,por favor.Porque vai falar agora o repórter que conviveu com uma galeria completa de presidentes da República.Nome da fera : Joel Silveira.
Nosso personagem é o exemplo acabado do que o lugar-comum batizaria de Enciclopédia Ambulante.Ou Testemunha Ocular da História,no melhor estilo do velho Reporter Esso.Fala porque viu(Faca-se o teste.Cite-se um nome.Getulio Vargas ? Joel conheceu pessoalmente,e’ claro.Ficou impressionado com a maciez da mao do ditador.Cafe Filho ? Janio ? Jango ? JK ? Todos eles cruzaram o caminho deste sergipano que pousou no Rio em 1937).

Lá vem a ‘’víbora’’(era assim que o Poderoso Chefao dos Diarios Associados,Assis Chateaubriand,chamava Joel Silveira,um dos ultimos monumentos de uma epoca romantica do jornalismo brasileiro.A proposito : quem nomeou Joel como correspondente na Europa em guerra foi Chateaubriand,em pessoa).Quando gente como Joel povoava as redacoes,os jornais publicavam reportagens com grife autoral.Hoje,com rarissimas excecoes,nao ha nem reportagem nem grife autoral nos nossos jornaloes.Ha pelo menos vinte anos Joel nao é chamado para escrever nos jornais da grande imprensa,o que diz um bocado sobre a qualidade do texto hoje.Ponto.Parágrafo.
Inflada por inumeraveis barris de uísque consumidos nas últimas décadas,a barriga da vibora só falta
abrir um rombo na camisa apertada.Dizem as más linguas que,perto de Joel Silveira,um Galaxie -aquele carrao que consumia álcool com a voracidade de um boemio - seria catalogado como abstemio.E’ mentira.A víbora parou de beber desde que se constatou vitima de um mal irremediavel : a ausencia de amigos com quem pudesse dividir os prazeres do copo.Um a um,todos se foram.Estao mortos.Joel teve de escolher : ou parava de beber ou virava um consumidor solitário de uisque,hipotese que o horroriza.Cravou um ‘x’na primeira opcao.Num arroubo teatral,ja se declarou ‘’o homem mais solitario do Brasil’’.As garrafas de schotch,supremo sacrilegio na casa de um bebedor de meio seculo,viraram peca de decoracao desde o ja remoto ano de 1992.Hoje,a bebericagem é pra lá de eventual.Aos 81 anos de idade,resolveu deixar crescer uma barba grisalha que lhe dá a aparencia de um Ernest Hemingway pousado ás margens do Atlantico Sul.

Cacadores de revelacoes indiscretas sobre as maiores celebridades deste republica dificilmente sairao de maos abanando do reduto da vibora - o apartamento 602 de um predio da rua Francisco Sá,Copacabana,Rio de janeiro,Brasil.Nao ha tema candente ou personalidade conhecida capaz de despertar,em Joel,o sentimento da indiferenca.Sobre tudo e sobre todos,ele terá ou um depoimento perssoal ou,na pior das hipoteses,uma frase ferina a ofertar aos ouvintes.
H.L.Mencken,o papa do jornalismo iconoclasta,chegou ao extremo de escrever artigos atacando instituicoes aparentemente inofensivas,como os jardins zoologicos(‘’mostre-me.....).Joel Silveira é titular absoluto de uma das cadeiras da imaginária Academia dos Discípulos de H.L.Menken. Exemplos : torra tinta e papel há décadas para denunciar os medíocres e os injustos,mas nao perde a chance de disparar contra alvos surpreendentes,como,por exemplo,os tocadores de cavaquinho(sao ridiculos,quase grotescos);os alpinistas(para que servem,pelo amor de Deus ? )ou os turistas em geral.
Quando trabalhava no Correio da Manha,JS viveu uma cena inesquecivel.Depois de passar interminaveis minutos,num canto da redacao,dedicado ‘a tarefa de observar Joel preenchendo laudas e laudas,o genio Nelson Rodrigues ergueu a voz para pronunciar uma so palavra,em tom exclamativo : ’’Patético !’’.Joel deu o troco.Postou-se diante da mesa de Nelson Rodrigues,encheu os pulmoes,soltou um brado retumbante :’’Dramático !’’.
A víbora repete até hoje a exclamacao.Feitas as contas,considera a humanidade,tudo,todas as coisas,nos todos,patéticos.Deve ter razao.
Vai comecar a expedicao da víbora por sessenta anos de historia do Brasil.
Criancas : silencio,por favor.Porque vale a pena ouvir.

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É verdade que o presidente Getúlio Vargas só recebeu você no Palácio do Catete porque pensava que você iria pedir um emprego ?


Joel Silveira : “Certamente,porque,como já estava no final do governo,ele não daria entrevista de maneira nenhuma.Getúlio não era de dar entrevista : mandava Lourival Fontes(chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda) dar. Nunca deu entrevista, a não ser aquela ao Samuel Wainer.Aliás,Samuel praticamente escreveu aquela entrevista.A verdade é que Getúlio Vargas era intelectualmente preguiçoso. Gostava era de assinar papel, nomear, demitir. Mas me recebeu muito bem,no gabinete presidencial,no Palácio do Catete.Chamou-me de “doutor”.Eu disse: “Presidente, não sou doutor;só fiz o primeiro ano de Direito.” E ele : “Não ! O senhor é doutor ! Os padres de São Leopoldo, onde estudei, diziam que doutor é quem é douto em alguma coisa.O senhor é douto em jornalismo ! .” Já estava me corrompendo...Tinha uma conversa amena, agradável. Era limpo.Nunca vi um sujeito tão limpo em minha vida.A camisa,branca,era imaculada.Aliás,ele estava todo de branco,bem penteado, bem barbeado”.

Por que é que você prestou atenção nas mãos do presidente ?

Joel Silveira : “Notei que as mãos do presidente eram macias,fofas.Getúlio só me cumprimentou na entrada.Terminou me dando as costas na saída.Simplesmente foi embora.Quando eu lhe passei um questionário - e ele viu que o que eu queria era uma entrevista - Getúlio se transfigurou.Aquela cara risonha despareceu.O homem virou uma fera.Jogou o papel assim,na mesa : “O senhor entrega isso ao doutor Lourival”. Em seguida,levantou-se daquela cadeirona pesada - e sumiu”.

Você acompanhou do início ao fim os horrores da ditadura do Estado Novo.A imagem de Getúlio,pessoalmente,confirmou ou desmentiu tudo o que você esperava ?

Joel Silveira : “Confirmou.Vi que ele tinha empatia, era simpático.Ficava de vez em quando vesguinho quando fumava aquele charuto.Era um malandro, um filho da mãe de uma habilidade política terrível.”

Você sentiu,neste contato com Getúlio,que ele sabia ser envolvente?

Joel Silveira : “Getúlio envolveu todo mundo. Não era corrupto : era corruptor ! Era pessoalmente um homem honesto - tanto assim que morreu pobre,não deixou fortuna nenhuma, não deixou dinheiro, não deixou propriedade, não deixou nada.Mas corrompia. Era um craque na maneira de corromper. Também era muito cioso do dinheiro público.As pessoas tinham que prestar conta.Eu saí do Palácio de mão abanando,sem a entrevista,mas pelo menos aquele encontro me rendeu uma matéria : conheci Getúlio Vargas”.

Que imagem você guardou de Juscelino Kubitscheck ?

Joel Silveira : “Era um sujeito extremamente simpático. Um mês antes de Juscelino morrer,fui fazer uma entrevista com ele em Luziânia, perto de Brasília,onde ele tinha uma fazendinha,um sítio que ele chamava de fazenda.Juscelino era muito vaidoso,cuidava da imagem,pintava o cabelo. Dona Sara Kubitscheck me contou uma coisa tristíssima. Numa hora ,durante minha permanência na fazenda,Juscelino teve de sair.Eu e Dona Sara ficamos conversando,na varanda. Neste momento,ela me disse que,logo depois do golpe militar,numa das prisões,os militares deixaram Juscelino
vinte dias sem aquela tinta que ele usava para pintar os cabelos.Porque ele pintava diariamente.Fotografaram Juscelino com o cabelo com cores indistintas,marrom, um monstro.Fizeram de propósito - uma sordidez.Era uma revolução de pequenos”.

É verdade que você roubou uma namorada de Juscelino ?

Joel Silveira(de repente,monossilábico) : “Foi”.

Você pode contar como foi ?

Joel Silveira : “Ela era taquígrafa da Câmara.Ele queria levá-la para Minas...”.

Juscelino namorava com ela ?

Joel Silveira : “Namorava”.

Você tomou a namorada de JK ?

Joel Silveira(com voz sumida) : “Tomei”

Por quê ?

Joel Silveira : “Porque ela simpatizou comigo,essas coisas”.

Juscelino soube disso ?

Joel Silveira : “Soube ; ela foi a ele”.

Isso teve alguma influência no tratamento que Juscelino dispensou a você quando chegou á presidência ?

Joel Silveira : “Não. Uma vez,numa conferência de chefes de estado latino-americanos no Panamá,eu estava sentado,num hotel bonito.De repente,quem aparece ? Juscelino.Veio em minha direção.Ficou falando da inutilidade da reunião.Lá pelas tantas,ele disse : ”Como vai a nossa Fulana?” .Eu disse: “Nossa não, presidente.” E ele:” Não, a nossa amiga.” Foi só isso. Porque tinha sido muito recente”.


Você viajou com Jânio Quados de navio para a Europa, quando ele era apenas presidente eleito.A fama que ele tinha -de ser um beberrão - é justa?

Joel Silveira : “Completamente injusta ! Que ele bebia, bebia -e muito ! - mas nunca o vi bêbado.Quando estava nos palanques,Jânio fazia aquela encenação do cabelo despenteado,caído no olho, caspa no paletó....Mas vi,na viagem á Europa com ele,que aquilo tudo era teatro,uma maneira de ganhar voto. Eu estive dez dias com ele no navio.Bebíamos toda noite.Jânio bebia três vezes mais do que eu, misturava uísque com uma cerveja - Guiness - , forte pra burro. Mas,na intimidade,ao contrário do que ocorria no palanque,estava sempre bem-vestido, limpo, bem penteado,lúcido,bem articulado. Quando bebia,Jânio nem a fisionomia mudava.Era do ramo”.

Há um descompasso entre a figura pública e a figura pessoal desses grandes nomes da história republicana brasileira. Partidários de João Goulart,como o escritor Antônio Callado,diziam que ele não tinha estatura para ser presidente : ele seria no máximo presidente do PTB. Que avaliação você faz sobre João Goulart, hoje, quatro décadas depois de 64?

Joel Silveira : “Jango era um pobre homem, um estancieiro de poucas,pouquíssimas letras.Não era um político, foi invenção do Getúlio.Nem gostava do Rio de Janeiro,mas soube se cercar de gente boa.O ministério que Jango formou tinha um Evandro Lins e Silva, um Hermes Lima, um Celso Furtado, um Santiago Dantas, Tancredo Neves, eram pessoas da maior qualidade.Mas Jango não tinha consistência, não tinha habilidade política, não era um Getúlio. Depois,criou a fama de comunista.
Um encontro longo que tive com Jango ocorreu no apartamento que ele tinha na rua rarinha Elizabeth,no Rio.O que encontrei foi um sujeito sujeito extremamente simpático - simplório,até. O apartamento era modesto.Lá estava Jango bebendo uísque com aquela perna sempre estirada.Não conseguia dobrar a perna,tinha tido
gonorréia óssea,ficou com um defeito.
Neste dia,Jango me contou que,no final do governo de Getúlio,em 1954, quando a crise engrossou de verdade mesmo, Getúlio o chamou para um canto e mandou que ele,Jango,fosse embora : “És o segundo visado. Então,vá embora.” Deu a ordem.Em seguida,deu a Jango um envelope fechado. “Só abras isso quando chegares lá.” Jango,então,foi embora. Um amigo o acordou na manhã seguinte : “Tenho uma péssima notícia para te dar.Getúlio se matou”. Somente aí é que Jango se lembrou do papel que Getúlio tinha lhe dado.Abriu o envelope.Lá estava uma cópia da carta-testamento.Getúlio esperava que Jango divulgasse a carta no Rio Grande”.

Com quais dos presidentes militares você teve contato ?

Joel Silveira : “Tive com Castelo Branco,na FEB, durante a guerra,na Itália.Diariamente eu me encontrava com ele. Eu recebia jornais daqui do Rio que chegavam á Itália com atrasos de um mês, cinco semanas. Castelo me pediu jornal emprestado.Quando ele foi entronizado como ditador,em 1964,mandou,através de Rachel de Queiroz,um recado para mim e para Rubem Braga,que também esteve na guerra na Itália : gostaria muito de nos ver. Mas eu e Braga conversamos.Chegamos á conclusão de que não dava.Não tínhamos nada a fazer lá”.

Você testemunhou um encontro secreto de Tancredo Neves -já presidente eleito - com um general de quatro estrelas, aqui na sua casa,mas não publicou nada sobre o assunto.Por que ?

Joel Silveira : “O que aconteceu foi o seguinte : eu era,desde os tempos da FEB,na guerra,muito amigo do general Ernani Ayrosa - que chegou a ocupar o ministério do exército durante o regime militar. O general frequentava a minha casa. Um dia, quando o Tancredo já tinha sido eleito presidente,o general veio á minha casa : “Preciso falar muito com o presidente ! Você o conhece ?” Eu disse : “Conheço de vista, mas não tenho intimidade.Mas tenho uma pessoa que o conhece bem”.Era José Aparecido de Oliveira,a quem avisei imediatamente.José Aparecido me ligou de volta,depois de falar com Tancredo : “Pode marcar o encontro.” Eu perguntei: “Mas em que lugar?” Ele disse: “Em sua casa.” Eu me assustei : “Mas não tenho condições de receber um presidente da república e um general de quatro estrelas ! .” E ele: “Mas tem que ser aí.Não fale com ninguém ! .” Aliás,foi um pedido que Ayrosa também fez. Arrumei,então,o quarto onde trabalho.Eu sabia que Tancredo bebia uísque, sabia que Airosa só bebia leite.Arrumei uma mesinha, botei salgadinhos - e os dois se trancaram lá,sozinhos.Tancredo só saiu do quarto para ir ao banheiro.De repente,quem irrompe no apartamento ? Quem ? Paulo Francis ! Ninguém sabe até hoje como é que Paulo Francis soube. Logo logo Paulo Francis começou a ditar regras sobre o que é que Tancredo devia ou não devia fazer.Ficou aquele mal estar...José Aparecido olhava para mim como se eu é que tivesse avisado ao Paulo Francis,a quem eu não via há tempos.E eu pensando que José Aparecido é que tinha avisado.É um dos mistérios da minha vida essa história do Paulo Francis.Não tenho a menor idéia sobre o que é que Tancredo Neves conversou em sigilo com o general.Tenho a impressão de que nem Aparecido sabe”.

Em algum momento, você,que sempre foi repórter, sentiu aquele impulso de publicar a notícia do encontro ?

Joel Silveira : “Não.Porque ali eu não estava os recebendo na qualidade fde repórter,mas de anfitrião. Eu jamais faria isso ! Um dia depois,me ligaram,não se foi do Jornal do Brasil.Perguntaram : “O que Tancredo foi fazer em sua casa ?”.E eu : “Quem me dera.....”.

Que tal Fernando Henrique Cardoso ?

Joel Silveira : “É o tipo do presidente que sabe falar mas não sabe dizer .Fala mas não diz.Nunca vi falar tanto,sobre qualquer assunto.Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola.Tenho a impressão de que todo dia,ao acordar,logo de manhã,Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta : “Por favor,qual é o mote de hoje ?”. O assessor diz -por exemplo- “indústria siderúrgica”.E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo.Um dia depois,muda de mote.E assim por diante,até o fim dos tempos”.

Você gosta de citar uma tirada do poeta Murilo Mendes, católico, que dizia: “Deus existe, mas não funciona.” Você, que se declara ateu,teve a chance de conhecer pessoalmente pelo menos três Papas.O que é que ficou desses encontros ?

Joel Silveira : “Conheci Pio XII quando ele já era papa,conheci João XXIII - quando ele era cardeal de Veneza- , conheci Paulo VI,quando ele era cardeal em Milão. Com Pio XII eu tive uma decepção terrível.Fui levado ao Vaticano pelo marechal Mascarenhas de Moraes,durante a guerra. O comando da FEB pediu uma audiência ao Papa. Mascarenhas me perguntou: “Você não quer ir? “E eu: “Quero conhecer um Papa ! Eu nunca tinha visto um,pessoalmente ” Aquela coisa austera, aristocrática. O Papa - que era poliglota - disse assim: “Brasileiros? Língua muito rica ! Sábia é a mulher do sábio. Sabia é tempo de verbo. Sabiá é passarinho - pi, pi, pi, pi, pi, pi.” E foi embora ! “Poliglota” ! É como esse Woytila -que decora aquelas coisas, diz que sabe 800 idiomas. Não sabe. Mal sabe o italiano.Fala um italiano horroroso, com sotaque polonês.
Já o meu encontro com o cardeal Montini,que viria a ser o Papa Paulo VI,
ocorreu na Nunciatura de Milão.Fui entrevistá-lo não porque ele era cardeal de Milão,mas porque era candidato a Papa,um “papabile”,como se diz.
Fêz,sobre o Brasil,aqueles comentários que todo mundo faz,”país grande e belo”.. João XXIII era uma simpatia,largadão,barrigudão. eu ouvia sobre ele,em Veneza,comentários interessantes.Quando ele foi para o conclave que escolheria o novo Papa,ele só levou uma muda de roupa e a escova de dentes,porque pensava em voltar no dia seguinte.Mas terminou eleito - um sujeito fabuloso. Quando estive com ele,notei como era tranquilo,bonachão,com orelhas enormes,deixa você logo á vontade.Queria saber de tudo.Perguntava mais do que ouvia.Queria conhecer a floresta amazônica.Ele é que me entrevistou”.

O que é que ficou da convivência com Nélson Rodrigues ?

Joel Silveira : “Uma vez,na redação da Última Hora,eu estava escrevendo à máquina,depressa,porque,no fundo,o que sou mesmo é um bom datilógrafo.
Lá estava eu escrevendo,com os dez dedos.Nélson chega,fica em pé diante de minha mesa,em silêncio.De repente,diz : “Patético ! ”.E vai embora.
Eu,então,fui até a mesa onde ele trabalhava,fiquei uns dois ou três minutos olhando em silêncio e disse : “”Dramático !”.
Eu não tinha nada contra Nelson Rodrigues,mas não gosto daquela coisa escatológica que ele cultivava. Nelson Rodrigues, no fundo, era,na vida pessoal,um homem de um moralismo atroz. Não bebia, não fazia farra, não tinha amantes.

Você escreveu que “o cúmulo do ridículo, beirando o grotesco,é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”....

Joel Silveira : “É de um ridículo atroz,uma coisa horrorosa, meu Deus do céu....”

Depois de conhecer tanta gente, inclusive famosa, que outros tipos você incluiria na antologia do ridículo ?

Joel Silveira : “Todo turista é ridículo,com aquelas bermudas, fotografando tudo. Turista japonês, então, é o cúmulo do ridículo, com cinco máquinas fotográficas.Há duas espécies humanas que acho de um ridículo atroz : primeiro,é o turista,universal, em qualquer lugar.Depois,é o torcedor fanático, aquele que chora e come o dedo : é de um ridículo absoluto”.

Que tal um ônibus cheio de turistas,no exterior,cantando “ô-lê- lê,ô-lá-lá,.....”

Joel Silveira : .....”Pega no ganzê,pega no ganzá”....Vi um dia duas velhas mineiras,senhoras de uns cinquenta anos,conversando na loja da Varig,em Paris, na Champs Elysée. Uma dizia á outra : “Fulana, tem tido notícias de Juiz de Fora?” A outra: “Não.” “E o que é que você tem achado de Paris?” “Ah, uma cidade bonita, mas não é a nossa Juiz de Fora.” Você ter de ouvir isso: “Não é a nossa Juiz de Fora !!!!.”

Você também escreveu: “Pode haver algo mais idiota do que um alpinista? “

Joel Silveira : “Não pode ! Precisa ser um débil mental.Para que subir aquela montanha, se de avião você vê tudo aquilo ? Por que não vai de helicóptero ? O que é que o alpinista quer provar com aquilo? Você não viu aquela mulher que despencou lá de cima de uma montanha ? Não tive pena nenhuma. Só lamento porque ela deixou um filho.Mas ela queria provar o quê? O alpinista se mata para chegar ao cume do Everest,mas vai encontrar o quê? Chegou lá,o que é que tinha? “Ah, tinha o cume do Everest”. Para ver,basta passar de avião, qualquer Boeing de carreira passa por cima, tranqüilamente. Aliás os esportes - de um certo modo - têm o seu lado ridículo : querer disputar, jogar uma flecha mais longe, dar um pulo maior do que outro.Isso é coisa de bicho de floresta.É coisa de macaco”.

Um dos seus amigos, que você cita num livro que vai sair agora como um “bom escritor”,disse que não conseguia de jeito nenhum passar da página noventa e dois do romance “Vermelho e o Negro”, porque a história “tinha gente demais e ninguém ficava parado”. Que amigo escritor era esse ?

Joel Silveira : “Rubem Braga - que escrevia muito bem, era um prosador nato.E todo prosador nato vai querer ler Stendhal. Eu não estava pedindo a ele que fosse ler “Guerra e Paz” em russo. Pedi que lesse Stendhal. Comprei uma edição bonita de “O Vermelho e o Negro”. Quinze dias depois,ele me disse: “Parei.É gente demais”. Não conseguiu terminar”.


Qual foi o grande livro que você não conseguiu terminar?

Joel Silveira : “Eu li muito Dostoievsk, mas nunca consigo chegar até o fim de os “Irmãos Karamazov” .Os outros eu li, “Crime e Castigo”, “O Jogador” é fantástico,maravilha de síntese. Mas “ Irmãos Karamazov” não dá”.....

Quem é o grande escritor chato?

Joel Silveira : “Um grande escritor chato é esse Günter Grass. Terminou ganhando o Prêmio Nobel.É chato de doer, complicado, tortuoso.Mas,quando lê com atenção,você vê que aquilo é literatura mesmo. Outro que é muito chato é Thomas Mann. Eu leio, mas é difícil”.

João Gilberto,o cantor, disse que “vaia de bêbado não vale”.Você -que já bebeu mas hoje é um primor de sobriedade - vaiaria quem no Brasil de hoje,já que vaia de sóbrio vale ?

Joel Silveira : “Em primeiro lugar,quero dizer que acho João Gilberto uma das sete pragas do Egito - e do Brasil. Só diz besteira, porque é analfabeto. Nunca leu um livro. Disse: “Vaia de bêbado não vale.”Ora,só vale ! “In vino, veritas.” O provérbio romano diz que é no vinho que se encontra a verdade. Só vale ! É um cretino.
Quanto ás vaias,as minhas vão para João Gilberto, o primeiro de todos, sempre.Depois,para Gilberto Gil,Caetano Veloso. Bote aí : Fafá de Belém, essa escória musical toda.Aliás, eu nem gostaria de vaiar.Gostaria de apupar.É o termo. Acho-os uma porcaria”

Você - que foi o fundador do Partido Socialista Brasileiro - permanece fiel ao partido depois do fim do socialismo ?

Joel Silveira : “Fui um dos trinta e dois fundadores do Partido.Para mim,o socialismo acabou.O que entendo como socialismo é a esquerda democrática, é não ser da direita, é querer uma divisão de renda justa e equânime, é ter todos os direitos que o Estado puder dar,em troca do dinheiro que você dá ao Estado, como existe na Suécia, nos países nórdicos. Para mim,o socialismo é isso”.

O socialismo não animaria você nem como alternativa quixotesca ?

Joel Silveira : ‘’O problema do socialismo é o problema de estrutura econômica. Aqui no Brasil o regime é o capitalismo mesquinho, feroz, injusto.É impossível,então,estabelecer um socialismo democrático num país que caiu na mão de uma elite que só quer tudo pra ela, não divide, não cede, inclusive por burrice.O PT do Lula é o que mais se aproxima do programa do Partido Socialista”.


Por que você foi o primeiro preso pelo Ato Institucional nº 5?

Joel Silveira : “Porque eu estava com uma gripe violentíssima,em casa.Os agentes vieram aqui,me levaram.Quem foi prevenido conseguiu fugir.Cada um deu no pé. Eu não.Se soubesse que ia ser preso,eu teria caído fora.Por que é que eu iria me deixar ser preso? Isso seria um quixotismo burro.Carlos Heitor Cony - que já não gosta que se fale nisso - foi meu companheiro de cela”.

Circulou uma história - não sei se é folclórica - dizendo que você protestou porque um ladrão iria fazer companhia a vocês na sala. É verdade ?

Joel Silveira : “Eu disse: “Aqui não ! Aqui é lugar de subversivo ! Ladrão é lá.” Eu sabia que do outro lado do quartel tinha a ala de ladrão”.

Qual foi,afinal,a grande entrevista que você teve a chance de fazer mas não fêz,por timidez ?

Joel Silveira : “A grande entrevista que não fiz foi com Ernest Hemingway,em Paris. Samuel Wainer estava lá.Perguntou : “Você sabe quem está aí ? Hemingway !.
Você não vai fazer a entrevista ele?” .Um jornal trazia o nome do café que Hemingway frequentava todo dia.Ficava lendo jornal de turfe ; não queria ser chateado.De repente, chega o sujeito, muito maior do que eu pensava.Fiquei pensando: “O que é que um jornalista do Brasil, que não sabe falar inglês,vai perguntar a ele ?“. Fui para o banheiro, enchi a cara, disse a mim mesmo : “Agora,vou direto á mesa do Hemingway...”. Quando saí do banheiro,Hemingway já tinha ido embora.Que fracasso,este meu !”.

Qual seria a primeira pergunta que você faria a ele ?

Joel Silveira : “Eu iria perguntar se ele não tinha vontade de caçar na Amazônia.Eu deveria ter abordado Hemingway quando o vi pela primeira vez.Eu deveria ter ido.O pior que poderia acontecer seria eu levar um soco.Neste caso,o soco renderia uma matéria :”o dia em que levei um soco de Hemingway”.Qualquer coisa que ele fizesse renderia assunto.Mas não pedi a ele a entrevista.Um fracasso absoluto”.

Se você fosse escrever uma “Enciclopédia Joel Silveira”,o que é que você diria num verbete sobre - por exemplo - Graciliano Ramos...

Joel Silveira : “Uma vez,levei um conto pra ele ler.Graciliano era muito seco, nos atos. Começou a ler o meu conto.De repente,dobrou o papel,começou a rasgar,picotou tudo,virou confete.Não dava para emendar.Eu nem tinha cópia.Depois de rasgar,ele jogou na cesta.Não disse nada ! Preferiu me convidar para ir ao Café Mourisco,para beber uma cachacinha e um café”.

Você não perguntou nada a ele ?

Joel Silveira : “Não perguntei nada,porque,com o gesto,ele já tinha dito o que queria dizer.Quer resposta mais explícita do que aquela - rasgar o conto ? Anos depois,eu disse: “Ô Graça, mas aquele meu conto era muito ruim mesmo?” E ele : “Horroroso !”.

O verbete sobre Monteiro Lobato na Enciclopédia Joel Silveira seria como ?

Joel Silveira : “Fiz com Monteiro Lobato uma entrevista fatídica,para “Diretrizes”. Fui ao chalezinho de Monteiro Lobato,no Pacaembu.Ficamos a manhã inteira conversando. Pequenino,de pijama,ele falava violentamente contra a ditadura de Getúlio Vargas.Tinha horror ao Getúlio.Lá no meio da entrevista, soltou esta frase : “O Governo deve sair do povo, como a fumaça da fogueira.” Isso em plena ditadura do Estado Novo ! Samuel Wainer transformou esta frase de Monteiro Lobato em manchete.A revista foi imediatamente fechada pela polícia.Samuel se mandou para uma embaixada,acho que do Chile.Eu fui para Sergipe”.

E Oswald de Andrade ?

Joel Silveira : “Para mim,Oswald de Andrade era um moleque.Eu tinha a maior antipatia por ele.Era um sujeito ruidoso, cheio de frases feitas, um vagabundo, nunca fez nada na vida.Torrou a fortuna da família toda.Gastava dinheiro da Europa,por conta da burguesia,num gesto antipático e hipócrita”.

Sobre Mário de Andrade,o que é que você escreveria ?

Joel Silveira : “Era insuportável,um viadão, vivia cercado de garotos, todo pachola.Uma vez,escreveu uma crítica sobre um livro.Disse : “Este realmente é um bom contista,não é um Joel Silveira qualquer”.Aliás,devo ser a única pessoal do Brasil que nunca recebeu uma carta de Mário de Andrade.Todo mundo recebeu.Não me empolga.A poesia de Mário de Andrade é muito ruim, os contos são uma coisa tradicional, aquele negócio de folclore.Detesto folclore ! “.

Há quanto tempo não chamam você para escrever num grande jornal brasileiro?

Joel Silveira : “Há séculos, meu Deus do céu ! Não há por que chamar”.

Faz de conta que você é o chefe de reportagem.Se chegasse aqui um jovem repórter cheio de entusiasmo e pedisse a você uma grande pauta para fazer hoje no Brasil, que assuntos você indicaria?

Joel Silveira : “Que tal o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva durante o governo militar ? Já se cavou um cova.Vamos cavar outras,então ! E a morte da figurinista Zuzu Angel num acidente que não entra na cabeça de ninguém ? E a explosão da bomba no Riocentro ? Qual foi a intenção verdadeira ? Era causar um massacre ? Ou dar um susto ? A morte de Juscelino ficou mal contada.A mim,não me convenceu.Eu não sou um juscelinista.Sou um leitor de jornal. E o atentado à OAB ? Quem mandou ? E a morte de Lamarca ? E a de Marighela - um sujeito astuto e conspirador,como ele era,ia sair idiotamente daquele jeito ? E aquele operário que morreu no DOI-CODI em São Paulo ? E a morte de Herzog - que não tinha motivo nenhum para se suicidar ? Isso tudo daria uma série fantástica”.

Você conseguiria descrever Joel Silveira em uma só palavra ?

Joel Silveira : “Teimoso.Eu não pedi para vir ao mundo.Agora,aos oitenta anos,não vou pedir para sair”.

(2000)

Posted by geneton at 11:54 AM

maio 29, 2004

MOURA CAVALCANTI

O PRESIDENTE DELIRA NO PALÁCIO : QUER ANEXAR A GUIANA FRANCESA AO BRASIL !


A crise institucional aberta pela renuncia do presidente Janio Quadros terminou frustrando um plano que,se executado,ganharia,com certeza,um lugar de destaque numa antologia mundial dos desvarios politicos : o presidente queria anexar a Guiana Francesa ao territorio brasileiro,numa operacao militar de surpresa - uma investida no estilo da frustrada anexacao das Ilhas Malvinas pela Argentina,em 1982. A invasao das Malvinas deflagrou uma guerra entre Inglaterra e Argentina. Qual teria sido a reacao internacional a uma aventura expansionista brasileira na Guiana Francesa ? Janio Quadros chegou a convocar,para uma audiencia secreta em Brasilia,o governador do Amapa’,Moura Cavalcanti,um politico que,anos depois,durante os governos militares,ocuparia o Ministerio da Agricultura do general Garrastazu Medici e o governo de Pernambuco,por eleicao indireta.Moura Cavalcanti estava disposto a cumprir a surpreendente determinacao do presidente : afinal,tinha sido nomeado para o cargo de governador do Amapa’ pelo proprio Janio Quadros.Ordens sao ordens.Alem de dar a ordem a Moura Cavalcanti,o presidente passou,diante do governador,um radio para um comandante militar,com a orientacao textual :
-Estudar a possibilidade de anexar ao Brasil a Guiana Francesa - se possivel,pacificamente.

‘’Eu me recordo dos termos com exatidao ‘’- diz Moura Cavalcanti.Nesta entrevista,Moura Cavalcanti,ja’ abalado por uma doenca renal que o materia meses depois no Recife,descreve,com detalhes,a cena surrealista que presenciou,como testemunha e personagem,em Brasilia,num dia de 1961.

GMN - Que ordens o senhor recebeu do presidente Janio Quadros,em Brasilia,em relacao ‘a Guiana Francesa ?
Cavalcanti : ‘’Quando o presidente Janio Quadros analisou o processo de venda de manganes para os paises estrangeiros,me deu a seguinte ordem : ‘’Defenda os interesses nacionais acima de qualquer outra coisa.A proposito : eu acho que chegou a hora de resolver defnitivamente isso.Por que nao anexarmos a Guiana Francesa ao territorio brasileiro ?’’.

GMN - Que reacao o senhor teve ao receber esta ordem ?
Cavalcanti : ‘’Uma reacao violenta.Primeiro,o seguinte : nao tinha estrutura para agir um conquistador.Nao tinha sonhado em conquistar terras,nas minhas andancas por Macaparana(N: terra natal do ex-governador,em Pernambuco).Quando muito,tinha pensado em aumentar o meu engenho...Andei de um lado para o outro;fiquei confuso,evidentemente.E Janio Quadros me disse : ‘’Sente aqui !’’. Eu me sentei junto ao telex.E ele passou um telex a um militar que,me parece,era o chefe do Estado Maior das Forcas Armadas’’.
GMN - Que comentario Janio Quadros fez sobre o plano ?
Cavalcanti : ‘’Janio Quadros me disse : ‘’Um pais que dominar do Prata ao Caribe falara’ para o mundo !’’.O presidente olhou o pequeno papel que tinha nas mais,com a ordem.Olhou o mapa do Brasil,imenso,na parede.Balancou lentamente a cabeca,antes de dizer que um pais que fosse do Prata ao Caribe seria respeitado e dominaria o mundo’’.
GMN - Por que e’ que esta ideia do presidente nao se realizou ?
Cavalcanti : ‘’Porque Janio Quadros renunciou algumas dias depois.A conversa com Janio ocorreu em agosto de 1961 - ‘as vesperas da renuncia’’.
GMN - Como e’ que seria feita,na pratica,esta anexacao ?
Cavalcanti : ‘’A anexacao da Guiana Francesa comecaria com uma visita de Janio Quadros a’ Amazonia.Uma esquadra chegaria ao cais do porto,no Amapa’’’.
GMN - A principal motivo da anexacao seria economica ?
Cavalcanti : ‘’O presidente queria evitar a saida de minerios do territorio brasileiro.A saida de minerios era uma coisa incrivel.Uma parte saia atraves da Guiana;outra atraves do nosso porto’’.
GMN - Que outra orientacao ele deu ?
Cavalcanti : ‘’Janio falou muito sobre o disciplinamento do transito dos minerios’’.
GMN - O senhor estava disposto a cumprir a ordem do presidente ?
Cavalcanti : ‘’Eu estava disposto a cumprir o que ele desejava’’.
GMN - O projeto,entao,so nao se realizou por causa da renuncia ?
Cavalcanti : ‘’A minha parte eu cumpriria ! (silencio).Em um mes,eu criei uma Policia Militar’’.
GMN - Como seria feita a anexacao ? Atraves da abertura de uma picada na selva ?
Cavalcanti : ‘’Cabia a mim a abertura da picada,ate’ Oiapoque.(N:onde havia uma base militar brasileira e uma base militar francesa).Vi a queda das castanheiras.Quando recebi a orientacao do presidente,fui para a fronteira.Consegui,com uma base americana que ficava localizada no Caribe,um helicoptero. Eu me lembro que um assessor me dizia : ‘’Se esse helicoptero cai na floresta amazonica,vai dar manchete ! Helicoptero cai e morre governador e secretario !’’.
GMN - Quando o presidente Janio Quadros falou sobre a anexacao da Guiana,so estavam no gabinete o senhor e ele ?
Cavalcanti : ‘’So estavamos eu e ele.O presidente.Antes,ele nao me disse que eu nao levasse ninguem nem me pediu para que eu nao falasse.Disse,apenas,que o assunto seria secreto’’.
GMN - Que outras pessoas souberam desta conversa,na epoca ?
Cavalcanti : ‘’Cordeiro de Farias ( n: marechal) soube;Golbery do Couto e Silva soube,Jose’ Aparecido de Oliveira,tenho a impressao,soube’’.
GMN - O ministro das relacoes exteriores,Afonso Arinos,estava presente ?
Cavalcanti : ‘’A este encontro meu com o presidente,ele nao estava presente.Mas,como ele dizia que os ministros eram ministros de verdade,Afonso Arinos deve ter sabido’’.
GMN - Como e’ que o senhor avalia este episodio hoje ? Que importancia este plano teria para a historia do pais ?
Cavalcanti : ‘’Hoje,nos estamos diferentes’’.
GMN - Mas,na epoca,a anexacao poderia ter acontecido ?
Cavalcanti : ‘’Poderia ! Poderia ter acontecido.E seria aceito pela Franca.A base francesa tinha um coronel que vivia bebado.Era um batalhao de elite - que foi para dentro da selva.A gente via que eles tinham desejo que aquilo acontecesse. A anexacao seria uma operacao militar.Uma estacao de rastreamento seria criada’’.
GMN - Depois que recebeu a noticia da renuncia do presidente,o senhor se sentiu aliviado diante da perspectiva da invasao da Guiana ?
Cavalcanti : ‘’Tive um sentimento de perda.
Eu pensava que o caminho era aquele.Pode ser orgulho meu’’.

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abril 29, 2004

OSWALDO FRANÇA JÚNIOR

O ESCRITOR RECEBE UMA MISSÃO :
MATAR LEONEL BRIZOLA

A Historia poderia ter tomado um rumo diferente em 1964 se tivesse havido uma resistencia igual a’ que Leonel Brizola comandou em 1961 para garantir a posse do entao vice-presidente Joao Goulart na presidencia da Republica depois da renuncia de Janio Quadros.

Com um microfone nas maos,Brizola comandara em 1961 uma campanha pela legalidade : se a presidencia estava vaga,o vice Goulart e’ que deveria assumir.Nao era o que os militares queriam.Mas foi o que aconteceu.

A resistencia legalista de Brizola em 1961 por pouco nao acaba em bombas e balas. Piloto da FAB que anos depois ficaria famoso como escritor,o mineiro Oswaldo Franca Junior recebeu,com os colegas,uma missao que,se executada,poderia resultar na eliminacao fisica do ex-governador Brizola sob um monte de escombros,num palacio bombardeado.

Oswaldo Franca Junior tinha um demonio dentro de si.Queria um exorcista.Todas as tentativas de traduzir o demonio em palavras foram frustradas.Bem que tentou,mas nao conseguiu transformar em texto a incrivel experiencia quer viveu nos tempos em que era oficial da Forca Aerea Brasileira,no comeco dos anos sessenta. Extremamente rigoroso com o que escrevia,a ponto de so aproveitar dez de cada cem paginas que produzia,Franca Junior despejou na lata de lixo as tentativas de relato da epoca. Se transformadas em livro,as confissoes do ex-primeiro tenente Franca Junior poderiam ter virado best-seller politico : basta saber que ele participou diretamente de uma operacao secreta para bombardear o Palacio onde estava o entao governador Leonel Brizola,em Porto Alegre.Franca Junior estava pronto para levantar voo num dos avioes que despejariam bombas sobre o Palacio.Nesta entrevista,ele revela com todos os detalhes como a operacao foi preparada.
Diante do gravador,Oswaldo Franca Junior relatou com desembaraco o que jamais conseguiu escrever.Uma coisa e’ certa : Franca Junior e’ seguramente o unico escritor em todo o mundo que recebeu uma ordem expressar para bombardearum palacio e matar um governador.Expulso da Aeronautica pela Ato Institucional Numero 2 como ‘’subversivo’’,Franca Junior virou corretor de imoveis,vendedor de carros usados,dono de carrocinhas de pipoca e ate’ administrador de uma pequena frota de taxi,antes de ficar conhecido nacionalmente com o romance ‘’Jorge,um Brasileiro’’ ,em 1967.
Vai falar o escritor que,como piloto,esteve a um passo de se envolver numa carnificina a mando dos superiores :
GMN : Voce e’ seguramente um caso unico de escritor que recebeu ordens expressas para eliminar um governador de Estado num bombardeio a um palacio.Voce pode revelar em que circunstancia exatamente foi dada a ordem de eliminar o entao governador do Rio Grande do Sul,Leonel Brizola ?
Franca Junior : ‘’Voce quer saber em que cinscunstancias...Eu servia no Esquadrao de Combate,em Porto Alegre.Era a unidade de combate mais forte que existia entre o Rio de Janeiro e o sul.Era o 1@ do 14@ Grupo de Aviacao.A gente usava um aviao ingles que,na FAB,recebeu de F-8.Logo depois da renuncia de Janio Quadros,em 1961,Brizola fez a Cadeia da Legalidade atraves das emissoras de radio e se entrincheirou no Palacio do Governo,em Porto Alegre.O comandante do meu esquadrao nos reuniu e disse : ‘’Nos acabamos de receber uma ordem para silenciar Brizola.Vamos tentar convence-lo a parar com esse movimento de rebeldia.Se ele nao parar com essa campanha,vamos bombardear o Palacio e as torres de transmissao da radio que ele vem usando para fazer a Cadeia da Legalidade.Vamos fazer tudo ‘as seis da manha.Vamos tentar dissuadir Brizola ate’ essa hora.Se nao conseguirmos,vamos bombardear’’. Nos ouvimos essas palavras do comandante.Todo oficial tem uma missao em terra,alem de ser piloto de esquadrao.Eu era chefe do setor de informacao.Recebi ordens de calcular o quanto de combustivel ia ser usado e quanto tempo os avioes poderiam ficar no ar.Dezesseis avioes foram armados para a operacao.Pelos meus calculos,a gente ia pulverizar o Palacio do Governo ! O armamento que a gente tinha em maos era para pulverizar o palacio.um ataque para acabar com tudo o que estivesse la’.Nao ia haver duvida.Os avioes foram armados.Nos nos preparamos.Colocamos as bombas e os foguetes nos avioes.Ficamos somente esperando chegar a hora,quando o dia amanhecesse.Mas criaram-se ai varios impasses,varios problemas serios.Durante o tempo em que ficamos esperando,nos todos sabiamos que iriamos matar muita gente. Num ataque como aquele ao Palacio,bombas e foguetes cairiam na periferia.Muitas pessoas iriam ser atingidas.Alem de tudo,Brizola estava com a familia no Palacio,cercado de gente.Havia gente armada la’,mas nao ia adiantar nada,diante do ataque que iriamos deflagrar com nosso tipo de aviao.Podia ser que um ou outro aviao caisse,o que nao impediria de maneira nenhuma o ataque e a destruicao do Palacio.E ai’ comecou o questionamento.
O militarismo tem dois alicerces basicos : a disciplina e a hierarquia.Voce nao pode mexer nesses dois alicerces.Toda a carreira,todos os valores,todo o futuro do militar e’ garantido em cima desses dois suportes.Voce,quando e’ militar,sabe exatamente o que vai acontecer com voce daqui a dez,vinte anos,baseado nessa hierarquia e nessa disciplina.Isso da’ uma seguranca e um ‘’espirito de corpo’’ bem desenvolvidos.Mas,diante de nos,os tenentes que iamos fazer o ataque,e nao estavamos incluidos nba alta cupula,apresentou-se uma incoerencia : se o presidente da Republica,chefe supremo das Forcas Armadas,renunciou,automaticamente quem deve assumir e’ o vice-presidente.Nos nos perguntavamos ali : por que o Estado Maior - que nao fica acima do Presidente da Republica - pode determinar que um vice-presidente nao pode assumir ? Entao,ha’ uma incoerencia interna na hora de obedecer auma ordem assim.Por que ? Porque aquela ordem,em principio,ja’ quebrava a hierarquia,a base do sentimento militar.Nos comecamos a pensar.Mas iamos decolar,sim,para o ataque ! Durante a noite,no entanto,houve um movimento inteligente,partido principalmente do pessoal de base.O aviao de caca so leva um pessoa,o piloto.Mas e’ necessario ter uma equipe grande de apoio no solo.E essa equipe de apoio,formada principalmente por sargentos,impediu a decolagem dos avioes.Os sargentos esvaziaram os pneus.E trocar de repente todos os peneus dos avioes de combate e’ um problema tecnico complicado e demorado.Os avioes,assim,ficaram impedidos de decolar na hora do ataque.Houve uma movimentacao.E o Exercito ajudou a controlar a divisao interna na Base Aerea.O Estado Maior mudou a ordem,para que nos nos descolassemos para Sao Paulo.E,para a viagem de Porto Alegre para Sao Paulo,os avioes nao poderiam decolar armados.Por que ? O aviao de caca e’ uma plataforma que voce eleva para transportar armamentos.Ali dentro so existe lugar para colocar combustivel e arma.O piloto vai num espaco pequeno.Entao,tiraram os armamentos dos avioes para encher de combustivel.Somente assim seria possivel chegar a Sao Paulo.O Estado Maior estava centralizando o poder de fogo para que,se houvesse um guerra civil,eles estivessem bem equipados’’.
GMN - Como militar,voce cumpriria sem discussao essa ordem de bombardear o Palacio e eliminar fisicamente o governador ?
Franca Junior : ‘’Naquelas circunstancias de Porto Alegre,eu obedeceria,sim.Obedeceria ! Um ou dois meses depois eu iria questionar.Por que ? Porque ali foi um ponto de ruptura,um divisor de aguas.Naquela crise,em que passamos a noite inteira nos preparando para bombardear o Palacio do Governo,surgiram-se varios questionamento.Somente de madrugada e’ que houve o problema da sabotagem dos avioes.Agora nem tanto,mas antes voce so era preparado para ;utar contra o inimigo externo.E de repente nos chegou aquela ordem para bombardear Brizola de uma hora para outra.Nao houve nem uma preparacao psicologica nossa.Voce,entao,comeca a se questionar : por que e’ que as pessoas estao fazendo aquilo ? Por que a realidade brasileira e’ essa ? O militar,em qualquer crise politica,nao e’ como o civil - que pode fazer a opcao sobre se vai participar ou nao.O militar e’ obrigado a participar - e de arma na mao !’’.
GMN -Voce e’ que escolheu as bombas que seriam usadas para matar Brizola ?
Franca Junior : ‘’Nao.Ajudei a verificar o volume de combustivel nos avioes.Nos iriamos usar bombas de 250 libras.E 15 foguetes.Cada aviao iria levar quatro bombas de 240 libras,alem de quatro canhoes.Eu digo : a gente ia pulverizar tudo ! O armamento que iriamos usar nao era para intimidar...’’.
GMN - Quando estava fazendo os calculos de combustivel e de armamentos,voce pensava em que ?
Franca Junior -’’O questionamento vem surgindo aos poucos.A primeira impressao e’ que tinha acontecido algo serio e nos nao tinhamos ainda acesso ‘as informacoes sobre o que havia ocorrido.Haviam,provavelmente,descoberto ligacoes de Brizola ou de um grupo grande.O bicho-papao,na epoca,eram os comunistas.Entao,eles devem ter descoberto uma trama tao diabolica e tao generalizada que estavam tomando uma atitude seria para impedir que o presidente assumisse’’.
A experiencia que vivi foi inusitada,porque voce julga que uma guerra civil pode pode surgir de um encadeamento de fatos que leva anos - mas nao de uma hora para outra,como ali : uma pessoa vem e da’ uma ordem.Se o pessoal de apoio da Base Aerea de Porto Alegre nao tivesse impedido a decolagem dos avioes,nos teriamos decolado e destruido o Palacio.Nao tenha duvida ! Isso forcosamente teria desencadeado um problema seriissimo no Brasil’’.

GMN - Pouquissimos escritores viveram,na vida real,historias com uma forca dramatica tao grande.Por que e’ que voce nunca quis descrever todos estes acontecimentos literariamente ? Por que voce despreza uma experiencia tao rica ?
Franca Junior - ‘’Nao e’ que eu despreze ! E’ diferente.Fui aviador durante anos e anos .O fato de lidar com aviacao faz com que voce adquira uma materia-prima rica,porque levam o ser humano a se desnudar e a demonstrar quem e’.E eu levei quase vinte anos para conseguir escrever uma historia que trata de aviacao.Eu tinha vontade de escrever.Quando comecava uma historia,percebia que estava tudo falso !’’.


(1987)

Posted by geneton at 12:17 AM

abril 24, 2004

JANET ("PSICOSE") LEIGH

Silêncio ! A vítima do assassinato mais famoso das telas vai falar


LONDRES- Um banho de chuveiro num hotel de beira de estrada. Somente a mão de um gênio poderia transformar um gesto tão banal em sinônimo de medo, suspense, terror, mistério, agonia. Alfred Hitchcock, o mestre do suspense, conseguiu. A cena do assassinato do personagem interpretado por Janet Leigh em “Psicose” já foi escolhida por críticos franceses como “a mais memorável” da história do cinema.
Filmada em setenta ângulos diferentes durante sete dias, a sequência do chuveiro dura apenas quarenta e cinco segundos, mas já rendeu quatro décadas de fama a Janet Leigh , uma atriz de sorte que parece estar sempre no filme certo na hora certa. Quando o Los Angeles Times resolveu fazer a lista das cinquenta melhores produções de todos os tempos, descobriu que Janet Leigh é a única atriz que aparece em três dos filmes mais votados : “Psicose” (Alfred Hitchcock), “Touch of Evil” (Orson Wells) e “The Manchurian Candidate” (John Frankenheimer).
“Psicose” chegou às telas em junho de 1960. A fascinação exercida por esse clássico do suspense é tanta que até hoje, nos encontros de Janet Leigh com fãs e jornalistas, “Psicose” termina sempre se transformando em assunto principal. Não há como escapar: Janet Leigh será sempre Marion Crane, a vítima de Norman Bates, o psicopata interpretado com brilho por Anthony Perkins. Aos 68 anos de idade, ex-mulher de Tony Curtis, com quem formou um dos mais badalados casais de Hollywood, mãe das atrizes Jamie Lee Curtis e Kelly Curtis, Janet Leigh resolveu escrever, em parceria com Christopher Nickens, um livro sobre a saga que viveu sob o chuveiro.
Lançado na Inglaterra pela Pavillon Books, o livro se chama, como não poderia deixar de ser, “Psicose”, (Psycho). Afastada das telas, Leigh pretende fazer carreira como romancista. Mas dificilmente a Janet Leigh romancista se livrará da sombra de Marion Crane. Nesta entrevista , Janet Leigh revela que o filme que a consagrou também lhe trouxe ameaças que até hoje se repetem – na vida real. Hitchcock não imaginaria roteiro melhor.

- Você ficou famosa como personagem da cena do assassinato no chuveiro em “Psicose”. Quando entra no chuveiro você ainda hoje se lembra da cena?

JL.: “Mas eu não tomo banho de chuveiro...”

-O motivo é o filme?

JL.: “Sim: Eu nunca tinha imaginado, antes, o quanto ficamos vulneráveis quando estamos no chuveiro. Ficamos completamente vulneráveis! Eu nunca tinha pensado neste detalhe- até ver a cena do chuveiro na tela. Hoje, prefiro não tomar banho de chuveiro. O fato de eu não poder ver o que se passa do outro lado da cortina enquanto estou tomando banho me incomoda. Prefiro usar a banheira. Ainda assim, quando estou na banheira gosto de ficar olhando para a porta. Se tomar banho de chuveiro for a única alternativa, num lugar onde não exista banheira, eu então deixo a cortina aberta. O chão fica todo molhado, mas pelo menos eu posso ver o que se passa em volta...
Para dizer a verdade, durante a filmagem da cena do crime do chuveiro não fiquei assustada, talvez porque tudo é feito aos poucos, em meio a várias repetições. Quando vi a cena editada, na versão final do filme, é que senti todo o horror daquele grito. Era como se eu estivesse sentindo cada golpe daquela faca. Fiquei aterrorizada.”

-É verdade que ainda hoje você recebe cartas e telefonemas ameaçadores?

J.L.: “É verdade. Gente estranha me manda cartas dizendo: ‘Quero fazer com você o que Norman Bates fêz com Marion no chuveiro.’ São ameaças sinistras. É terrível. Um chegou a mandar uma fita descrevendo o que queria fazer. Ainda hoje preciso de vez em quando trocar o número do meu telefone. Um dos autores de ameaças me telefonava perguntando: ‘Posso falar com Norman?’. Eu respondi: ‘Deve ter sido engano.’ A voz do outro lado insistia: ‘Não é engano. Não é do Motel Bates?’.”
-Você levou a sério alguma dessas ameaças?

J.L.: “Uma vez chamei o FBI. Um diretor amigo nosso, Mervyn Le Roy, estava nos visitando logo depois de fazer um filme sobre a história do FBI. Resolvi mostrar a ele as cartas. Imediatamente ele me sugeriu que o FBI fosse avisado. Agentes vieram à minha casa. Dois dos autores de ameaças terminaram localizados. Os agentes disseram que é difícil saber quando é que uma ameaça dessa representa um perigo real ou quando não deve ser levada a serio.”

- Uma das lendas que correm sobre “Psicose” diz que Alfred Hitchcock mandou abrir de repente a torneira de água fria durante a filmagem da cena para obter de você uma expressão de espanto...

J.L.( interrompendo): “Não, não, não. Não é verdade. Pelo contrário: Hitchcock fez questão de que a água ficasse na temperatura correta, para que eu não sentisse desconforto. Sou uma atriz. Posso demonstrar medo numa cena. Não preciso de água fria...”

- Qual foi o grande problema que você enfrentou na hora de fazer a cena no chuveiro?

J.L.: “Hitchcock queria que eu usasse lentes de contato para que, nas imagens em close, logo depois do assassinato, eu parecesse realmente morta. O oculista, no entanto, disse que as lentes só ficariam prontas em seis semanas. Não daria tempo de esperar. Tive de fazer tudo sem lente de contato.”

- O que é que mais lhe chamou a atenção em Hitchcock durante a
filmagem?

J.L.: “Fiquei impressionada com o fato de que ele jamais olhava através do visor da câmera. Perguntei por quê. Hitchcock me respondeu: ‘Não preciso olhar através do visor. Já sei onde a câmera vai ficar; já sei quais as lentes que vou usar. Então, posso saber exatamente como é que a imagem vai aparecer.’
A verdade é que ele sabia de tudo tão bem que nem precisava olhar através da câmera .
Houve também uma cena de bastidores que me impressionou. Hitchcock queria gravar um som que sugerisse uma faca ferindo o corpo. Um assistente trouxe para o estúdio vários tipos diferentes de melão. Passou, então, a cortar cada um com uma faca. De costas para o assistente, sem olhar em nenhum momento para trás, Hitchcock escolheu, pelo som de faca, qual era o tipo de melão que deveria ser usado...”

Você trabalhou com grandes diretores, como Hitchcock e Orson Wells. Que comparação fez entre os dois?

J.L.: “Tive sorte de trabalhar com talentos tão fantásticos quanto Orson Wells, John Frankheimer e Fred Zinemann. Trabalhei com os melhores. Orson Wells e Hitchcock eram o oposto um do outro. Os dois eram gênios, mas Orson Wells era mais espontâneo e improvisador, ao contrário de Hitchcock, um diretor que planejava cada take com detalhes.”

“Psicose” representou, para você, o sucesso internacional mas também um drama: você recebeu a notícia de que seria a última vez que trabalharia com Hitchcock. Por quê?

J.L.: “O que aconteceu foi que devido ao grande sucesso de “Psicose”, o próprio Hitchcock me disse que ,se voltássemos a trabalhar juntos, não importa quanto tempo depois, o público imediatamente relacionaria o novo filme a “Psicose”. Isto afetaria então, o novo filme que estivéssemos fazendo.
Eu queria trabalhar de novo com Hitchcock. Mas penso que ele estava absolutamente certo ao apontar esse risco.”

Um jornal inglês publicou há pouco que você tinha abandonado a carreira porque já estava cansada da “hipocrisia” de Hollywood. É verdade?

J.L.: “Não sei de onde tiraram esta idéia. Diminuí o ritmo de trabalho porque achei que esta seria uma atitude justa para com meu marido e minhas filhas. Passei a aceitar apenas tarefas que pudessem ser cumpridas em pouco tempo.”

Tanto tempo depois , você ainda responde a perguntas sobre a cena do assassinato no chuveiro. Você compararia esta cena com que outra, na história do cinema?

J.L.: “Não consigo pensar em outra cena que venha imediatamente à lembrança como algo tão chocante. Não consigo pensar em nenhuma. Houve, é claro, outros momentos memoráveis em filmes, mas esta cena parece ser aquela que o público se lembra- em estado de choque...”

Você teve uma carreira de sucesso, mas é sempre lembrada como a Marion Crane de “Psicose”, assim como Anthony Perkins será sempre lembrado como Norman Bates. O fato de ser lembrada por apenas um filme- e particularmente por uma cena- lhe traz algum incômodo?

J.L.: “Em nosso ofício, trabalhamos duro para criar imagens. Ser parte de uma imagem que vai ficar para sempre é algo notável. Fico orgulhosa. “Psicose” é um filme que já dura 35 anos. É o sonho de todas as atrizes.”

Você visitou o Brasil no início dos anos sessenta. Que lembrança guardou dessa viagem?

J.L.: “Visitei o Brasil duas vezes. A primeira foi em 1960. Percorri seis cidades, numa visita organizada pelo USIS, o serviço de divulgação dos Estados Unidos. Depois, participei de uma entrega de prêmios cinematográficos. Uma vez, quando estávamos a caminho da inauguração de um centro para a juventude, cruzamos com um grupo que ensaiava para o carnaval, num subúrbio do Rio de Janeiro. Todo mundo estava dançando na rua. Pedi que nosso parasse. Gosto de dança e de música. Começei a dançar. Um homem- que estava ali, no meio da rua- começou a dançar sem olhar para o meu rosto. Quando a música acabou, ele, quase ajoelhado, me olhou atentamente. Somente aí é que exclamou: Mas é Janet Leigh!...”


(1995)


Posted by geneton at 11:58 AM

abril 17, 2004

WOODY ALLEN

O diretor - que adora esportes - confessa uma paixão brasileira. Não é Pelé nem Ronaldinho : é um escritor !

LONDRES - Quando Woody Allen começa a falar, a gente sempre espera que vá soltar uma daquelas tiradas: “Eu me separei da minha primeira mulher porque ela era infantil demais. Toda vez que eu estava tomando banho na banheira ela vinha e afundava os meus barquinhos todos sem dar a menor explicação.”.

Ou então: “Não, eu nunca estudei nada na escola. Ou outros é que me estudavam.”.

A coleção de tiradas de Woody Allen traz, como marca registrada, uma auto-ironia marcada por um sentimento de inadaptação à realidade. A fantasia, repete Allen, é sempre melhor.

Cenário : uma suíte do sétimo andar do Hotel Dorchester, em frente ao Hyde Park. Não há diferença alguma entre o Woody Allen da vida real e o Woody Allen das telas. A fala é apressada. Um olhar tímido dirigido ao chão pontua o sorriso. De calça de veludo marrom e suéter verde, dá a impressão de ter alguma dificuldade para ouvir, porque se aproxima exageradamente do rosto do repórter a cada pergunta. Notório recluso, saiu de Nova Iorque às vésperas do Natal para divulgar o filme “Mighty Aphrodite” (“Poderosa Afrodite”), comédia sobre um homem que, depois de adotar um menino recém-nascido, tenta descobrir quem é a mãe da criança. Vai parar no apartamento de uma profissional do sexo. Allen faz o papel principal, como não poderia deixar de ser. .

O homem não sossega. Ainda encontra tempo para se confessar deslumbrado com um brasileiro – o “bruxo do Cosme Velho” Machado de Assis.


GMN : Todo mundo fala da “crise dos quarenta.” Agora, duas semanas depois de completar sessenta anos de idade, você já entrou em crise?

Woody Allen: “Eu me senti mal quando fiz cinqüenta anos, um tempo pouco prazeroso para mim. Fazer sessenta também não é agradável. Sempre que faço um aniversário significativo tenho um sentimento desagradável. Porque datas assim dão um tom dramático ao fato de que estou envelhecendo.”.

GMN : Fazer filmes, no fim das contas, é a melhor maneira de superar a morte – ou pelo menos ter a ilusão de que é possível?

Woody Allen: “Não há como superar a morte. O que cada um deve fazer é se esforçar bastante para se encontrar em suas tarefas seja você um diretor de cinema, um motorista de táxi, um dentista ou um professor. Se você se concentra no trabalho, não vai ficar pensando na morte. Se, pelo contrário, você não pode se concentrar, a mente vai começar a se ocupar dessa nuvem escura que nos acompanha o tempo todo. Fica difícil, então. O fato de ser diretor de cinema não nos torna menos vulneráveis...”.

GMN : Mas, nesse sentido, há sim, uma diferença entre o motorista de táxi e o diretor de cinema, porque um ator ou um realizador de certa maneira não morre: daqui a cem anos alguém poderá estar vendo Woody Allen numa tela...

Woody Allen: “Mas eu não me preocupo em atingir a imortalidade através do meu trabalho. Eu quero a imortalidade é no meu apartamento! Isso é que conta! Imortalidade artística é catolicismo de intelectual. Os católicos pensam que existe vida depois da morte. Intelectuais que eventualmente podem nem ter relação alguma com o catolicismo pensam que existe vida depois da morte através da arte. Mas os dois estão errados.”.

GMN : Se um crítico disser que você é um gênio e outro disser que você é um idiota, em qual dos dois você teria a tentação de acreditar?

Woody Allen: “Não leio nada que sai sobre mim nas resenhas. Porque tenho uma tendência de acreditar na última coisa que eu li. Se o crítico de um jornal escrever ‘esta pessoa é um gênio’, vou pensar aqui comigo: ‘Ah é? Sou gênio porque foi o New York Times que disse... ’ Se, por outro lado, alguém escrever ‘ele é um tolo; o filme não presta’, vou pensar: ‘Eu realmente fiz um filme ruim. Sou um bobo. ‘.
A verdade é que coisas assim não são reais, não têm nenhuma relevância para um projeto. O fato de dez milhões de pessoas dizerem algo sobre um filme – ‘é ótimo ou ‘é horrível’ – não significa nada. O filme, por si mesmo, anos depois é que vai ver qual é a verdade. Não há como saber, agora – tanto em relação a filmes como em relação a qualquer obra de arte. Filmes que há anos eram considerados ótimos são esquecidos depois. Transformam-se em nada. Outros filmes – que não eram tão considerados quando do lançamento – permanecem em nossas consciências. Adquirem importância. ‘As Regras do Jogo’, filme de Jean Renoir, não foi bem recebido quando apareceu. Hoje é um clássico.”.

GMN : Você pediu ao estúdio para jogar fora o filme ‘Manhattan’ quando a versão final ficou pronta, porque mão gostou do resultado. Mas ‘Manhattan’ se transformou num dos seus filmes mais elogiados. A má opinião que você tinha sobre o filme é uma prova de que você não é nem um pouco confiável como crítico?

Woody Allen: “Um diretor não é confiável quando fala sobre o próprio trabalho. O fato de um diretor declarar que detesta um filme não quer dizer nada. Igualmente, é estúpido dizer ‘os críticos são uns bobos, não sabem de nada, não entendem nada.’ Porque quem não entende, na verdade, é o diretor. Os críticos entendem, o público entende - o diretor é que não.”

GMN : Você divide os realizadores em duas categorias: os que fazem prosa e os que fazem poesia. Woody Allen faz o quê: poesia ou prosa?

Woody Allen: “Todo diretor tem filmes que adotam uma abordagem poética – e outros que utilizam a prosa. Filmes meus, como ‘Bullets Over Broadway’ e ‘Manhattan Murder Mistery’, são prosa. Já ‘Another Woman’ é poético.”

GMN : Quem é o melhor poeta da história do cinema?

Woody Allen: “Ingmar Bergman. Para mim, é o melhor. Kurosawa, com certeza, é um grande poeta. Bunnuel, igualmente. Os três são os maiores poetas.”

GMN : A poesia é superior à prosa?

Woody Allen: “Não necessariamente, porque filmes como ‘Ladrões de Bicicletas’, ‘A Grande Ilusão’ ou ‘A Regra do Jogo’ são prosa: não são poéticos. Isso não quer dizer que não sejam grandes filmes. ‘Oito e Meio’ é um filme poético, assim como ‘Persona’. Não acho, então, que uma seja superior a outra.”

GMN : Você lamenta que nem sempre exista uma correlação entre os melhores filmes de um diretor e o sucesso comercial.

Woody Allen: “É verdade! Frequentemente, não existe…”

GMN : “A Rosa Púrpura do Cairo”, um dos seus filmes favoritos, atraiu o que você chama de “pequeno público”. Você acredita então que existe uma contradição entre boa qualidade artística e mercado de massa?

Woody Allen: “É interessante o que você me pergunta. Saul Bellow articulou o conceito de artista de público pequeno e artista de grandes públicos. Fiz uma distinção entre um autor como Charles Dickens - um artista de grande público - ou James Joyce, consumido por um público pequeno. Isso é verdade também no cinema. Chaplin e Buster Keaton têm um público grande – e são artistas! Bergman e Bunnuel têm um público pequeno. Fico numa posição desconfortável, no meio do ar...Eu sinto que não sou um artista desse nível. Sou um não –artista de público pequeno...(ri)”

GMN : Mas você é considerado um diretor intelectual que atinge o mercado de massa...

Woody Allen – “Não concordo nem com uma coisa nem com outra. Não sou um intelectual. Não atinjo o mercado de massas. Meus filmes não atingem. Bem que eu gostaria. Também gostaria de ser intelectual. Mas não sou.”

GMN : Você gostaria que seus filmes tivessem a popularidade de um filme de aventuras de Indiana Jones?

Woody Allen – “Não me incomodaria. Quando lanço um filme, gosto que o público goste. Prefiro ver o público satisfeito. Mas jamais faria algo para atrair o público- como, por exemplo, mudar o filme. Quando o público gosta, fico feliz.”

GMN : Você diz que tem problemas para delimitar o terreno entre a realidade e a fantasia. É esta a razão que o levou a se tornar um realizador: tentar resolver, através do cinema, a confusão entre fantasia e realidade?

Woody Allen : “Que bom que você tocou neste assunto. O que acontece é que a realidade da vida é desagradável, difícil, dolorosa. Quando você trabalha com pintura, com poesia, com literatura, com cinema, com teatro, você pode criar uma realidade própria, sobre a qual você exerce controle: você usa os personagens de que gosta, no cenário que prefere, para fazer com que o destino de cada um se realize da maneira que você quer. É ótimo.”

GMN : Você já sentia a confusão entre realidade e fantasia antes de se tornar cineasta?

Woody Allen- “Não é bem uma confusão. A verdade é que eu sentia que a fantasia é boa. A realidade é ruim. Muitos dirão: a verdade é bela, a realidade é bonita. Fantasia, não. Mas não sinto as coisas dessa maneira. Para mim, a fantasia é que é boa. A realidade não é nem um pouco atraente.”

GMN : Uma pergunta direta e boba: por que você faz filmes?

Woody Allen – “Faço porque cresci gostando de filmes. Quando entrei no show business me pareceu que todo mundo queria fazer cinema. Parecia ser a mais expressiva forma de arte, a de maior comunicação com o público. Além de tudo, você poderia exercer um controle sobre o produto- o filme. Depois, vi que havia gente disposta a me dar dinheiro. Em filmes- como na arquitetura- você precisa de um bocado de dinheiro para realizar um projeto. As empresas, então, começaram a me dizer: ‘Você terá cinco milhões de dólares para ou dez milhões de dólares para fazer um filme.’ Nem discuti.”

GMN : Você – que é um grande fã de esporte – também gosta de futebol?

Woody Allen- “Conheço melhor o futebol americano. Gosto de todos os esportes, na verdade. Quando vou a um país, passo a acompanhar os esportes locais. Posso ver uma partida de críquete. Já fui a jogos de futebol.”

GMN : Já teve algum ídolo brasileiro, na área do futebol?

Woody Allen- (depois de uma pausa para pensar) “Ídolo brasileiro? Há pouco tempo, li Machado de Assis. Achei que é um escritor excepcional. Uma amiga me deu um livro de Machado de Assis- ‘Epitaph for a Small Winner’ (título da tradução para o inglês de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’). Fiquei muito, muito impressionado. Dei o livro a meus amigos. Porque Machado de Assis não é bem conhecido.”

GMN : O que é impressionou tanto você no livro?

Woody Allen – “Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irônico. Alguns dirão: ele é cínico. Eu diria que Machado de Assis é realista.”

GMN : Quem lhe passou o livro?

Woody Allen- “Nem me lembro agora do nome da pessoa que me passou o livro. Apenas ela disse: ‘Você deve gostar...’ Respondi: ‘Nunca ouvi falar de Machado de Assis.’ Mas li- e gostei muito.”

GMN : Você consideraria a possibilidade de filmar ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’?

Woody Allen- “Gosto de escrever meus próprios filmes. Mas Machado de Assis é um maravilhoso momento na literatura. Dei cópias do livro para minha filha e para os meus amigos.”

GMN ; Você é um símbolo de Nova Iorque. Teria coragem de viver um dia numa cidade pequena e calma, longe de tudo?

Woody Allen- “Eu ficaria louco. Não poderia viver num lugar assim nem por dois dias- nem por um fim-de-semana. Preciso de cidades- seja Londres, Paris, Nova Iorque...Preciso de atividade, barulho, carros, restaurantes, livrarias, filmes. Sou viciado em civilização.”

GMN : Além de só gostar de cidade grande, é verdade que você detesta sol?

Woody Allen- “Adoro este tempo (olha para a janela do hotel; lá fora tudo cinzento: a chuva fina cai há umas doze horas).Gosto de Londres e Paris no inverno. Todo dia é bonito. É como um fotógrafo que gostasse de tons suaves.”

GMN : Você jamais viveria num país tropical?

Woody Allen : “Não! Não gosto de calor.”

GMN : Você não reconhece a ‘integridade’ ou a ‘credibilidade’ dessas escolhas do “melhor filme do ano.” Você quer ser visto sempre como um outsider?

Woody Allen – “Não comecei com essa história de outsider, mas ela terminou acontecendo. Vivo em Nova Iorque, Faço meus filmes. Acontece que, devido à minha personalidade e à maneira como vivo, me transformei num outsider, sem necessariamente querer ser. Eu teria disposição, se houvesse uma comunidade cinematográfica em Nova Iorque, para sair com outros diretores e amigos, almoçar com eles. Mas não tenho amigos nem diretores.”

GMN : Quando um filme como Manhattan estreou, nem em Nova Iorque você quis ficar. Igualmente, você não compareceu à cerimônia do Oscar. Agora, para divulgar o filme “Mighty Aphrodite” (“Poderosa Afrodite”), você aceita falar sobre cinema diante de um jornalista de um país distante- o Brasil. O que foi que mudou?

Woody Allen- “Geralmente não vou a cerimônias de premiação. Mas ficou caro promover e anunciar filmes. Quero, então, cooperar. Se dependesse de mim, eu faria o filme e diria: ‘Fiz; vocês que vendam.’ Mas os produtores dizem: ‘Por favor, ajude. Não podemos comprar espaço em jornais e na TV’. Eu prefiro, então, ser amigável...
Quanto aos encontros com jornalistas, não me incomodo de ter encontros assim. Eu não faria o ano todo, mas uma vez por ano, ou uma vez cada dois anos, não me incomodo de ter esses contatos, porque quero ouvir o que é que os jornalistas dizem ou que tipo de pergunta fazem.

GMN : Se você fosse convidado a escrever o verbete “Allen, Woody” numa enciclopédia, quais as primeiras palavras que você usaria para se definir?

Woody Allen- “Eu diria que Woody foi um realizador que fez filmes - alguns bons; outros não. Creio que seria um retrato exato.
Eu ficaria feliz se um dia, quando eu deixar de fazer filmes, pudesse ter feito um ou dois que fossem tão bons quanto os melhores que vi. Eu me sentiria realizado se fizesse um filme tão bom quanto ‘A Regra do Jogo’ ou ‘O Sétimo Selo’. Para mim, seria o suficiente.
Ah, eu ficaria muito feliz, sim.”.

GMN : Você já confessou que prefere os romancistas russos, como Dostoievski, porque eles se ocupam de “temas espirituais”, ainda que outros romancistas, como Flaubert, sejam ‘tecnicamente superiores’. Você- que também se ocupa de temas espirituais no cinema- gostaria de ser visto como o Dostoievski das telas?

Woody Allen- “Não necessariamente. Sou muito mais engraçado do que Dostoievski.”.

(1996)


Posted by geneton at 12:15 PM

abril 09, 2004

GILBERTO GIL

A HORA DE FAZER UM BALANÇO DAS UTOPIAS IRREALIZADAS


Quem ? Gilberto Gil.O quê ? Viajou. Quando : em 1967.Para onde : Caruaru. Por quê ? Queria conhecer o som torto da Banda de Pífanos. O resultado do encontro entre Gil e a sonoridade rústica da Banda pode ter mudado o rumo da MPB. Quase quatro décadas depois,Gilberto Gil confessa,nesta entrevista,que quer ser lembrado,na história da MPB,como aquele que propôs a Caetano Veloso a junção entre a Banda de Pífanos de Caruaru e os Beatles. Dessa mistura,nasceu o Tropicalismo.O resto é história.Assim que voltou de Londres,Gilberto Gil escolheu o Recife como palco de um dos seus primeiros shows pós-exílio.O disco que marcou a volta de Gil ao Brasil começa –não por acaso - com uma gravação da Banda de Pífanos de Caruaru tocando “Pipoca Moderna”. Nesta entrevista,Gilberto Gil fala da Banda de Pífanos,Londres,exílio,utopias e saudades brasileiras.

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*Qual seria a primeira frase de um livro de Gilberto Gil sobre Gilberto Gil?

Gil : “Eu, brasileiro,confesso minha culpa, meu degredo...”

*Cabelo branco é sinal de cansaço ou de sabedoria?

Gil : “Meu pai com 40 anos já tinha a cabeça toda branca.A minha não ficou toda branca. Ainda não estou tão cansado - nem tão sábio assim”.

*Você, há alguns anos, citava Jean Paul Sartre para dizer: “Já não serei um grande homem, mas serei um homem de bem”. O desejo continua?

Gil : “Com o tempo,o desejo de ser “grande homem” vai se esvaindo. Ao realizar o que é possível,a gente se defronta com as limitações.Você não vai ser o maior.Não vai ser o melhor.Vai ser simplesmente o bom (risos). Ser um homem de bem é uma bela coisa, porque significa uma auto-conciliação : você já equilibrou a noção do pecado com a noção da redenção, já se redimiu.Só precisa ficar atento ao comportamento, porque ainda pode incorrer em pecado. Afinal, as regras ainda existem.Mas o auto- equilíbrio já ficou mais bem realizado. Falo do bem não no sentido maniqueísta. O bem é uma bela utopia, realizável.O desejo de ser apenas um homem de bem me faz lembrar uma canção do Caetano Veloso, em que ele diz “sou homem comum/ninguém é comum”. Quer dizer : ser um homem de bem, ninguém é de bem. Não quero ser nada excepcional.Basta ser comum,basta ser igual a todos : um pouco bom, um pouco mau, um pouco quieto, um pouco inquieto, um pouco tudo,um pouco nada.Acho que basta. Ser grande é ser fora do comum. Para mim, basta ser um homem de bem. Sou um homem de bem, mas ninguém é de bem”.

*Que papel você atribui a Gilberto Gil no cenário da música popular brasileira na segunda metade do século XX ? Qual terá sido a maior contribuição ?

Gil : “A contribuição foi levar a Banda de Pífanos de Caruaru para a música popular. Minha maior contribuição,na verdade, foi propor a Caetano Veloso que a gente juntasse a Banda de Pífanos com a Sargeant Pepper´s Lonely Hearts Club Band (n: título do álbum dos Beatles lançado em 1967) . É uma contribuição que,no fim das contas,veio dar em Chico Science,veio dar nessas coisas todas. Minha grande conquista,na verdade, foi ter conhecido Caetano Veloso.Minha grande contribuição foi ter proposto a ele que fizéssemos essa junção,entre a Banda de Pífanos e a Sargeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band”.

*Você teve um encontro com John Lennon, em Londres, durante o exílio, você na platéia, ele no palco. Aquele show deixou uma marcas em você?

Gil : “Eu estava na platéia e John Lennon estava com Yoko Ono,no palco do Liceum,uma casa prestigiosa. Eu era amigo de Alan Watts, que hoje é do Yes e na época tocava com a Plastic Ono Band,a banda que acompanhava Lennon. Era uma véspera de natal. O show, muito interessante, tinha um ar de happening : Yoko,por exemplo,saía de dentro de um saco,o que ainda não era usual em concertos da época. Yoko tinha todo aquele trabalho de artes plásticas. Lennon tinha deixado os Beatles há pouco tempo. Por essa razão,o show foi muito marcante”.

*Tanto tempo depois da volta do exílio, o que ficou de bom e o que ficou de ruim daquela temporada em Londres?

Gil “É como se ter ido fosse necessário para voltar, tanto mais vivo de vida, vivida, dividida, pra lá e pra cá”..(Gil cita a letra de “Back in Bahia”,uma das músicas do disco que ele lançou ao voltar para o Brasil,em 1971). Ainda ontem estava pensando sobre essa música : exatamente na palavra “dividida” e no que ela queria dizer. O que diria hoje,para mim, esse sentido de dividir ? O que me dividiu? Eu me dividi mesmo ao ir para Londres ? A divisão significou uma ruptura ou tudo se dividiu como se dividem as moléculas, as células ? Tenho a impressão de que a divisão ocorreu mais nesse sentido : não houve traumas; não fiquei com marcas negativas da passagem por Londres. Aprendi a tocar guitarra em Londres,assim como foi em Londres que me tornei um “band leader” -como diria Jorge Ben na “Banda do Zé Pretinho”-,nesse sentido pop, moderno. Gosto disso. Aprendi inglês. Meu filho Pedro nasceu em Londres. Não tenho queixas”.

O exílio teve coisas boas e coisas ruins.Uma cena magnífica - que nunca esqueço - foi o dia da vitória do Brasil sobre a Inglaterra,por um a zero,na Copa do Mundo de 70.Os ingleses tinham vencido a Copa de 66.A expectativa na Inglaterra inteira era de que eles ganhassem do Brasil e partissem para o bicampeonato.Conseguimos ganhar aquela partida. Um dia depois,no bairro de Chelsea, onde eu morava, as parades estavam todas pichadas: “Rivelino Revelation”. Uma coisa maravilhosa”.

*Você nunca pensou em usar essa frase em uma música ?

Gil : “Você acaba de me dar uma idéia....”.

*Já se disse que 1968 foi “o ano que não terminou”. Qual foi o fato que você viveu em 68 que nunca pôde ou nunca quis contar?

Gil : “1968 foi um ano marcado por uma paranóia muito grande de minha parte. O ano marcava o final, o canto do cisne do tropicalismo. Vejo em 68 o ano básico das grandes indisposições com colegas que se mostraram reticentes - alguns mais do que reticentes;resistentes,mesmo,ao esforço,ao esboço e ao empenho tropicalista. Naquele ano, tive pela primeira – e última vez também – um problema sério de desavença com Caetano, exatamente no dia da apresentação do programa tropicalista que o Zé Celso Martinez Correia dirigiu”.

*A “primeira e última” desavença com Caetano Veloso foi de natureza estética?

Gil : “Fiquei com medo de me apresentar. Tinha havido um incidente com o Vicente Celestino - que veio a morrer naquela noite, durante um ensaio. Eu tinha ficado nervoso e com medo. Já vinha vivendo uma paranóia grande : o programa era sistematicamente rejeitado pelas donas-de-casa do interior de São Paulo. Recebemos cartas de prefeitos, a sociedade civil toda rebelada contra nós.Eu morria de medo daquilo tudo. Quando saímos do ensaio para voltar para casa, eu disse a Caetano: “Não estou com vontade de fazer esse programa.Não vou fazer”. Caetano,então,ficou bravo, reclamou muito comigo, a gente discutiu. Acabou me convencendo a fazer o programa”.


*Você falava no início dos anos setenta do ano 2000 na música “Expresso 2222” - regravada há pouco por João Bosco,num Song Book. O ano 2000 funcionava para você,na década de sessenta,como símbolo do futuro e divisor de águas ?
Gil : “Vários dos traços utópicos que se enxergavam no símbolo 2000 confirmaram-se ou foram definitivamente arquivados. Por exemplo : a new age,a aproximação entre a ciência e o misticismo,toda aquela perspectiva anunciada pelos hippies,pela ligação indiana,pelos Beatles e pelos beatniks,aquilo tudo de uma certa forma se confirma; em outros aspectos,se dilui definitivamente”.

*Quando se falava em futuro no Brasil, o símbolo era sempre o ano 2000. O Brasil, que sempre foi citado como o país do futuro, vai lhe dar mais alegrias ou mais tristezas nesse começo de milênio ?

Gil : “O Brasil já vem me dando um pouco mais de alegrias. O país vem se configurando definitivamente como um país real de uma sociedade real. É um país novo, proposto e criado na esteira dos descobrimentos, com toda aquela tragédia da vertente ameríndia. Igualmente,a tragédia africana também se desenvolveu aqui. Por todos esses motivos,é um país com um traço trágico muito profundo. Agora,pela primeira vez, o país vive com uma certa consciência desse traço trágico,sem aqueles arroubos de uma quimera paradisíaca que viria em algum tempo.

Hoje,o que temos é um país real - que precisa pagar todo dia pela superação de seus problemas. Há uma sombra enorme deixada pela herança européia sobre nós.Aos poucos,vai se resgatando esse traço europeu,a alma-mãe indígena e a mãe africana”

*Quando você explodiu,com Caetano Veloso, vocês representaram o vigor e a energia da juventude em busca de mudanças e de transformação do país. Qual foi a grande utopia que fracassou? Que utopia fracassada dói particularmente em você?

Gil : “A utopia brasileira que fracassou não era apenas brasileira. Era uma utopia do planeta todo, especialmente de áreas secundarizadas,aquelas em que vivem os povos chamados subdesenvolvidos : a utopia socialista, a utopia da Revolução. É uma utopia que varreu a África e a América Latina,além de se insinuar também em países europeus como a França e na Alemanha e se esboçar fortemente no Leste europeu e na China.Formaram-se duas grandes repúblicas socialistas no mundo. Houve a revolução cubana - a nossa versão tropical, cativante, interessante. Digo que essa foi a grande utopia não realizada”.

*Em 1977, você chamou os socialistas de beócios, o que provocou uma reação da esquerda na época.Já naquela época o Muro de Berlim incomodava você ?

Gil : “Eu me formei,na universidade,em 1964,justamente o ano do golpe - o momento em que desmoronou a utopia revolucionária. Era secretário de cultura do centro acadêmico da minha escola. O centro era evidentemente, dominado pelas esquerdas,assim como todos os outros centros. Havia dois ou três representantes do centro,mas, basicamente os integrantes eram de grupos de esquerda como a Ação Popular(AP ),um braço do movimento católico.
Já naquela época,nas discussões com esses colegas,eu dizia: “Não sei se essa utopia socialista é realizável; não sei se a realidade da vida humana permite que ela se instale”. Os colegas brigavam um comigo: “Você é um fracote ! ”. Sempre discuti com as esquerdas em relação a esse dado do sonho utópico : eu já desconfiava de que não dava”.

*Você prefere o professor ou o presidente Fernando Henrique Cardoso?

Gil: “Gosto muito do fato de os dois – o professor e o presidente - poderem coincidir. É uma coincidência interessante, porque Fernando Henrique é um homem que tem uma visão sobre o Brasil, sobre a América Latina e sobre o mundo.Basta lembrar dos estudos comparativos que ele fez sobre América,Europa e Brasil, sob o ponto de vista da sociedade. É uma coincidência boa o fato de o Brasil ter Fernando Henrique como presidente numa época de transição violenta por que passa a sociedade mundial.O presidente é um homem que aprendeu muito sobre como teorizar,como analisar o povo e a sociedade brasileira,nas vertentes econômicas e sociais. Agora,aprendeu a fazer política. Aprendeu mais depois que foi ministro de Itamar Franco e presidente. O Brasil nunca esteve tão bem servido”.

*Dos encontros que você teve com ele, qual foi a impressão mais marcante que ele deixou em você?

Gil : “Do que eu mais me lembro é de uma situação em que ele concordou comigo.Em 1987,1988 ,ele era senador quando se estava preparando a nova Constituição. Eu pretendia ser prefeito de Salvador.Fernando Henrique era do PMDB.Eu também. Numa visita que fiz a Brasília, estive no gabinete de Ulisses Guimarães,falei com vários deputados e senadores,acabei no gabinete do Fernando Henrique.Terminamos conversando sobre a Constituição.Eu -que, evidentemente,estava ali muito mais para aprender,porque não tinha nada a ensinar a ele – disse a Fernando Henrique : “Senador, tenho medo de que essa Constituição fique muito corporativa...”. E ele : “É mesmo!”. Para mim,aquela concordância foi sintomática e interessante.Porque -de certa maneira – a suspeita de que a Constituição fosse corporativa terminou se confirmando na presidência do próprio Fernando Henrique”.

*Você uma vez confessou que entendia por que John Lennon dizia que a dor era o “substrato básico da criação”. Se você concorda com esse raciocínio, então por que noventa e cinco por cento de suas músicas são alegres?

Gil : “Porque a alegria não leva a gente a descer aos infernos. A alegria bóia, tranqüila, fagueira,no brilho dos raios do Sol sobre a superfície das águas.O que sai desse tipo de criação é uma coisa leve.
Já a dor leva a uma profundidade que nos impressiona mais. Não é que a dor seja melhor ou mais bonita ou mais interessante. Nós é que valorizamos mais o que nasce do fundo do poço. Aquilo que tiramos lá do fundo da cacimba nos parece mais precioso. A dor é assim : obriga-nos a descer aos infernos da alma”.

*O caso mais doloroso de música que você compôs foi “Cálice”(“Pai,afasta de mim esse cálice/afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”) .Pouca gente sabe que é uma parceria de Gilberto Gil com Chico Buarque. Você diria que “Cálice” é a música mais dolorosa que você fez?

Gil : “Em “Cálice” há dois aspectos: uma dor pessoal e uma dor exterior . Sobre a dor pessoal,há outras músicas: “Drão”,por exemplo, é uma música de separação. Além de sofrer muito,eu acompanhava de perto o sofrimento de Sandra,minha mulher – de quem eu estava me separando. Já “Cálice” traduz,num nível pessoal,o sentido genérico da dor.Ali,aparece a dor numa expressão maior : era a dor do calvário, a tradução de uma dor genérica”

*Por que você não consegue cantar “Cálice” em público, quando esta é uma de suas raras parcerias com Chico Buarque ?

Gil : “Cálice” me remete à idéia de sofrimento. A música nasceu uma sexta-feira da paixão.Chico Buarque tinha ido assistir na véspera a um show meu, para a gente pensar na realização de uma música. Fiquei em casa na sexta-feira da Paixão, meditando, meditando, até que a dificuldade de fazer a música me fez lembrar do sofrimento do Cristo no Horto das Oliveiras.Tive então a idéia da primeira frase : “Pai, afasta de mim esse cálice/Afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”. Um dia depois,no sábado de Aleluia, levei a frase para a casa de Chico - que morava ali na Lagoa. Daí é que surgiu a frase que vem mais adiante : “Ver emergir o monstro da Lagoa”. Porque Chico,como eu disse,morava ali defronte. A música foi feita num período difícil,em meio à censura, à ditadura, à perseguição em cima da gente,numa louca sexta-feira da paixão”.

* “Cálice” era,portanto,mais uma dor política do que uma dor pessoal. Das músicas de Caetano Veloso,existe alguma música que desperte ciúme autoral em você?

Gil : “Há várias !”

*Qual é aquela que dá inveja em você, a que você gostaria de ter escrito?

Gil : “Coração Vagabundo”.

*Entre os seus amigos - que foram personagens importantes da cultura brasileira, como Glauber Rocha e Darcy Ribeiro - quem é que faz mais falta ao Brasil de hoje ?

Gil : “A complexidade do Brasil faz com que sejam necessários todos os ângulos de visão.Mas,hoje,sinto muito a falta de Darcy Ribeiro. Há no Brasil a sombra projetada pelo colonialismo e pela invasão européia. É terrível a supressão da mãe índia. Darcy Ribeiro é o intelectual brasileiro que foi mais fundo nessa questão”.


*Representantes ou porta-vozes de um pensamento intelectual brasileiro -como fazia Paulo Francis, por exemplo - reclamam de que a imprensa brasileira e o público dão uma importância excessiva aos músicos populares do Brasil. Em algum momento você chegou a concordar com essa opinião?

Gil : “Isso é inveja,é bobagem.O que a gente vai fazer? O destaque que os músicos populares desfrutam no Brasil é uma escolha do povo, uma escolha da alma.Diz respeito a uma carência verdadeira : o povo precisa desse ungüento. A atividade da música e da poesia popular – em que se transmitem sentimentos através das canções - é mais balsâmica do que qualquer outra coisa. Desempenha uma função curativa sobre as pessoas, maior do que outras áreas de produção cultural : maior do que os livros, maior que o cinema,maior que a novela,até.
A música continua a ser essa manifestação mais direta, mais imediata. Como é que a gente vai contrariar o público? O peso dado à música no Brasil não é uma escolha nossa, não é uma imposição,não é uma consequência da mecânica capitalista ou do processo industrial, em que se pode dizer “investiu-se mais na área dos artistas e eles ficaram mais populares”.Não é assim ! Os jogadores de futebol –por exemplo - recebem o mesmo grau de idolatria, porque o que eles fazem também preenche uma necessidade.Não se pode brigar contra esse mistério da subjetividade”.

*Suas músicas mais recentes falam de ciência. Você, como artista, considera a ciência superior à arte como instrumento de busca da verdade ou as duas podem se completar?

Gil : “As duas se completam.O físico César Lates disse que a ciência é irmã bastarda da arte.Num encontro que tivemos em Campinas,ele me disse que a sociedade dos cientistas tinha ficado aborrecida com essa declaração. Eu não chegaria a tanto : não colocaria a arte num plano de superioridade, mas,num em plano de complementaridade em relação à ciência. Parto do seguinte princípio: em toda ciência, para descobrir e conceituar qualquer coisa, você precisa da arte. Precisa cumprir processos que,no fim,são artísticos : é a arte de fazer isso,a arte de fazer aquilo.
Tudo é a “arte”: a arte de pensar, arte de fazer, arte de dizer.Talvez a arte tenha,então,uma precedência - não uma superioridade. A arte precede qualquer conquista humana. Tudo o que o homem fez foi arte : descobrir o fogo e a roda, desenhar nas cavernas, utilizar a pedra. Toda descoberta implica em arte - inclusive as da ciência. O que aconteceu foi que a ciência acabou se separando da arte : achou um nicho no cérebro,terminou se transformando numa área específica de conhecimento. Criou-se,então,a idéia de superioridade da ciência,mas acho que a arte tem um precedência em relação à ciência”.

*O futebol,tão importante na vida do brasileiro,é quase ausente na música popular.Por que a música não trata mais do futebol,já que o brasileiro gosta tanto de futebol e de música ?

Gil : “Não precisa.O futebol e a música são paixões gêmeas. Uma e outra são gêmeas no afeto e na celebração popular.Uma não precisa ficar cantando a outra”.

*Você já escreveu sobre futebol,entre outras músicas,em “Meio de Campo”,aquela que cita o jogador Afonsinho...

Gil : “Aquele Abraço” fala de futebol. Jorge Ben tem várias músicas que falam de futebol,como a que ele fez para Zico,a que fala nos goleiros,além “Fio Maravilha”.O futebol já tem tanto realce em nossa alma que a gente não precisa ficar falando dele. O povo já conhece –e muito - o espírito embriagador do futebol. A música não precisa ficar revelando esse encantamento. A missão da poesia popular talvez seja a chamar a atenção para um encantamento que ainda não esteja suficientemente explícito e revelado. Mas acho que,no caso do futebol, não existe esta necessidade : todo brasileiro entende a alma da bola, sabe tudo sobre ela”.

*Você falou sobre a resistência que houve em áreas da música popular brasileira ao projeto dos tropicalistas. Você estava se referindo especificamente ao grupo que era identificado com a Bossa Nova, na época?

Gil : “Quem resistia começava a se identificar não necessariamente com a Bossa Nova, mas com o embrião do que veio a se chamar de MPB. A música popular - que tinha passado pela Bossa Nova, pelo samba de morro, pelo Opinião, por Zé Keti, por Nara Leão, pelo Rosa de Ouro,por toda aquela recuperação de uma visão aristocrática do samba no Rio de Janeiro – era contrária, evidentemente,à nossa atitude,porque o que nós propúnhamos era uma horizontalização democrática, aberta a tudo, inclusive à música estrangeira.

Ora,a música estrangeira era vista como associada ao imperialismo, ao colonialismo.Nós,no entanto,a redimíamos. Tudo estava ligado também à resistência política. Todos estávamos ligados a uma luta política antiimperialista. Mas parecia que o movimento tropicalista era de concessão imperialista, porque deixava entrar o elemento estrangeiro, o rock, o jazz. Passávamos a reverenciar essas coisas, em pé de igualdade com as manifestações locais. Todo esse quadro causou uma complicação na cabeça da esquerda”.

*Você acha que o grande equívoco em relação ao tropicalismo foi acharem que ele era um movimento “entreguista”, numa época tão ideologizada quanto aquela?

Gil : “Sem dúvida,era um equívoco.O tropicalismo,na verdade,era uma premonição da situação em que a gente vive hoje,com a globalização e a pluralização internacionalista. Ou seja : era mais o jovem Marx do que o velho Marx. A esquerda naquela época,como se sabe,era toda o velho Marx : vivia-se a fase do socialismo institucional, leninista, já pós-marxista. Já o tropicalismo era internacionalismo juvenil do jovem Marx”.

*Durante os governos militares, havia uma grande expectativa sobre o que ocorreria no dia em que o Brasil voltasse à vida civil. Hoje, há um certo sentimento de frustração, porque expectativas não se confirmaram. Você concorda com isso?

Gil : “A projeção de expectativas foi demasiada.Projetou-se demais.De novo, parecia que o país estava precisando de um pai civil. Era como se estivéssemos abrindo mão de um pai militar para receber um pai civil. Não existe um pai salvador. Ao contrário : o que existe é um país civil dramaticamente entregue ao conjunto de suas interações,ao vazio atomístico de suas realidades.É complicado.Mas aos poucos, o quadro vai se refazendo : o país toma consciência da realidade.O Brasil é hoje um país sem dúvida mais maduro”.

*Nada é tão simples quanto parecia...

Gil : “Nada é tão simples : não se pode remeter ao governo a responsabilidade pela solução de todos os problemas. A política,ineficiente e ineficaz,é responsável por todos os males. Quando ela for super-eficaz, vai ser responsável por todas as soluções. Mas ela não adquire essa eficácia porque ss exerce no meio dos homens : o jogo dos interesses continua. Os interesses mais fortes continuam mais fortes.Tendem,portanto,a prevalecer a médio e a longo prazo sobre outros interesses - que são da maioria mas possuem menos força. De qualquer maneira,as coisas estão se equilibrando um pouco melhor. Mas o idealismo da solução ideal vem caindo por terra”.

*O que significa para você o Jomard Muniz de Britto sessentão,ele que foi um dos precursores do tropicalismo no Nordeste ?

Gil : “Quero partilhar, no contexto de minha geração,no forno do meu fogão existencial,desse pão de farinha nordestina que é Jomard Muniz de Brito.É bardo, professor, amigo, entusiasta, cultuador, fã,torcedor de todas essas coisas, torcedor do Brasil, torcedor do destino, autêntico, sonhador, apostador do sonho brasileiro, tropicalista da primeira hora. Sobre Jomard não se pode falar: ele é só aquele vozeirão.Maravilhoso”.



*Você diria que o exercício da política fez bem ou mal ao ex-vereador Gilberto Gil ?

Gil : “A gente se recupera, mas,durante mandato de vereador,naquele período todo na Bahia,comecei a desenvolver uma dor no peito.Tive que trabalhar muito, caminhar,fazer exercícios, acalmar a cabeça, a mente e o coração, para poder me livrar da dor que a política me deu.A política pode virar angina”.

*O que você diria hoje aos presidenciáveis que sonham em subir a rampa do Planalto?

Gil : “Como é que se pode inverter essa usura exagerada com que trabalha o capital selvagem no Brasil ? Qual é o segredo para dobrar esse pessoal ? O que se pode fazer para que se tenha um gesto mais generoso com essa nação e com esse povo ? Peço a eles que meditem”.


*Você já foi guru de muita gente. Quem é o guru de Gilberto Gil hoje?

Gil : “Hoje,meu guru é o silêncio. Quando consigo calar a voz do pensamento, quando consigo conciliar o som, quando consigo esquecer a poesia,a filosofia,as alegorias e os ditames da cidadania,quando consigo ter sono,dormir, me aquietar e silenciar, aí eu tenho uma espécie de mestre”.

*Você ainda é um brasileiro esperançoso ?

Gil : “Sou otimista, porque não vejo vantagem no pessimismo. A letra de uma música minha chamada “É” diz : “A violência, a injustiça e a traição ainda podem perturbar meu coração/mas já não podem abalar minha fé/porque eu sou e Deus é/e disso é que resulta toda a criação”.

(1997)

Posted by geneton at 12:30 PM

abril 05, 2004

OSCAR NIEMEYER

Marque com um x a resposta certa :

( ) PESSIMISTA
( ) ESPERANÇOSO
( ) GENIAL
( ) “IGNORANTE”
( ) DINOSSAURO POLÍTICO

QUEM É OSCAR NIEMEYER ?

(AQUI,ELE RESPONDE)


O jornal inglês Daily Telegraph concedeu ao nosso personagem um título pomposo, num artigo publicado no ano passado :
Oscar Niemeyer é o “último grande arquiteto modernista visionário”.

O Oscar Niemeyer que aparece nas enciclopédias pode ser descrito como um gigante da arquitetura mas, pessoalmente,exala uma certa fragilidade.É baixo.Fala com voz contida.Declara-se olimpicamente desinteressado das glórias terrenas. É provável que a alegada modéstia esconda,na verdade,uma ponta de justificada vaidade. Arquitetos desenham casas,prédios,praças. Niemeyer concebeu uma cidade :

- "Quando chego perto de Brasília, parece um milagre.Fico pensando que seria quase impossível Juscelino ter feito aquela obra toda em três anos e meio. Hoje,para fazer um dez edifícios, levam-se três anos. Em Brasília,era preciso fazer tudo : uma cidade inteira. Aquilo foi uma cruzada que mostrou que nós,brasileiros,podemos fazer alguma coisa. Brasília foi um momento importante para o povo brasileiro".

Quando recita sobre Brasília, Niemeyer parece encarnar o título de “visionário”. Uma longa entrevista com Niemeyer,no escritório em que trabalha até hoje,pode trazer surpresas. Comunista renitente, recusa-se a aceitar o fim inexorável da União Soviética. Corre o risco de segurar o bastão de último comunista incondicional do planeta. Gilberto Freyre disse uma vez que Niemeyer,arquiteto genial,era um homem ignorante porque vivia repetindo palavras de ordem marxistas (Niemeyer dá,nesta entrevista, uma resposta mineira quando confrontado com a crítica) . A bem da verdade,diga-se que Niemeyer não é cem por cento previsível em suas declarações de princípios. Exemplo : é um pessimista que,contraditoriamente,gosta de falar em esperança. Um diálogo com ele pode ser rico e surpreendente. O ateu Niemeyer emociona-se ao descobrir,através de um amigo cientista, que o Homem e as estrelas são feitos da mesma matéria. Nem tudo é amargor na cartilha do mais célebre dos arquitetos brasileiros. Pelo contrário. Aos noventa e três anos, é um apóstolo devotado da seita dos que nunca deixaram de acreditar nesta utopia de seis letras chamada Brasil.


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O senhor transmite uma visão pessimista da vida - um certo enfado diante das coisas.Como é que se justifica tanto pessimismo num homem tão bem sucedido ?

Niemeyer : “Sou pessimista diante da idéia de que o homem ,quando nasce,já começa a morrer,como notou Jean Paul Sartre.Mas,na vida,caminhamos rindo e chorando o
tempo todo : é preciso,então,aproveitar o lado bom da vida,usufruir o melhor possível e aceitar os outros como eles são.Sempre digo : o importante é o homem sentir como é insignificante,é o homem olhar para o céu e ver como somos pequeninos. Ultimamente, no entanto ,tenho me espantado como a inteligência do homem é fantástica ! Tenho conversado sobre astronomia.Como é imprevisível o que ele
pode criar ! . Numa dessas conversas que tenho tido com um amigo sobre o cosmo, ele me explicou que o homem é filho das estrelas.A matéria é a mesma ! Então, é mais emocionante ser filho das estrelas do que ser filho da terra. Eu sempre dizia que a vida não teria sentido,o homem é filho da terra, como os outros bichos,os outros animais. Mas acho que o futuro será melhor.
Os mais inteligentes se queixam do mundo.Acham que o mundo tem prazeres e alegrias,mas a razão de a gente estar aqui é precária.Em todo caso,ninguém quer abandonar o espetáculo.
Entre os homens, a maioria é formada pelos que lutam,os que estão sofrendo,os que são humilhados. O drama do ser humano é ver o homem nascer e morrer. Ninguém quer nem pensar sobre este assunto. Os mais ricos
estão se divertindo. Não querem pensar em nada : só querem usufruir as boas coisas da vida. Os outros nem têm nem tempo para conseguir viver um pouco”.


O senhor sempre disse que via o homem como um bicho “terreno,biológico,sem mistérios”. Depois dos noventa anos de idade,esta visão de mundo mudou de alguma maneira ?

Oscar Niemeyer : “A visão do mundo,não . O pessimismo é coisa antiga – antiquíssima- que,no entanto,não leva ao niilismo. Jean Paul Sarte era pessimista : dizia que toda existência é um
fracasso. Mas ele gostava da vida. Apoiou todos os movimentos populares e progressistas de libertação. Dizia aos amigos que gostava de ter dinheiro
no bolso pra dar de esmola. Então, uma coisa - o pessimismo- não tem a ver com a outra - o niilismo. O que acho –sempre - é que o homem tem de viver dentro da verdade, saber que não é importante. A disseminação
dessa crenca levaria o homem a uma posição mais modesta. Porque o homem precisa saber que a vida é curta mesmo. Isso não quer dizer,no entanto, que a vida deva ser marcada pelo niilismo. Não ! O homem continua a sonhar, a pensar nas coisas boas - de braços dados uns com os outros”.


Se o senhor fosse chamado a escrever um verbete sobre Oscar Niemeyer numa enciclopédia, qual seria a primeira frase ?

Niemeyer : “Eu diria que é um ser humano como outro qualquer - que nasceu,viveu e morreu. Sou um homem comum – que trabalhou como todos os outros.Passou a vida debruçado sobre uma prancheta.Interessou-se pelos mais pobres. Amou os amigos e a família. Nada de especial .Não tenho nada de extraordinário.Acho ridículo esse negocio de se dar importância.Eu consegui manter,a respeito dos homens, uma posição que me tranquiliza muito : vejo os homens como uma casa,em que você pode consertar as janelas,acertar o aprumo das paredes,pintar.Mas,se o projeto inicial foi ruim,fica prejudicado. Aceito as pessoas como elas são. Todo mundo tem um lado bom e um lado ruim. O homem nasce numa loteria : é bom,é ruim,é inteligente ou não. Se a gente aceita este fato como uma condição inevitável,a gente tem de ser mais paciente com as pessoas,aceitá-las como elas são”.

O senhor escreveu : "Sempre admiramos as pessoas que são o que nós gostaríamos de ser" .Quem é que o senhor gostaria de ser hoje ?

Niemeyer : “Não vou citar ninguém.Mas gostaria de ser um sujeito normal - que tem prazer de ser útil e ajudar os mais pobres.É o mais importante na vida”.

O seu medo de viajar de avião é famoso.A que grande encontro o senhor faltou por ter medo de viajar de avião ?

Niemeyer : “Eu tinha combinado com Assis Chateaubriand de me encontrar com ele em Pernambuco . Ele foi na frente,eu iria depois.Mas ele foi -e eu não. Quando ele se encontrou comigo,dias depois,disse : " Você agiu como um verdadeiro comunista !" . Mas ele gostava de mim; nos dávamos bem. O medo de viajar de avião me atrapalhou muito.Um dia,eu estava em Brasília, JK me telefonou para que eu viesse com ele de avião para o Rio de Janeiro.Não vim. Viajei de automóvel. Houve,então,um acidente com o carro em que eu viajava. Passei quinze dias no hospital. O medo de avião não vem de nenhum raciocínio . É coisa minha mesmo. Não viajo quando não quero. Mas muitas vezes invento essa historia de medo de avião,,porque não quero viajar”.

O senhor disse que tinha uma certo " sentimento de culpa" por ter tanto medo de avião .É verdade ?

Niemeyer : “...Mas eu não gosto desse negócio de altura ! Tantas vezes voltei do caminho....Deixei de viajar.Uma vez,eu estava na Argélia.Quando chegou a hora de o avião sair - eu já tinha posto aquele balinha na boca - , eu disse : “Não vou !” . Peguei o meu colega e saí. Isso criou uma dificuldade,porque a mala já estava no avião. Mas
viajei muito. Já embarquei três vezes num Concorde ! É um sistema pra prático - que a gente tem de aceitar”.


O senhor se lembra quando foi a primeira vez em que Juscelino Kubitscheck falou ao senhor sobre o sonho de construir Brasília ?

Niemeyer : “Eu me dei com Juscelino desde o primeiro dia .O primeiro trabalho que fiz como arquiteto foi a Pampulha- a primeira obra que ele construiu.Pampulha, então, foi o
início de Brasília : a mesma pressa, a mesma correria,os mesmos problemas econômicos para fazer a obra.Quando veio a idéia de Brasília, JK foi à minha casa,nas Canoas,no Rio. Descemos junto para a cidade. Juscelino vinha dizendo : " Oscar,vou fazer Brasília !.Vai ser a capital mais bonita do mundo !" .

O senhor tem alguma dúvida sobre as circunstâncias da morte de JK ?

Oscar Niemeyer : ”Não.Nenhuma.Acho que foi um acidente”.

Qual foi o último encontro entre os dois ?

Niemeyer : “Quando Juscelino estava em Paris,estive com ele. Eu ia ao apartamento em que ele vivia.Juscelino foi uma pessoa muito importante para a vida brasileira. A construção de Brasília foi um momento de otimismo e de esperança. Brasilia foi aquele luta : a terra
vazia, tudo por começar,sem estrada,sem conforto.Mas havia entusiasmo.Havia pressão de Juscelino e de Israel Pinheiro.A meta era : terminar de qualquer maneira. O prazo foi cumprido. Brasília foi um momento estranho : vivíamos junto aos operários,freqüentávamos as mesmas coisas,as mesmas boates,com a mesma roupa.Aquilo dava uma idéia de que o mundo estava evoluindo,o tempo estava melhorando.Iria desaparecer aquele barreira de classes.Mas era um sonho.Depois,vieram os políticos,vieram os homens do dinheiro.Tudo recomeçou : essa injustiça imensa,tão difícil de reparar”.

O poeta Joaquim Cardoso vivia dizendo ao senhor que era importante visitar os observatórios para estudar o céu.É esse o motivo que o levou a se interessar por astronomia ?

Niemeyer : “ Tenho conversado,no meu escritório,com um cientista que vem falar sobre o cosmo. É um assunto que interessa a gente- principalmente quando a conversa se encaminha para a esperança e a invenção . A gente vê como tudo é
possível ! O homem ,que parece insignificante, tão
pequenino quando visto do céu, na verdade é o único elemento de inteligência no universo. Tudo é possível, então ! A gente lembra de
que há cinquenta anos não existia televisão. Agora , a gente
já admite a transposição da matéria ou que o homem possa viajar entre as estrelas. Pode até habitar outros planetas. Um mundo novo vem surgindo. E é fantástico”.

O senhor,que é um homem sem crença religiosa,em algum momento teve a tentação de acreditar em Deus ?

Niemeyer : “Venho de uma família católica - que veio de Maricá, eram fazendeiros. O meu avô foi
do Supremo Tribunal. Tínhamos missa em casa,com a presença de
vizinhos. Mas,quando saí para a vida,superei tudo isso.Vi que o mundo era injusto. Não acredito em nada. Acredito na natureza : tudo começou não se sabe quando nem como. Eu bem que gostaria de acreditar em Deus.Mas não.Sou pessimista diante da vida e do homem”.


O que o levou a não acreditar em Deus foi essa constatação de que o mundo era injusto ?

Niemeyer : “ O mundo é injusto,sem perspectiva.A indagação que a gente faz os pintores antigos já escreviam nos quadros : “De onde viemos ? O que somos ? Para onde vamos ?”. Quando eu era pequeno – tinha uns quatorze anos - já pensava na
morte. Ficava meio desesperado quando pensava que o sujeito vai desaparecer, não vai pensar mais nada. Mas a vida é assim : o que a gente deve é procurar procurar ser útil e dar as mãos”.

O senhor uma vez escreveu "minha posição diante do mundo é de invariável revolta" .Onde é que nasceu esse sentimento ?

Niemeyer : “Veio da miséria que nos cerca.Ninguém resolve. É uma luta de milhares de anos : a gente vê os mais ricos usufuindo tudo. Quando faço um projeto de um prédio público - por exmeplo- procuro fazer algo bonito. Primeiro,porque esse
é o caminho da arquitetura. Eu sei que os mais pobres não vão
usufruir nada desse edifício, mas sei que, se o edifício for bonito, os pobres vão parar e ter um momento de espanto e alegria ao ver uma coisa diferente”.


O senhor não vive na casa que o senhor projetou. Por que é que o homem Oscar Niemeyer não vive na casa que o arquiteto Oscar Niemeyer ?

Niemeyer : “Eu gostaria. Vivi lá dez anos. Lá , JK foi me procurar. Mas é longe,num lugar um pouco deserto. Nesse clima em que vivemos - com assaltos e insegurança – o pessoal prefere ficar mais no centro.A casa ficou vazia. Quase todo dia vem visitante para vê-la. Eu mantenho a casa porque é um bom exemplo de arquitetura, o
lugar é bonito”.

O senhor - que gosta de futebol - participou do concurso para escolha do projeto para a construção do estádio do Maracanã . Como seria o Maracanã de Oscar Niemeyer ?


Niemeyer : “O meu estádio seria pior. Naquele tempo,a idéia que tínhamos de arquitetura em relação a estádio de futebol era fazer uma única arquibancada do lado em que o sol não batesse na cara do espectador. Depois,ao começar a frequentar estádios,vi como era importante existir arquibancada também do outro lado. O sujeito vê o campo , vê o jogo,mas precisa ver também a alegria do estádio ! Então,um estádio circular,como o Maracanã,é a solução melhor. Passaram-se alguns, eu estava na casa de Maria Martins,em Petrópolis, quando chegou Getúlio Vargas,a quem eu nunca tinha encontrado.
Getúlio olhou para mim e disse : " Se eu tivesse ficado no governo,teria feito o seu estádio" .Tive vontade de dizer : " Era ruim. O outro projeto
era melhor" .

O senhor,como noventa e nove por cento dos brasileiros, pensou em ser jogador de futebol.O
senhor tentou a sério ?

Niemeyer : “Eu jogava bem no colégio. Eu me lembro de que um grande goleiro do Flamengo,o Amado,foi do meu tempo de colégio. Uma vez, ele veio me procurar para treinar no Flamengo. Joguei numa preliminar Flamengo e Fluminense. Fiquei espantado com o estádio cheio de gente - por causa do jogo seguinte. Eu só pensava em futebol nos meu tempo de colégio. Joguei pelo Fluminense - como atacante.Gostava de driblar” .

Diz a lenda que o senhor já teve nas mãos um pedaço da lua ,trazido por um astronauta americano.É verdade ?

Niemeyer : “Quando eu estava em Paris,andava
sempre com um grupo do qual fazia parte Ubirajara Brito,um cientista,um físico muito inteligente que tinha sido incumbido de estudar a lua,no laboratório em que trabalhava. Ubirajara Brito nos mostrou pedrinhas brancas da lua. O engraçado é que era uma pedrinha como outra qualquer. Tive vontade de ficar com uma daquelas pedrinhas...”.


É verdade que o senhor projetou uma casa para o seu motorista numa favela no Rio ?

Niemeyer : “O meu motorista mora na favela da Rocinha,em São Conrado.É um amigo : trabalha comigo há quarenta anos.Fiz uma casa para ele lá,porque me dá prazer ser útil. A gente se sente mais tranqüila quando colabora. O fato de comprar um apartamento para Luís Carlos Prestes também me agradou (N:Niemeyer deu de presente um apartamento ao líder comunista,na rua das Acácias,na Gávea,zona sul do Rio).
É como encontrar com uma pessoa na rua e dar dinheiro.De vez em quando,um colega me diz : “É besteira,não adianta nada”. Ora,eu sei que não adianta,mas estou dando um momento
de alegria para a pessoa.Não importa que ela vá usar o dinheiro para beber”.

Em termos arquitetônicos,qual foi a preocupação que o senhor teve ao desenhar a casa para o motorista,na favela ?

Niemeyer : “Ser útil ! Saber que ele agora tem um teto.O problema brasileiro é esse. O movimento que nos entusiasma hoje no Brasil é a luta pela reforma agrária. O mais impoirtante no
momento é o movimento do sem-terra. Quando o movimento começou, fiz uma espécie de estandarte para eles. Mas,já na primeira briga, o estandarte foi estraçalhado. Os integrantes do movimento vieram ao meu escritório, fizeram um pequeno comício. Isso entusiasma a
gente : mexer no mundo,mudar um pouco,acabar com essa miséria”.

Uma década depois da queda do Muro de Berlim, o senhor continua comunista.Mas o chamado “socialismo real”,feito à base se partido único e economia centralizada,ruiu.O senhor não teme ser considerado um dinossauro ?

Niemeyer : “Não. Nunca passou por minha cabeça a idéia de que o que houve na União Soviética tenha sido uma
coisa definitiva. Aquilo foi um acidente de percurso muito natural. Foram
setenta anos de luta e glória. Os soviéticos viajaram para o espaço. Marx inventou uma história fantástica,criou uma esperança nos homens.Por que pensar que tudo acabou ? Quem leu os clássicos soviéticos
sabe que eles são patriotas demais para aceitar essa humilhação”.

Quando deixou o Brasil durante um período do regime militar, o senhor disse : "Resolvi viajar para o exterior com as minhas mágoas e a minha arquitetura" .A arquitetura de Oscar Niemeyer todo mundo conhece.Quais eram as mágoas ?

Niemeyer : “O clima no tempo do governo Médici ficou ruim. Tive de ir para fora. Os que queriam me paralisar me deram a oportunidade de mostrar no exterior a minha arquitetura. Era o que eu precisava. Mas o exílio – até quando é voluntário – é muito duro.Você tem de aproveitar os momentos de calma para se divertir; a vida exige. Mas há momentos de pessimismo e
de saudade. Você fica comovido com uma palavra ,uma coisa qualquer que lembrasse o Brasil, lembrasse a família,lembrasse o que estava acontecendo aqui : aquele miséria imensa,aquela perseguição. A gente se sentia infeliz, queria voltar. Mas a vida é assim. Quando cheguei ao Brasil, fui direto ao quartel. Perguntaram numa sala fechada : "Doutor Niemeyer,o que é que vocês querem ? " . Eu disse "Queremos mudar a sociedade" .O policial que me perguntava disse ao crioulinho que batia a maquina :"Escreve aí : ”Mudar a sociedade !”" . Ele –então - olhou para trás e disse : "Vai ser difícil.....”. Eu até achei graça. O que a gente queria era mudar a profissão daquele homem - por exemplo - ,para que ele tivesse um ofício melhor. A ignorância é que contribui para a manutenção do clima de injustiça – que não se modifica”.

O senhor uma vez chorou ao ouvir uma música de Ataulfo Alves.A música faz o senhor chorar ainda hoje ?

Niemeyer : “A música me trazia lembranças de casa, lembranças de amigos.Além de tudo, é bom chorar : às vezes,é preciso”.

O que é,então,que faz o senhor chorar hoje ?

Niemeyer : “Qualquer sentimento de pesar ou de saudade; um amigo que desaparece. Uma vez,eu estava subindo para o escritório quando um garoto,pobrezinho,veio vender uns
biscoitos. Dei um dinheiro para ele. Peguei o elevador. Quando cheguei aqui em cima , a miséria daquele garoto parecia que era a miséria do mundo. Fiquei tão perturbado que mandei chamar o garoto. Aqui combinamos que ele sairia da rua para estudar. A cozinheira logo achou que ele poderia ficar na casa dela por uns dias.O menino ficou
uma semana,mas,depois, fugiu outra vez.Coisas assim é que deveriam incomodar todo mundo.
Sempre digo : o sujeito para ser feliz tem de ter saúde e dinheiro,mas tem de ser burríssimo, porque pode viver como um bicho. Mas,desde que olhe em volta e veja que existe tanta gente sofrendo, a vida fica mais amarga.”

O senhor sempre combateu os conservadores. Qual foi o brasileiro mais reacionário que o senhor já conheceu ?

Niemeyer : “São tantos....Mas nunca me indispus por questões de divergência política. Tive amigos integralistas. Achava que eles estavam equivocados. Com certeza, eles pensavam a mesma coisa de mim . Mas podíamos conviver perfeitamente. O importante é que haja liberdade para que cada um pense o que quiser. A gente luta pelas coisas em que acredita.Mas o tempo muda as coisas. Eu nasci protestando; vou protestar a vida inteira. O sujeito vem,me pede um protesto,eu às vezes assino sem nem ler direito.Nunca esteve tão ruim, mas a gente precisa ter esperança. Podem ter vendido tudo, a violência pode ter assumido níveis nunca visto antes,mas tem de existir esperança. É preciso brigar,discutir,tomar posição de acordo com o que a situação exige : que todos fiquem contra”.

Todo mundo tem um museu imaginário na cabeça. Qual é a grande obra do museu imaginário de Oscar Niemeyer ?

Niemeyer : “Sempre digo que a arquitetura não é o mais importante para mim. O importante é a vida, os amigos. Mas a grande obra é aquela em que a gente sente um momento de esperança,como aconteceu em Brasília. A gente achava que o mundo iria mudar ; o
preconceito de classe iria desaparecer . Momentos de esperança é que são
importantes”.


Que comentário o então presidente Juscelino Kubitscheck fez ao senhor,ao ver Brasília tomando forma ?

Niemeyer : “Uma noite,quando estava sozinho no Palácio,Juscelino me chamou para conversar. Ficava divagando sobre as metas que iria cumprir. Já eram duas horas da manhã quando saímos. Juscelino nos acompanhou até o lado de fora do Palácio do Alvorada. Como era noite,o Palácio,branco,se destacava na escuridão.Juscelino,então,me pegou pelo braço e me disse : "Que beleza!". O trabalho era duro,dia e noite,mas ele nos entusiasmava com o liberdade que nos dava para que fizéssemos o que bem entendíamos.Era um momento de otimismo.Um dia, ele me telefonou : "Você tem problema de dinheiro.Eu queria que você fizesse,pela tabela do Instituto de Arquitetos,os projetos do Banco do Brasil e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico”. Eu disse : “Não faço; sou funcionário”. Indiquei amigos que fizeram.Mas o convite de Juscelino mostra que ele se preocupava com a gente : estava querendo ser solidário. Tive a chance de lidar com pessoas que me compreendiam e me aceitavam.
Agora,por exemplo,tenho o apoio do prefeito de Niterói - que fez um museu na cidade. Fará outras obras. Pediu-me para projetar um Centro de Convenções em Niterói - um prédio para três mil pessoas. A gente tem de trabalhar,a vida obriga. Além de tudo,o sujeito,na minha
idade,não pode ficar parado : precisa ficar atento. Ou então finge que é
moço,diz besteira,sacanagem....”.

Por que é que o senhor resolveu aprender a tocar cavaquinho ?

Niemeyer : “ Eu frequentava o Clube de Regatas Guanabara.Tinha amigos lá. Os nomes eram engraçados. “Gastão Vida de Cão” era um sujeito que apareceu no clube com
um violão; não tinha trabalho,não tinha onde morar : ficou morando lá. Tinha o “Siri Buceta” (ri). A gente então ficava no Clube brincando e tocando violão . Saquarema era o roupeiro. Jacobina,campeão brasileiro de natação, era músico. Sempre gostei desse negócio de música. Em Brasília,tinha Lelé, Marçal. É um momento de descanso. Eu sabia tocar umas coisas de violão,mas já esqueci muito”.


É verdade que existe uma fita em que o senhor toca com Tom Jobim ?

Niemeyer : “Uma vez,na brincadeira, gente viu se eu o acompanhava Tom Jobim....Era fantástico,assim como Chico Buarque,
Vinícius de Morais. Darcy Ribeiro era um companheiro bom : vivo,inteligente,seguro. Quando veio o golpe,ficou firme no
Palácio, na tentativa de resistir. A vida às vezes faz a gente mais otimista quando gente boa se revela cheia de qualidades.”

Gilberto Freyre disse numa entrevista que o senhor era um arquiteto genial, mas era muito ignorante,porque passou a vida repetindo chavões marxistas. Críticos asssim incomodam o senhor ?

Niemeyer : “Não.Eu li Casa Grande & Senzala e gostei.É um livro mui to bem escrito. Gilberto Freyre era um
grande escritor...”

....Mas como é que o senhor recebia essas críticas ?

Niemeyer : “Cada um pensa o quer quer.Nunca conversei com ele. Eu me lembro de ter me encontrado uma vez –corrida- em Pernambuco”.

É verdade que houve uma festa com a participação do senhor,o compositor Ari Barroso,o pintor Di Cavalcanti,arquitetos estrangeiros que tinham vindo ver o projeto de Brasília e seis mulheres ?

Niemeyer (irritado) – “Conversa assim não é para entrevista....É lógico que às vezes acontecem essas coisas. De sacanagem todo mundo gosta. É o que salva a gente.....(pausa). E essa sua pergunta me chateou.....Uma vez,veio um sujeito aqui para fazer uma
entrevista. Fez uma pergunta e eu disse : acabou a entrevista....(nova pausa). Vamos em frente...”.

Quais serão os próximos projetos ?

Niemeyer : “Fiz um projeto que me interessou para Londres : um hotel situado a cem metros de altura. Aqui no Brasil, tenho dois projetos que me ocupam com todo interesse : o Centro Cultural de Brasília,que o governador Roriz pensa em
realizar,para completar o eixo monumental.É importante para Brasília porque o cartão de visita da cidade é chegar e ver os palácios- o Eixo Monumental. O projeto para a Prefeitura de Niterói é ambicioso,com igreja,catedral,teatro. O terreno fica de frente para o mar : é bonito,um espetáculo de arquitetura. Os prédios vão ter uma unidade.

Quando a arquitetura é bem feita, é facil de compreeender.A arquitetura é verdadeira quando é fácil. A minha arquitetura é assim : feita com a preocupação da beleza . Quer ser bonita, ser lógica
e,princiupaslmente,ser inventiva. Quem vai a Brasília pode gostar
ou não do Palácio.Mas não pode dizer é que viu antes coisa parecida.
Quem é que fez um Congresso com aquelas cúpulas ? Quem é que fez as colunas do Palácio do Planalto ? Aquilo é invenção,é arquitetura”.

O senhor nunca abriu mão do sentimento de beleza na arquitetura ?

Niemeyer : “O caminho da arquitetura é esse : a arquitetura tem de ser bonita. Se é mais justa,é ainda melhor. A arquitetura que faço é livre - de acordo com o clima do país -,um pouco ligada às velhas igrejas de Minas Gerais,numa relação com o passado.Mas é discriminatória,o que é outro problema.Se a gente
quiser fazer uma arquitetura que chegue ao povo,não é um problema de arquitetura : é um problema de revolução. Porque é verdade que só os ricos é que usufruem”.

Em que momento das vida o senhor adquiriu a certeza de que a arquitetura precisa ser bonita – e não apenas funcional ?

Niemeyer : “Tive pouca influência de Corbusier. Mas fui influenciado por ele no dia em que ele me disse : arquitetura é invenção. Eu saí procurando esse caráter inventivo da arquitetura. Quando eu me lembro da Pampulha ou de Brasília,vejo que eu fazia as formas mais diferentes.Perguntaram a mim o que significava.Eu tinha de ficar dando explicações. É como digo : os mais pobres não usufruem. Mas,quando a arquitetura é bonita, os pobres podem parar e ter aquele momento de prazer ao ver algo diferente”.

O senhor hoje mudaria a concepção dos Palácios de Brasília ?
Niemeyer : “Não. Naquele momento,foi o que me ocorreu: eu quis fazer uma arquitetura mais leve,os prédios como se estivessem apenas tocando chão.Joaquim Cardoso entendia e se esmerava,para fazer o mais fino possível. Quando fui para a Europa,eu já estava preocupado com a engenharia do meu país,para mostrar que nós não somos bobos. A gente sabe das coisas”.

Diante de suas obras obras,Darcy Ribeiro disse que que o senhor é o único brasileiro que será lembrado daqui a quinhentos anos.O senhor concorda ?

Niemeyer : “Darcy Ribeiro era amigo.E os amigos dizem tudo”.

O senhor conseguiria definir o Brasil numa só palavra ?

Niemeyer : “Esperança. É o que a gente tem de ter”.

(2000)

Posted by geneton at 12:05 AM

abril 01, 2004

LEDO IVO


O poeta dá o conselho : "Seja como os lobos : more num covil e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.Viva e morra fechado como um caracol.Diga sempre não à escória eletrônica".


Caçadores de belos versos,tremei de arrependimento : quem nunca leu um poema de Ledo Ivo,por preguiça,desinformação ou enfado,deve se penitenciar deste crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível.

Um exemplo ? É difícil encontrar uma declaração de princípios tão bela quanto "A Queimada" :

"Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita".

O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da poesia brasileira neste início de século,diga-se que o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari,no bairro de Botafogo,Rio de Janeiro. Ao contrário do que os versos podem fazer supor,o homem não é uma fera de garras afiadas.

Ei-lo : sentado numa poltrona da sala,o lobo Ledo vai fazer,a pedido do repórter,uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O cenário que circunda o Covil do Lobo é um convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas do mundo,o lobo Ledo precisa caminhar apenas cinco passos. É a distância entre a sala e a extremidade da varanda deste apartamento.Lá fora,a beleza escandalosa de um céu sem nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo. A localização do apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um poeta.Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara.Não é para qualquer um.

O poeta posa para as fotos na varanda. Parece ligeiramente incomodado pela lente da máquina. O sorriso aberto transmuta-se numa expressão repentinamente carrancuda um décimo de segundo antes do clique da máquina.
As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações de poeta vão se sucedendo,aos borbotões : com os gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível,o pequenino Ledo Ivo reconstitui,com frases precisas,momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de Andrade,Graciliano Ramos,Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto,gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.

Justiça se faça : aos setenta e oito anos de idade,Ledo Ivo já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de "o Brasil oficial" : a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe,por unanimidade,a cadeira número 10,no não tão distante ano de 1986. Mas o "Brasil real",aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos,não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser. Aos caçadores de pérolas,recomenda-se a leitura da última pepita da mina do lobo Ledo : "O Rumor da Noite",publicado recentemente pela Nova Fronteira.

O Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário,um ermitão que prefere ver a humanidade à distância. A ode à solidão - que ele já escrevera nos versos definitivos do poema "A Queimada" - repete-se no não menos belo "A Passagem" :

"Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar,exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho".

O Lobo é um apóstolo confesso da beleza.Reage com compreensível enfado à faina dos que preferem criar teses sobre a poesia :

- Sou um esteta porque nunca li tratados de estética - disse,num volume autobiográfico há anos esgotado ("Confissões de um Poeta").

Quando começa a falar do assunto que lhe consome todas as energias - a criação literária -,o alagoano Ledo Ivo vai alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo cuidado que devota à linguagem escrita.O Português agradece,comovido. O poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como "de maneiras que....". Se alguém cometer o sacrilégio de misturar "tu" com "você" diante do lobo,certamente escapará de uma admoestação,porque o homem é afável,mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.

O Recife ocupa um extenso capítulo na memória afetiva do lobo - que deu de presente à cidade um poema escrito na juventude (“Amar mulheres,várias/Amar cidade,só uma – Recife”). Um detalhe : temeroso de despertar ciúmes bairristas em seus conterrâneos alagoanos, Ledo Ivo jamais incluiu o poema em homenagem ao Recife em seus livros. O cântico de amor à cidade estaria inédito até hoje,se não tivesse sido divulgado por amigos do poeta.

Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski,o lobo Ledo carrega,pelas décadas afora,as marcas da infância em Maceió :

"Na tarde de domingo,volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam as maresias e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências
monótonas.
(...) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,
voltai a este dia inacabado
que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.
Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no mar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno

Apenas nomes em lápides.Apenas nomes.E o barulho do mar".



A nostalgia do tempo irremediavelmente sepultado nos velhos calendários marca não apenas os melhores poemas de Ledo Ivo,mas também
suas confissões autobiográficas :

- Sou um sobrevivente na passagem entre o dia e a noite.Onde estão as figuras de antigamente - em que estrelas,em que túmulos se esconderam ? Gari implacável,a vida varre os sonhos dos homens e,na praça vazia,vagam os fantasmas dos fracassos dissimulados e dos gordos perjúrios.Sozinho na grande cidade que engole as promessas dos homens,vejo-me passar de repente no jovem poeta desconhecido que atravessa o meu caminho.Deixo de ser eu mesmo para ser,por um instante,o jovem poeta sem nome. Que ele seja fiel à sua promessa de agora,eis o que peço.Que ele seja uma dessas criaturas para as quais nada é perdido,segundo a lição de Henry James.Mas a quem dirigir esse pedido ? Os deuses inexistentes não me ouvem.À vida cega e surda ? Ao mar longínquo e mudo ? O jovem poeta Ledo Ivo dilui-se na sombra da tarde.E anoitece”.

Graciliano Ramos,João Cabral de Melo Neto,Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes vivos da imaginária enciclopédia do Lobo Ledo.
Gravando !

PRIMEIRA ESTAÇÃO : O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE DESPEDIR DA VIDA

GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável,corresponde à verdade ?
Ledo Ivo : “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo estado. Quando menino,como primeiro da turma no grupo escolar,fui apresentado a Graciliano,na época secretário de Educação. Pôs a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando ele publicou “Vidas Secas”, eu,”menino prodígio” em Maceió,escrevi,em 1938,um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse “vá visitar Heloísa” - a mulher do Graciliano Ramos,àquela altura,aos cinquenta anos de idade,uma figura importante na literatura brasileira. Durante nossa conversa,ele abriu uma gaveta e disse : “Quando publiquei “Vidas Secas” em Alagoas,só uma pessoa falou do meu livro : um menino de 14 anos.....”.
A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio,porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada,jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e Graciliano Ramos puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas,como,por exemplo,a correção lingüística que,dizem,existe em minha prosa.
Graciliano Ramos era,sim,uma pessoa rústica.Em toda a literatura brasileira,ele só tinha três, quatro admirações,além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês : José Lins do Rego,Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia,admirava Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos).
Notei,na casa de Graciliano Ramos,um livro de poesia autografado,fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa de Graciliano,dizia a ele : “Você deveria abrir esse livro ! ”. E ele : “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos) .
Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro.Se não me engano,era um volume das poesias completas de Augusto Frederico Schmidt”.

GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical ?
Ledo Ivo: “A herança - pungente - é ver que a glória de Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com Graciliano Ramos foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um grande escritor,mas ainda não plenamente reconhecido - essa é que é a verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não reeditava. Em conversas íntimas,Graciliano chamava José Olympio de “esse filho da puta - que vive editando Lourival Fontes e Getúlio Vargas.....” (N: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas) . O que eu via ali,em Graciliano, era a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal – Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos em Alagoas : “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de Alagoas, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances ? Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa que o Rio,a metrópole,deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor.
Qual foi,então,a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ? A fidelidade ao ofício,algo que se viu também em Machado de Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia,não pensava em prêmios literários,não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles.
GMN : O desleixo com a glória imediata foi,então,uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos ?
Ledo Ivo : “Uma característica de Graciliano Ramos -que me orgulha- é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil diferente.Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro - oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que tinham carro ! Um negócio impressionante,porque todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo diferente,o da vida literária, marcada pela existência de suplementos literários.
Mas havia ,em Graciliano Ramos,um detalhe que me impressionava : o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de certa maneira - muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele gostava -,no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust,por exemplo. Quando eu perguntava por que,ele dizia : “Não leio veados ! ” (risos).
Quando o visitei pela última vez,no hospital,ele chorou,porque sabia que ia morrer. Enquanto chorava,falava -e muito – sobre a mãe.O hospital ficava aqui ao lado,onde hoje é este edifício (Ledo aponta para fora do apartamento).
Aquele foi nosso último encontro,porque eu estava de partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido.De vez em quando,falava coisas desconexas. Contava que a mãe,quando casou,levou as bonecas para casa – um negócio curioso.
O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante,porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que,por mais que ele dissesse que odiava a vida,ele,na verdade,amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma.Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão,mas nunca fumou.
Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”.

SEGUNDA ESTAÇÃO : O POETA ESPERA
HÁ SESSENTA ANOS PELO LEITOR

GMN : O senhor escreveu em suas memórias : “Vivo escrevendo, mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que freqüência,então,o senhor tem a sensação de estar substituindo a vida pela escrita?

Ledo Ivo: “É um drama comum a todo e qualquer escritor este sentimento de que estamos vivendo,sim,mas essa vida se destina somente a acumular experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se limita a viver,porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia : por que logo eu,numa família de onze,revelou a vocação e o destino para a escrita,numa família que não tinha pendores literários ? Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um escritor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra literária.
O escritor é,então,uma pessoa condenada não a viver,mas a escrever.
Fausto Cunha - grande crítico,que notou,em minha procedência literária,a influência de poetas malditos como Rimbaud,Verlaine e Baudelaire – me disse : “O grande erro de sua vida é que você não morreu aos vinte anos.Se tivesse morrido moço,teria deixado “Ode e Elegia”, “As Imaginações”, e “Acontecimento do Soneto”. Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casemiro de Abreu !.Vida longa atrapalha a biografia !”.
João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi : “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas – o poeta que vive até os oitenta anos !”. Prefiro o mistério dos poetas que,como Drummond e Manuel Bandeira,tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa”.


GMN : Ariano Suassuna - que foi homenageado no carnaval aqui no Rio - disse que já tinha recebido a homenagem do “Brasil oficial”, ao entrar para a Academia Brasileira de Letras e estava recebendo ali,no sambódromo,a homenagem do que ele chama de “Brasil Real”. O senhor – que já foi homenageado pelo “Brasil Oficial” ao ser recebido por unanimidade na Academia Brasileira de Letras - sente falta do reconhecimento do “Brasil Real”,,já que não é tão conhecido como poeta como deveria ?
Ledo Ivo: “O poeta inglês John Mansfield diz que já viu o azarão no jóquei ganhar o prêmio, já viu flor brotar da pedra, já viu coisas amáveis feitas por homens de rosto feio. “Eu também espero” – diz ele. Confesso que o problema do reconhecimento vasto não me preocupa. A vida literária se faz pela diversidade e pela multiplicidade. Não se sabe se o escritor de pouco público de hoje será o escritor de grande público de amanhã.
Um escritor pode ser obscuro e desconhecido hoje e famoso e glorioso amanhã. Você pode também estar dentro da literatura e um dia ser expulso ! São coisas que não me preocupam. O que me preocupa é a criação literária. Já que sou uma criatura dotada de linguagem, quero me exprimir. Mas sei que uma obra só se completa com a existência do outro. Há sessenta anos estou esperando por esse leitor.
Um dia ele haverá de aparecer”.
GMN : O poema “A Queimada” – aquele que fala do lobo no covil - é uma declaração de princípios de que o escritor deve ser,no fim das contas,um solitário ?
Ledo Ivo: “O escritor deve ser um solitário solidário.A verdade,como digo no poema,não pode ser dita”.

GMN : O senhor reclama daqueles escritores que só brilham em congressos....
Ledo Ivo: “Oswald de Andrade – de quem fui muito amigo até brigarmos – me procurou,magoado,porque tinha sido expulso do Partido Comunista.Os comunistas,então, não o deixaram participar do Congresso dos Escritores de São Paulo. Eu disse a ele: “É besteira ! . Nietzsche nunca participou de um congresso de escritores” (risos)…

GMN: Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício” ? .
Ledo Ivo: “Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas já vêm prontas,organizadas subconscientemente. Pensa que “capino” o meu texto. Mas o mjeu texto vem espontaneamente.Não tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que acrescentam !.
João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa inveja, mas não causa não!”.
GMN : Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de Andrade,escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar ?
Ledo Ivo: “Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele que “enterra uma palavra por dia”. Para mim,o bom escritor é o que desenterra uma palavra por dia ! . Porque o escritor lida com um patrimônio lingüístico. De vez em quando o brasileiro ressuscita palavras esquecidas”.
GMN : Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus livros o tão citado poema sobre o Recife ?
Ledo Ivo: Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam. Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema .
“Amar mulheres,várias
amar cidade,só uma – Recife.
E assim mesmo com as suas pontes
E os seus rios que cantam
E seus jardins leves como sonâmbulos
E suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau”

O poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque Recife tem um lado cosmopolita – que me impressionou muito. O meu pai era pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era considerado meio pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico Willy Lewin,nos anos quarenta.Recife foi a cidade de minha primeira formação literária. Fazíamos poemas nas mesas do Lafayette,numa época de boemia. O poema sobre o Recife ficou desaparecido até 1947,quando chegou às mãos de Mauro Mota – que o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no Jornal do Commercio). O destino de um poema é curioso. A gente escreve um poema; ele ganha vida própria,começa a circular.
Guardo a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu : ele dizia que eu deveria ser um poeta alagoano,assim como ele era um poeta pernambucano. O sentimento do berço tinha grande importância para ele”.

TERCEIRA ESTAÇÃO : DRUMMOND,O GRANDE POETA SECRETO,ENTRA EM CENA
GMN : Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência com Carlos Drummond de Andrade ?
Ledo Ivo: “O que me impressionou em Drummond, já no primeiro encontro, foi um certo “fechamento” interior. Não se entregava. Era como se vivesse insulado em si mesmo. Há em Drummond algo que é “intransmissível”. Tive essa sensação de intransmissibilidade.
Eu levei meus primeiros poemas para Drummond,no gabinete em que ele trabalhava,no prédio do Ministério da Educação,no centro do Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção de outros escritores para mim. Em seguida,vieram as rusgas,porque havia divisões políticas naquele tempo.
A coisa mais impressionante que Drummond me disse foi num de nossos últimos encontros. Um certo poeta brasileiro - de quem não quero dizer o nome - proclamou-se herdeiro de Drummond. Quando me encontrei com ele, disse: “Como é que vai o herdeiro?” . E ele : “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do modelo. O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim : é esta a lição da poesia”.
O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de Andrade.Os herdeiros são os diferentes. São até os adversos : não são os assemelhados. É a grande lição de Drummond que ficou em mim : ele não espera ter um clone como herdeiro. (risos) O que Drummond esperava era o “anti-clone”.

GMN : Nesse primeiro encontro, o senhor - que viria a se considerar um lobo no poema “A Queimada” - teve a sensação de que o Drummond era o “urso polar”,como ele disse que era num dos poemas ?
Ledo Ivo: “Tive essa sensação. Drummond tinha uma vida amorosa muito escondida - que depois,infelizmente, foi violada pela imprensa.
Eu via,em Drummond,um grande poeta secreto. Naquela época, 1940, Drummond não tinha a notoriedade que ganhou depois. O próprio Manuel Bandeira pensava que o grande poeta brasileiro daquela época fosse Augusto Frederico Schmidt. Porque o Schmidt enrolava todo mundo (risos). Schmidt até pensou em fazer um poema sobre a descoberta do Brasil,mas depois Drummond veio com a Rosa do Povo e acabou com a festa”.

QUARTA ESTAÇÃO : MANUEL BANDEIRA ENSINA QUE O
POETA PRECISA SER CULTO


GMN : O que ficou da amizade com Manuel Bandeira ?
Ledo Ivo: “Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece na poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”.
Depois percebi que, para mim, a operação poética é como se fosse um encantamento da linguagem – uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da linguagem.Bandeira fez esta descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes : por exemplo,a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta,não basta apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não é,portanto,um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta exprimir-se.
A fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor. Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma civilização de massas, uma civilização eletrônica, uma civilização consumista. Tudo alterou a posição do escritor e do poeta no Brasil.
Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o último grande exemplo.O poeta vive hoje em uma época de anonimato. Os ícones são diferentes,os gurus são outros. A linguagem literária hoje compete com a linguagem eletrônica, o CD-Rom, o cinema,o disco . Mas,há alguma coisa que só a poesia tem condições de dizer. A poesia,então,existirá sempre,como linguagem específica,porque só ela pode dizer,sobre a condição humana,algo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira. O cinema e a televisão lidam de uma maneira diferente”.
GMN : O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica?

Ledo Ivo: “A função do poeta na sociedade é escrever poemas.A notoriedade é secundária”.
GMN : O senhor tem uma certa sensação de deslocamento por ser um poeta em uma sociedade que não dá tanto valor aos poetas?
Ledo Ivo: “Pelo contrário ! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta ,surgi no momento certo.Tenho um grande sentimento da minha contemporaneidade.O mundo atual habita os meus poemas.A função do poeta é,também,celebrar o mundo em que vive. Não tenho nostalgia pelo passado. Não gostaria de ter nascido no passado,assim como não gostaria de ter nascido no futuro”.

QUINTA ESTAÇÃO : JOÃO CABRAL DÁ
DE PRESENTE A LEDO UM EPITÁFIO
EM FORMA DE POESIA

GMN : Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, qual foi a grande lição ?
Ledo Ivo: “João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas.Cada poeta é diferente.As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa ! . O que mais me impressiona em João Cabral é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim, João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”,o poeta da obsessão, o poeta das coisas ocultas,o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa,mas se abre para o grande acesso popular, o que é curioso.
Uma vez,João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra literária. Procuramos fazer uma obra literária o maior possível.De repente, lá em Nova Iguaçu ,a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”.
GMN : Para o senhor - que se considera “um homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta” - qual é a grande pergunta, a grande perplexidade que até hoje o atormenta ?
Ledo Ivo: “A perplexidade é estar no mundo – com todas essas perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não-existência de Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há resposta.Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo,no sentido de ter uma existência nítida,com fronteiras definidas.Talvez o meu mundo seja o mundo da ambigüidade.
Drummond chamou a minha poesia de
”múltipla”. É uma frase que ilumina mais uma existência poética do que muitos rodapés. Quando publiquei “Confissões de um Poeta”, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta,Hélio Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura.
Vivo nessa perpétua indecisão.O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda”.
GMN : Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude.Qual foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte?
Ledo Ivo: “Venho de uma família numerosa. Tenho um irmão que morreu, o chamado “anjinho”, aquele que morre novo.Outro irmão meu chamado Éber, morreu aos oito anos. Numa família nordestina,numerosa,a morte vive sempre rodeando as pessoas.Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios. Mas censuro a morte ! .Como sou uma criatura do aqui e do agora,fico impressionado com a morte,porque ela faz com que a gente já não esteja aqui”.
Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória e instantânea.É um relâmpago. Além de tudo,há o mistério da existência : por que será que uns morrem cedo,outros morrem tarde e outros não morrem nunca ? “.
GMN : O senhor faz,em um de seus textos,uma referência a uma caminhada solitária pelas alamedas do Cemitério São João Batista.O que é que o senhor estava fazendo no cemitério ?
Ledo Ivo: “Devo ter ido me despedir de um amigo.Não fui para visitar o cemitério. O engraçado é que João Cabral escreveu o meu epitáfio em versos que ele nunca incluiu em livro. O que João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos. Terminou não fazendo.
João foi um grande amigo meu,mas tínhamos temperamentos diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro. Nunca nos encontramos - nem esteticamente. Dizia que eu falava muito; achava que só a morte é que me reduziria ao silêncio.
O epitáfio que João Cabral criou para mim é este :

“Aqui repousa
Livre de todas as palavras
Ledo Ivo,
Poeta,
Na paz reencontrada
de antes de falar
E em silêncio,o silêncio
de quando as hélices
param no ar “.

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(2001)

Posted by geneton at 12:54 PM

março 29, 2004

JOSÉ SARAMAGO

O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA DIZ QUE VAI MORRER SEM ENCONTRAR A RESPOSTA PARA A PERGUNTA "SIMPLES" QUE O ATORMENTA



Um dos primeiros mandamentos do Manual de Boas Maneiras Jornalísticas diz que repórter que se preza não deve escrever na primeira pessoa. Por que não ? Peço licença aos Guardiões da Profissão para cometer um pequena confidência,na primeira pessoa do singular : sempre alimentei o desejo de entrevistar um Prêmio Nobel de Literatura.

Se eu vasculhasse minhas florestas interiores em busca de uma explicação razoável para esta pequena obsessão,certamente voltaria da expedição de mãos vazias. Não encontro nenhuma justificativa para o desejo de entrevistar um Nobel ,além da óbvia curiosidade jornalística. Quem sabe, o que me movia era a curiosidade de ouvir a palavra desse espécime raro : um intelectual milionário.Afinal,a conta bancária dos felizardos agraciados pelo Prêmio Nobel recebe uma injeção substancial – algo em torno de um milhão de dólares.Mas este é um motivo inconfessável, além de tolo : não há notícia de nenhum Nobel de Literatura que,depois embolsar a grana, tenha de repente se transformado num desses novos- ricos semi-analfabetos que povoam as páginas de revistas como a Caras com seus sorrisos de mil dentes,pele bronzeada pelo ócio da Côte D’Azur e prataria cuidadosamente exposta na sala de estar para as lentes dos fotógrafos. É gente que juraria de pés juntos que Ezra Pound é nome de creme de beleza. Para felicidade geral da Literatura,a Academia Sueca não provocou,até agora,nenhuma transmutação dessa espécie.

De qualquer maneira, lancei-me ao mar,em busca de um Nobel (milionário) que pudesse ditar belas sentenças ao meu velho e alquebrado gravador. Minhas duas primeiras tentativas,no entanto, resultaram em clamoroso fracasso. (os dois fracassos foram prontamente mantidos em sigilo,como faz todo repórter que se preza.Assim caminha a Humanidade).

Primeiro alvo de minha caçada : Saul Bellow,o canadense de ar entediado que conquistou uma vaga no primeiro time da literatura americana com livros como Herzog e O Legado de Humboldt . Uma voz afável – como convém a uma secretária encarregada de erguer muros de proteção entre uma celebridade e o resto do mortais – sugeriu que o pedido de entrevista fosse feito por escrito.Cumpri o pequeno ritual. Fiz a primeira tentativa através de uma carta enviada ao escritório que Bellow - Prêmio Nobel de Literatura de 1976 – mantinha num certo Commitee on Social Thought,na Universidade de Chicago. Além de incensado pela crítica ,Bellow volta e meia se mete em polêmicas com seus pares,o que soava como garantia de boas declarações. Mas Mister Bellow disse não.Deve ter descartado com um muxoxo o pedido de entrevista feito por um vago repórter de um país remoto chamado Brasil. Quem leu “Os Eleitos”, livro que Tom Wolfe,desafeto de Bellow,escreveu sobre os pioneiros da corrida espacial deve se lembrar da cena em que emissários da Nasa,como se fossem corvos bem-vestidos e delicados,batem na porta das viúvas de astronautas acidentados para dar a elas a notícia fatal.Os corvos sempre agiam em dupla.

Sem saber,o carteiro,emissário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos,ECT,fez dupla com a secretária de Saul Bellow no papel de corvos encarregados de soterrar meu projeto de entrevista. Uma escreveu; o outro entregou. Uma disse : mata !.O outro : esfola ! .A secretária concebeu uma desculpa de poucas linhas (“O senhor Bellow me pediu que eu respondesse a carta que você lhe enviou. Infelizmente,ele não poderá conceder a entrevista que você solicitou. Eu espero que você entenda que as demandas feitas a ele são numerosas.Além de tudo,o senhor Bellow precisa de tempo para executar seus próprios trabalhos.Por favor,aceite as desculpas do senhor Bellow.Receba os melhores votos”).

Em outras palavras,a mensagem dizia,como o corvo de Edgar Alan Poe : entrevista com Mister Bellow? Never more,never more. Restou-me grunhir um “thank you,miss Janis Freedman”- é este o nome da megera.

O corvo voltaria a roçar a porta do minha casa,travestido de carteiro da ECT,com um envelope branco de bordas vermelhas nas mãos.Remetente : a secretária de outro Nobel de Literatura,o russo naturalizado americano Joseph Brodsky. O nome de Brodsky tinha despertado minha atenção desde que um resenhista entusiasmado escrevera
que os leitores poderiam fazer uma experiência : quem abrisse aleatoriamente o livro de ensaios “Menos De Um”,publicado por Brodsky nos anos oitenta, poderia ter a certeza de que aprenderia algo de útil,não importa a página escolhida. Mister Brodsky dispensou delicadamente a convocação que lhe fiz para que reverenciasse meu gravador Sony portátil. Uma vez,ele escreveu : “Em matéria de fracassos,a tentativa de recordar o passado equivale à pretensão de entender o sentido da existência.As duas coisas nos fazem sentir como um bebê que segura uma bola de basquete : ela escorrega constantemente das mãos”. Quem sabe, conceder a milésima entrevista sobre a infância passada na União Soviética poderia soar, aos ouvidos de Mister Brodsky, como um exercício inútil ,comparável ao esforço de um bebê para manter nas mãos a tal bola de basquete – elusiva ,escorregadia,”incapturável”,como o o passado. A assistente do Prêmio Nobel,a megera número dois,uma certa Ann Kjellberg,respondeu-me que o homem estava viajando,pelo exterior. Assim que fosse possível ,ela levaria a ele o pedido de entrevista. Mas um espesso silêncio desabou sobre a linha direta que,por um curtíssimo espaço de tempo,mantive com o escritório de Mr.Brodsky por carta e por telefone.

Demorou,mas fisguei um peixe da família dos Nobel,quem diria,na beira da piscina de um hotel de luxo. Acomodado no hotel pela editora,o português José Saramago tinha acabado de gravar uma entrevista no quarto para uma tevê educativa. Lá vem o homem. Traja um paletó protocolar. Trata os que o abordam com cortesia profissional. Quando fala,fica olhando para algum ponto misterioso na toalha da mesa. Não fita os olhos do interlocutor o tempo todo.

O espírito de porco que quiser irritar o Prêmio Nobel de Literatura (e comunista de carteirinha) José Saramago já sabe o que fazer : basta chamar o homem de "dinossauro político em vias de extinção" . Quando ouve a insinuação político-zoológica,o cordato Saramago imprime um tom incisivo à resposta. Diz que,um dia,no futuro,quem quiser entender o que se passou no mundo talvez tenha de revirar os ossos dos dinossauros políticos, assim como os arqueólogos reviram os ossos dos dinossauros de verdade,em busca de indícios que expliquem o que aconteceu no planeta.

Bela resposta. Minha tática de agente provocador funcionou : quando se sente confrontado,o dinossauro Saramago reage com um punhado de frases afiadas,o que não deve ser difícil para quem se notabilizou como exímio esgrimista das palavras.

Quando se dirigia para a mesa onde se faria a entrevista, o Prêmio Nobel de literatura passou cem por cento desapercebido pela piscina do hotel. De bermudas,o músico brasileiro Sérgio Mendes sorvia uma xícara de café expresso à beira da piscina. Alheio ao mundo exterior, nem nota quando Saramago passa.Os cabelos de Sérgio Mendes,excepcionalmente negros graças à eficiência de uma boa tintura,com certeza seriam mais capazes de chamar a atenção de um eventual observador de paisagens capilares do que os já escassos fios de Saramago - cem por cento grisalhos.Para alívio de Mendes,nenhum membro da Tribo dos Observadores Capilares,essa confraria excêntrica, trafegou naquele fim de tarde à beira da piscina.Mas eles existem.

Desde que o Prêmio Nobel o transformou em notícia no mundo todo, Saramago se tornou refém da própria fama - uma sensação nem sempre agradável para quem passou a vida se dedicando ao solitário ofício de escrever. Antes de começar a entrevista,confessa que de vez em quando gostaria de ficar invisível quando sai às ruas – um desejo que,lastimavelmente,os cientistas ainda não puderam atender.

Atenção,arqueólogos literários e políticos : é assim que um dinossauro fala.

1
GMN : Qual é o maior incômodo que um Prêmio Nobel enfrenta,além do fato de ser sempre importunado por jornalistas,como o senhor agora ?
Saramago : “Eu poderia responder que o outro maior incômodo é ser importunado por fotógrafos,por exemplo.Mas não.Incômodo não há nenhum.O que acontece é que se perde a invisibilidade depois que se ganha o Prêmio.É o pior.Evidentemente que é agradável ser reconhecido na rua e em qualquer parte,no aeroporto ou no restaurante.É agradável ver um leitor se aproximar para nos dizer uma palavra amável sobre o que leu.Em todo caso,não é que eu preferisse voltar ao anonimato,mas não há dúvida de que há momentos em que eu gostaria de me tornar invisível.Só não quero ser ingrato.Todos me tratam com tanto carinho e tanta atenção que qualquer palavra minha nesse sentido poderia parecer de algum modo uma ingratidão.Não é.Apenas que vez em quando sinto a necessidade de recolher-me à minha própria privacidade – que,enfim,já se perdeu”.

2
GMN : O senhor é até hoje filiado ao Partido Comunista Português.Não tem medo de ser visto como um animal político em vias de extinção ?
Saramago : “Há muitas coisas em vias de extinção que deveriam preocupá-lo mais : profissões que se acabam,culturas que desaparecem,línguas que perdem sentido porque já não têm ninguém que as fale,um planeta que estamos destruindo.Deixemos lá os dinossauros políticos.Porque acontece uma coisa curiosa : é preciso ter cuidado com a expressão “dinossauro político”. Pode chegar o momento em que,tal como acontece com os dinossauros autênticos,os estudiosos andem à procura dos ossos dos dinossauros políticos,para tentar reconstituí-los tal como eles teriam sido.Talvez um dia se venha a necessitar dos ossos dos dinossauros políticos que nós somos para que se entenda o que acontecia no mundo”.

3
GMN : O senhor tem uma visão essencialmente pessimista diante do mundo.O pessimismo é bom para a literatura ?
Saramago : “O pessimista não é bom nem mau para a literatura,mas não tenho uma visão pessimista do mundo.Ao contrário : o mundo é que está como está.Num momento como esse,pareceria,a mim,um pouco surpreendente que alguém se atrevesse a ser um otimista.Quem,diante do espetáculo oferecido pelo mundo em que vivemos,veja razões para ser otimista,é uma pessoa que ou não percebe aquilo que se passa ou então faz de conta que não entende.O melhor,então,é deixarmos de falar em otimistas e pessimistas.Os fatos são os fatos.Não há otimismo ou pessimismo que faça com o que um fato deixe de ser um fato.A interpretação do fato é que pode variar.Mas o fato continua lá.Penso que os fatos desse mundo,dessa vida,desse planeta,dessa sociedade humana,são fatos suficientemente sérios e graves.Temos de enfrentá-los não para divagar sobre o otimismo e o pessimismo com que poderíamos considerá-los mas para pelo menos compreendê-los e,se possível,tentar resolvê-los”

4
GMN : Mas há dois fatos que são aparentemente indiscutíveis no mundo de hoje.Primeiro : o fato “otimista” de que nunca tantas pessoas em todo o mundo viveram tão bem e tiveram acesso a tanta riqueza.O fato “pessimista” é que nunca foi tão grande a diferença entre pobres e ricos.Diante desse quadro,o senhor não tiraria nenhum motivo para enxergar o futuro com algum otimismo ?
Saramago : “Não.Se a parte negativa não existisse,então eu diria : uma vez que nunca houve tanta gente vivendo tão bem,pode-se presumir que,no futuro,haja ainda mais gente que vai viver igualmente bem.Mas,como você mesmo acaba de dizer,nunca foi tão grande a diferença entre os que têm e os que não têm.Tudo indica que a diferença vai ampliar-se.Não vem se reduzindo.
É evidente que há mais pessoas que estão vivendo bem.Mas também há mais pessoas vivendo mal.Como a população da terra vem se multiplicando, pode-se dizer que,se alguma parte vai se integrar à minoria que vive bem ou razoavelmente bem,muito mais gente vai se incorporar à parcela dos que vivem mal.Além de tudo,não se deve esquecer que há uma tendência para a pauperização das classes médias.Há uma parte mínima da classe média que ascende,passa para o outro grupo.Mas há uma parte da classe média que vai se aproximando cada vez mais da parte desfavorecida.Volto a dizer que não há pessimismo nem otimismo.Repito : os fatos são os fatos. Noto também que o problema já não é ter ou não ter.O problema – não menos importante – é saber ou não saber.É cada vez maior o número de pessoas que não sabem.Ou sabem mal aquilo que julgam saber.É cada vez menor o grupo de pessoas que detém todo o conhecimento – e de certa forma usa-o para levar o mundo para onde o mundo vai”.

5
GMN : Se o senhor fosse fazer hoje o papel do escrivão Pero Vaz Caminha,quinhentos anos depois,qual seria a primeira frase que escreveria sobre o Brasil ?
Saramago : “Depende do lugar onde eu desembarcasse.Se eu desembarcasse em Copacabana,quando se arrebentaram os esgotos nas praias no Rio de Janeiro,eu diria ao rei Dom Manuel que aqui não poderia viver ninguém,porque o lugar cheira mal.Imagine se,pelo contrário,eu desembarcasse numa praia limpa,coberta não de índias despidas,mas de lindas moças quase despidas. Eu diria que aqui é um sítio para viver,uma terra linda.Se,no entanto,eu começasse a encontrar as favelas,eu diria : “Mas o que é que se passa aqui ? Eu julgava que os índios viviam de outra maneira !”.

6
GMN : Usa-se no Brasil a expressão “comunista de carteirinha”. O senhor anda com a carteirinha do Partido Comunista Português ?
Saramago : “Não ando com ela.Tenho cartões e carteirinhas de várias e várias instituições com quem mantenho relações.Não ando com as carteirinhas de todos.Mas pago a minha cota ao PC”.

7
GMN : O dirigente comunista Álvaro Cunhal entregou ao senhor uma carta que não deveria ser aberta.Que segredo essa esse ?

Saramago :”Álvaro Cunhal na verdade escreveu uma carta que nunca li,porque a carta só me seria entregue se ele não tivesse sobrevivido a uma intervenção cirúrgica a que foi submetido na União Soviética.O que sei,pelo que me foi dito,é que ele escreveu algumas cartas que seriam entregues a vários destinatários se ele não tivesse sobrevivido.De qualquer forma,não é o Terceiro Segredo de Fátima : ele próprio me comunicou,depois,ter dito,na carta,que esperava que eu nunca saísse do Partido Comunista Português.Não saí.Não sairei.Em todo caso,a carta nunca me foi entregue”.

8

GMN : Independentemente do apelo que seria feito nessa carta,jamais passou por sua cabeça a idéia de largar o Partido Comunista ?
Saramago : “Não tenciono efetivamente –para usar a expressão que você usou – “largar” o Partido Comunista,a não ser que ele me largue .Quero dizer : se amanhã o Partido se transformar em outra coisa,como aconteceu com a maioria dos partidos comunistas europeus,posso não reconhecer o Partido a que aderi.Nesse caso,é possível que eu saia.Mas espero que não aconteça”.
9
GMN : O senhor já disse que o Brasil é um país de luzes e sombras.Aos olhos do mais famoso escritor português de hoje,qual é a grande luz e qual é a grande sombra que o Brasil projeta ?
Saramago : “Uma pergunta dessas não é fácil de responder.Países de luzes e sombras de uma maneira ou de outra todos o são.O que digo em relação ao Brasil é que o país poderia ser,por suas riquezas naturais e pelas características do seu povo, um país em que as luzes predominassem.Não digo que as sombras é que predominam.O que quero dizer é que as sombras poderiam ser menores e menos graves”.

10
GMN : O senhor ainda se sente “como uma Miss Universo”,com a agenda atolada de compromissos depois do Prêmio Nobel ?
Saramago :”Fiquei com a sensação de que
as agendas de uma Miss Universo e a de um escritor premiado eram bastante parecidas.Mas hoje posso dizer que não se parecem em nada.As obrigações e responsabilidades de uma Miss Universo duram um ano.
Haverá,então,outra Miss Universo,não só com a coroa na cabeça,mas também com o dever de fazer tudo aquilo que a predecessora fez.Mas,no meu caso – eu,que,não sei se feliz ou infelizmente, não pareço em nada com a Miss Universo - essas obrigações não cessaram pelo fato de em 1999 Gunter Grass ter ganho o Prêmio Nobel.
Diga-se que o Prêmio Nobel não impõe rigorosamente nenhuma obrigação. O sujeito chega lá,recebe o Prêmio e vai para casa. Depende da vontade do escritor o uso que ele fará do tempo – o emprego que fará de suas possibilidades de comunicação,se vai continuar a escrever,se vai ter contatos com os leitores.
Como o Prêmio Nobel foi atribuído a um escritor de língua portuguesa,é claro que minhas obrigações e responsabilidades se multiplicaram.Eu entendi que deveria assumi-las”.

11
GMN : Por que os escritores brasileiros são tão ausentes de Portugal e os escritores de Portugal tão ausentes do Brasil ?
Saramago : “Pode-se pensar,por exemplo,que leitores de um país não dêem atenção suficiente àquilo que se publica no outro. Pode-se pensar que os temas que tratam os escritores de um país não interessam aos leitores de outro.Mas também se pode pensar que não há um trabalho de fundo para aproximar os dois.É certo que os escritores portugueses vêm aqui.É certo que os escritores brasileiros vão a Portugal.Mas há algo que se passa que não sei explicar. Temos de pensar no seguinte : o leitor também tem suas razões para preferir ou não preferir.Quero crer,no entanto,que seria bom se houvesse um trabalho mais contínuo de ajuda à edição – evidentemente,é preciso ver até que ponto tal ajuda é economicamente viável.O que é lamentável é que seja assim.Eu sou uma exceção.Eu próprio me pergunto por quê.Não sou capaz de dar uma explicação.
Talvez o que se devesse fazer seria perguntar aos leitores : por que não os interessa a literatura portuguesa ? Por que não os interessa a literatura brasileira ? Como é que poderiam se interessar ? Por que os interessa um determinado autor – e não outro ? Fernando Pessoa é muito lido no Brasil.Cem anos depois,Eça de Queiroz também o é.Já Machado de Assis não é tão lido em Portugal como Eça de Queiroz é no Brasil. Faça-se um inquérito para que se chegue a alguma conclusão”.

12
GMN : O primeiro escritor brasileiro com quem o senhor teve contato deixou alguma influência em sua formação ?

Saramago : “Não posso jurar,porque foi há muitos e muitos anos.Mas o primeiro pode ter sido Raul Pompéia,com esse livro extraordinário que é “O Ateneu”. Você me pergunta se ficou alguma influência da leitura.Claro que não,porque eu era muito novo.Ainda não pegava essas coisas.O resto foi a aprendizagem.Uso essa palavra propositadamente,porque o que houve comigo foi a aprendizagem de uma literatura escrita em minha própria língua,mas criada e imaginada em outro lugar - o Brasil -,com tudo o que para mim representou a descoberta não só dessa literatura,mas também das realidades sociais e culturais que estavam por trás dos livros”.

13
GMN : Por que é que o Prêmio Nobel de Literatura não gosta de falar de literatura ?
Saramago : “...Mas eu nunca disse que não gosto de falar de literatura ! O que disse foi que cada vez menos me interessa falar no assunto.Não é que não goste.Se é meu trabalho,como é que eu não iria gostar ?
Quando se publica um livro,ou por qualquer outro motivo,ligado ou não ligado a mim,falo de literatura,evidentemente.O que acontece é que considero que os problemas do mundo não se esgotam na literatura.São tão graves e tão importantes que,se tenho a oportunidade,até quando trato de literatura trato de abordá-los.Isso não é dizer que não gosto de falar de literatura”.

14
GMN : Uma crítica publicada numa revista brasileira sobre o livro “A Caverna” diz que “a literatura refinada de Saramago dessa vez dá lugar a um sermão”.O senhor acha que a denúncia das mazelas do mundo pode eventualmente comprometer a qualidade literária ?
Saramago : “Tenho que dizer que nunca comento qualquer crítica.É um princípio meu.Eu escrevo o que entendo.O crítico escreve o que entende.
Comentários meus sobre uma crítica ninguém encontrará,em toda a minha vida”.

15
GMN : Uma velha pergunta : o senhor escreve para fugir da morte ?
Saramago : “Não,porque ninguém foge da morte.É uma ilusão.O que pode acontecer é pensarmos – e devo ter pensado – que se escreve porque não se quer morrer.Parte-se do princípio de que a obra vai ficar,não se sabe por quanto tempo.
Hoje não sou tão ambicioso.Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas”.

16
GMN : A que escritor brasileiro vivo ou morto o senhor concederia o Prêmio Nobel de Literatura ?
Saramago : “A um vivo e a dois mortos.Não me importaria nada dar a eles o Prêmio,se eu fosse membro da Academia Sueca.O vivo é Jorge Amado.Os que já não estão vivos são Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.Sem nenhuma dúvida,eu,membro da Academia Sueca,atribuiria o Prêmio a qualquer um dos três.Não foi assim que aconteceu”.

17
GMN :O senhor escreveu,no livro “A Caverna”,que as frases de efeito são “uma praga maligna”.Qual é a sua frase de efeito predileta ?
Saramago :”Tento evitar,o mais que posso,as frases de efeito.Mas nem sempre consigo fugir à tentação de escrever uma.Só espero é que,se elas são só frases de efeito,as pessoas que as leiam ou as ouvem não as tomem demasiado a sério”.

18
GMN : Se o senhor fosse definir o Brasil numa só palavra,que palavra o senhor usaria ?
Saramago : “Como é que se pode definir numa só palavra ? Se pudesse usar nem que fossem duas palavras,talvez eu conseguisse.Dê-me três palavras...”.

19
GMN : Quais seriam,então,as três palavras ?

Saramago : “Eu definiria assim o Brasil : “Quando se decidem ?”.

20
GMN : Quase aos oitenta anos,qual é a grande pergunta que o escritor José Saramago não conseguiu responder até hoje ?
Saramago : “A pergunta que não consigo responder é muito simples :para quê ? Para que tudo isso ? Vou morrer sem encontrar a resposta.Creio que ninguém nunca encontrou”.

(2001)


Posted by geneton at 12:30 PM

março 25, 2004

CHICO BUARQUE

CHICO BUARQUE,O EX-"MOTORISTA" DE GARRINCHA,CRIA UMA TESE PARA EXPLICAR POR QUE JÁ NÃO COMPÕE TANTO :
"TALVEZ A MÚSICA POPULAR SEJA UMA ARTE DE JUVENTUDE"


“(....)O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
num fundo de armário,
na posta-restante,
Milênios,milênios
No ar

E quem sabe então
o Rio será
alguma cidade submersa.
Os escafandristas virão
explorar sua casa,
seu quarto,suas coisas,
sua alma,desvãos

Sábios em vão
tentarão decifrar
o eco de antigas palavras,
fragmentos de cartas,poemas,
mentiras,retratos,
vestígios de antiga civilização”

( “Futuros Amantes”)

Somente um poeta inspiradíssimo escreveria versos assim. Mas o autor desses versos não se considera poeta.Nem inspiradíssimo.O que dizer desses versos :

“Mesmo que você fuja de mim
por labirintos e alçapões
saiba que os poetas,como os cegos,
podem ver na escuridão.
E eis que menos sábios do que antes
os seus lábios ofegantes
hão de se entregar assim :
-Me leve até o fim
-Me leve até o fim
Mesmo que os romances sejam falsos
como o nosso
são bonitas,
não importa,
são bonitas as canções.
Mesmo sendo errados os amantes
seus amores serão bons”

(“Choro Bandido”)

Não,não adianta.O compositor de música popular Chico Buarque de Holanda não se declarará Poeta. Mas até as pedras do calçadão do Leblon – por onde ele transita de vez em quando em passo apressado para se livrar dos chatos e queimar calorias - sabem que os versos de Chico Buarque não se enquadram na mera definição de “letras de música”. As rimas que o poeta Chico Buarque engendra há uns bons trinta e cinco anos (!) teriam vida própria se,desgarrados da música,pousassem nas páginas do livro que ele,provavelmente , jamais lançará. Para todos os efeitos , o livro já foi escrito (é só reunir o caminhão de rimas inesperadas,achados brilhantes,metáforas belíssimas que ele foi armazendo pelo caminho). Mas permanecerá inédito, em forma de páginas soltas nas faixas dos discos. O próprio Chico Buarque se encarregou de esclarecer, no site que mantém na Internet (chicobuarque.com.br) : “Nunca publiquei nem creio que venha a publicar um livro de poemas.Não escrevo poemas”.
Assim caminha a humanidade.
A fábrica de versos de Chico Buarque pode ter, com o tempo,reduzido o volume de produção. O dono da fábrica é o primeiro a reconhecer essa evidência estatística. Mas a qualidade dos versos se manteve intacta. Basta pegar um ou outro exemplo recente. Em “ Xote da Navegação”,letra que escreveu sobre música de Dominguinhos , Chico Buarque devaneia como se fosse o passageiro de uma barcaça que vai passando por vilarejos na beira de algum rio brasileiro. Aos olhos de quem viaja na barcaça, a paisagem é que se move :

“(...) Para quem anda na barcaça
tudo, tudo passa
Só o tempo não.

Passam paisagens furta-cor
Passa e repassa o mesmo cais
Num mesmo instante eu vejo a flor
que desabrocha e se desfaz

Essa é a tua música
é tua respiração
mas eu tenho só teu lenço
em minha mão

Olhando meu navio
o impaciente capataz
grita da ribanceira
que navega para trás.

No convés,eu vou sombrio
cabeleira de rapaz
Pela água do rio
Que é sem fim
E é nunca mais”

O primeiro sinal de vida de Chico Buarque em 2001 veio nas letras que escreveu para as músicas de Edu Lobo em “Cambaio”,musical de João e Adriana Falcão. Os tietes podem respirar aliviados : o Padrão CBH de Qualidade brilhou de novo. Um trecho de “Canção Que Existe”, pérola da nova safra :

“Deve haver algum lugar
um confuso casarão
onde os sonhos serão reais
e a vida não.
Por ali reinaria meu bem
com seus risos,seus ais,sua tez
E uma cama onde à noite
sonhasse comigo
talvez

Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
onde os sonhos extraviados
vão parar
entre escadas que fogem dos pés
e relógios que rodam para trás.

Se eu pudesse encontrar meu amor
não voltava
jamais”.

Quem tentar extrair do entrevistado Chico Buarque de Holanda circunvoluções teóricas sobre a Música Popular Brasileira ou sobre a Poesia ou sobre a Política certamente voltará para casa de mãos abanando. Porque Chico Buarque, tímido profissional, usará a timidez como escudo para escapar pela tangente. O homem não é dado a digressões – nem um pouco. Diante de jornalistas em geral, Chico é um caso clássico de Síndrome do Silêncio Compulsivo : em situações normais,prefere se calar. Só fala – provavelmente incomodado – quando enfrenta a rodada de entrevistas programadas pela gravadora para badalar um novo lançamento. Fora daí, o assessor de imprensa de Chico Buarque, Mário Canivello , trabalha dobrado para ir se livrando dos incontáveis pedidos de entrevistas. Estrela de primeira grandeza, Chico Buarque pertence à constelação de personalidades que despertam atenção em qualquer época, sob qualquer circunstância – não apenas quando lança um disco. Ninguém precisa ser psicólogo profissional para constatar que Chico Buarque dispensaria de bom grado essa honraria.
A palavra unanimidade já foi escrita inúmeras vezes ao lado do nome de Chico Buarque de Holanda. Mas um crítico cri-cri poderia,se quisesse,repetir em relação a Chico Buarque o que o poeta e crítico Mário Faustino disse de Carlos Drummond de Andrade : a presença de Chico Buarque de Holanda na vida brasileira – assim como a de Carlos Drummond – seria ainda maior se ele usasse o enorme prestígio de que é dono para intervir com maior frequência no debate cultural.
-“A poesia de Carlos Drummond – disse Faustino,em célebre artigo publicado no suplemento literário do Jornal do Brasil -é documento crítico de um país e de uma época (no futuro,quem quiser conhecer o geist brasileiro,pelo menos entre 1930 e 1945,terá de recorrer muito mais a Drummond do que a certos historiadores,sociólogos,antropólogos e “filósofos” nossos...) e um documento humano “apologético do Homem”. Não parece restar dúvida de que Carlos Drummond de Andrade é um dos nossos raros masters,ao lado de Camões,Fernando Pessoa,Jorge de Lima.Já apontamos aquilo que consideramos o seu grande pecado de omissão : o não se ter nunca realmente interessado(e hoje em dia ainda menos) pelo desenvolvimento da poesia brasileira como forma de cultura.O não propagar.O não ensinar,por um de tantos meios.O não lutar abertamente contra os inimigos de nossa poesia : a facilidade,as falsas glórias,a caótica escala de valores”.

Diante de tal cobrança – se um dia lhe fosse feita -, o master Chico Buarque poderia responder que já disse em suas músicas tudo o que tinha a dizer - assim como Drummond fez em seus poemas e crônicas. Quem discordar que atire a primeira pedra.

Fora dos palcos e estúdios, tenta levar uma vida que nem de longe lembra a de uma estrela. Observadores sortudos podem flagrar o Poeta empenhado em fazer caminhadas solitárias pelo calçadão da praia do Leblon – cenário que escolheu para manter a forma desde que se mudou do Jardim Botânico. Volta e meia é personagem de uma cena tipicamente carioca,como esta,testemunhada pelo locutor-que-vos-fala : Chico Buarque chega sozinho para almoçar em um self-service do Jardim Botânico, o Fazendola. Como qualquer mortal, enfrenta a fila do caixa com a bandeja na mão. Depois, flana pelo salão em busca de uma mesa vazia. As testemunhas da cena cumprem com louvor o papel que lhes cabe : todo mundo faz de conta que Chico Buarque não é Chico Buarque.Deve ser um sósia. Assim,a estrela pode almoçar em paz,sem ser importunado por estranhos. Em outro território, certamente a presença de Chico provocaria compreensível alvoroço. Não aqui. A aparente indiferença faz parte do Código de Conduta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Quando já se dirigia ao portão de saída do self-service , Chico Buarque foi abordado pela primeira vez desde que chegou para o almoço. Quatro moças pedem autógrafo. O pedido é atendido em guardanapos.

Se um dia resolvesse escrever um livro de memórias – remota possibilidade que ele,no entanto, não descarta inteiramente – Chico Buarque teria assunto para encher mil páginas. Se quisesse,reuniria cenas incontáveis da convivência com gente que,como ele,virou mito. O que dizer da amizade com Garrincha no exílio,na Itália ? Chico serviu de motorista de luxo para o gênio das pernas tortas.Enquanto circulavam, Garrincha ia confessando uma surpreendente admiração por João Gilberto.

Nesta entrevista, Chico revisita cenas marcantes como estas –em companhia de Garrincha. Fala da primeira e única vez em que viu o então ditador Emílio Garrastazu Médici. Desmente um mito : o de que teria escrito os versos “você não gosta de mim,mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel. Diz qual é a música de outro compositor que lhe desperta um sentimento parecido com a inveja.

Repórter que se preza deve evitar manifestações de tietagem explícita. Não faz bem à profissão. É recomendável que se mantenha um mínimo de “distanciamento crítico” em relação ao entrevistado. Caso contrário, a entrevista corre o sério risco de se transformar numa dessas conversas televisivas em que entrevistador e entrevistado parecem duas comadres plantando abobrinhas – um prova insuportável para a paciência dos senhores espectadores. Devo confessar, no entanto, que cometi um pequeno pecado : terminada a entrevista em que Chico,receptivo e simpático,disfarçou com extrema habilidade o incômodo de encarar um repórter, pedi ao Poeta um autógrafo numa foto que descobri,empoeirada,em meus Arquivos Implacáveis. Tirada no já remotíssimo ano de 1972, no camarim do Teatro Santa Isabel, no Recife,a foto mostra o locutor-que-vos-fala em início de carreira,aos 16 anos de idade,importunando Chico Buarque com um pedido de entrevista – felizmente atendido. Lá se vão (quase) vinte e nove anos. O autor da foto – acredite quem quiser – foi um soldado da polícia chamado Chateaubriand – que, nas horas vagas, saía do quartel para dar expediente como free-lancer no Departamento Fotográfico do Diário de Pernambuco. Dois detalhes inesquecíveis.Primeiro : Chateaubriand se locomovia numa velha lambreta que exibia, nas laterais,um adesivo com a palavra “reportagem” - sinal de que exigia respeito onde quer que chegasse. Segundo : ia trabalhar fardado de soldado. Deve ter causado estranheza a figura de um soldado com uma máquina fotográfica nas mãos nos camarins do Teatro Santa Isabel na noite do show de Chico Buarque – uma figura detestada pelo regime militar. Em todo caso, cumprimos a missão a contento. Voltei à redação do Diário com um punhado de frases,ditas por um Chico que curava o nervosismo antes de entrar no palco com goles de uma bebida que não levava gelo. Devia ser uísque. Chateaubriand fotografou o astro. Ao ver a foto, tanto tempo depois, Chico Buarque diz, assustado : “....Mas é você ? !!!”.
Desgraçadamente, era. O autógrafo sobre o flagrante diz : “Para o jovem Geneton, um abraço do jovem Chico Buarque”.

O Poeta que prefere não falar vai responder, a partir de agora, a quarenta perguntas. São lembranças inéditas - um capítulo do livro de memórias que,possivelmente,jamais será escrito.
Gravando !


GMN : Que música de outro compositor você daria tudo para ter feito ?

Chico Buarque : “Eu não daria tudo para ter feito música nenhuma de outro compositor.Mas existem músicas que amo.Gosto mais do que as minhas.Eu não gostaria de ter feito uma música alheia.É uma coisa que não me ocorre.Porque o maior prazer da música está exatamente no momento em que você a cria. Nunca mais vai ser a mesma coisa.Quando você ou repete nos shows, não vive a mesma sensação. Ignoro qual terá sido esse prazer em outro autor. Prefiro,então,sentir o prazer que sinto a cada composição minha,por menor que seja”.

GMN : Você poderia,então,citar uma música de outro autor que você inveja ?

Chico Buarque : “Um milhão de músicas.Não tenho uma preferida,mas agora que você falou,me bateu uma na lembrança : “Águas de Março” – de Tom Jobim. É uma música que eu não diria que gostaria de ter feito,porque é impossível que eu fizesse uma música dessa.É outra cabeça.Mas é uma música da qual eu adoraria conhecer o prazer e o mecanismo da criação,assim como músicas de Noel Rosa,Cartola,Caetano Veloso,Gilberto Gil,Milton Nascimento. Recorro a um recurso : tenho parceiros que admiro muitíssimo – inclusive o próprio Tom.Ao me fazer parceiro,eu crio a música com eles.Ao fazer a letra para uma música alheia,eu estou me apropriando um pouco dessa música - que não é minha”.


GMN : Depois de fazer “Paratodos”,você passou anos sem lançar um disco com músicas inéditas.Disco de Chico Buarque agora é feito Copa do Mundo – só de quatro em quatro anos ?

Chico Buarque : “Pior ! Agora é de cinco em cinco. Os lançamentos vão se espaçando.O trabalho vai ficando mais difícil mas também mais prazeroso.Quando termina,você se sente cansado,mas satisfeito.As músicas saem,talvez,com menos espontaneidade,com mais intensidade” .

GMN : A que você atribui o espaçamento cada vez maior entre um disco e outro ?

Chico Buarque : “Talvez a música popular seja uma arte de juventude.Imagino que seja,porque o consumidor de música popular é,sobretudo,o adolescente,o jovem de vinte a trinta anos.Depois,começa a diminuir. Já o autor de música popular tende a ser mais seletivo com o tempo. Faz uma coisa ou outra,mas não com a exuberância que tinha aos vinte anos de idade. Quando você tem vinte anos,você tem um baú de música inéditas. Depois,as músicas vão escasseando.Você fica mais exigente.Chega,então,um tempo em que a gente começa a fazer música popular com o resto de juventude que se tem.Depois,o melhor a fazer talvez seja imitar Dorival Caymmi – que se recolheu aos seus pincéis e suas tintas.Talvez seja melhor procurar outro afazer,outra ocupação”.

GMN : Não é o que você vem fazendo nos últimos anos,com a dedicação cada vez maior à literatura ?

Chico Buarque : “A literatura é uma alternativa. Talvez eu tenha me inspirado em Caymmi ao pensar nisso : ter um recurso para continuar criando sem depender da juventude - que é o motor da música popular”.

GMN : Você diz que o futebol tem momentos de improviso e genialidade que nenhum artista consegue repetir.Mas em alguma de duas músicas você teve o sentimento de improviso que você só encontra no futebol ?

Chico Buarque : “É possível encontrar algo semelhante ao futebol no jazz,na música instrumental.Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador.De qualquer forma,há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente,vem uma idéia. Você se pergunta : de onde veio ? É o que acontece com o futebol : é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável”.


GMN : Que música ou que verso despertou em você,na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible ?

Chico Buarque : “Você vai trabalhando,trabalhando,trabalhando em cada música,até que há um “clique” : aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz” .É como se fosse algo que viesse de fora”.

GMN : Quando estava exilado na Itália,você teve contato com Garrincha.É uma página pouco conhecida da biografia de Chico Buarque. Vocês conversaram sobre futebol ou sobre música ?

Chico Buarque : “É óbvio que eu falava sobre futebol – e ele falava de música....Acontece também com Pelé – que adora música.Mas Garrincha era muito musical.Tive um contato maior com ele em Roma.A gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol.Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes.Gostava de João Gilberto.Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória,mais ingênua,talvez.Mas não ! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto”.

GMN :Que tipo de comentário ele fazia sobre João Gilberto ?

Chico Buarque : “Garrincha comentava gravações,se referia a detalhes,lembrava de como João Gilberto cantava uma determinada música. Para me mostrar,Garrincha cantarolava – não muito bem – mas mostrava que tinha a lembrança das músicas de João Gilberto.Referia-se à maneira como João Gilberto cantava as músicas. João é um inventor.Não é um compositor.Talvez seja mais do que compositor,porque inventa a partir de uma música alheia.E Garrincha falava exatamente disso : a maneira como João Gilberto cantava -talvez uma cantiga mais conhecida que ele tivesse reinterpretado,como “Os Pés das Cruz”. Garrincha salientava a maneira como João Gilberto reiventava um samba”.

GMN : É verdade que você dirigia automóvel para Garrincha na Itália ?

Chico Buarque : “Eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma.Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat.Era impressionante.As pessoas paravam na rua.Garrincha era muito popular.Isso aconteceu entre 1969 e 1970.Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo.Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962.Mas ele ainda era muito conhecido na Itália”.

GMN : “Se você pudesse escolher entre ser um grande nome da Música Popular Brasileira e um grande craque da seleção, qual das duas profissões você escolheria ?

Chico Buarque : “Nunca escolhi sem músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos quatorze,quinze anos de idade,eu quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão.Mas eu tinha essa ilusão,na época,com bastante segurança.Tornei-me músico um pouco por acaso.
Devo dizer que o sonho de ser um craque
permaneceu na minha cabeça.Ainda hoje acredito que seja”.

GMN : Você chegou a tentar ser um jogador de futebol profissional ?

Chico Buarque : “Eu,que jogava tanto,um dia fui ao Juventus,na rua Javari,em São Paulo,para fazer um teste.Mas eram milhões de candidatos fazendo o teste....Comecei a perceber que ia não dar para mim. Depois de esperar,esperar e esperar,fui embora.Não cheguei nem a ser chamado para fazer o teste,porque acharam que eu não tinha físico para ser jogador”.

GMN : Mas por que você escolheu logo o Juventus para fazer um teste – e não um time grande,como o Palmeiras,o Corinthians ou o São Paulo ?

Chico Buarque : “Porque eu achava que,num time mais fraco,eu teria uma vaga na certa....(ri)”.

GMN : “Você,como especialista em futebol,jogador amador,técnico de um time de futebol de botão chamado Politheama,poderia escalar a seleção brasileira de tods os tempos de Chico Buarque de Holanda ? Qual é o grande time ?
Chico Buarque : “É impossível.A brincadeira de escalar times de diversas épocas é apenas uma brincadeira.Porque você não pode comparar o futebol que se joga hoje com o futebol que se jogava há dez anos.Imagine vinte anos ! A comparação é falsa. Não se imagina o que seria Garrincha hoje nem se imagina o que seria Romário há vinte anos.É uma comparação absurda”.

GMN : Você tem no futebol ídolos que não são tão populares quanto Pelé e Garrincha,como Canhoteiro,por exemplo....

Chico Buarque : “Canhoteiro,Pagão.Fiz uma música chamada “O Futebol” dedicada a uma linha utópica – Mane Garrincha,Didi,Pagão,Pelé e Canhoteiro. Temos nossos ídolos particulares,aqueles que a gente pensa que são só nossos,porque ninguém conhece.Pelé e Garrincha todo mundo da minha idade viu jogar.Quando eu morava em São Paulo,via jogadores como Canhoteiro e Pagão.Não havia televisão em rede nacional. O pessoal do Rio,então,não conhecia esses jogadores.Quando falo de Canhoteiro e Pagão,nem sempre conhecem,aqui no Rio.Outros ídolos aqui do Rio nem sempre eram conhecidos em São Paulo. Quando eu voltava para casa em São Paulo,depois de passar férias no Rio,por volta de 1955,antes da Copa,portanto,eu falava de Garrincha – e ninguém sabia quem era”.

GMN : Quando criança –ou adolescente- você era daquele tipo de torcedor que vai ver o jogador descendo do ônibus na porta da concentração ?

Chico Buarque : “Eu fazia isso tudo,porque morava perto do estádio do Pacaembu.Eu me lembro de ter visto a seleção de 1958 concentrada.Fui lá peruar,ficar com cara de bobo olhando para as “figurinhas”.Porque eu conhecia os jogadores dos álbuns de figurinhas- muito pouco de televisão.Não tinha televisão em casa.A gente não via futebol pela TV : ia ver no estádio.Eu os jogadores de longe,durante os jogos.Ver de perto um jogador era um acontecimento”.

GMN : De qual dos jogadores que você viu de perto você guardou a lembrança mais forte ?

Chico Buarque : “De Almir,o Pernambuquinho – que ficou olhando para mim depois que entrou no ônibus.Eu estava ali de boca aberta,com cara de babaca,olhando os jogadores.Almir,então,começou a caçoar de mim.Depois de ter sido chamado na primeira convocação,num grupo de quarenta e quatro jogadores,Almir terminou nem indo para a Copa da Suécia”.

GMN : Você,ainda criança, viu a famosa seleção brasileira de 1950 jogar em São Paulo contra a Suécia,nas vésperas da grande derrota contra o Uruguai,no Maracanã. A derrota de 1950 deixou algum trauma em você ?

Chico Buarque : “Trauma não posso dizer que tenha deixado,porque eu tinha seis anos de idade.Mas me deixou assustado,porque ouvi o jogo pelo rádio.O Maracanã,”o maior estádio do mundo”,era um sonho na minha cabeça.Eu me lembro exatamente de que o locutor,chamado Pedro Luís,disse assim quando o Brasil fez um a zero contra o Uruguai : “Gol de Friaça ! Quase que vem abaixo o Maracanã !”. Eu pensei que o estádio viesse abaixo mesmo ! Pensei que o estádio estivesse caindo,com duzentas mil pessoas.Não prestei atenção ao jogo.Fiquei pensando no Maracanã tremendo com aquelas pessoas todas ali dentro”.

GMN : Quem levou ao estádio ,em São Paulo,para ver o jogo do Brasil contra a Suiça pela Copa de 50 ?

Chico Buarque : “Quem levou foi minha mãe,porque meu pai não gostava muito de futebol”.

GMN : O futebol tem uma presença enorme na vida do brasileiro,mas aparece pouco como tema de músicas.É desproporcional a relação entre a importância do futebol e a quantidade de músicas que tratam do tema. Por que ?

Chico Buarque : ”Não sei.O futebol é próximo da fita do brasileiro,assim como os jogadores sempre foram muito próximos dos músicos.Jogador de futebol tem mania de batucar,canta na concentração.Isso não é de hoje,existia já nos anos cinqüenta.Hoje,o pessoal de pagode se encontra com o pessoal da seleção para gravar”.

GMN : Se a gente for contar as músicas suas que tratam de futebol,vai ver que são poucas. Qual é a dificuldade em tratar de futebol ?

Chico Buarque : “Não é só música.Há pouca literatura tratando de futebol,há pouco cinema. Dá para entender por que há pouco futebol no cinema : é difícil reproduzir com imagens o que já é tão forte na vida real. Teoricamente,traduzir o futebol em palavras ou em música seria fácil do que em cinema.Prometo fazer mais umas duas ou três”.

GMN : Você jogaria pelo Fluminense hoje ?
Chico Buarque : “Claro que jogaria ! Tenho vaga naquele time”.

GMN : Quando joga futebol,que posição você ocupa ?

Chico Buarque : “Jogo em todas.Mas sou mais de preparar o gol. Sou um centro-avante recuado”.

GMN : Por que é que você se apresentava como jogador da seleção brasileira numa viagem que você fez ao Marrocos ? Alguém desconfiou da mentira ?


Chico Buarque : “Quando você diz que é brasileiro no exterior,o pessoal começa a falar de futebol.
É uma maneira de ganhar ponto com eles.Numa conversa com motorista de táxi,por exemplo,o assunto futebol logo aparece se você diz que é brasileiro.Então,eu assumia a identidade de jogador de futebol até que um estrangeiro disse : “Ex-jogador,não é ? “....Eu disse que tinha sido convocado para a seleção de 82 : tinha sido reserva de Sócrates”.

GMN : O pessoal acreditava ?

Chico Buarque : “Não !” (rindo)

GMN : Você quebrou o perônio e rompeu os ligamentos jogando futebol. Disse,então,que não estava conseguindo compor porque não sabe fazer música parado. Você só compõe andando ?

Chico Buarque : “Não apenas compor – eu também só sei pensar andando. Se você ficar parado,não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo.Se você tem qualquer problema,dê uma caminhada -porque ajuda,inclusive a ter idéias. Se a música ficou emperrada ou se a idéia para um livro não vem ,a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama.Eu não conseguia ter idéias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdido pela imobilidade”.

GMN : Você então associa o ato de andar ao ato de compor ?

Chico Buarque : “Associo o ato de andar ao ato de pensar,criar e compor”.

GMN : Você já teve o “estalo” para alguma música jogando futebol ?

Chico Buarque : “Fazer música jogando futebol não dá,porque durante a partida você fica empenhado em suas jogadas geniais.Mas caminhando tive a idéia de várias coisas.A verdade é a seguinte : você compõe com o violão,mas quando o momento em que o processo fica encrencado,você tem de sair andando. Não pode ficar parado,com o violão,a vida inteira. Então,para resolver impasses,o melhor é caminhar”.

GMN : Diz a lenda que você escreveu aquele refrão “você não gosta de mim/mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel – que tinha uma filha.Somente você pode tirar essa dúvida : é verdade ?

Chico Buarque :”Eu nunca disse isso.As pessoas inventam. O engraçado é que a invenção passa a fazer parte do anedotário. Nunca imaginei que pudesse fazer uma música pensando num general ! A gente não faz isso. Você pode fazer uma música com raiva de alguma coisa : acontecia na época da ditadura militar,porque,com a censura,a política interferia na criação,o que nos incomodava.Mas você não ia dedicar uma canção a um pessoa. Quando se falava “você”,não se estava referindo a um general.Era uma generalidade”.

GMN : Por falar em generais : o general Garrastazu Médici freqüentava estádios no tempo em que você sofria os horrores da censura. Alguma vez você cruzou com ele num estádio de futebol ?

Chico Buarque : “Vi uma vez,porque eu estava chegando ao portão que dá nas cadeiras do Maracanã.De repente,chegou uma turma de batedores,com sirenes,com a truculência que é um pouco própria de autoridades,mas na época,era muito mais acentuada.”Afasta todo mundo ! “. Médici desceu do carro.Fiquei vendo de longe aquele figura”.

GMN : Você já era famoso.Algum dos batedores do general reconheceu você por acaso ?

Chico Buarque : “Batedor não reconhece ninguém : não olha para a cara de ninguém na hora de sair abrindo espaço”.

GMN : Em 1978,você participou da campanha do então candidato ao senado Fernando Henrique Cardoso,em São Paulo. Numa declaração publicada em 1998 em livro,Fernando Henrique diz que você é um crítico repetitivo.Como é que você recebeu essa crítica ?

Chico Buarque : “Achei engraçado no começo. Mas não dei a importância que às vezes dão.Parece que fiquei ofendido.Não. É normal,é natural que um político tenha opiniões políticas até a respeito de artistas. Diz o que interessa naquele momento.É da natureza de um político.Fernando Henrique sabe o que diz e tem o direito de gostar de quem quiser.Nunca imaginei que ele gostasse de mim. Achei divertida e engraçada a ênfase com que ele gosta de uma pessoa e pode deixar de gostar.Mas é a opinião de um político.Fernando Henrique diz que não gosta mais de mim.Antes,gostava”.


GMN : É verdade que você tem um irmão alemão ?
Chico Buarque : “Eu tenho um meio- irmão alemão.Não sei se ainda tenho.Mas tive. O meu pai teve um filho alemão antes de se casar.Depois,perdeu de vista,porque voltou para o Brasil,onde se casou.Não se relacionou mais com a mulher nem com o filho que teve na Alemanha.A última notícia que ele teve foi durante a guerra. A mulher pediu que o meu pai enviasse documentos provando que não tinha sangue judeu até a segunda ou terceira geração.O meu pai providenciou.Depois da guerra,não teve notícias”.

GMN : Você chegou a procurar esse irmão ?

Chico Buarque : “Uma vez,quando fui a Berlim,tive a impressão de estar vendo um irmão sempre em alguma parte – alguém que pudesse parecer comigo ou com meu pai. Tive a impressão de que ele poderia estar ali. Não sei explicar o que aconteceu.Não se a mãe não contou a ele quem era o pai.A mulher pode ter mudado de nome depois de se casar de novo.Um pai alemão pode te-lo adotado.O engraçado é que sempre perguntavam ao meu pai – que era muito branco de pele : “Por acaso o senhor é filho de alemão ? “. E ele dizia : “Não.Sou pai de alemão”.

GMN : O seu pai disse,num artigo,que você,quando era estudante,gostava de desenhar cidades.Havia sempre uma fonte no meio da praça,nas cidades que você desenhava. Você,que já foi estudante de arquitetura,ainda hoje desenha ou imagina alguma cidade nas horas vagas ?

Chico Buarque : “Desenho cidades enormes,gigantescas,com fontes,com praças,com nomes,com ruas.Quando não desenho,penso.Sonho muito com cidades. Os meus sonhos misturam cidades que conheço.Também sonho com cidades que não conheço e com cidades que imagino.São as melhores de todas”.

GMN : Você batizou o seu time de futebol de campo de Politheama – que era o nome do seu time de futebol de botão. Que nomes você dá às suas cidades imaginárias ?

Chico Buarque : “Não vou contar.
As cidades têm nomes.Mas não posso nem pronunciar aqui.Vou passar vergonha” .

GMN : Por quê ?

Chico Buarque : “Porque são nomes que têm consoantes que nem existem.São idéias bobas”.

GMN : Você tem a fama – falsa- de tímido e a fama – verdadeira – de arredio.Você não é de estar todo dia nos jornais ou na televisão. Qual é o maior incômodo que a fama traz ? É o assédio dos fãs,a invasão de privacidade ou a curiosidade da imprensa ?

Chico Buarque : “Assédio de fãs,no meu caso,não existe,porque não ando cercado nem de óculos escuros. Ando naturalmente na rua. As pessoas não perturbam muito.Se você andar como uma pessoa qualquer,você fica sendo uma pessoa qualquer. As pessoas me reconhecem,dizem “olá,Chico,tudo bem ? “.Não passa disso.Não vou dizer que é mau.É bom,é simpático,é gostoso.Não tenho nada contra”.

GMN : Mas a imprensa incomoda você de vez em quando...

Chico Buarque : “Quando quer,a imprensa incomoda” .

GMN : É por isso que você dá tão poucas entrevistas e fala tão pouco com os repórteres ?

Chico Buarque : “Eu falo bastante.Falo mais do que devia.Já estou falando aqui há meia-hora com você ! Mas é que não tenho tanto assunto.Tenho preguiça de falar. Gosto mais de fazer outras coisas”.


GMN : “Se você fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda numa enciclopédia de música popular,qual seria a primeira frase ?

Chico Buarque(rindo) :”Êpa !. Não sei.Podia ser “ êpa”....

GMN : Com interrogação ou com exclamação ?

Chico Buarque : “Com interrogação.A primeira palavra seria : êpa ? “.



(1998/2001)

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Posted by geneton at 11:06 PM

março 23, 2004

CABRERA INFANTE

O MAIS IMPORTANTE EXILADO CUBANO ATACA TODAS AS FORMAS DE LITERATURA ENGAJADA : "A POLÍTICA MATOU A LITERATURA LATINO-AMERICANA"


LONDRES - A barbicha que ornamenta o queixo do mais famoso exilado cubano,o escritor Guilhermo Cabrera Infante,dá a ele um certo ar de
Leon Trotsky,o revolucionário abatido a golpes de picareta por ordem da
patrulha stalinista. Sisudo na hora de tirar fotos, Cabrera Infante exerce,no
entanto,uma fina ironia na hora de falar de suas três grandes paixões -
a literatura,o cinema e a atriz Melanie Grifith. Logo transforma-se num
guerrilheiro verbal na hora de atacar os seus três grandes desafetos : Fidel
Castro,Fidel Castro,Fidel Castro - uma reconhecida obsessão.

Aos 67 anos de idade,pai de duas filhas,autor de livros como ''Tres Tristes Tigres'',''La Habana para un Infante Difunto'' e ''Mea Cuba'',Cabrera Infante chegou a dirigir o conselho de cultura da recém-instalada revolução cubana,no início dos anos sessenta,mas escolheu o caminho do exílio ao desconfiar da vocação tirânica do comandante Fidel.

Vive na Inglaterra desde 1966,num apartamento térreo em Gloucester Road. Nesta entrevista,concedida em meio ao caos em que se transformou a sala do apartamento em obras,Cabrera Infante bate forte em Gabriel Garcia Marques,revela o que ouviu de Fidel Castro durante um sobrevôo na floresta amazônica e confessa por que preferiu perder a chance de ouro de conhecer Melanie Grifith pessoalmente. Dramático,sentencia : a política é a maior inimiga da literatura.
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GMN : O senhor diz que perdeu o interesse pela obra de Gabriel Garcia Marquez quando um personagem começou a levitar,logo nas primeiras páginas. Como já tinha visto a serie da TV ''A Noviça Voadora'',não se animou a continuar a leitura.A hostilidade que o senhor exerce em relação a Gabriel Garcia Marquez não tem também razões políticas,já que ele apóia um governante que o senhor detesta - Fidel Castro?

Cabrera Infante :..''Mas a adesão de Garcia Marques a Fidel
Castro é posterior à leitura que fiz de ''Cem Anos de Solidão'' ! Se me
interesso tanto por Jorge Luis Borges,não poderia me interessar por ''Cem Anos de Solidão'',um livro folclórico.Se o problema é encontrar um livro que
trabalhe com elementos sul-americanos surpreendentes,então prefiro ''Grande
Sertão : Veredas'' - de Guimarães Rosa - uma obra que,lamentavelmente,ninguém
conhece. Além de ser um livro genuíno,''Grande Sertão Veredas'' faz
contribuições extraordinárias à língua literaria.Vejo em Guimarães Rosa uma
solidez e uma consistência extraordinárias.Aquele mundo é realmente mágico ! .Nada a ver com ''realismo mágico'' e todas essas porcarias. É um mundo mágico que afeta a linguagem.Isto é que é importante.

Outros cultores do realismo mágico na América do Sul,como Isabel Allende,por exemplo,seguem fórmulas.Em Guimarães se encontra a verdadeira magia.Isto se encontra tambem em livros brasileiros anteriores,como Macunaíma - uma obra extraordinária.Já li mais de uma vez.

Minha primeira negação em relação à obra de Garcia Marquez vem de 1967.Sempre considerei seus livros de um folclorismo e um exotismo realmente desnecessários''.

GMN : ...Mas este desprezo por Garcia Marquez não teria também bases políticas,além das razões puramente literárias ?

Cabrera Infante :''A adesão de Garcia Marquez a Fidel Castro,tão pública e tão clamorosa,veio depois de ele ter ficado famoso como
escritor.Há antecedentes parecidos.Quando Hitler subiu ao poder em 1933,um escritor norueguês premiado com o Nobel,Knut Hamsun,foi a Berlim,para dar a ele a medalha de presente.Eis um exemplo de um escritor se manifestando de maneira imprópria diante de um tirano.Hoje,este escritor é virtualmente desconhecido. Hitler perdeu a guerra.Deixaram o escritor numa espécie de quarentena,em que ele permanece até hoje.O gesto de se associar tão de perto a um tirano é perigoso para um escritor.Porque tiranos têm finais violentos.Isto não é novo.Ja' acontecia na Roma dos césares,com Nero e Petronio. Grande cortesão,autor de Satiricon,Petronio sofreu justamente por
estar tão perto do tirano''.

GMN : Mas o senhor enxerga alguma virtude literária em Gabriel Garcia Marquez ?

Cabrera Infante :'' Não conheco a obra que Gabriel Garcia
produziu depois de ''Cem Anos de Solidão''.Fiquei vacinado.Toda essa pseudo-mitologia sul-americana se manifestava através de uma prosa que não me interessa.É a prosa da ''belle ecriture''.A mim me parece absolutamente detestável''.

GMN : Alguém que não conhece a obra de Garcia Marquez poderia esperar que um simpatizante do ''socialismo real'' produzisse um obra que seguisse os parâmetros do ''realismo socialista'', mas acontece que os livros de Garcia Marques apontam exatamente para a direção contrária - rumo ao delírio do chamado ''realismo mágico''....

Cabrera Infante(interrompendo) : ''...Mas os que
professaram o realismo socialista estavam todos sob uma tirania ! O realismo socialista foi produto da tirania de Stalin.Escrevia realismo socialista quem
era obrigado.Mas há escritores comunistas,como Jorge Amado,que não escrevem realismo socialista porque não são obrigados a tal,não existe uma tirania no Brasil.Pelo contrário : Jorge Amado também escreveu realismo mágico - e mais socialista não pode ser ! Apoiou Fidel Castro!

É preciso fazer uma distinção.O que aconteceu com escritores que produziram o realismo socialista aconteceu também com escritores que viveram sob Mussolini,na Itália : tiveram de seguir os ditados estéticos do fascismo.Outra coisa - muito diferente - é viver fora da órbita de um tirano,seja socialista ou fascista. Gabriel Garcia Marquez nao é um escritor cubano.O que acontece é que escritores cubanos são obrigados a seguir as várias formas que o realismo socialista pode assumir no trópico.É o caso de um escritor eminente,Alejo Carpentier.Tinha uma obra grande quando vivia fora de Cuba.Ao chegar lá,os livros que produziu,como ''A Sagração da Primavera'',''O Recurso do Método'' ou ''Concerto Barroco'',foram feitos para aprovação pelo Comitê Central do Partido Comunista Cubano''.

GMN : Jornais sempre citam o senhor como ''o mais importante exilado cubano''....

Cabrera Infante(interrompendo de novo ): ''Eu preferiria que me considerassem o mais importante escritor cubano - não o mais importante exilado,porque não tenho atividade política ! Sou um escritor.Projeto-me como um escritor.Vivo como um escritor.Meu problema com Fidel Castro é de ordem moral.Não tenho aspirações políticas para quando Fidel Castro desaparecer.Sequer contemplo a possibilidade de regressar a Cuba depois de queda de Fidel.A diferenca é esta.Há exilados eminentes que sao políticos praticantes''.

GMN : O sentimento de inveja é comum entre escritores.Gabriel Marquez é famoso também por ter ganho o Premio Nobel de Literatura. Se alguem imaginar que existe um sentimento de inveja entre vocês dois estará exagerando ?

Cabrera Infante : ''Não de minha parte ! A inveja é
genética.Ou se nasce invejoso ou se nasce desinteressado.Não tenho nenhuma
inveja literária.É algo que tenho de agradecer aos meus gens - mais do que à providência.Não entendo o que é a inveja literária.Outra coisa seria dizer que eu preferiria viver melhor ou que esta é uma casa modesta ou que eu gostaria
de ganhar milhões de dólares.É outra coisa.Mas inveja literária não !''

GMN : O senhor diz que Machado de Assis ''não tem rival''.Qual foi exatamente o livro que despertou tanta admiração ?

Cabrera Infante : ''Uso um trecho das ''Memorias Póstumas de Brás Cubas'' no epílogo de um dos meus livros - ''A Twentieth Century Job'',um volume de críticas de cinema.Isto aconteceu quando não muita gente se ocupava de Machado de Assis,pelo menos na órbita espanhola. A gente ve toda esta onda espanhola sobre romancistas do seculo XIX - que teriam sido grandes escritores. Se a medida for Machado de Assis,digo : não são !''
GMN : A condição de "dissidente" e "exilado" incorporou-se à vida a ao nome do senhor como um título.É uma maldição ou é uma bênção ter trocado Havana por Londres ?

Cabrera Infante :''Há uma inexatidão aí : não sou
dissidente.Sou exilado.Os dissidentes vivem no país de que dissentem.Há outros em Cuba que se encarregam desta tarefa.Sou simplesmente um exilado.Se eu levar em conta que aqui em Londres vivo uma vida
inteiramente livre,poderia considerar uma bênção o fato de ter chegado à gloria depois de ter escapado do inferno. Mas o exílio traz problemas.Um
exilado sempre carregará consigo a terra de onde veio.Terá sempre a idéia de
voltar.Tal como Havana,Londres é capital de uma ilha - mas Inglaterra não é
Cuba.A Inglaterra tem problemas graves de luz. Sobretudo no inverno,eu padeço dessa falta de luminosidade,dessa ausência de sol.Em Havana,o sol parecia sobrar,sempre.Para mim,hoje,esta é a maior diferença entre viver no trópico e viver em um clima destes.

De qualquer maneira,a gente precisa reimplantar a vida em
outro destino.Aqui em Londres trabalho à vontade.Você vê esta sala ? Eu me sento aqui para trabalhar,vejo atraves da janela toda essa gente agasalhada passar pela rua,com seus abrigos e seus guarda-chuvas.E eu aqui dentro -
de camisa - escrevendo.Não preciso ir para lugar nenhum para trabalhar.Assim,sou um privilegiado em relação a estes ingleses que passam lá fora,na rua.Simplesmente,eu me levanto,tomo o café da manhã e começo a escrever.A minha casa é o meu lugar de trabalho.É meu escritorio.É minha fábrica''.
GMN : Exilados cultivam o idioma como o único grande vinculo com o país de onde vieram.O senhor,no entanto,já escreve em inglês,depois de trinta anos na Inglaterra.Não teme se transformar num apátrida literário - um escritor de língua espanhola escrevendo em inglês ?

Cabrera Infante :''Um fenomeno interessante acontece aqui em casa.A TV fala em inglês.Os jornais que leio,os filmes que vejo,é tudo quase sempre em inglês.Mas tenho dentro de casa um reservatório de língua espanhola - a minha mulher,Mirian Gomes.Sempre conversamos em espanhol.Minhas filhas se comunicam entre elas em inglês,mas nós sempre nos comunicamos em espanhol .De qualquer maneira,também escrevo bastante
em espanhol,nos artigos que publico toda semana na imprensa espanhola ou mexicana.

Não aconteceu comigo o que acontece com escritores que aprendem um idioma estrangeiro mas já não falam a língua nativa.Não.A mim me interessa escrever em espanhol.Vejo como uma grande vantagem o fato de ter conquistado a língua inglesa sem ter perdido a língua espanhola''.

GMN : O senhor já descreveu o exílio como ''uma estrada sem chão''.Mas,sob o ponto de vista estritamente literário,o exílio pode ser fértil ?

Cabrera Infante : ''Há escritores que se realizam no
exílio,assim como há escritores que se destróem.Devo dar gracas a Fidel Castro por ter me convertido em escritor ! . Eu era um jornalista que fazia sucesso numa revista como crítico de cinema.Ao sair de Cuba,tive de inventar uma carreira de escritor.Porque nunca me interessara escrever livros.Eu gostava era do imediatismo do jornalismo.Mais ainda : eu gostava -e gosto- do ambiente de redação de jornal.Trabalhar numa redação de jornal é como estar próximo do paraíso.

Aqui em casa criei um ambiente mais ou menos parecido com o de uma redação.O telefone vive tocando.Fico escrevendo.Minha mulher chega para dizer que vai sair.Há ruidos. A televisão fica ligada. E eu escrevendo.É certamente igual a uma redação de jornal''.

GMN : O senhor já se considera um inglês ?

Cabrera Infante : ''Tenho um passaporte inglês.Pago meus impostos.Há um ditado que diz que a gente pertence ao lugar onde paga os impostos...Vivo aqui desde l966.Mas não me considero um inglês.Além de tudo,a literatura que me interessa na Inglaterra é a litetatura do passado - não a do presente.Interessa-me Josef Conrad.Ou H.J.Wells.Eu sinto admiração ate' George Orwell.Mas agora não sinto admiração por nenhum escritor inglês.O único escritor inglês que eu realmente admirava morreu há pouco : era Anthony Burgess - culto e interessante''.

GMN : Numa entrevista que fiz com ele,Antohny Burgess reclamava de que nós,latino-americanos,nos preocupávamos obsessivamente com política.O senhor concorda ?

Cabrera Infante : ''A política causou grandes danos a
escritores.Julio Cortazar,antes de se envolver tão ativamente com política cubana e nicaraguense,era outro.A partir do envolvimento,comecou a decair. O ''Livro de Manuel'',eminentemente politico,é muito inferior a obras anteriores.A política tem atrativos.Se você se entretém com a política,não sobrará espaco para nada mais.A literatura é exigente.

Faço uma previsão : a próxima literatura de importância no mundo de fala espanhola vai se produzir na Espanha.Porque os escritores espanhóis,uma vez morto Franco e uma vez passada a euforia da liberdade,se dedicaram completamente à literatura,enquanto que na América espanhola - não posso falar especificamente do caso do Brasil porque não conheço - todos os escritores jovens estavam preocupados em mostrar e demonstrar suas credenciais políticas.Isto foi fatal ! Não há um escritor interessante na América hispânica nos últimos tempos ! Todos se referem sempre a Garcia Marquez,Julio Cortazar,Juan Rulfo,Carlos Fuentes...todos já na faixa dos sessenta,setenta anos. Morto Borges,o grande exemplo literário,não havia outro na América hispânica''.

GMN : Escritores engajados dizem que exercem a militância política porque uma ditadura deve ser combatida
também pela literatura.O senhor acha que este sacrifício estético deve ser feito ?
Cabrera Infante : "Tenho combatido -e muito- Fidel Castro publicamente.Mas meus textos são sempre concebidos a partir de um ponto-de-vista literário. Não pode haver ataque mais direto e mais contundente à ditadura de Fidel Castro do que os que faco em ''Mea Cuba'',mas sempre em
termos literários.A escritura é essencialmente literária : nao é política nem panfleto. O maior inimigo da literatura é a política''.

GMN : O senhor se declarou apaixonado pela atriz Melanie Grifith...

Cabrera Infante (num suspiro) : "Ah,sim.....''

GMN : Já teve a chance de dizer pessoalmente que era apaixonado por ela ?

Cabrera Infante : ''Os dois - ela e Antonio Banderas(N: ator espanhol casado com a atriz) - me convidaram para almoçar.Eu disse que não estava me sentindo bem.A verdade é que não queria conhecê-la. É extraordinária.Naquele filme de Brian de Palma,''Dublê de Corpo'',a cena em que ela comeca a gritar sozinha numa estrada,sem se dar conta de que corre risco de vida,é um grande momento de Melanie Grifith como atriz''.

GMN : O senhor não foi ao almoço porque teve medo de sentir ciúmes ou porque não queria correr o risco de sofrer uma decepção ao vê-la pessoalmente ?

Cabrera Infante : "'Não fui porque prefiro tê-la na
imagem -não ''na carne'',como se diz em inglês.Prefiro guardar comigo a imagem da Melanie Grifith que vi nas telas''.

GMN : Entre suas admirações,alguém lhe decepcionou quando visto pessoalmente ?

Cabrera Infante : ''Uma das pessoas com quem tive uma enorme decepção depois de vê-lo pela televisão e pelos jornais foi Fidel Castro. Tivemos contato íntimo.Em abril de 59,fomos a Washington,Nova Iorque,Montreal e ao Brasil,antes de seguirmos para Montevideu e Buenos Aires.A intimidade de estar num avião para apenas vinte pessoas em companhia de Fidel Castro durante tantos dias me convenceu de que aquele indivíduo era um horror.Era um avião de hélice.Em direção ao Rio,o avião baixou para que víssemos a floresta amazônica.O piloto disse :''Comandante,estamos voando sobre a floresta ! ''.Eu estava sentado no banco logo atrás de Fidel Castro.O que foi que aconteceu ? Fidel ficou olhando a floresta nao sei por quanto tempo. De repente,disse : ''Que grande país !''. Eu pensava que era admiração pelo Brasil. Mas ele disse :''Aqui é que deveríamos ter feito a nossa Revolução !''.
Neste momento,entendi que Cuba era pequena para ele. Fidel se achava um lider tão grande que necessitava de um continente ;não de uma ilha..''

GMN : Se,num acaso digno de uma das páginas de Garcia
Marquez,o senhor se encontrasse com Fidel Castro hoje,num saguão de aeroporto,o que é que o senhor diria a ele ?

Cabrera Infante : ''Eu só diria uma frase : ''Você não
acha que já chega ?''.


(1997)


Posted by geneton at 01:02 AM

março 20, 2004

JACINTO DE THORMES


O DIA EM QUE O CRIADOR DO MODERNO COLUNISMO SOCIAL ENGANOU A RAINHA DA INGLATERRA NO MARACANÃ !


Quem foi o único brasileiro que teve o privilégio de trocar cochichos com a Rainha da Inglaterra ? (aos que duvidam de tal façanha,recomenda-se que consultem nos arquivos públicos o exemplar do jornal Última Hora do dia onze de novembro de 1968,uma segunda-feira : uma seqüência de três fotos,publicadas com destaque na primeira página,registra a façanha).

Quem foi o visitante curioso que o dramaturgo Tennesse Williams,autor do clássico “Um Bonde Chamado Desejo”, conduziu até um quarto todo vermelho,numa mansão em Nova Iorque,não se sabe com que intenções ?

Quem foi o jornalista atrevido que,aos vinte e dois anos de idade,criou,nas páginas do Diário Carioca,no já remotíssimo ano de 1945,”a primeira coluna social moderna do jornalismo brasileiro”,como bem diz o verbete dedicado a ele na mini-enciclopédia “Ipanema de A a Z” ? Antes,a chamada “crônica social” era entulhada de registros empolados de jantares,viagens e outros acontecimentos menos votados.A partir do Diário Carioca,a coluna social ganhou vivacidade : passou a registrar,em notas curtas,grandes negócios,casos de amor,conchavos políticos. O modelo não se esgotou até hoje.

O único brasileiro que falou ao pé do ouvido da Rainha Elizabeth,o repórter curioso que testemunhou a paisagem vermelha do quarto de Tennesse Williams e o jornalista atrevido que lançou,no Brasil,a base do colunismo moderno são um homem só : Manoel Bernardez Muller.

Aos pouco familiarizados com a biografia do jornalismo brasileiro,diga-se que ele ficou famoso como Maneco Muller. Se,ainda assim,o nome soar estranho,o que é improvável,acrescente-se que Maneco Muller tornou-se célebre sob um pseudônimo : Jacinto de Thormes (nome roubado de um personagem do romance de Eça de Queiroz ”A Cidade e as Serras “).

Depois de aceitar de bom grado o pseudônimo que lhe foi sugerido pelo jornalista Prudente de Morais,Neto - um dos grandões do Diário Carioca -, Maneco Muller dedicou-se ao trabalho de criar,sob a marca Jacinto de Thormes,um personagem que o acompanharia,como uma sombra,por toda a vida. Aos olhos do público,Jacinto de Thormes era um homem sofisticado que aparecia fumando um imponente cachimbo,com ares de lorde inglês,nas “fotos oficiais” que ornavam suas colunas.

Confessava-se usuário de um pijama listrado que ficou famoso - sinal de que cultuava a elegância até na hora de dormir.Pronunciava nomes estrangeiros com sotaque britânico.Tinha um cão chamado William Shakespeare Júnior,personagem (real) de suas andanças. O cão chegou a merecer foto de página inteira numa revista de moda, em que aparecia usando um boné que cairia bem numa partida de críquete numa tarde de verão nos arredores de Wimbledon. O fato de criar uma celebridade canina dá a dimensão do poder de fogo de Jacinto de Thormes .

Além de circular nas “altas rodas”,Jacinto de Thormes era um infatigável fabricante das Listas das Dez Mais Elegantes. Criou um modismo. As Listas passaram a ser publicadas em todo o País,em versões adaptadas ao gosto dos cronistas locais – os Jacinto de Thormes que se multiplicavam nas províncias. Igualmente,lançou a expressão “colunável”. Por merecimento,Jacinto de Thormes entrou para a seleta confraria dos jornalistas que são notícia.Virou um “colunável” clássico.

Aposentado depois abandonar as colunas sociais para se dedicar à crônica esportiva (o futebol é uma de suas paixões),Jacinto de Thormes sumiu de circulação.

Por onde andaria,hoje,o cronista dos Anos Dourados ? O que estaria pensando,neste começo de século,o escriba que documentou em suas colunas os tempos em que o Rio de Janeiro era um território idílico,nos idos da década de cinquenta ? Que sentimentos teria Jacinto de Thormes diante da uma sociedade povoada por novos ricos,os “emergentes” que,dentro ou fora da Barra da Tijuca,fazem questão de exibir suas posses nas revistas de celebridades ? Que confidências ele teria a fazer,hoje,sobre cenas indiscretas que não publicou,na época,por pudor ou excesso de zelo ?

O Jacinto de Thormes da vida real – o cidadão carioca Maneco Muller – confessa-se surpreso por ter sido procurado para uma entrevista. Porque é um personagem tecnicamente fora de combate. O encontro fica marcado para o apartamento da filha. Chega britanicamente no horário marcado. A devoção à pontualidade pode ser herança inconsciente dos anos em que viveu sob a tutela de uma governanta inglesa. Maneco Muller é bem nascido. Vem de uma família de diplomatas. A governanta entrou em cena porque os pais de Maneco se separaram quando ele tinha apenas três meses de idade. A mãe partiu para a Europa,em companhia de um marquês. Coube à governanta a tarefa de zelar pelo menino.

Nosso personagem aparece para a entrevista elegantemente metido num blaser azul-marinho,camisa social abotoada nos punhos,calça cinza. Vai fazer setenta e oito anos em breve. É avô de quatro meninas. Orgulha-se de se manter em forma : “Não tenho barriga”. Há duas décadas,instalou no peito quatro pontes de safena que funcionam perfeitamente bem. Quando desce do táxi, é personagem de uma pequena trapalhada : toca a campainha do prédio vizinho ao da filha,para espanto do porteiro.Desfeita a confusão, engana-se de novo ao apertar o botão errado dentro do elevador. As miudezas do mundo aparentemente confundem o coração cosmopolita de Jacinto de Thormes.

Do alto do décimo-quarto andar deste prédio no Flamengo,zona sul do Rio,o quase octogenário Jacinto de Thormes contempla,deslumbrado,a paisagem. Só há um adjetivo para definir a vista : é “cinematográfica”.Nunca um lugar-comum caiu tão bem. Quantas mil vezes ele terá vasculhado com os olhos os contornos do morro do Pão de Açúcar ? Já perdeu a conta. Mas, ainda hoje,é capaz de soltar exclamações como “não existe nada parecido no mundo.Que vista,meu Deus do céu !”.

Primeira conclusão : trata-se de uma alma irrevogavelmente carioca.Segunda conclusão : qualquer outra generalização é perigosa. Porque Jacinto de Thormes é,como bem definiu a revista Vogue,um caso único,”um espécime em extinção,pertencente a uma fidalguia carioca,aquela elegância natural,autêntica,intrínseca”.

Quem apostar que o Jacinto de Thormes aposentado é hoje um dinossauro que vive ruminando nostalgia dos tempos em que o Rio era a capital da Corte se enganará redondamente.Porque,retirado da cena,ele vê com curiosidade a ascensão dos “emergentes”. Diz que,hoje,uma palavra resume tudo : velocidade. Acabou-se o tempo em que os sobrenomes de famílias tradicionais desfilavam pelas colunas. Hoje,gente que enriqueceu depressa brilha depressa nas colunas - mas desaparece depressa também. Neste mundo,Jacinto de Thormes se sentiria deslocado. Mas não faz as vezes de saudosista ranzinza.

O homem vai revisitar cenas inacreditáveis que viveu ao lado da Rainha da Inglaterra.Falará de Tennesse Williams. Descreverá o encontro que marcou com Gilberto Freyre porque queria saber quem chegaria primeiro à presidência da República no Brasil : um negro ou uma mulher.Fará uma radiografia dos novos tempos do soçaite.

Jacinto de Thormes volta a atacar.
Gravando !


GMN : Os nomes tradicionais das colunas sociais foram substituídos pelos chamados “emergentes” – os novos ricos que,no caso do Rio de Janeiro,moram na Barra da Tijuca. O que é que os emergentes despertam no senhor : enfado,asco ou curiosidade jornalística ?

MM : “Tenho uma idéia formada. Precisamos olhar essa questão não como um simples fato,mas como conseqüência da velocidade do que acontece hoje. Em Botafogo,existe uma padaria que exibe uma inscrição : Fundada em mil oitocentos e não sei quantos. A tradição dava prestígio,dava credibilidade.Mas acabou ! As pessoas precisam imaginar que uma “emergente” é fruto do momento que vivemos hoje,dominado pela velocidade.Como o mundo muda,numa grande velocidade,se a mesma pessoa aparecer duas ou três vezes numa revista,dirão : “Mas que chato ! De novo ? “.

GMN : Antes,valorizava-se a tradição.Hoje,o que é que se valoriza : é a riqueza rápida ?

MM : “O sucesso hoje é esse.A Corte acabou ! A diferença é essa : quem aparece hoje é gente que surge rapidamente e ganha dinheiro depressa.Não interessa o nome. O jogador de futebol que faz sucesso também vai para a Barra da Tijuca,porque,lá,ele compra,ele se faz,ele é importante.
Mas não sou contra.Porque as pessoas não têm culpa.Não sou o sujeito esnobe que diz “imagine você....”. Não!
A época atual pede que se faça tudo rápido,para durar pouco”.

GMN : Qual era a dúvida que o senhor quis tirar com Gilberto Freyre ?

MM :”Eu queria fazer alguma coisa diferente,além da coluna.Matérias que representassem alguma coisa.Procurei um banqueiro famoso.Mas o sujeito só falava de dinheiro e política.Não publiquei nada.Já Gilberto Freyre era o tipo da pessoa que sabia falar.Expansivo.Perguntei a ele: quem chegará primeiro à presidência da República - a mulher ou o negro ? Gilberto Freyre achou ótimo.Disse,primeiro,que “o brasileiro não é uma raça,muito menos uma sub-raça ou meia-raça,como os subantropólogos querem,mas,sim,uma meta-raça”.
Depois de muita habilidade e inteligências,acabou dizendo que o negro chegaria primeiro à Presidência”.

GMN : A Rainha Elizabeth desperta,à primeira vista,um sentimento de tédio,até entre os admiradores.O senhor –que teve o privilégio de conhecê-la como intérprete,na visita que ela fez ao Brasil em 1968,teve essa sensação também ?

MM : “A Rainha é uma funcionária pública perfeita.Um dos compromissos que ela cumpriu aqui foi ver,no Maracanã,um jogo da seleção de São Paulo,comandada por Pelé,contra a seleção do Rio,comandada por Gérson.Vi o jogo sentado ao lado da Rainha,perto do governador Negrão de Lima,que falava francês. Samuel Wayner me disse para aceitar o convite para ser intérprete da Rainha.O pessoal do Itamaraty,meus amigos,tinham me convidado.Você sabe que não se chama a Rainha de Sua Majestade,a não ser em cerimônia.Chama-se de “madam”.

Houve um problema : fizeram uma placa de bronze que seria inaugurada no Maracanã para marcar a visita da Rainha.Mas,quando fui ler,vi que a placa tinha um erro de português.Tiveram de correr para mudar.Horrível.Quase não dava tempo.Primeiro,a Rainha perguntou sobre as orquídeas que tinham sido distribuídas na Tribuna de Honra.Eu disse que as orquídeas tinham vindo da Amazônia.Fiz uma onda.Amazônia coisa nenhuma.Eram daqui mesmo”.

. GMN : O senhor achou que seria “rústico” citar a Amazônia ali,para a Rainha ?

MM : “A Rainha entendeu que as orquídeas tinham vindo da Amazônia,mas eu,na verdade,disse que elas eram de um gênero amazonense,o que não deixa de ser verdade.Mas não sei,não entendo nada de flores. A Rainha achou ótimo.A gente tem de fazer essas coisas : é gentileza.

De repente,ela me perguntou : “você não acha que esse jogo está um pouco lento ? “. Não é boba. Eu disse : “Madam,o que acontece é que o jogador que a senhora se acostumou a ver no estádio de Wembley são ingleses fortes e robustos,correm muito,são verdadeiros touros.O nosso jogador ,madam,é uma cobra.Aliás,chamamos de cobra o nosso grande o jogador. Porque ele de repente dá um bote”. A Rainha ficou me olhando impressionada. Para minha sorte,poucos minutos depois Pelé,que estava fingindo que o jogo não era com ele,de repente viu a brecha,gritou “dá”,driblou um,cortou o outro e quase fez um gol maravilhoso.A Rainha se virou pra mim e disse : “Isso é que é cobra ? “.Eu disse : “Yes,madam,precisely”.O que ela fez? Olhou para o Príncipe Philip e perguntou : “Você sabe qual é a diferença entre os nossos jogadores e os brasileiros ? “. Começou a contar ao marido a minha história,sem me pagar royalties”.

GMN : A Rainha lhe deu a impressão de sofrer de uma certa falta de brilho pessoal ?

MM : “A impressão que a Rainha dá é a de que é uma pessoa triste.Aquilo deve ser muito,muito chato”.

GMN : A Rainha,em situações,normais é inacessível aos jornalistas – inclusive os ingleses.A que o senhor atribui o fato de ter sido escolhido para atuar como intérprete ? Bastou a amizade com o pessoal do Itamarati ?

MM: “Eu era cronista esportivo. Falava inglês- bem ou mal. Era um sujeito que não ia cuspir no chão nem fazer nenhuma grosseria.

Antes do início do jogo, quando o juiz Armando Marques entrou,a torcida começou a gritar “bicha ! bicha ! bicha !”. A Rainha me perguntou o que era aquilo.Que história era aquela de “bicha” ? Eu disse que a torcida estava aplaudindo o juiz – que era muito popular no Brasil....

Você veja o que é uma profissional. Quando,depois do jogo,se encontrou com o juiz Armando Marques,a Rainha disse : “Gostei de ver sua popularidade...”.

Mas o Príncipe Philip soube o que queria dizer o coro da torcida,porque disseram a ele”.

GMN : Lygia Fagundes Telles diz que,quando esteve em São Paulo,o escritor William Faulkner abriu a janela do hotel e perguntou : “Isso aqui é Chicago ? “. Bêbado,ele não sabia nem onde estava. O álcool entrou também nos contatos que o senhor teve com escritores americanos como Truman Capote e Tennesse Williams ?

MM : “Não entrou outra coisa,além de álcool. A entrevista com Truman Capote eu nem cheguei a escrever.Para dizer a verdade,achei-o murcho,sem significação alguma. Fiquei com raiva.Decepcionado.Não dava para escrever nada. Eu também estava numa fase ruim.Não vou culpar os outros. Eu estava em Nova Iorque,pela revista O Cruzeiro. Fiz também entrevistas com Tennesse Williams e Salvador Dali. O verdadeiro Salvador Dali era Gala,a mulher que o dirigia em tudo. Houve uma cena que considero terrível : Salvador Dali sentou-se ao lado de uma senhora brasileira que estava em nosso grupo.Disse a ela : “Que mãos lindas ! Eu poderia pintar as suas mãos ? ”.A mulher ficou encantada. Quem não quer ? Dali ficou de telefonar. A secretária de Salvador Dali realmente ligou no dia seguinte : “O senhor Dali gostaria muito de marcar uma data.Por falar no assunto : gostaria de dizer que o preço é.....”.E falou em não sei quantos mil dólares.Que negócio terrível....

Já o Tennesse Williams me fascinava. Quando cheguei para a entrevista,encontrei cinqüenta milhões de pessoas.Gim puro.Um porre sem tamanho.Bebe-se muito em Nova Iorque. Quando essa gente se expande,não é brincadeira.A primeira coisa que Tenesse Williams fez comigo foi : “Deixe-me mostrar minha casa”. A gente nem conseguia ver a casa,em meio a tanta gente sentada por todo canto. Quando ele abriu o quarto,era tudo vermelho e dourado lá dentro.Por que o sujeito vai me mostrar um quarto onde não havia ninguém ? Para que me mostrar um lugar todo vermelho que,para ele, era a parte fundamental da casa ? Eu estou associando coisas. Não houve nenhuma insinuação.
Quando contei umas histórias,ele me perguntou : “Mas era sexo normal ou diferente ?”. Respondi que comigo era tudo normal.De repente,toca a campainha.Abre-se a porta.Aparece um rapaz lindo,bonitão,rosado,com uns dois metros de altura.Ficou parado.Visivelmente,não conhecia ninguém.Tennesse viu o rapaz de longe,correu até onde ele estava : “Mas o que é que você veio fazer aqui ? “. O rapaz estranhou : “Você não disse para vir ? “. E Tennesee : “É amanhã,seu burro !.Não vê que hoje a casa está cheia de gente?”.

GMN : Tarso de Castro escreveu : “O jornalismo se divide mais ou menos assim : no início,é uma conquista maravilhosa,uma briga para ver uma coisa que se escreveu sair no jornal.Depois,chega o tempo de ser o competente cara de jornal.Por esse tempo,há um dia em que se descobre que não temos nada de super-homens.Por fim,chega o tempo em que o cansaço se arrasta diante do fato de que,afinal,não éramos tão importantes”. Jacinto de Thormes viveu essas três estações ?

MM : “Quanto a ser importante ou não,é relativo.Porque,na época,eu fui importante,sim. Fui importante porque,para começar,não me levei a sério.Prudente de Morais,Neto me chamou para ser o que era antigamente “cronista social”. Era tudo muito francês – “tout en bleu”,”tout en rouge”. Eu achava aquilo uma frescura,mas,como precisava ganhar dinheiro,não pude recusar. Só não queria botar meu nome.Afinal,eu fazia esporte,freqüentava academia de boxe.Iam me chamar de sei lá o quê se me vissem falando de vestido. Digo : vou levar esse negócio na brincadeira.Preciso de um pseudônimo.Prudente de Morais disse :”Jacinto de Thormes !”
Eu não tinha lido ainda Eça de Queiroz. O que me impressionou,depois,é que o Jacinto de Thormes do romance de Eça de Queiroz “A Cidade e as Serras” é precisamente um camarada que vive em Paris mas permanece apegado ao lugarejo de onde veio. Já Eça de Queiroz viveu em Paris e em Londres.Não gostava de viver em Portugal.Era um sujeito esnobe,um grande escritor que escrevia numa língua que infelizmente não tinha a repercussão que ele gostaria que tivesse”.
GMN : O senhor é apontado como o criador da primeira coluna social moderna do jornalismo brasileiro.De onde surgiu esse estalo ? Você criou a coluna sob influência americana ?
MM : “O personagem que criei tinha um cachorro chamado William Shakespeare Júnior – que me acompanhava de verdade.Fomos a boates juntos.Era um cão muito educado. O personagem Jacinto de Thormes era uma maneira de me defender,porque o que eu queria era ser escritor.
O Rio de Janeiro era capital da República.Comecei a freqüentar o Senado e a Câmara dos Deputados,os homens de negócio.Passei a incluir esse mundo dentro das brincadeiras,as coisas mais suaves que eu fazia na coluna.A lista das dez mais elegantes era coisa americana. Mas as listas dos americanos não tinham a dimensão que as listas ganharam aqui no Brasil.Quando eu saía,as pessoas me paravam na rua para discutir a lista”.

GMN : A criação desse formato de coluna foi influência americana ?

MM : “Mas claro ! Eu lia sobretudo o New York Times e o Washington Post e –de vez em quando – os jornais de Los Angeles,porque traziam a cobertura de cinema. As colunas que me influenciaram eram publicadas por esses jornais.Mas eu não podia fazer igual. Tinha de adaptar. Porque nos Estados Unidos havia colunistas que tinham um poder terrível : derrubavam fábricas,derrubavam shows,derrubavam pessoas.
Aqui, fiz a brincadeira de inventar Jacinto de Thormes . As colunas americanas já tinham o formato de notas sincopadas.Devo dizer que o Rio de Janeiro tinha uma personalidade. Se estivessem no Rio,aqueles colunistas não escreveriam como escreviam nos Estados Unidos . O Rio era uma das cidades mais divertidas do mundo,como disse a revista Time. A cidade tinha,além da praia,os cassinos,os grandes shows e um lado que faço questão de citar : a cultura. Basta lembrar que Getúlio Vargas convidou Gustavo Capanema para ser ministro da Educação e Cultura. Capanema simplesmente pediu a Carlos Drummond de Andrade que fosse chefe de gabinete.
O Modernismo –que foi paulista- veio explodir no Rio. Todos os grandes escritores, os Portinari,os Villa-Lobos,não apenas atuavam no Rio : a gente convivia com eles. É a diferença.Não era o intelectual lá e o social aqui. Evidentemente,havia na sociedade coisas fúteis.Mas eles participavam das revistas,havia o costume de todos irem ao Municipal para ver balé,ver ópera”.

GMN : O senhor,que escolheu tantas elegantes,pode citar qual foi a figura mais deselegante que conheceu ? Qual é o
sinal de deselegância que mais incomoda você ?

MM : “Quando eu ia fazer a lista,eu levava em conta também a inteligência. O que me incomoda ? É a bonita e burra.Tenho horror a esse tipo de coisa.É a pessoa que se preocupa demais com a aparência,a ponto de não saber fazer outra coisa.Sempre digo : uma grande dama é sempre uma grande dama sem querer.De propósito,não é nunca ! Porque não conseguirá comprar elegância,não conseguirá adquirir essa qualidade fazendo divulgação de si mesmo.
Uma pessoa não elegante pode ter boas maneiras.É outra coisa.Pode ser educada.É outra coisa.Pode ser culta.É outra coisa.Mas elegância reúne quase que todas essas qualidades – inclusive cultura !”.

GMN : Qual foi a personalidade mais surpreendente que você conheceu ? Alguém que tenha surpreendido você no bom ou no mau sentido ?
MM : “Vou dizer : Ibrahim Sued. Começou como fotógrafo.Era um sujeito humilde,com pouca escolaridade.Conseguiu uma coisa formidável. Eu,que comecei dez anos antes de ele surgir no jornalismo,percebi que ele tinha um fato jornalístico incrível.Podia ser ignorante.Mas de burro não tinha nada.Um dia,olhou para minha biblioteca.Perguntou : “Diga-me uma coisa : para que serviram,na sua carreira,esses livros todos ? “.
Sob o ponto-de-vista de Ibrahim,era uma pergunta excelente. Uma vez,eu disse a ele : “Você fatura até erro de concordância”. Ele me respondeu : “Você sabe Português mas não fatura nada”.
Ibrahim tinha toda razão. Era um camarada surpreendente”.

GMN : Quem freqüenta a alta sociedade,como o senhor freqüentou,inevitavelmente ouve e vê segredos impublicáveis.Que segredo impublicável o senhor poderia contar hoje,tanto tempo depois ?

MM : “É difícil falar. São coisas tão grandes que os nomes vão acabar vindo à tona. Fatos verdadeiramente nacionais.Não quero fazer autobiografia,porque ou falo das coisas ou não falo.Não dá para contar pela metade.
Havia um presidente da República,casado com uma mulher muito bonita,que,um dia,saiu de carro com alguém.Os dois deviam ter bebido um pouco. O presidente tinha dado o automóvel novinho à moça. Os dois estavam usando o carro pela primeira vez.Imagine : um presidente e uma moça. Lá pelas tantas,ela disse : “Você sabe que eu acho esse carro uma porcaria ? “ . O presidente respondeu : “Então,bata aí”. A moça bateu numa árvore,com o presidente dentro. Quebrou o carro”.

GMN : Presidente casado com primeira-dama bonita só existiu um ....

MM : “Pelo amor de Deus ! Para que eu fui falar nesse troço !!!”.

GMN : Darcy Ribeiro dizia que a gente tem aqui no Brasil uma das elites mais cruéis do mundo.O senhor –que conviveu com nossa elite no que ela tem de bom e de ruim - assinaria embaixo desse julgamento ?

MM : “É preciso ver nossa história. Os ingleses que saíram para os Estados Unidos foram formar um lugar,um país.O patriotismo americano é impressionante.Vê-se bandeira por todo lado. Já os jesuítas vieram ao Brasil por uma questão de ordem. Os portugueses não vieram fundar nada.Vieram tirar o que era possível tirar,assim como os espanhóis.A diferença é essa : em vez de dar,tiraram.
Nós também não conseguimos tomar certas decisões nacionais que exigem personalidade. Falta igualmente uma unidade. São Paulo trabalha,o nortista emigra,a Bahia se diverte,o Rio Grande do Sul comanda,o Rio de Janeiro vive e Minas Gerais conspira.As diferenças podem até ser fantásticas.Mas não há no Brasil uma união de idéias – o que termina se tornando uma grande dificuldade brasileira.A elite brasileira não é uma só.São várias as elites.De vez em quando,são péssimas.Em áreas importantes sob o ponto de vista popular,como no futebol,por exemplo,a elite não pode ser pior do que é agora”.

GMN : Se Maneco Muller,fosse escrever hoje sobre Jacinto de Thormes,qual seria o primeiro parágrafo ?

MM : “Jacinto de Thormes foi uma farsa,um mentiroso,não era nada aquilo. Criou aquele negócio.O pior é que pegou.Todo mundo veio atrás.
Fico contente com o que fiz. Jacinto de Thormes carregou Maneco Muller nas costas. Mas sem Maneco Muller,seus erros,seus pecados,seus vícios e algumas qualidades,o Jacinto de Thormes não teria existido”.

GMN : O senhor considera o Jacinto de Thormes pai dos colunistas sociais que estão aí hoje ?

MM : “Não sei de pai nem mãe.Mas fui o primeiro”.


(2001)

Posted by geneton at 01:55 AM

março 18, 2004

MINO CARTA

OS MANDAMENTOS DE JORNALISTA,SEGUNDO MINO CARTA : FIDELIDADE CANINA AOS FATOS,ESPÍRITO CRÍTICO,FISCALIZAÇÃO DO PODER

A bem da verdade, diga-se com todas as letras que não existe na imprensa brasileira texto tão elegante quanto o de Mino Carta. A palavra é esta : elegante.
Pouquíssimos currículos exibem um portfolio tão reluzente : como em jornalismo não existem propriamente criações individuais, o mais justo seria dizer que Mino Carta foi o co-criador de publicações que fizeram história na imprensa brasileira, como Veja, Jornal da Tarde, Quatro Rodas, Istoé,Carta Capital. Houve um fracasso, até hoje lamentado : o Jornal da República, trucidado no final dos anos setenta por um inimigo mortal - o déficit de caixa.

Nestes últimos tempos, o jornalista Mino Carta vem dividindo espaço com o romancista Mino Carta. O escritor noviço lançou em 2000 um romance parcialmente autobiográfico – “O Castelo de Âmbar’. Aqui, um Mino Carta que – lastimavelmente - não se animou até agora a publicar uma autobiografia emerge na pele de um personagem chamado Mercúcio Parla. Agora, o romancista Mino Carta lança o segundo – e último – volume da odisséia de Mercúcio Parla , o romance “A Sombra do Silêncio”,publicado no selo Francis da W11 Editores.

Procuro o quase novato romancista na Livraria da Travessa, em Ipanema, palco do lançamento carioca de “A Sombra do Silêncio”. Cadê o homem ? A mesa destinada à sessão de autógrafos, no primeiro andar deste supermercado de livros, permanece enigmaticamente vazia. Um porta-voz da livraria apressa-se a dizer que não, nenhum motivo de força maior impediu o lançamento. Mino Carta se instalou numa mesa do café da livraria, para regar com champagne a garganta presumivelmente já cansada de tantos embates.

De repente, Mercúcio Parla se materializa na mesa de autógrafos, na pele de Mino Carta, em companhia de uma taça de champagne . A procissão de leitores em busca de um autógrafo não faria inveja a nenhum santo : são poucos os fãs que se aventuraram ao ritual de beija-mão nesta catedral de livros erguida na zona sul do Rio. É provável que o grosso do eleitorado de Mercúcio Parla se concentre em São Paulo.

Camisa azul-claro,paletó quadriculado,cabelos grisalhos aparentemente intocados por tinturas,Mino Carta distribui adjetivos afáveis nas dedicatórias,posa para fotos,cumpre o ritual de romancista sem dar sinais de enfado.

“Quero logo dizer duas coisas”,avisa Carta,na entrevista telefônica que me concedeu quando já tinha voado para São Paulo,na tarde seguinte. ”Primeira : jornalismo é trabalho de equipe.Não existe herói solitário no jornalismo.O que existe é aquele pequeno grupo formado por gente que carrega o piano – e sabe tocá-lo.Segunda : digo,com absoluta sinceridade,que tive sorte na vida profissional,porque estava no lugar certo,na hora certa.Nunca trabalhei num órgão de imprensa que existisse antes do meu comparecimento.Isso tornou minha vida profissional estimulante.Não tive a chance de me entediar na profissão”.

Fica a dúvida : por que diabos Mino Carta não se despe dos recursos ficcionais para escrever logo uma autobiografia descarada ? Os bastidores de momentos importantes da moderna imprensa brasileira escapariam do castigo de serem exilados para sempre na Terra do Esquecimento – o destino irrecorrível de tudo o que não é registrado em papel.

“Em primeiro lugar,uso nomes fictícios para personagens reais”- vai explicando o criador de revistas travestido de criador de romances.”O primeiro livro nasceu como uma reação espontânea – e talvez irritada demais – ao livro “Notícias do Planalto”. Mário Sérgio,o autor,sustenta a tese de que a figura de Collor foi criada pelos jornalistas.Mas a figura de Collor foi criada pelos patrões dos jornalistas !. Além de tudo,”Notícias do Planalto” terminou valorizando as versões patronais a meu respeito.Por exemplo : a de que a Editora Abril me demitiu.Não é verdade.Eu me demiti.Se a Abril me tivesse demitido,eu teria levado uma belíssima grana.Não levei – até porque não queria levar.Queria ter a satisfação de não levar um único e escasso tostão dos senhores Civita – que comigo se portaram como pulhas que cederam a pressões do senhor Armando Falcão”. (ministro da Justiça do governo Geisel).

Um dos capítulos de “O Castelo de Âmbar” traz um aperitivo explosivo do que seria uma autobiografia do autor. Num intrigante jogo de espelhos, o imaginário Mercúcio descreve, como se fosse um repórter, os bastidores da traumática saída de Mino Carta da direção da revista Veja – à época submetida à censura. É Mino Carta escrevendo,com a pele de Mercúcio Parla, um capítulo descaradamente autobiográfico . Os nomes dos bois estão lá : Golbery do Couto e Silva,Ernesto Geisel, Victor Civita.

Tido como vaidoso, Mino Carta faz uma declaração modesta sobre por que recorreu à ficção para fazer uma quase autobiografia :

- Não tenho estatura para chegar e dizer : eis o meu livro de memórias.Não me sinto à vontade.

Os registros da imprensa sobre as expedições de Mino Carta ao território das ficção foram, na melhor das hipóteses, modestíssimos, se confrontados à fama do autor . Por que terá sido ? O silêncio – quase ensurdecedor – é intrigante.

- O Castelo de Âmbar – queixa-se - foi boicotado claramente pela chamada “grande imprensa” : com exceção do Jornal do Brasil,o livro não mereceu nenhum tipo de cobertura – menos ainda de crítica por parte de Globo,Folha,Estado de S.Paulo,Veja,Istoé,Época. Mas vendeu cerca de 20 mil exemplares.A Sombra do Silêncio acaba de ser lançado.Não sei o que vai acontecer.

A lista de possíveis desafetos do jornalista Mino com certeza não seria suficiente para condenar ao limbo o romancista Mino – um italiano de nascença que adotou o País Tropical como pátria no final dos anos quarenta,quando aqui desembarcou em companhia do pai,também jornalista. A intimidade com a língua portuguesa foi adquirida com a leitura de Machado de Assis (a quem chama de gênio),Camões, Gil Vicente, Eça de Queiroz, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Guimarães de Rosa – um escrete de primeiríssima.

Um crítico mal-humorado poderia reclamar : de tão sofisticado e elegante, o texto do romancista Mino corre eventualmente o risco de pecar por rebuscamento excessivo. Mas pobre do país em que um texto seja passível de condenação por excesso de qualidades.

Se lhe fosse dado o direito de escolher que destino teria neste vale de lágrimas, Mino Carta cravaria a opção “jornalista” em terceiro lugar. Porque, antes de se dedicar à nobre tarefa de passar a vida dedilhando vogais e consoantes num teclado, Mino pensou em ser, pela ordem,santo e pintor.

Já disse que, jovem,sonhava em ter um cartão de visitas em que estivesse escrito,no espaço dedicado à profissão,a palavra “santo”. Logo viu que faltava-lhe vocação para um dia ser entronizado nas paredes da Capela Sistina.
Pintor nunca deixou de ser. Mas terminou se rendendo ao determinismo genético : neto e filho de jornalista,virou jornalista.

Numa das passagens de “A Sombra do Silêncio”,o personagem Mercúcio Parla/Mino Carta faz ao avô,também jornalista,indagações sobre a natureza do Jornalismo. Pergunto ao nosso personagem : e se, por um truque dramatúrgico , o Mino Carta quase setentão pudesse se encontrar com o Mino Carta de vinte anos de idade,que conselhos o Mino Carta experiente daria ao Mino Carta noviço,candidato a jornalista ?

- Tenho três mandamentos, além da crença de que é fundamental respeitar o texto e não aviltar a língua. Os três mandamentos para um jornalista são os seguintes : primeiro,a fidelidade canina à verdade factual. Segundo : o exercício desabrido do espírito crítico – sempre. Terceiro : fiscalizar diuturnamente o Poder,onde quer que se manifeste – não somente no Palácio do Planalto ou no Congresso.

O jornalista e escritor Mino Carta conseguiria definir,em apenas uma só palavra,o jornalista e escritor Mino Carta ?

- Não.Eu diria que,profissionalmente,tive a sorte que não tive em minha vida como indivíduo.

“Sortudo”, então, poderia ser uma palavra razoável ?

- Por que não ? Sortudo como jornalista que sempre teve bons colegas e equipes ótimas. Mas o escritor sofre muito.

(2004)
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MINO NOS LIVROS

“O jornalismo tem encanto para quem o pratica com um mínimo de empenho : preserva a juventude. Sabe por quê ? Porque um dia é igual a outro e as personagens a serem relatadas são sempre as mesmas,embora mudem de nome.E os enredos se repetem à exaustão.A certa altura, você acha que o tempo não passou e jamais passará,inclusive para você” (fala de um dos personagens de A Sombra do Silêncio,o avô do narrador Mercúcio Parla).

“Jornalistas como ele conhecem de cor e salteado a gravidade da sua empreitada e a cumprem com ceticismo na inteligência e otimismo na ação,reservando-se o direito de manterem aceso o espírito crítico,como lâmpada votiva.Homens de muita fé,certamente,porque dispostos a viverem hora a hora uma contradição brutal- uma tragédia.Trata-se de fiscalizar o poder,controlá-lo,criticá-lo,denunciar os seus abusos e mazelas.Mas as empresas jornalísticas gravitam na órbita do poder,são o próprio poder” (O Castelo de Âmbar)

“Um bom amigo me sugeria : ponha por escrito o que pretende dizer.Pus.Assim todos vocês terão a oportunidade de verificar que pronuncio mediocridades tanto de improviso quanto por escrito” (O Castelo de Âmbar)

“Ainda verá a ponta dos sapatos sobre a calçada de uma cidade remota e antiga, estaca diante do faiscar de uma moeda contra a pedra lívida. Recolhe-a,traz relevos em caracteres árabes,no verso o valor,no anverso um veleiro.O veleiro da infância,transfigurado no espaço absorto,sem tempo e sem dimensão,sem ponto de fuga”. (A Sombra do Silêncio)







Posted by geneton at 07:53 PM

PAUL JOHNSON


OS PETARDOS DO HOMEM QUE NUNCA FOI A UM SHOW DE MÚSICA POP,NUNCA ASSISTIU A UM JOGO DE FUTEBOL E SE RECUSA A VER NOVELA DE TV
Defensores da mentalidade politicamente correta,tremei.Paul Johnson vem aí.Os fãs da fera o consideram um dos mais brilhantes historiadores britânicos.Os detratores ficam horrorizados quando lêem os freqüentes petardos que ele dispara contra,por exemplo,a arte moderna.Colunista da revista Spectator,colaborador do Daily Telegraph,Paul Johnson pode ser acusado de tudo,menos o de ser um historiador pouco ambicioso : depois de escrever “A História dos Judeus”,mergulhou na fundo tarefa de produzir “A História do Cristianismo”,recém-lançado no Brasil.
Paul Johnson é um caso clássico de intelectual que nunca teve medo de nadar contra a corrente. Minorias que se julgam perseguidas devem ou não ser criticadas ? Devem,sim,responde a Fera do Tâmisa. Picasso é um grande artista ? Não é não – brada Johnson,autor de um livro de ensaios chamado “To Hell With Picasso” (algo como “Que Picasso vá para o Inferno”).Picasso – garante ele - não passa de um stalinista que apoiou um regime totalitário. A flexibilidade de conceitos morais é uma conquista do pensamento do século XX ? Não é,nunca foi nem poderia ter sido – rebate o impaciente Johnson.O relativismo moral –diz ele - é uma praga que faz os ingênuos acreditarem que não existe nada que seja absolutamente condenável.

Aos 73 anos de idade, conservador assumido,crítico feroz da arte moderna,pintor nas horas vagas,religioso praticante e alpinista amador, Johnson é um polemista profissional. Faz parte de uma tribo minoritária: a dos intelectuais que não temem dar opiniões aparentemente fora de moda, fora de lugar e fora dos manuais de “bom comportamento” ideológico.Johnson já foi chamado de reacionário, direitista, manipulador, antiquado, intransigente, preconceituoso: é uma espécie de Paulo Francis às margens do Tâmisa.Horrorizado com o que chamava de “sociedade filistina”,Paulo Francis disse uma vez que se sentia “tecnicamente morto” em meio à vulgaridade generalizada.O incômodo que Francis sentia deve ser igual ao sentimento de inadaptação que abastece a ira de Johnson contra a mediocridade,as nulidades e a empulhação.


As universidades, tidas por tantos como templos intocáveis do saber, se transformaram em centros de intolerância, irracionalidade, extremismo e preconceito. São fábricas de ignorantes, uma empulhação custosa, na avaliação devastadora de Johnson.Orgulha-se de jamais ter-se dado ao trabalho de ver um show de música pop ou um jogo de futebol. Opiniões assim renderam a ele uma farta coleção de críticos e detratores. Mas ele não parece disposto a dar trégua.


Paul Johnson vem se ocupando da morte de Deus, o grande fato que não aconteceu no século vinte. Grandes tragédias do século XX, como o extermínio de seres humanos em escala industrial nos campos de concentração, poderiam ter contribuído para abalar a fé dos homens em Deus. Mas Paul Johnson diz que a ocorrência de tragédias terminou, paradoxalmente, reforçando a fé. Os descrentes procuraram proteção e consolo na idéia de Deus, porque o culpado de tudo é, como sempre, o homem.

"Ao contrário do que se esperava – festeja Johnson -, este não foi o primeiro século do ateísmo".

Quando o século XIX acabou, todo mundo esperava que a ciência iria tomar, de uma vez por todas, o lugar da fé. O avanço do conhecimento científico destruiria a idéia de que um Deus,seja qual for, existe. Um século depois,essa previsão falhou.

Nesta entrevista,feita em Londres,a Fera do Tâmisa ruge contra a mentalidade politicamente correta,a arte moderna e o relativismo moral.
Gravando !

GMN : Qual foi o pecado capital do século XX?

Paul Johnson : “É o que chamo de relativismo moral : a negação de que haja valores absolutos.Acontece que há coisas que são absolutamente certas e outras que são absolutamente erradas,sim !. O relativismo moral afirma –pelo contrário - que todo bem ou todo mal é relativo.Todos os valores seriam relativos,portanto.
Vejo o relativismo moral sob toda maldade totalitária e todo tipo de pecado do século XX. Precisamos voltar -acho que já estamos voltando- a cultivar valores absolutos”.


GMN : O senhor diz que já não há uma idéia absoluta sobre o que é errado e o que é certo.Pode dar um exemplo do que é certo e do que é errado,no mundo de hoje ?

Paul Johnson : “O exemplo mais comum é o da sexualidade humana. A maioria das pessoas da minha geração - que viveu a década de trinta - foi educada para acreditar que havia certos e errados absolutos na sexualidade humana. É um fato que o relativismo moral esconde e ofusca.Crianças de hoje não aprendem que há certos e errados ! Aprendem que devem fazer o que os outros fazem. Isso é relativismo moral ! É um grande mal. Devemos lutar contra ele”.


GMN : O senhor se declara um combatente na guerra das idéias.Qual foi a pior e a melhor idéia política do século XX?

Paul Johnson : “A pior idéia - que começou antes da Primeira Guerra,ainda por volta de 1910 - é a de que o Estado faz as coisas de uma maneira melhor do que os indivíduos. Mas há poucas coisas em que o Estado é melhor que o indivíduo. A verdade é que a idéia de que o Estado age bem é a pior de todas. Aprendemos agora esta lição.A melhor idéia é a seguinte : sempre que possível, os indivíduos devem ser deixados sós para fazerem o que puderem com os próprios recursos. Quanto maior a liberdade, maior a justiça, maior a eficiência e maior a felicidade humana.

O Brasil é um desses países que têm um futuro incrível.Chegará a esse futuro,dourado e glorioso,se acreditar mais em liberdade individual e menos no Estado”.

GMN : Por que o senhor diz que a mentalidade politicamente correta é uma nova forma de totalitarismo?

Paul Johnson : “Não gosto que venham me dizer como pensar,que palavras e expressões devo ou não usar.Para mim, esta é a origem do totalitarismo. Hoje,o totalitarismo vem começando de novo,no campus das universidades,nos Estados Unidos,sob o disfarce politicamente correto. Temos de lutar – muito ! - contra este fenômeno,antes que o totalitarismo disfarçado de posições politicamente corretas se estabeleça de verdade”.


GMN : Quanto o senhor pagaria por um quadro de Picasso? Por que o senhor é tão rigoroso na hora de julgar mestres da arte moderna, como Picasso e Cézanne?

Paul Johnson : “A arte precisa ter um propósito moral. Acontece que nunca pude detectar qualquer propósito moral claro na obra de Picasso. Era um homem perverso e imoral.Não vejo,em nenhuma de suas obras,um esforço para mostrar a arte com um propósito moral.Tal esforço é a essência do grande artista. Então,desconsidero Picasso completamente”.

GMN : A obra mais famosa de Picasso, "Guernica", é uma denúncia contra a violência do totalitarismo. Por que é,então,que o senhor diz que não havia nenhum sentido moral na obra de Picasso?

Paul Johnson : “Porque Picasso não lutava contra o totalitarismo ! Picasso não era comunista : era stalinista ! . Ficou do lado da União Soviética totalitária,durante quase toda a vida. É um escândalo ! Não acreditava na liberdade, exceto para si próprio”.

GMN : O senhor diz que a religião aprendeu a absorver todos os impactos da ciência. Agora que até seres humanos podem ser criados em laboratório, o senhor acredita que a fé religiosa vai sobreviver?

Paul Johnson : “A rapidez no avanço da ciência, especialmente nas ciências da vida – aquelas que afetam os seres humanos – vem tornando a religião mais importante do que nunca. Porque,em cada estágio do avanço da ciência,devemos trazer Deus à discussão. Devemos dizer: "Isso é moral? É Justo? É algo que se encaixa no plano divino para a Humanidade? Ou é algo que vai contra ele?". O fator "Deus" na ciência é,hoje,mais importante do que nunca”.

GMN : Um astronauta, que é um homem da ciência, diz que procurou sinais de Deus numa viagem pelo espaço, mas não encontrou nada. Que argumento o senhor usaria para convencer este astronauta de que,por trás do vazio do espaço,existiria um Deus?

Paul Johnson : “Quando nos deparamos com um evento científico supremo, o modo de reagir a ele é uma questão de imaginação. Quando Robert Oppenheimer viu a primeira Bomba H explodir, em Alamos, ele citou Bhagavad Gita: "Eu me tornei a morte, o destruidor de mundos". Um homem pode ver algo miraculoso ou científico,sem que tenha reação alguma. Se ele for um homem de grande imaginação, pode ter uma enorme reação. Quando,a bordo de um avião,a cerca de doze mil metros de altura,vejo o amanhecer,esta cena,para mim,é uma revelação da existência de Deus.De qualquer maneira,não preciso estar no espaço para fazer esta constatação. A maioria das pessoas,igualmente,não precisa : basta que tenham imaginação para que Deus venha à tona”.

GMN : O senhor consegue irritar as feministas e os esquerdistas com suas opiniões. Os dois são seus inimigos prediletos?

Paul Johnson : “Não sou,certamente,um inimigo das feministas. Sou pró-mulher : acredito que o século XXI será o século das mulheres. Dei palestras em Londres para milhares de senhoras japonesas : disse que elas têm o dever de tomar o poder que hoje parece disponível para elas no Japão – que era uma sociedade muito machista. Sou muito a favor das mulheres. Quanto à esquerda, não gosto de dividir pessoas em setores rígidos - esquerda e direita. Posso até dizer que sou radical - especialmente nas questões femininas,por exemplo.O meu ponto de vista é o de que todos os assuntos devem estar abertos à discussão. Não estou do lado da esquerda ou da direita : estou do lado da razão e da justiça”.


GMN : Por que o senhor diz que a esquerda tenta deixar os outros deprimidos? O senhor tem tomado Prozac?

Paul Johnson : “Não estou de forma alguma deprimido! O século XX foi,como um todo, um fracasso horrível. Mas aprendemos muitas lições. Aguardo ansioso pelo século XXI. Não estou nem um pouco deprimido : penso que vai ser um grande século. Tenho uma imensa confiança : previa-se que Deus desapareceria da vida das pessoas.Mas Deus estará forte e vivendo nos corações de bilhões de homens, mulheres e crianças. É uma constatação que me torna o contrário de um deprimido: eu estou otimista”.

GMN : Se é verdade que a idéia de Deus sobreviveu, quais são os três argumentos que o ssenhor usaria para convencer um ateu a acreditar em Deus?

Paul Johnson : “A primeira razão é a verdade. Deus existe - e a verdade é mais importante do que tudo. A segunda é a felicidade: com Deus,estamos mais felizes, mais satisfeitos, mais seguros do que sem Deus. A terceira razão : sob o ponto de vista puramente social, um mundo em que Deus fosse amplamente acreditado e respeitado seria um mundo muito mais seguro e melhor”.


GMN : O senhor diz que o ex-primeiro ministro britânico John Major é um político de segunda categoria. O senhor compraria um carro usado de John Major?

Paul Johnson : “Quando estou viajando no exterior,sempre me pergunto : “Tenho ou não orgulho de ser inglês ?". Quando Margaret Thatcher era nossa primeira-ministra,eu achava que tinha orgulho de ser inglês.Andava de cabeça erguida em qualquer país.Quando John Major estava no governo,eu andava encolhido. Não tinha orgulho de ser inglês. O que espero é que,com Tony Blair,eu possa andar de cabeça erguida como fazia com Margaret Tatcher.É um homem de personalidade,dono de convicções fortes.Crê que há coisas que são certas e há coisas que são erradas sob o ponto de vista moral.É um homem religioso : acredita que crenças religiosas podem ser transformadas em ações políticas. É jovem, idealista, vigoroso”.

GMN : O senhor - que é um conservador - hoje apóia o Partido Trabalhista, na figura de Tony Blair. Por que essa mudança?

Paul Johnson : “Não acredito muito em partidos políticos.Não sou um homem que tenha fé em partidos.Não estou,portanto,preocupado com o Partido Trabalhista ou com o Partido Conservador.Acredito em líderes.Se o político é um bom líder,com fortes convicções morais,força de vontade e senso de justiça,para mim não faz diferença se ele ou ela é trabalhista ou conservador.Thatcher – líder do Partido Conservador - tinha esses atributos.Por essa razão,eu a apoiava.Por ter também esses atributos,o trabalhista Tony Blair merece o meu apoio.O que eu busco é uma liderança”.

GMN : O senhor diz que a moda é uma conspiração de costureiros para ver até onde eles podem forçar as mulheres a fazer macaquices. A moda é um sintoma da decadência?

Paul Johnson : “Não há nada de novo nesse fenômeno.A “alta moda de Paris” existe desde 1850 : é um século e meio de vida.Os estilistas –principalmente porque,na maioria,são homossexuais - sempre transformam as mulheres em macacas.Acham que as mulheres aceitarão o que eles fazem.As mulheres - não apenas as ricas - compram as roupas oferecidas pelos estilistas.Há coisas idiotas.Como essas roupas são fabricadas em massa – e levadas às lojas - não apenas as mulheres ricas,mas também as mulheres comuns,usam o que esses estilistas produzem.As mulheres é que escolhem.Ninguém faz uma mulher vestir roupas idiotas se ela não quiser”.


GMN : Quem será a próxima vítima de Paul Johnson ?

Paul Johnson : “Quero levar ao Parlamento uma lei de privacidade que impeça a mídia de invadir a privacidade alheia.Ingleses e americanos não têm essa lei.Quero que a Inglaterra tenha”.


GMN : É possível resumir o Século em uma só palavra?

Paul Johnson : “Não em uma palavra, mas em uma frase: "O Século XX foi um desastre total,suavizado pela capacidade humana de aprender lições da História".

(1997)

Paul Johnson por Paul Johnson :

“De todas as calamidades que se abateram sobre o Século XX,além das duas guerras mundiais,a expansão da educação universitária nos anos cinquenta e sessenta é a mais duradoura.É um mito a crença de que as universidades são o berço da razão.São o abrigo de todo tipo de extremismo,irracionalidade,intolerância e preconceito;um lugar onde o esnobismo intelectual e social é propositadamente instilado e onde professores passam para os estudantes os seus próprios pecados de orgulho”.

“A nova forma de totalitarismo – a Mentalidade Politicamente Correta – é,inteiramente,uma invenção universitária”.

“O que me provoca reflexões sombrias é a lembrança de todo o desperdício produzido pelo modernismo.Perdemos duas gerações – meio-século- na busca pela feiúra.Talentos da pintura,desenho e escultura se perderam”.

“Nunca fui a um concerto de música pop ou a um jogo de futebol,nunca acompanhei novela de TV,nunca vi “A Ratoeira” ou “E o Vento Levou”,nunca concluí a leitura de “Em Busca do Tempo Perdido”,nunca li a revista “The Economist” ou “Time Out”,nunca tive um carro,nunca passei do limite da conta bancária,nunca compareci a tribunal.Ninguém nunca me ofereceu drogas,convidou-me para uma orgia ou me vendeu um contraceptivo.Jamais tive a menor vontade de possuir um quadro de Picasso,ter uma Ferrari,vestir um Armani ou morar em Aspen”.

“Jamais matei um peixe,caçei uma raposa ou esmaguei uma aranha – se bem que,uma vez,tentei esmagar uma tarântula no Recife”

“Já fiz Charles de Gaulle se benzer,Churchill chorar e o Papa sorrir”

“Considero-me um típico inglês do meu tempo,classe e idade,cujos pontos-de-vista,simpatias e antipatias são compartilhadas com multidões.Posso estar errado a esse respeito.Quando perguntada o que pensa sobre mim,minha mulher Marigold respondeu : “Difícil”.


(Trechos de “To Hell With Picasso”;Editora Weidenfeld & Nicolson,Londres)

Posted by geneton at 12:53 PM

março 17, 2004

JOEL SILVEIRA

O DINOSSAURO JOEL SILVEIRA EVOCA O POETA : "DEUS EXISTE,MAS NÃO FUNCIONA"
Eis a víbora : foto de JOANA PASSI DE MORAES
esparramado numa poltrona na sala deste apartamento na rua Francisco Sá,quase no limite entre Copacabana e Ipanema,Joel Silveira acompanha com um certo ar de enfado o telejornal da TV a cabo.O peso dos oitenta e três anos é visível no olhar mortiço. O aparente cansaço diante do desfile de horrores planetários e provincianos no telejornal não impede o velho repórter de soltar imprecações contra –por exemplo – o Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Quando o presidente FHC aparece no no vídeo,Joel não resiste :

- É o tipo do presidente que sabe falar mas não sabe dizer .Fala mas não diz.Nunca vi falar tanto,sobre qualquer assunto.Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola.Tenho a impressão de que todo dia,ao acordar,logo de manhã,Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta : “Por favor,qual é o mote de hoje ?”. O assessor diz -por exemplo- “indústria siderúrgica”.E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo.Um dia depois,muda de mote.Assim por diante,até o fim dos tempos.

Desde o ano passado , Joel brinda os leitores da “Continente Multicultural” com as tiradas ferinas do “Diário de uma Víbora”. .Não foi por acaso que Joel recebeu de Assis Chateaubriand o título de “víbora” : um de seus esportes prediletos sempre foi destilar veneno e ironia em doses industriais. Em artigo que entrou para a história do jornalismo brasileiro, pintou,com palavras elegantes e irônicas,um retrato devastador das grã-finas paulistas,na década de quarenta.

Num país em que tantos títulos são injustamente atribuídos , o rótulo inventado por Chateaubriand para definir Joel é um exemplo de justiça. Além do apelido de “víbora”,Joel carrega também um título que o acompanha há décadas – o de “maior repórter brasileiro”. Se algum entrevistador fizer menção a este título honorífico ,Joel balançará a cabeça como se estivesse contrariado com o possível exagero,mas,na hora de dormir,quando for trocar confidências com o travesseiro,terá de admitir que a homenagem não soa de forma alguma despropositada.

Pouquíssimos repórteres já cultivaram, como Joel,uma paixão tão inabalável pela reportagem. Nunca quis ocupar os cargos –eventualmente bem pagos – que se ofereciam,tentadores,na retaguarda das redações. Sempre fez a opção preferencial pelo “mundo exterior” . Porque desde cedo aprendeu que a boa reportagem precisa ser caçada na rua,feito touro bravio. Faz mea culpa quando se lembra dos períodos de tempo que extraviou na retaguarda das redações,como burilador de textos escritos por outros repórteres :
- Os chefes mandavam que eu transformasse cinco laudas em dez linhas. Tinha de cumprir a ordem. Eu deveria ser preso : já fui assassino de textos alheios.

Poucos terão –como Joel - um texto que reúne com tanta maestria Jornalismo e Literatura. A nossa víbora descreveu assim a cena que viveu depois de sair do Palácio do Catete,no Rio de Janeiro,ao fim de uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas :
- "Lá para a meia-noite,entrei no Danúbio Azul,um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas,desde que existem mundo e manhãs de abril".

Pergunta-se : em que jornal ou revista se lêem hoje textos dessa qualidade ? A resposta é um silêncio ensurdecedor.Joel pode exercer aqui e ali um lirismo que já rendeu páginas memoráveis,mas nunca abandonou o gosto pela maledicência.Adora falar mal de da fauna humana – aí incluídos personagens perfeitamente inofensivos,como,por exemplo,os alpinistas,os turistas e os tocadores de cavaquinho.
É pura implicância.Cheio de certeza,constata :
-“O cúmulo do ridículo, beirando o grotesco,é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”....

Adiante ,pergunta,a sério :
-Pode existir coisa mais idiota do que um alpinista ? Por que é que eles não pegam um avião,meu Deus do céu ? Por que não vão de helicóptero ? Pra que subir naquelas montanhas,se eles poderiam ver tudo da janela de um avião,no maior conforto ?

Provoco a víbora. Quero saber quem ele não levaria sob hipótese alguma para uma ilha deserta,se fosse condenado a passar o resto da vida isolado do mundo :
- Eu não levaria João Gilberto de forma nenhuma,com aquele violãozinho,uma coisa horrorosa. Aliás,o melhor talvez fosse deixá-lo numa ilha deserta,sem violão ! Assim,eu poderia ir embora. Não entendo o fenômeno João Gilberto : é um dos mistérios que minha inteligência não consegue alcançar. Eu até me esforço para entender tanta idolatria,porque ,como sou repórter, gosto de saber das coisas.Mas confesso que não consigo.

Joel nunca morreu de amores por um ex-colega de redação que entraria para a galeria dos brasileiros notáveis do Século Vinte :
- Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues.Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação.Gosto da peça “Vestido de noiva”,mas a verdade é não nos entrosávamos. Uma vez,eu estava escrevendo alguma coisa - escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo.De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção,fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: “Patético !”. Em seguida,foi embora,em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever.Depois,disse,simplesmente : “Dramático ! ”. Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – “patético” e “dramático”.

Depois de seis décadas de jornalismo, que outros tipos a víbora Joel incluiria na galeria nacional do ridículo,além dos tocadores de cavaquinho gordos e alpinistas ?
- Eu incluiria o turista numa Galeria Internacional do Ridículo.Porque o turista é de um ridículo sem par. De bermuda, cheio de máquinas penduradas no pescoço,suando em bicas, é roubado a toda hora nos restaurantes. Ridículo é também o velho que quer parecer moço- aquele que pinta cabelo, rebola e faz uma operação plástica por mês.

Joel vai fazendo confidências nesta tarde em Copacabana. Diz,por exemplo,que ouviu uma confissão de fraqueza de um dos maiores cronistas já surgidos no Brasil,Rubem Braga - um amigo do peito que até hoje lhe dá saudade. Os dois – Joel e Braga – foram correspondentes de guerra na Europa. Joel resolveu dar de presente a Rubem Braga um exemplar de um livro clássico de Stendhal – “O Vermelho e o Negro” . Semanas depois,Braga confessa a Joel que não conseguira de forma alguma passar da página noventa e dois do livro.O motivo :

- Rubem me disse que tinha interrompido a leitura porque o livro tinha personagem demais.E ninguém ficava parado....

Joel confessa que nunca conseguiu chegar ao final de “Os Irmãos Karamazov”,a obra-prima de Dostoievski. Agnóstico,alista-se entre os que concordam sem vacilar com o que disse o poeta Murilo Mendes :
-Deus existe,mas não funciona.

Cinco da tarde. É hora de dar um descanso ao guerreiro.Depois de tanta pergunta,peço que a víbora responda a um mini-interrogatório.São apenas cinco as dúvidas que quero tirar. É claro que ele aceita a proposta.Lá vai:


1
GMN : Quem foi a celebridade mais idiota que o senhor conheceu ?
Joel : “Deus me perdoe,mas foi o Papa Pio XII.Fui a uma audiência com ele no Vaticano.Diante do nosso grupo ,ele disse :”Brasileiros ? O português é uma bela língua. “Sabia” é do verbo saber. “Sábia” é uma mulher inteligente.”Sabiá” é um pássaro”. Que idiotice !”.
2
GMN : Se fosse escrever uma autobiografia,que fato vexaminoso o senhor faria questão de esconder ?
Joel : “Uma vez,em Roma,depois da guerra,vi Ernest Hemingway tomando conhaque sozinho num bar que ele costumava freqüentar.Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo.Fui ao banheiro remoendo a dúvida.Quando voltei,ele já tinha ido embora.É um dos meus grandes fracassos profissionais.O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway.Nesse caso,pelo menos o lead estaria garantido”.
3
GMN : Se o senhor fosse nomeado ditador de Sergipe,qual a primeira providência que tomaria ?
Joel : “Proibir a entrada de João Gilberto no Estado. Já seria um bom começo.Não existe nada tão chato quanto a Bossa-Nova”.

4
GMN : Qual a cena mais grotesca que o senhor já testemunhou ?
Joel : “Não precisa ir longe.Basta desembarcar num boteco qualquer do Rio numa noite de sábado.Repito : não existe nada mais grotesco do que um sujeito barrigudo e suado tocando cavaquinho”.
5
GMN : De quem o senhor não compraria um carro usado ?
Joel : “Não quero parecer ranzinza,mas alguém pode me dizer para que servem os alpinistas ? Por que aqueles idiotas não pegam um avião para olhar as montanhas do alto,em vez de tentar a subida ridiculamente amarrados em cordas ? . Eu jamais compraria um carro de um alpinista.Não se pode confiar em seres que não têm senso de ridículo”.

======================================
(2002)

Posted by geneton at 11:31 AM

JOEL SILVEIRA

O DINOSSAURO JOEL SILVEIRA EVOCA O POETA : "DEUS EXISTE,MAS NÃO FUNCIONA"
Eis a víbora : foto de JOANA PASSI DE MORAES
esparramado numa poltrona na sala deste apartamento na rua Francisco Sá,quase no limite entre Copacabana e Ipanema,Joel Silveira acompanha com um certo ar de enfado o telejornal da TV a cabo.O peso dos oitenta e três anos é visível no olhar mortiço. O aparente cansaço diante do desfile de horrores planetários e provincianos no telejornal não impede o velho repórter de soltar imprecações contra –por exemplo – o Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Quando o presidente FHC aparece no no vídeo,Joel não resiste :

- É o tipo do presidente que sabe falar mas não sabe dizer .Fala mas não diz.Nunca vi falar tanto,sobre qualquer assunto.Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola.Tenho a impressão de que todo dia,ao acordar,logo de manhã,Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta : “Por favor,qual é o mote de hoje ?”. O assessor diz -por exemplo- “indústria siderúrgica”.E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo.Um dia depois,muda de mote.Assim por diante,até o fim dos tempos.

Desde o ano passado , Joel brinda os leitores da “Continente Multicultural” com as tiradas ferinas do “Diário de uma Víbora”. .Não foi por acaso que Joel recebeu de Assis Chateaubriand o título de “víbora” : um de seus esportes prediletos sempre foi destilar veneno e ironia em doses industriais. Em artigo que entrou para a história do jornalismo brasileiro, pintou,com palavras elegantes e irônicas,um retrato devastador das grã-finas paulistas,na década de quarenta.

Num país em que tantos títulos são injustamente atribuídos , o rótulo inventado por Chateaubriand para definir Joel é um exemplo de justiça. Além do apelido de “víbora”,Joel carrega também um título que o acompanha há décadas – o de “maior repórter brasileiro”. Se algum entrevistador fizer menção a este título honorífico ,Joel balançará a cabeça como se estivesse contrariado com o possível exagero,mas,na hora de dormir,quando for trocar confidências com o travesseiro,terá de admitir que a homenagem não soa de forma alguma despropositada.

Pouquíssimos repórteres já cultivaram, como Joel,uma paixão tão inabalável pela reportagem. Nunca quis ocupar os cargos –eventualmente bem pagos – que se ofereciam,tentadores,na retaguarda das redações. Sempre fez a opção preferencial pelo “mundo exterior” . Porque desde cedo aprendeu que a boa reportagem precisa ser caçada na rua,feito touro bravio. Faz mea culpa quando se lembra dos períodos de tempo que extraviou na retaguarda das redações,como burilador de textos escritos por outros repórteres :
- Os chefes mandavam que eu transformasse cinco laudas em dez linhas. Tinha de cumprir a ordem. Eu deveria ser preso : já fui assassino de textos alheios.

Poucos terão –como Joel - um texto que reúne com tanta maestria Jornalismo e Literatura. A nossa víbora descreveu assim a cena que viveu depois de sair do Palácio do Catete,no Rio de Janeiro,ao fim de uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas :
- "Lá para a meia-noite,entrei no Danúbio Azul,um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas,desde que existem mundo e manhãs de abril".

Pergunta-se : em que jornal ou revista se lêem hoje textos dessa qualidade ? A resposta é um silêncio ensurdecedor.Joel pode exercer aqui e ali um lirismo que já rendeu páginas memoráveis,mas nunca abandonou o gosto pela maledicência.Adora falar mal de da fauna humana – aí incluídos personagens perfeitamente inofensivos,como,por exemplo,os alpinistas,os turistas e os tocadores de cavaquinho.
É pura implicância.Cheio de certeza,constata :
-“O cúmulo do ridículo, beirando o grotesco,é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”....

Adiante ,pergunta,a sério :
-Pode existir coisa mais idiota do que um alpinista ? Por que é que eles não pegam um avião,meu Deus do céu ? Por que não vão de helicóptero ? Pra que subir naquelas montanhas,se eles poderiam ver tudo da janela de um avião,no maior conforto ?

Provoco a víbora. Quero saber quem ele não levaria sob hipótese alguma para uma ilha deserta,se fosse condenado a passar o resto da vida isolado do mundo :
- Eu não levaria João Gilberto de forma nenhuma,com aquele violãozinho,uma coisa horrorosa. Aliás,o melhor talvez fosse deixá-lo numa ilha deserta,sem violão ! Assim,eu poderia ir embora. Não entendo o fenômeno João Gilberto : é um dos mistérios que minha inteligência não consegue alcançar. Eu até me esforço para entender tanta idolatria,porque ,como sou repórter, gosto de saber das coisas.Mas confesso que não consigo.

Joel nunca morreu de amores por um ex-colega de redação que entraria para a galeria dos brasileiros notáveis do Século Vinte :
- Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues.Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação.Gosto da peça “Vestido de noiva”,mas a verdade é não nos entrosávamos. Uma vez,eu estava escrevendo alguma coisa - escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo.De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção,fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: “Patético !”. Em seguida,foi embora,em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever.Depois,disse,simplesmente : “Dramático ! ”. Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – “patético” e “dramático”.

Depois de seis décadas de jornalismo, que outros tipos a víbora Joel incluiria na galeria nacional do ridículo,além dos tocadores de cavaquinho gordos e alpinistas ?
- Eu incluiria o turista numa Galeria Internacional do Ridículo.Porque o turista é de um ridículo sem par. De bermuda, cheio de máquinas penduradas no pescoço,suando em bicas, é roubado a toda hora nos restaurantes. Ridículo é também o velho que quer parecer moço- aquele que pinta cabelo, rebola e faz uma operação plástica por mês.

Joel vai fazendo confidências nesta tarde em Copacabana. Diz,por exemplo,que ouviu uma confissão de fraqueza de um dos maiores cronistas já surgidos no Brasil,Rubem Braga - um amigo do peito que até hoje lhe dá saudade. Os dois – Joel e Braga – foram correspondentes de guerra na Europa. Joel resolveu dar de presente a Rubem Braga um exemplar de um livro clássico de Stendhal – “O Vermelho e o Negro” . Semanas depois,Braga confessa a Joel que não conseguira de forma alguma passar da página noventa e dois do livro.O motivo :

- Rubem me disse que tinha interrompido a leitura porque o livro tinha personagem demais.E ninguém ficava parado....

Joel confessa que nunca conseguiu chegar ao final de “Os Irmãos Karamazov”,a obra-prima de Dostoievski. Agnóstico,alista-se entre os que concordam sem vacilar com o que disse o poeta Murilo Mendes :
-Deus existe,mas não funciona.

Cinco da tarde. É hora de dar um descanso ao guerreiro.Depois de tanta pergunta,peço que a víbora responda a um mini-interrogatório.São apenas cinco as dúvidas que quero tirar. É claro que ele aceita a proposta.Lá vai:


1
GMN : Quem foi a celebridade mais idiota que o senhor conheceu ?
Joel : “Deus me perdoe,mas foi o Papa Pio XII.Fui a uma audiência com ele no Vaticano.Diante do nosso grupo ,ele disse :”Brasileiros ? O português é uma bela língua. “Sabia” é do verbo saber. “Sábia” é uma mulher inteligente.”Sabiá” é um pássaro”. Que idiotice !”.
2
GMN : Se fosse escrever uma autobiografia,que fato vexaminoso o senhor faria questão de esconder ?
Joel : “Uma vez,em Roma,depois da guerra,vi Ernest Hemingway tomando conhaque sozinho num bar que ele costumava freqüentar.Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo.Fui ao banheiro remoendo a dúvida.Quando voltei,ele já tinha ido embora.É um dos meus grandes fracassos profissionais.O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway.Nesse caso,pelo menos o lead estaria garantido”.
3
GMN : Se o senhor fosse nomeado ditador de Sergipe,qual a primeira providência que tomaria ?
Joel : “Proibir a entrada de João Gilberto no Estado. Já seria um bom começo.Não existe nada tão chato quanto a Bossa-Nova”.

4
GMN : Qual a cena mais grotesca que o senhor já testemunhou ?
Joel : “Não precisa ir longe.Basta desembarcar num boteco qualquer do Rio numa noite de sábado.Repito : não existe nada mais grotesco do que um sujeito barrigudo e suado tocando cavaquinho”.
5
GMN : De quem o senhor não compraria um carro usado ?
Joel : “Não quero parecer ranzinza,mas alguém pode me dizer para que servem os alpinistas ? Por que aqueles idiotas não pegam um avião para olhar as montanhas do alto,em vez de tentar a subida ridiculamente amarrados em cordas ? . Eu jamais compraria um carro de um alpinista.Não se pode confiar em seres que não têm senso de ridículo”.

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(2002)

Posted by geneton at 11:31 AM

março 12, 2004

PAULO FRANCIS

HORA DA SAUDADE. PAULO FRANCIS, RIO, 1994: RELATO COMPLETO DE UM ENCONTRO COM O "LOBO HIDRÓFOBO"

RIO - A presença de Paulo Francis intimida,porque ele é um caso clássico de "monstro sagrado" do jornalismo.Quando Jack Nickolson,no papel de âncora de telejornal de rede,vai visitar um escritório regional provoca em torno de si uma onda de silêncio reverente pontuado por olhares inquisidores,no momento em que,superior,entra na redação.A cena é do filme "Nos Bastidores da Notícia".

Paulo Francis não chega a tanto,mas,quando sai,deixa ecos atrás de si.Fiz uma entrevista com ele para o "Fantástico".Um dia depois do programa,Paulo Francis foi à redação,para,civilizadamente,dizer que tinha gostado do material.Fez uma cópia da entrevista em VHS.Ia levar para Nova Iorque.Segundos depois da saída de Francis,ouvi comentários de todo tipo.Um amigo,brincalhão,simpatizante do PT,saiu-se com essa :"Ok,agora só falta você fazer matéria com o outro Paulo - o Maluf" - uma referência enviezada às críticas contundentes que Paulo Francis passou anos fazendo à administração Erundina na Prefeitura de SÃo Paulo.Outro amigo veio correndo me cumprimentar:"Gostei de ver ! Paulo Francis veio bater continência !".Luiz Petry,excelente poeta que nas horas vagas é editor do Fantástico,confessa,ao lado,que aprendeu com Paulo Francis a escrever em estilo direto,com frases curtas.O que mais um jornalista pode querer,além de espalhar influências pelas redações ?

Hélio Fernandes rugiu na Tribuna da Imprensa :"Melancólica,humilhante,ridícula e até vergonhosa a apresentaÇÃo de Paulo Francis no Fantástico.É natural que ele queira iludir os espectadores para vender o seu livreco".Ninguém fica indiferente à fera.

Ao contrário de todas as aparências,Paulo Francis não late nem morde.É um "doce de pessoa" - dizem os que convivem profissionalmente com ele.Bem humorado,brincalhão,solta gargalhadas quando conta piadas sobre a aparição do "horto florestal" de Lílian Ramos no camarote de Itamar Franco,no Sambódromo.Parece sinceramente espantado quando lhe faço um breve relato das reações raivosas que provocou em Pernambuco quando deu uma pichada no suposto provincianismo do então ministro Gustavo Krause.Disse que depois elogiou a posição correta de Krause numa votação no Congresso.Além de tudo,chamou o Nordeste de região "desgraçada" - não os nordestinos.

"Desgraçado",entre outras coisas,quer dizer "muito pobre,miserável,indigente",informa o Dicionário Aurélio,nosso pai.Era,certamente,o que Paulo Francis queria dizer sobre o Nordeste.Por acaso é mentira ? Num comentário bem-humorado feito ao jornalista pernambucano George Moura - que o escolheu como tema de uma tese universitária - Francis disse,sorrindo,que o filme "Os Imperdoáveis" é sucesso em Pernambuco....

Provincianismo existe em Pernambuco e em Nova Iorque.Pausa para uma digressão na primeira pessoa do singular.Há pouco,convidado a escrever um punhado de linhas sobre um livro escrito,impresso e lançado no Recife,vi meu texto,reescrito,ser trucidado por erros de concordância.Pensei em comprar uma página inteira para dizer,em matéria paga,que Pernambuco é o único lugar do mundo em que você é convidado a fazer um elogio a um livro e o que acontece ? Suas palavras são reescritas,desarrumadas,distorcidas e,finalmente,impressas na orelha do livro. Pode existir caso maior de provincianismo ? Isso também é sintoma de desgraça. Não quer dizer que se deva condenar o Nordeste a arder no quinto dos infernos.Ponto.Parágrafo.

Francis começa a falar.Vai logo escolhendo um político pernambucano entre os pouquíssimos de quem seria capaz de comprar um carro usado. É sinal de armistício com Pernambuco ? Pode ser."Bandeira branca,amor".

Francis diz estar plenamente convencido de que nÃo tem influência alguma sobre o comportamento dos outros.Mas tem,sim.Ninguém precisa concordar com o que ele diz,é claro.Mas a gente aprende com Francis a -pelo menos- tentar ser independente,a marcar posições,a não avalizar a mediocridade,a não seguir o rebanho geral com a docilidade de um boi zebu cabisbaixo a caminho do matadouro,a não referendar as imposturas dos poderosos. Ok,nem precisa tanto. Aprender com Paulo Francis a tentar escrever simples,direto,já é uma grande coisa.É tudo o que um jornalista deve querer.

O lobo vai falar.Senhoras e senhores,com vocês,Paulo Francis,o lobo hidrófobo - de volta às paradas de sucesso nas páginas do livro recém-lançado "Trinta Anos Esta Noite",um texto que é um achado,porque mistura em doses certas a memória pessoal com a memória nacional.

1-De qual dos políticos brasileiros você compraria um carro usado ?

Francis - De vários.Tasso Jereissati,Fernando Henrique Cardoso - a quem dou um crédito de confiança grande,porque sei que é uma pessoa honesta,que vem fazendo o melhor que pode.Como é o nome daquele prefeito do Recife ? Jarbas Vasconcelos.Três já bastam.

2-Você é frequentemente criticado porque teria se transformado de revolucionário em conservador.Você aceita essas críticas ?

Francis - Passei de criança a adulto.Eu era uma criança que confundia desejo com realidade.Eu tinha certos desejos -que eram fraternais com relaçÃo à minha situação privilegiada e à situação desprivilegiada de outras pessoas.Mas descobri,ao ver o mundo aí fora,que a maneira de resolver esses problemas nÃo é a maneira pregada pelos principais grupos populares aqui do Brasil.A grande transformação foi esta.Vi que os países ricos são paises que se abrem para o capital e fazem iniciativa privada.Como é que você vai empregar os brasileiros sem iniciativa privada ? Vai fazer de todo mundo funcionário público ? As repartições públicas já estão falindo ! E com esses milhões que estão aí o que é que você vai fazer ? É preciso abrir desde botequim a fabrica.Isso só com capital privado !

3-Você confessa hoje que tem simpatias pela social-democracia.O caminho para o Brasil pode ser esse ?

Francis - Certamente.A social democracia é imperfeita -sem dúvida- mas é a coisa mais justa que há.Porque garante o mínimo necessário a quem não pode lutar pela sobrevivência e,ao mesmo tempo,permite que quem pode se expanda sem ditadura sem nada.Veja os países mais avançados do mundo : sÃo os escandinavos.A própria Alemanha é uma social-democracia,a França ... E os Estados Unidos são uma social democracia - desorganizada,mas,se você falar assim nos Estados Unidos,eles acham que você é comunista.O que tem de auxílio às pessoas necessitadas é igual a qualquer social-democracia européia.

4-Você se considera o último representante de um tipo de jornalista que tem opinião própria e ocupa espaço privilegiado na grande imprensa ? Hoje,você é um caso único no Brasil...
Francis - Há vários outros que estÃo por aí.A minha tendência -escrever,discutir,ter opiniÕes - caiu muito de moda.A tendência hoje é fazer tudo curto,tudo pequenininho - mas trabalho também no curto e no pequenininho.Tanto é que faço comentário de um minuto na televisÃo.Mas há um desequilíbrio hoje entre as duas tendências.O período da minha juventude foi um grande período jornalístico,com Carlos Lacerda,Joel Silveira,Moacyr Werneck de Castro,Paulo Silveira,Octavio Malta - são incontáveis.Todos eram pessoas com opiniões definidas que se expressavam.Não estou nem julgando tendências.Só estou falando da qualidade.Hoje,na imprensa brasileira,há uma falta grande de gente que discute e dá opiniÕes.Eu de fato sou um dos que vai contra a corrente.

5-Quando publicou o romance Cabeça de Papel,você ficou deprimido com a falta de repercussÃo cultural aqui no Brasil.Isso ainda assusta você ?

Francis - NÃo.Resolvi botar o freio nos dentes e ir em frente(rindo).Você deve fazer aquilo que quer."Trinta Anos esta Noite" é um livro que senti muito prazer em escrever.Afinal de contas,1964 foi o acontecimento decisivo na minha geração.Eu tinha a idade de Cristo - 33 anos.O mundo que eu imaginava era completamente diferente do que viria a acontecer.As gerações mais jovens - que não têm idéia do que foi l964 -sofreram sem saber uma influência profunda do acontecimento.Por isso,eu quis tornar público o meu depoimento,porque há poucas histórias de 1964. NÃo estou dizendo que a minha história seja a única.Mas é uma versÃo da história que eu conheÇo e testemunhei.Não pretendo saber o que estava na cabeÇa de A,B ou C.

6-Como é que você espera ver o Brasil nesses próximos anos ?

Francis - Eu li em sete de fevereiro de 1994 uma nota surpreendente -para mim,pelo menos - no Wall Street Journal : em 1992 e 1993,entraram mais de 50 bilhÕes de dolares no Brasil.Você sabe a que isso se deve ? A pequenas entreaberturas que o senhor Fernando Collor fez quando presidente,como baixar tarifas,por exemplo.Se o Brasil abrir,entram 500 bilhÕes de dólares ! Vai haver emprego e vai haver prosperidade.É essa a minha esperanÇa.

7-Em qual dos atuais presidenciáveis você apostaria uma ficha ?

Francis - NÃo cheguei ainda a uma conclusão.Certamente não apostaria em Lula.Não há a menor dúvida,porque ele quer um retrocesso quando fala em reestatizar.O maior problema brasileiro são as estatais ! A grande dívida interna brasileira,a razão central da inflação - não a única - é esta máquina estatal que devora os recursos e toma todo o capital.Você não pode abrir uma empresa porque os juros estão na lua ! Pela constituição,o governo nÃo pode imprimir dinheiro.EntÃo,ele tem de tomar dinheiro emprestado.Para emprestar a um governo desse,você tem de emprestar a juros altíssimos.Quanto mais diminui o dinheiro,mais aumentam os juros.

8-E se JoÃo Goulart tivesse resistido em 1964 ?

Francis - Você teria certamente o início de uma guerra civil,mas,dado o temperamento brasileiro,haveria um acordo,um armistício dos militares.Talvez se convocasse uma eleição.Nós estávamos a um ano de uma eleiÇÃo.A verdade era essa.Teríamos com toda certeza uma guerra civil,porque Jango tinha amplas condições de resistência.Quanto à guerra civil,tenho certeza.Quanto ao acordo,estou especulando - haveria um acordo entre os militares para o cessar-fogo.Haveria uma eleição que estava prevista para o ano seguinte,onde Carlos Lacerda defrontaria Juscelino Kubitscheck.

9-Jango estava mal informado sobre a conspiração ?

Francis - A meu ver,estava totalmente desinformado,porque ele nÃo tinha uma assessoria capaz,o que é um problema aliás muito de político brasileiro.A assessoria militar de Jango era especialmente fraca.Eu me refiro a Assis Brasil - que era um homem de grande coragem pessoal,general corajoso pra chuchu,mas um homem entediado.Não informava Jango da disposição de outros generais,como deveria informar.

Vou fazer uma revelação a você : participei como espectador de uma reuniÃo -nem contei no livro,é uma coisa confidencial,nÃo posso nem dar o nome das pessoas.Mas participei de uma reunuiÃo de generais
que me mostrou -a mim e a outros civis- como os quadros do Terceiro Exército que tinham empossado Jango estavam sendo pouco a pouco substituídos por generais hostis ao presidente.
10-Quem foi a vedete que ia ver João Goulart no exílio ?

Francis - Há uma frase em inglês que diz:"Kiss and tell"-beijar e contar.Sou inteiramente contra essa frase....(rindo).
11-Qual foi a melhor e a pior herança deixada por 1964 ?

Francis - A melhor foi a do crescimento econômico.Pela estrutura montada no governo Castelo Branco pelo senhor Roberto Campos e pelo senhor Gouveia de Bulhões,o Brasil nos períodos seguintes -no governo Médici- cresceu como nunca na história.A pior foi a despolitização total do nosso povo- uma espécie de névoa que caiu sobre a sociedade civil brasileira e arruinou várias gerações que poderiam ter sido líderes políticos e não vieram a ser.Hoje,estamos aprendendo duramente com esses líderes de quinta categoria que temos aí
12-Você diz que quando era criança parecia um cão hidrófobo .E hoje,você se parece com o quê ?

Francis - Que tal um lobo hidrófobo ?

13-O fato de ser imitado em programas de humor incomoda voce ?

Francis - De jeito nenhum.Acho que se voce e uma figura publica - como e o caso de um jornalista de televisÃo - voce tem de estar preparado para tudo.A imitaÇÃo e a mais expressiva forma de lisonja - esta e que e a verdade.

14-Qual o personagem mais interessante da história recente do Brasil ?

Francis - Acho que Getúlio Vargas inventou o Brasil moderno,o Brasil uniformizado.A influência de Getúlio Vargas é tão positiva quanto nefasta.Ele é contraditorio.Acho tambem que o sujeito mais difamado do Brasil é um homem que participou de todas as decisões econômicas importantes do Brasil.Chama-se Roberto de Oliveira Campos - que indiscutivelmente é uma presença intelectual fortíssima na vida brasileira,mas negada pelos seus inúmeros inimigos,tanto quando Getúlio Vargas foi uma presença política muito mais forte do que qualquer outra pessoa no nosso tempo.

15-Quando é afinal que o Brasil vai ser um pais rico e feliz ?
Francis - O Brasil só não é rico porque não quer.
Viajei para o Brasil com o diretor de uma grande empresa americana - que adora o nosso país.Vai se aposentar aqui.Fica estupefacto com as chances que nós perdemos de ficarmos ricos.Temos de vencer uma certa infantilidade que há no nosso temperamento,uma confusÃo de desejo com realidade.Mas felicidade é um conceito mais complexo.Ser rico não significa necessariamente ser feliz.Mas é claro que ficar rico ajuda bastante.O Brasil tem um dever consigo próprio de eliminar as necessidades básicas do ser humano - e o Brasil não cumpre isso,os governos não cumprem isso,a nossa sociedade não cumpre isso".

Posted by geneton at 08:59 PM

março 09, 2004

IVAN LESSA

O AUTO-EXILADO IVAN LESSA DIZ BYE,BYE,BRASIL -PARA SEMPRE

Atenção,arrivistas,subliteratos,emergentes,
poetastros,politiqueiros,novos ricos,velhos baianos e poderosos em geral : já podeis respirar aliviados.Porque uma das mais ferinas penas já surgidas sob o sol da ex-Terra de Vera Cruz acaba de confessar,sem pompa nem solenidade : não voltará jamais ao Brasil.Acabou.Já era.Bye,bye Brasil - dessa vez é para sempre.O nome da fera ? Ivan Lessa,claro.A confissão foi feita em Londres.(Que confissao ? Que pompa ? Que Londres ? Que Brasil ? - perguntará,em silêncio,nosso inquieto personagem,enquanto caminha,circunspecto,por suas florestas interiores).
Que ninguém pense que Mister Lessa - uma das mais reluzentes estrelas de uma geraçã marcada por monumentos jornalísticos do porte de Paulo Francis e Millor Fernandes - foi acometido por algum surto extemporâneo de antibrasileirice aguda.Pelo contrário.Longe do país há ininterruptos vinte e um anos,desde que trocou o sol escandaloso do Rio de Janeiro pelo cinza made in Britain,Ivan Lessa cultua,a distância,suas paixões brasileiras.Todo dia dá uma navegada na Internet à procura de notícias da pátria-amada-idolatrada-salve-salve.E’ especialista em MPB.Provocado,é capaz de recitar horas sobre os tempos (áureos ? prateados ?) em que as ondas da Rádio Nacional embalavam o Gigante-pela-própria-natureza,ali pelos anos quarenta,cinquenta.(Que sol escandaloso ? Que cinza ? Que navegada ? Que gigante ? Leave me alone ! Deixem-me em paz ! - repetirá,levemente irritado,enquanto desliza pelos corredores da estação de Holborn).

Todo dia sai de casa,em Londres,para cumprir expediente no Servico Brasileiro da BBC.Depois de 7.665 dias sem rever o Brasil,deu-se conta de que não,não planeja voltar - nem em sonho.Deve estar,intimamente,se perguntando,como o poeta Drummond no verso famoso : ‘’Nenhum Brasil existe.E acaso existirão oa brasileiros ? ‘’.Mas o Brasil de Ivan Lessa existe,sim : é pessoal e intransferível.Dispensa o contato físico.(Que 7.665 dias ? Que sonho ? Que Brasil ? Que contato ? Leave me alone,please ! - bradará,por seus alto-falantes internos,enquanto passa a vista pela primeira página do Financial Times).

Uma vez por ano,Mister Lessa vai passar férias com a mãe,a cronista Elsie Lessa,em Portugal.A ponte aérea Londres-Lisboa,com eventuais escalas em Paris,lhe basta.
A visão de Ivan Lessa dedicado a fazer transmissões radiofônicas de Londres para o Brasil desperta uma dúvida inevitável : não será um caso escandaloso de desperdício de talento ? Quem conhece um ouvinte regular das transmissões da BBC,em português,para o Brasil ? Cartas à redação.Em todo caso,o sentimento de desperdício pode ser parcialmente atenuado : graças ao zelo da mãe - que guardou os originais das crônicas - e à dedicacao de uma colega de trabalho - que organizou o volume - os leitores saudosos do Ivan Lessa dos tempos do Pasquim ganharam de presente,neste final de 1999,um recem-lancado volume de crônicas,’’Ivan Vê o Mundo’’. Aos 64 anos,amarga,sem dramatizar,a ausência da alma gêmea,Paulo Francis.’’Eu estou tendo agora de lidar com um buraco enorme chamado Paulo Francis,que,de repente,sem mais nem menos,se abriu diante de mim.O estrangeiro é espantosamente real,irreversível.Não me há mais Brasil.Fim de papo.Nao tem mais ninguém do outro lado da linha’’ - escreveu na revista ‘’Veja’’ nos dias seguintes á morte do amigo de quase cinco décadas.Senhoras e senhores : com a palavra,Mister Lessa - ferino,inquieto,irônico,brasileiro como nunca.
(Que zelo ? Que desperdício ? Que alma gêmea ? Que brasileiro ? Um Valium,urgente ! - murmurará,enquanto se mistura,anônimo,aos frequentadores das livrarias da Charing Cross Road).

O DECáLOGO DE IVAN LESSA :

1.‘’EU ESTOU POR FORA DE ORIXÁ,ARAÇÁ AZUL,ODARA E MANDACARU VERMELHO !’’.

2.‘’O BRASIL DEVERIA ESQUECER O CINEMA.SOMOS RUINS’’.

3.‘’PATETA,MICKEY E O PATO DONALD SAO VIZINHOS MELHORES DO QUE O PESSOAL QUE INFESTA A BARRA DA TIJUCA’’

4.‘’NAO HA MOTIVO ALGUM PARA NOS SENTIRMOS ‘A VONTADE DO MUNDO !.OS ALIENIGENAS SOMOS NOS’’

5.‘’O CALOR DA SONO.O FRIO ME CIVILIZA’’

6.’’NAO QUERO ENTRAR COM MEU PLANGENTE VIOLAO DO SAUDOSISMO,MAS O NOSSO JORNALISMO PIOROU.MUITO MESMO’’.

7. ‘’SEMPRE FUI MUITO MAIS VELHO E MUITO MAIS CÉTICO QUE PAULO FRANCIS’’.


8.‘’AINDA ESTOU MOCO.SO TENHO 64 ANOS.PODE SER QUE A DEPRESSAO AINDA VENHA’’.

9.’’O QUE ACHO TRISTE E’ O FATO DE O MEU LIVRO SAIR !’’.

10.’’UMA DAS VANTAGENS DE ESTAR FORA E’ QUE SO RECEBO O DISCO DE CAETANO VELOSO : NAO SOU OBRIGADO A OUVIR AQUELAS TOLICES ENORMES E AQUELAS BOBAJADAS DAS ENTREVISTAS’’

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1-Voce diz numa cronica que o mundo é um lugar estrangeiro,’’assim que a gente bota os pés na rua,fora de casa’’.O sentimento de estranheza diante do mundo é indispensavel á vida intelectual ou é algo que voce sempre teve ?
Ivan Lessa : ‘’Voce me faz ficar serio...A gente vai ao Camus,a ‘’O Estrangeiro’’,o encontro com o outro.Mas olhe aqui : nasci em Sao Paulo; garoto ainda,a primeira vez que entrei em colegio foi nos Estados Unidos; quando voltei, fui para o Rio.Depois,garotao ainda,fui para Paris.Isso nao quer dizer nada,era viagem.Mas acho,sim,que o homem é estranho na terra.Deve manter,por uma questao de saude mental,essa sensacao de ser um estrangeiro aqui,no meio de arvores,pedras e seja la o que for.Os alienigenas somos nós ! E’ isso mesmo,e’ isso mesmo : manter a sensacao de ser um estrangeiro tem um lado muito saudavel.Nao ha motivo nenhum para voce ficar muito á vontade no mundo ! Nao ha motivo para que se diga ‘’estou á vontade’’.Nao,nao.Fique com uma certa timidez.Isso é bom : manter uma certa distancia’’.

2- A essa altura,a ausencia prolongada do Brasil (vinte e um anos) ja se transformou num acontecimento importante em sua biografia.Nao vou perguntar por que é que voce passou tanto tempo sem ir ao Brasil...

Ivan Lessa(interrompendo): ‘’Que bom ! ‘’.

Mas vou perguntar : voce planeja voltar um dia ?

Ivan Lessa : ‘’Nao planejo,nao planejo mesmo ! Nao digo que nao,porque ai parece implicancia.Mas simplesmente nao e’ algo que esteja em meus planos.O que planejo é passar novamente as minhas ferias de julho,no ano que vem,em Portugal,porque tenho um apartamento la.E’ uma coisa de rotina.Sou rotineiro.Gosto de rotina porque a rotina me ajuda a me situar no mundo e a me sentir menos estrangeiro.Eu sei que,em novembro,darei uma chegada a Paris.Disso tudo eu sei porque sao meus planos.Mas voltar ao Brasil nao está nos meus planos,simplesmente.Nisso nao vai birra nenhuma,querela nenhuma,disputa nenhuma.Nao estou reclamando da acustica da platéia,ao contrário de Joao Gilberto...’’.

3- Sao irritantes para voce essas teorias que se facam sobre ‘’porque é que Ivan Lessa nao volta ao Brasil’’ ? O motivo pode ser pessoal : sua mae mora em Portugal,voce vai passar as ferias la e ponto final...

Ivan Lessa : ‘’Sou ruim de numero.Quantos sao na diaspora brasileira ? Nos,que estamos no estrangeiro ? Quantos somos nos,agora ? Ha um milhao de brasileiros no estrangeiro ? Entao,pergunta a eles tambem ! Nao estou sendo desaforado com voce,voce sabe que nao.Eu sou apenas um imigrante a mais que foi tentar uma vida melhorzinha no estrangeiro.Ponto’’.


4- Uma das coisas que o fizeram sair do Brasil foi a mania do brasileiro de assoviar dentro do elevador.Qual é a outra mania brasileira que lhe ‘’dá nos nervos’’,como voce gosta de dizer ?

Ivan Lessa : ‘’Informalidade ! Pra resumir numa frase : pegar na gente.Voce sabe o que é que quero dizer ? Ingles nao pega em voce!.Mas se voce me encontra ou se eu encontro voce na rua e eu digo ‘’Ola,Geneton,como é que vai ?...’’e fico pegando,fico catucando...E’ como aquele camarada que,ao falar com voce,cola a boca no seu ouvido,como se voce fosse surdo.Dá para fazer toda uma galeria de tipos desagradaveis,num plano leviano...’’.

O ingles se limita a um aperto de mao,na primeira vez...

Ivan Lessa : ‘’Uma apresentacao,um aperto de mao,como diz o samba de Francisco Alves.Mas ás vezes apertam a mao outra vez,quando veem voce novamente.Frances é que aperta a mao o tempo todo.E’ um motivo para nao ir muito á Franca.Se eu trabalhasse com voce num escritorio e todo dia apertasse a sua mao na hora de chegar e na hora de ir embora...Há uma certa pegacao.E essa pegacao pode ser transcendental : podem querer pegar na sua alma tambem ! Pegar no seu pé,pegar na sua alma,voce pode estender a metáfora’’.

Uma das coisas que falam -bem- do brasileiro é esta efusao...

Ivan Lessa : ‘’Nunca vi ninguem falar bem ! Nao estamos saindo com as mesmas pessoas...’’.

Quando comparam o brasileiro com estrangeiro...

Ivan Lessa(interrompendo) : ‘’Mas efusao para mim
é barulho ! Um dos motivos por que saí -mesmo ! mesmo ! - é que eu nao podia nem conversar na sala com um amigo quando morava no decimo-primeiro andar na avenida Atlantica,esquina com a rua Bolívar,no Rio,em cima de um bar chamado,veja voce,Transa ! Isso que voce chama de ‘’animacao’’...Lúcio Alves ia cantar la em casa,eu tinha de fechar as janelas por causa do barulho - que criava um ‘’funil acustico’’ capaz de enloquecer qualquer Joao Gilberto ! E sem ter um Caetano para mediar !’‘ (Ivan Lessa se refere ao episodio da vaia sofrida por Joao Gilberto na inauguracao de uma casa de espetaculos em Sao Paulo,num show em que Caetano tentou conter a reacao da plateia).

5- De que maneira voce detectou,fora do Brasil,uma piora nos modos do brasileiro ? Isso foi através do telefone ?

Ivan Lessa : ‘‘Nestas novas geracoes de brasileiros com quem vou me encontrando por um motivo ou por outro,noto,cada vez mais,um excesso de informalidade.O cara que assoviava no elevador -e me irritava - hoje piorou muito mais.Hoje em dia,ele ja entra assoviando dentro da minha alma,nao apenas no elevador’’.

6- A vaia a Joao Gilberto criou um certo escandalo,porque abriu um precedente : um monumento da MPB levando uma vaia durante um show.Isso assustou voce ? Em que situacao voce justitificaria uma vaia a esses monumentos da MPB ?

Ivan Lessa :’’Nao me assustou.Com todos ‘’esses’’e
‘’erres’’,nao.Em 1958,eu,com vinte e tres anos,economizo meu dinheiro para ir ver Billy Ecstein cantar no Fredy’s,na esquina da avenida Princesa Isabel com Atlantica.Peguei uma mesa quase ao lado do palco.Entre mim e o palco,havia uma mesa com Abrahao Medina e Sonia Dutra.Nesta epoca,Abrahao Medina patrocinava nada mais,nada menos que o programa ‘’Noite de Gala’’,em que Billy Ecstein iria se apresentar na segunda-feira.Eles falaram o tempo todo ! Billy Ecstein,entao,parou de cantar e pediu para eles calarem.Delicadamente.Eu estava alivendo o Billy Ecstein fazendo aquilo,porque a importancia de Billy Ecstein para mim é uma loucura.Para quem tem vinte e tres anos e economizou para ver o show...Ele estava cantando ‘’Blue Moon’’.Se em 1958 este era o comportamento da plateia com um astro internacional,por que é que vao interromper o papo para um sujeito chamado Joao cantar ou tocar violao ? Nos somos muito mal-educados ! E’ o negocio do cara que entra assoviando no elevador.Ha gente que nao assovia no elevador,so assovia no show de Joao...’’.

Caetano Veloso deu,depois,uma entrevista irritada dizendo que eram cinquenta imbecis.....

Ivan Lessa(interrompendo) :’’Deu uma entrevista irritada,mas era uma daquelas falas demagogicas dele.Disse que os que vaiavam ‘’nao me estao no coracao’’ ou algo assim.Em vez de chamar de filhos da puta ! Rodou a baiana,mas rodou muito mal pra cima deles.Deveria ter dito assim :’’Respeitem ! Joao está reclamando da acústica ! Parem de fazer barulho!’’- e nao ficar falando ‘’meu coracao nao se alegra...’’.
Nao ! Respeitem o artista,deixem-no cantar,mesmo que fosse uma merda ! Mas deixem que ele cante.Fiquem quietos por cinco minutos.Nao demora mais do que cinco minutos uma música !’’.

Um caso que foi lembrado,porque envolvia gente da estatura de Joao Gilberto,foi a vaia que Tom Jobim e Chico Buaque levaram naquele festival em que cantaram ‘’Sabiá’’...

Ivan Lessa : ‘’Mas ali havia torcida,era festival no Maracanazinho,povao,todos eles insuflados,incentivados pela Globo.Aquilo vai adquirindo um clima de Fla-Flu,coisa que nao havia no Credicard Hall.Era um pessoal que pagou - ou nao - apenas para ver um cantor.O pessoal,no Maracanazinho,estava torcendo,’’eu torco por Tom Jobim’’...Nao era o ano de Geraldo Vandré ? Ele todo de preto,naquela epoca so ele e o violao.Mas aí é pra torcer.Se voce nao torcer num Fla-Flu,se quer ficar sentadinho,deve ter algo de errado com voce.E’ melhor vir para Londres,porra ! ‘’.

7- Quando publicou o primeiro romance,’’Cabeca de Papel’’,Paulo Francis ficou deprimido ao constatar a falta de repercussao cultural do que se faz no Brasil.Francis achava que o romance iria ter uma repercussao muito maior.Disse que ficou deprimido,deitado,olhando para o teto.Voce tem tambem tem essa sensacao ? Assim como Paulo Francis,voce acha que o Brasil vive num ‘’sertao cultural’’ ?

Ivan Lessa : ‘’Francis era meio ingenuo em certos trocos.Eu disse : ‘’Oh,rapaz,esse negocio de romance,livro,o pessoal fala pra burro,voce da entrevista de duas paginas pra Veja e pra Istoé,sai nos quatro jornais de sempre -Folha,Estadao,Globo e JB - e depois acabou ! E’ isso mesmo,porra !.Assim como aqui na Inglaterra,voce vai e escreve um novo romance ! Investe mais dois anos nisso !’’.
Mas Francis nao pegou isso.Nesse ponto,eu sempre fui muito mais velho e muito mais cético do que Francis : talvez por este motivo ‘e que ele tenha ido para Nova Iorque e eu para Londres’’.

...Paulo Francis teve sucesso como romancista...

Ivan Lessa : ‘’Mas ele tinha o ‘’post-romance-tristis...‘’.Adaptando o post-coitum tristis,é o que tinha.Ficava deprimido.Mas nao penso em sertao cultural nenhum nao.Eu acho que ha sertao cultural sim,mas nao por causa do livro de Francis.Ele estava partindo do livro que tinha lancado.Eu nao tenho porra nenhuma.O que acho triste é o fato de o meu livro sair ! Fiz as cronicas na esperanca de que fossem se perder no eter...Eu nunca guardei copia’’.

8-...Mas voce nao guarda o que voce escreve ?

Ivan Lessa : ‘’Nao ! Quem guarda isso é mae,tia...
9- Sua mae nao guarda ?

Ivan Lessa : ‘’...Mas essas cronicas so sairam porque minha mae guardou ! Eu escrevi entre 1978 e 1992 para o servico brasileiro da BBC.Revezava,nos primeiros anos,com Vamberto Morais.Num domingo era eu,no outro era ele.Depois,fiquei eu.Sao quatorze anos de cronica.Eu escrevia em casa,entrava no estudio,gravava,botava aquela fita amarela no comeco e a vermelha no fim e deixava la numa caixa azul,com uma copia para que o sujeito que fazia o transmissao da noite soubesse o comeco e o tempo.Depois,alguem arquivava la.Mas eu nunca guardei copia pra mim.Um dia,uma secretaria escocesa estava limpando la e me perguntou : ‘’Voce quer isso aqui ? ‘’.Era um punhado de cronicas,um cadernao daqueles grandes.Eu disse : quero.Por um acaso,era fim de ano,epoca em que minha mae vem para ca,passar o Natal.Botei tudo dentro da pasta de trabalho,chguei em casa e disse : ‘’Elsie,voce quer isso aqui ?’’.Entao,ela levou tudo com ela,para Cascais,Portugal.
Helena Carone - que estava preparando um livro baseado em contribuicoes que eu fazia sem script para a parte cultural das transmissoes do servico brasileiro da BBC - iria fazer a transcricao do que eu tinha falado com ela.Mas ai eu estava em Cascais,como todos os anos,monotonamente,passando minhas ferias,mexendo na caixa da Elsie depois do almoco.Terminei achando as cronicas.Desci,fui ao portugues la de baixo tirar xerox do que sobrou.Desses quatorze anos,sobraram umas oitenta cronicas,so.Trouxe para ca.Dessas oitenta,Helena selecionou quarenta.As menores,as que nao chegam a uma pagina,evidentemente nao eram cronicas : eram transcricoes da minha colaboracao com o programa cultural’’.

Numa gravacao que fez com voce,na BBC,Paulo Francis disse que,diante da sociedade de massas,filistina e mediocre,ele se sentia ‘’tecnicamente morto’’...

Ivan Lessa : ‘’Agora eu me lembro...’’...

10- Voce tem tambem essa sensacao de ser um peixe fora do aquario ?

Ivan Lessa : ‘’Absolutamente ! Absolutamente ! Talvez porque Francis vivesse muito mais no Brasil e dependendo do Brasil.Repare que o dinheiro de Francis vinha do Brasil.Entao,muito corretamente,ele tinha de ir la para regar a flor da carreira dele.De seis em seis meses,Francis estava no Brasil,nao so para rever os amigos - e ele os tinha,muitos - mas para se acertar com o pessoal da Folha e,depois,o Estadao.Francis ganhava em dolar,mas era dinheiro que deixava o país.Eu,nao.Eu ganho aqui mesmo,em Londres.O dinheiro quem paga é o contribuinte britanico.A verba da BBC é do ministerio do interior.Em resumo : o que quero dizer é que nao tenho necessidade de regar a flor da minha profissao.Como ia ao Brasil,Fancis talvez sofresse com esse deslocamento.Dava o choque de ida e vinda.A cada vez que descia no Galeao,sentia uma emocao,possivelmente.A cada vez que descia no Aeroporto Kennedy de Nova Iorque,tambem.Eu,nao.Meus aeroportos sao o Charles De Gaulle,o de Heatrow e o da Portela,em Lisboa,onde me mexo mais’’.

Mas quando Francis se declarava ‘’tecnicamente morto’’ nao estava se referindo apenas ao Brasil,mas a uma situacao geral...

Ivan Lessa :’’Francis tinha uma variacao nos
‘’moods’’.Eu nao traduzi essa.Tinha as suas ruas.Como ‘e que que se diz quando alguem sobe e baixa...’’

Era ciclotimico...

Ivan Lessa : ‘’Tecnicamente era ciclotimico.Eu,nao.Eu estou na media ponderada.Nao sou muito entusiasmado,mas nao tenho depressoes,gracas a Deus.Tambem estou muito moco ainda: so tenho sessenta e quatro anos.Pode ser que venha ainda’’.

Eu me lembro que voce me disse uma vez que quer é ficar na arquibancada - olhando o jogo...

Ivan Lessa :’’Agora,nem na arquibancada !
Quero ver o jogo pela TV a cabo’’.

Em breve,a TV brasileira vai chegar ‘a Inglaterra,por assinatura....

Ivan Lessa :’’Tomei contato com o Brasil agora nas minhas ferias em Portugal,porque tinha o GNT e o Canal Brasil.Vi filme que nao acabava mais.Tudo o que podia.Fico muito tempo em casa,na piscina.Depois que saio da piscina,entro no apartamento e faco questao de ver,tanto a programacao do GNT como,principalmente,os filmes.Honestamente,pra ver chanchadas,essa coisa toda,eu nao morria de saudades.Nao tive surpresa nenhuma em constatar que eram muito ruins.Eu,na epoca,ja achava ruim,mas via e gostava de ver.Já os filmes mais pretensiosos,esses foram uma luta para ver.Puta que o pariu!
Eu acho que,em cinema,a gente é ruim.Cinema a gente deveria esquecer.Com uma excecao.Voce vai brigar comigo : gostei muito de todos os filmes que vi do Julio Bressane.Vi ‘’Bras Cubas’’,’’Tabu’’,’’Matou a Familia e Foi ao Cinema’’ e ‘’Cara a Cara’’.Eu nao tinha visto quando estava no Brasil.Quando morava no Brasil,eu nao via filme brasileiro porque achava um saco.Gostei muito,achei muito pessoal’’.

Julio Bressane tem um estilo...

Ivan Lessa : ‘’Exatamente ! Um estilo urbano,safado - de citacao.Eu sinto que ele faz para seis pessoas,seis entendidos,no bom sentido’’.

Voce escreveu que aqui no Brasil sao trinta pessoas vendo um o que o outro faz...

Ivan Lessa :’’Num artigo sobre 68,eu disse que eram quarenta pessoas fazendo coisas para quarenta pessoas assistirem : teatro,cinema,bossa-nova.Eram so quarenta pessoas.Alias,eram quarenta fazendo e quarenta consumindo.De vez em quando,havia um troca-troca’’.

Um dos dos problemas do cinema é industrial.Se o Brasil nao tem uma industria de ponta,nao vai ter um cinema.Se voce nao tem equipamento de ultima geracao,nao vai fazer,porque cinema nao cai do ceu..Vai haver sempre um problema tecnico...

Ivan Lessa :’’Isso tudo completa o que estamos falando.Nos estamos ligadissimos a tudo o que é americano.Entao,a narrativa vai ser a convencional americana,com comeco,meio e fim americano.Voce pega um filme frances : eles tentam escapar.O nocivo que vem dos Estados Unidos nao e’ que a Barra da Tijuca que sofre nao.E’ o proprio Central do Brasil.

11- O Brasil aparece como sonho ou como pesadelo em suas noites londrinas ?

Ivan Lessa : ‘’Eu estou fora do Brasil ha vinte e um anos enfileirados.Mas sonho é sempre desinteressante,é sempre bobagem.De vez em quando é ruim,é pesadelo.Hoje,segunda,por exemplo,eu entro na Internet para imprimir colunas de Elio Gaspari,Carlos Heitor Cony,Janio de Freitas.Em resumo : passando os olhos,fico horrorizado com o Brasil.Claro que fico.Acho o jornalismo de muito baixa qualidade.O nosso jornalismo piorou muito.Muito mesmo.Nao quero ai entrar com meu plangente violao do saudosismo,mas piorou mesmo.Quanto a sonho e pesadelo,digo o seguinte : até os dez,quinze anos de ausencia do Brasil,um e outro ocontecem.Depois,quando voce completa dezoito anos fora,o Brasil fica longe,no tempo e no espaco.Nesta hora,voce tem de botar Einstein na equacao,porque o negocio fica totalmente imponderavel.O Brasil fica mais distante do que um assunto como o trafico de escravos e a Gra-Bretanha,tema de um documentario que gravei em video ontem e hoje na tv.
Por incrivel que pareca,e’ um assunto que fica mais proximo de mim e dos problemas atuais que vivo no sentido de sair de casa,pegar o metro e ir para o trabalho’’.

12- Voce reclama de que o calor ‘’prega pecas em nossa sensibilidade,inteligencia e discernimento’’.Voce faz alguma relacao entre calor e incivilidade ? Historicamente,parece que existe alguma...

Ivan Lessa : ‘’O calor dá sono.Voce dorme,fica de calcao ou ate pelado.Fica ali pelo Rio,dá uma porrada no peixe.Mas o frio obriga voce a ter roupa,a sair para matar um urso.E’ mais complicado matar urso do que matar peixe.’’Matar urso’’ quer dizer fazer um guarda-roupa de inverno mais adequado.Com o frio,voce tem de fazer casa,é obrigado a produzir calor.Nao adiantar estender a carne no sol- Pernambuco que me desculpe.Entao,vou naquela que diz que o frio civiliza.Qual é o outro lugar comum ? ‘’Nunca houve uma civilizacao abaixo dos tropicos’’.Nao discordo muito.A mim,pelo menos,num aspecto pessoal,o frio me civiliza’’.

Ha o lado estetico tambem : o frio obriga as pessoas a se vestirem melhor...

Ivan Lessa : ‘’Exatamente ! Eu,como estou engordando,disfarco melhor a barriga com roupa de frio’’.

13 - Voce escreve que desenhos e caricaturas de seus amigos,pendurados na parede de casa,parecem dizer : ‘’era uma vez,era uma vez,era uma vez...’’. E’ natural achar o passado sempre mais interessante que o presente ?

Ivan Lessa : ‘’Nao é questao de ser interessante.Ha no livro - o que sobrou das cronicas que faco na BBC - um nitido saudosismo.Quem escrever cronica tem a tendencia a se autobiografar,no sentido de se entender.Eu procuro evitar a babaquice,a nostalgia pela nostalgia,o saudosismo pelo saudosismo,mas e’ uma maneira de a gente se entender e se autobiografar.Todo mundo,numa certa altura da vida,quer se botar em ordem.Já que vimos,neste fim de milenio,que o sofa de Freud nao deu certo,queremos nos botar em ordem,entao.
Mas ha um detalhe que acho importante na ligacao com o passado.E’ uma coisa muito,mas muito importante mesmo.Poucas pessoas entenderam o que vou dizer agora : o passado nao so ajuda voce(nos,a gente,um povo) a se entender,mas tambem nos ajuda a compreender aquilo a que aspirávamos ! Isso é muito importante !.Se voce pegar a arquitetura do Recife ou da Bahia ou do Rio ou de Sao Paulo,ha uma aspiracao ali ! Vamos para Brasilia : ha uma aspiracao naquela arquitetura.Um dia,possivelmente,vao derruba-la para fazer outra coisa em cima.Entao,nao e’ endeusar o repertorio de Orestes Barbosa ou de Noel Rosa...
Alias,devemos endeusar sem esquecer jamais que aquilo e’ uma contribuicao á cultura.Mas a conexao com o passado é tambem a conexao com a nossa aspiracao como um povo,como um todo’’.
O lugar comum é aquele : voce vai ao passado para se entender.Mas é para entender aquilo a que a gente um dia aspirou,rapaz ! ‘’

Quem olhar para a Barra da Tijuca,daqui a trinta anos,vai ver que aquilo é uma copia de Miami,nos Estados Unidos.Hoje,entao,existe um Brasil que aspira a ser Miami...

Ivan Lessa : ‘’Eu li,no New York Times,um artigo excelente sobre a Barra,escrito por um americano,dizendo exatamente isso.O autor do artigo vai enfileirando desde a arquitetura até os nomes dos lugares,feito este Credicard Hall.Eu acho até que ele errou um pouco,ao dizer que o Leblon e Ipanema estavam mais ligados á Franca.Dá como exemplo aqueles edificios do Sergio Dourado,já nos anos setenta,com nomes franceses.Mas ai ele errou,porque nossa influencia francesa é muito anterior,pode ser vista no Teatro Municipal - que é o Opera’’.

14 - Quando a Disneylandia Paris foi inaugurada,os franceses disseram que aquilo era o Chernobyl cultural.Ariano Suassuna escreveu que aquele era o maior monumento á imbecilidade humana.Voce,que esteve la,concorda com essas duas avaliacoes ?

Ivan Lessa : ‘’Sem duvida nenhuma ! Mas acontece que,como tudo o mais,vai ficando natural.Os japoneses devem ter ficado muito mais chocados que os franceses,mas aceitaram docilmente.Os franceses ja aceitaram tambem.Devem rir um pouco das pessoas que vao la.Mas acabam aceitando,como parte da paisagem.Hampstead,aqui em Londres, é um bairro metido a besta,intelctual,mais ou menos como Ipanema nos anos sessenta.Nao tinha McDonald’s la.Para conseguirem abrir um McDonald’s lá,foi uma luta.Entao,fizeram uma fachada meio disfarcada,mas abriram um McDonald’s em Hampstead,sim.Voce acaba aceitando.Vai em frente ! E’ a globalizacao,rapaz,a escrotidao ! E’ essa Barra da Tijuca.O artigo do New York Times lembra que a California tambem aparece na Barra da Tijuca’’.

E’ americana nesse sentido : para viver e se deslocar na Barra da Tujuca,voce tem de ter carro...

Ivan Lessa : ‘’Como na costa oeste americana ! Se a policia ve voce andando,em Los Angeles ou Beverly Hills,
ela para imediatamente para pedir documento.E’ o que estou dizendo : qual é a diferenca entre a Barra da Tijuca e a Disneylandia ? Apenas que a Disneylandia é mais organizada.Pateta,o camundongo Mickey e o Pato Donald sao vizinhos melhores do que o pessoal que infesta a Barra da Tijuca’’.

....Onde havera uma replica da Estatua da Liberdade...

Ivan Lessa :’’A historia da replica da Estatua é que motivou a reportagem do New York Times...’’.

As agencias do Banco do Brasil exibem placas dizendo ‘’personal banking’’ junto dos caixas eletronicos.Sem patriotada : por que nao escrever em portugues ?

Ivan Lessa : ‘’Isso e’ grotesco.Eu abro o jornal.Todo mundo tem ‘’personal trainer’’.Nao ! E’ demais ! Voce aceita,na lingugem da economia,um ‘’over’’aqui,ou uma ‘’net’’,ou palavras como ‘’deletar’’.Mas o presidente da Republica falar em ‘’cenario’’ no sentido de hipotese,nao !
Eu acho um absurdo ! A Academia Brasileira de Letras foi criada para proteger a lingua e para ajuda-la a lidar com inovacoes.Entao,ao inves de ficarem se premiando,deveriam dar uma maozinha,porque supostamente sao alfabetizados ! Nao digo forcar a barra como os franceses tentaram,ao baixar uma lei para que quarenta por cento de toda musica tocada tem de ser francesa...Computador na Franca é ‘’ordinateur’’.O software é ‘’logiciel’’.Pelo menos tentaram.E essas duas palavras pegaram.O aparelho de gravar é ‘‘magnetophone’’.O quero dizer e’ o seguinte : deve haver um esforco no sentido de tentar traduzir.O jornalismo entra aí...’’.

Um deputado brasileiro vem tentando criar uma lei que limite o uso de expressoes inglesas em locais publicos...
Ivan Lessa : ‘’Nao dá.Legislar a lingua nao pode.A Academia Brasileira,ja que é um dos poucos lugares onde ha supostamente intelectuais reunidos,e com algum poder,poderia tentar sugerir.Antonio Houaiss nao estava la com um projeto de reforma ortografica que era uma besteira enorme ? A Folha,o Estado de S.Paulo nao tem manual de estilo ? Sempre que possivel,deveriam tentar traduzir as palavras,porque elas pegam...’’.


15- Voce -que é especialista em musica popular brasileira dos anos quarenta e cinquenta - acha que a MPB daquele tempo era melhor do que a de hoje ?

Ivan Lessa :’’Nao estou no Brasil para acompanhar,mas acho que,em materia de musica popular,a gente é danado de bom.O ultimo que ouvi foi Ginga;qualquer coisa
que Aldir Blanc faz eu acho sensacional.Honestamente ! Outros nunca ouvi.Anunciaram um concerto enorme aqui em Londres com a turma de sempre -Caetano,Gil,Chico Buarque- e uma de quem nunca ouvi falar : Virgínia Rodrigues.O que quero dizer,entao,é que nao estou acompanhando.
Caetanices á parte,eu tiro o chapeu para Caetano Veloso e Gilberto Gil,porque nao sou idiota.Brinco com eles,mas nao sou idiota para nao ver o extraordinario talento que existe ali.Eu acho que estamos melhor em música do que em futebol.Vi trechos do Brasil e Holanda...
Há o lugar comum que diz nos,brasileiros,sempre fomos bons de futebol e bons de música.Somos bons ! Entao,acho que a musica nao piorou...’’.

Houve brigas com os baianos,heranca da epoca do Pasquim,principalmente com Caetano Veloso...

Ivan Lessa : ‘’Jaguar chamava de baiunos...’’...

As brigas eram com Millor Fernandes,o proprio Paulo Francis...

Ivan Lessa : ‘’Os baianos enchiam muito o saco,com muita autopromocao.Era odara,oxala’,como é aquele negocio azul ? Araca azul ! Uma fase de Caetano Veloso.Entao,Caetano tem aquele negocio de se reiventar.E’ a formula de David Bowie, a de ter ‘’personas’’ artisticas.Eu implico um pouco com a parte promocional,mas o produto final,o que me interessa, é o disco.Uma das vantagens de nao estar no Brasil é que so me chega o disco;nao tenho de acompanhar as entrevistas,ver aquelas tolices enormes e aquelas bobajadas que as pessoas sao obrigadas a dizer para promover.
De certa maneira,estou dizendo minhas bobajadas aqui para ajudar a vender o meu ‘’disquinho’’,o livro.
Mas quanto ao produto final nao tenho dúvida nenhuma’’.

16 - Durante anos houve aquela briga do publico,entre aspas,entre Caetano e Chico Buarque,hoje inteiramente superada.Voce chegou a tomar partido ?

Ivan Lessa : ‘’Nao,porque era bobagem tomar partido.Eu poderia gostar mais do que Chico fazia.Meu Deus do ceu : eram anos em que Chico nao errava uma ! Com essa mania de fazer listas neste fim de milenio,se voce tiver de fazer uma lista de cinquenta albuns (vamos falar de albuns conceituais,com comeco,meio e fim),’’Construcao’’,o album de Chico Buarque,é uma loucura,rapaz ! Chico fazia uma atrás da outra.Pá,pá,pá ! Havia,em Chico Buarque,uma consistencia de qualidade que era absolutamente extraordinaria.Entao,eu apenas gostava mais de Chico,o que nao significava que eu fosse brigar com Caetano Veloso.Os dois davam concerto,cantavam juntos aquela ‘’Bárbara,bárbara...’’(cantarola a música do disco ‘’Chico e Caetano Juntos e ao Vivo’’,lancado em 1972).
Entao,essa briga,para efeitos de Pasquim ou de sacanagem no botequim da esquina ou na mesa de bar,tudo bem,acho que vale.Mas - falando serio mesmo - acho que nao vale nao !
Apenas Chico me falava mais.Sou mais urbano; estou por fora de orixá,aracá azul,odara e mandacaru vermelho ! Eu estou por fora dessas porras !
Letra de Aldir Blanc marca minha vida.Eu manjo o ‘’dois pra la,dois pra ca’’.Eu estive lá !’’.



17 - Voce constata que o folego literario brasileiro ‘e curto,com excecao de Euclides da Cunha.Enquanto o resto da America Latina produz escritores que voce chama de ‘’caudalosos’’,nos seriamos ‘’excelentes’’ no ping-pong do conto,com Machado de Assis,Dalton Trevisan,entre outros.Voce nao acha que um pais que,pelo menos grograficamente,tem vocacao para grandeza,como o Brasil,nao deveria produzir tambem uma literatura mais épica ?

Ivan Lessa : ‘’Se nao produzir,ha algum motivo.Cabe a pessoas mais bem qualificadas do que eu entender o por que.
Mas há o reverso do que falei.Eu citei o conto,mas me esqueci de citar os nomes de tres gigantes : Manoel Bandeira,Joao Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade.O que é a poesia se nao a linguagem em alta tensao ?
Voce tem ai tres poetas de estatura mundial em qualquer epoca ! Ja que vivemos esta febre de fazer listas neste fim de milenio,acho que,seguramente,voce pode botar essses tres em qualquer lista dos maiores poeta do seculo ! Voce sabe muito bem que nao sou ufanista nem nacionalista.Era apenas uma cronica o que escrevi.E cronica é para sair no jornal e,no dia seguinte,estar embrulhando peixe,aquela velha historia.Se voce parar e pensar,alem de Dalton Trevisan,Rubem Fonseca ou dos cronistas que nao citei,como Rubem Braga,basta citar estes tres poetas.Nossa Senhora !
O Brasil da um banho em poesia ! Do outro lado do Atlantico,voce tem Fernando Pessoa’’.

18- A presenca do Brasil no exterior se deve basicamente ao futebol - em primeiro lugar - e á musica popular,em segundo.O fato de o Brasil ser sinonimo de futebol e musica e’ sempre um motivo de orgulho ou e’ um incomodo para voce - que vive fora do pais ?

Ivan Lessa : ‘’Para efeito externo,eu faco assim (e sei que estou fazendo conscientemente de birra;se nao,teria enlouquecido ha muito tempo) :’’ah,esse time nao e’ de nada,e’ uma cambada de vagabundos,esse Ronaldinho nao vale porra nenhuma,vai perder para o franceses,eu torco pelo Zidane e essa coisa toda...Mas nao.O que me chateia é o torcedor !.O inimigo é o amigo.O inimigo é esse cara que vive dizendo ‘’somos os maiores,o Brasil ja ganhou,é o tetra,é o penta,Caetano Veloso é o maior do mundo,a musica brasileira é a melhor !’’.O inimigo é esse !’’.

19- Qual é a grande musica brasileira do seculo vinte ? Qual e’ a cancao que voce vai passar o resto da vida ouvindo ?

Ivan Lessa : ‘’O titulo do romance que nao escrevi seria ‘’Nos Astros,Distraido’’.Entao,por ai voce tem uma ideia (N: o titulo vem da letra da musica ‘’Chao de Estrelas’’,o classico de Orestes Barbosa e Silvio caldas).O livro que nao escrevi fala de um camarada que,em 1949,vivia de biscate,um tipo que conheci muito no Rio de Janeiro dos anos quarenta e cinquenta.Era um sujeito que escrevia para Radio Nacional,tentava escrever.Para cinema,ele estava tentando fazer uma daquelas cinebiografias terriveis da Atlantida,filmes de meio de ano,sobre Noel Rosa.Para radio,ele vai tentar fazer a de Orestes Barbosa.Entao,esse era o tema do romance : eu ia levando num tom de deboche.Resolvi escolher 1949 porque em 1949 nao existia ditadura : era Dutra.Ainda nao tinha Maracana e,principalmente,nao existia televisao.E’ por isso que o romance se passava em 1949.Era um tipo que tinha como influencia cultural os cinemas da praca Saenz Pena e o radio que ele ouvia...

Entao,quanto a musica,eu estou entre Noel e Orestes,entre asfalto e morro,se bem que,a rigor,Noel falava de morro mas nao subia morro nao.Era asfalto tambem’’.

20- Voce parou em que altura o romance ?
Chegou a escrever ?
Ivan Lessa : ‘’A sinopse do Noel foi publicada no primeiro exemplar da revista dos meninos do Casseta & Planeta.Eu dei pro Reinaldo’’.


21- Quase tao irritantes quanto as cobrancas sobre por que voce nao vai ao Brasil,deve ser a cobranca sobre por que voce nao escreveu ate agora o romance da sua geracao.Voce nao tem vontade ?

Ivan Lessa : ‘’Nao tenho nenhuma vontade mais.Eu escrevi alguns capitulos,porque tinha um negocio bolado.Mas veio a preguica.Bateu-me o Caboclo Macunaíma.Ai,que preguica(da uma gargalhada)...Pura preguica ! Nada mais brasileiro que Ivan Lessa.Preguica ! Macunaima !’’.

22- Voce confessa que sentiu mais uma manha de sol em Copacabana,num banco com a namorada,do que o suicidio de Ana Karenina de Leon Tolstoi.Isso quer dizer que,invariavelmente,a vida é superior á literatura ? Ou a literatura pode ter tambem o poder de marcar a gente pelo resto da vida,atraves de uma frase,uma passagem ?

Ivan Lessa :’’Eu,levianamente,escrevi essa frase numa cronica.Mas,para ficar pretensioso,qual é o subtexto do que eu escrevi ? E’ que talvez,ao ler Ana Karenina,voce se empolga,acompanha a mulher ate ela se jogar embaixo de um trem,mas,se voce se lembrar dessa meia hora na praca ou num jardim,evidentemente essas experiencias t^em,em voce,um impacto pessoal que a literatura jamais vai dar.Eu posso,agora,ler um poema terrivel,terrivel.Vamos ficar no Joao Cabral.Eu pego o poema O Rio,é um horror aquilo que ele narra,mas é tao bonito,é tao bem-feito que voce sai quase empolgado.Entao,esse é um velho problema de arte : voce pode despertar a atencao para uma coisa,mas termina filmando bonitinho...Tenho um tape guardado com o ‘’Morte e Vida Severina’’,dirigido por Avancini.Ha umas nuvens bonitas.Nunca vai ser o horror que é a vida real.O que quero dizer é que um livro pode me ajudar para que eu busque,em mim,os meus próprios dados para entender certos problemas basicos,como vida,copulacao e morte.Isso soa pretensioso.Minha cronica é leve’’.

23- Logo depois da morte de Paulo Francis,voce deu um depoimento obviamente desencantado dizendo que ja nao tinha interlocutores : ’’Eu so sei que de repente passei a me sentir mais sozinho do que nunca,mais distante ainda de um Brasil que deixou de existir,talvez nunca tenha existido.O estrangeiro e’ espantosamente real,irreversivel’’.A sensacao permanece ?

Ivan Lessa(depois de um breve silencio): ‘’Permanece.Permanece.Mas tudo bem’’.




Posted by geneton at 12:50 PM

NELSON RODRIGUES

CENAS DE UM ENCONTRO COM UM GÊNIO CHAMADO NELSON RODRIGUES :
“AO CRETINO FUNDAMENTAL,NEM ÁGUA”

As incríveis cenas dos bastidores de um encontro com Nélson Rodrigues,maior dramaturgo brasileiro,pernambucano exilado no Rio,estilista número um da crônica esportiva

Meu primeiro, único e último encontro com o gênio Nélson Rodrigues começou com uma dúvida devastadora : por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira ? Não é possível,deve ter havido algum engano – eu pensava com meus botões,enquanto caminhava pelas calçadas do Leme,na beira- mar,no Rio de Janeiro,em direção ao apartamento do homem.

Se Nélson Rodrigues escrevia aquelas crônicas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvio que ele não iria dar uma entrevista a um forasteiro pernambucano no exato momento em que a seleção brasileira entrava em campo,no Maracanã,com transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é que ele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguinte ? Não,deve ter havido um grande equívoco. É melhor que eu desista. Nélson não iria dar entrevista alguma num momento tão inoportuno. Ou iria ?

Mergulhado num poço de constrangimento, aperto a campainha.A entrevista tinha sido marcada por telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo, vejo a imagem de Nélson Rodrigues esparramado numa poltrona. Os pés estão fora dos sapatos . Não faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de mangas curtas. Pende na parede da sala uma foto emoldurada de Nélson Rodrigues em companhia de Sônia Braga e de Neville de Almeida – atriz e diretor da versão cinematográfica de “A Dama do Lotação” .

Quando a mulher avisa em voz alta que “o repórter de Pernambuco” estava na porta da sala, Nélson ergue os braços,agita as mãos,saúda o ilustre desconhecido com uma exclamação calorosa,como se reeencontrasse um amigo de infância : “Conterrâneo ! Conterrâneo ! “.

O cumprimento efusivo não afasta o temor de que Nélson tenha cometido um pequeno equívoco : ao marcar a entrevista para aquele horário,ele bem que pode ter se esquecido de que a seleção brasileira iria entrar em campo dentro de instantes. A hipótese pode parecer absurda, mas quem sou eu para menosprezar as possíveis excentricidades de nosso herói ?

Tento uma solução alternativa para escapar de um vexame : digo que posso voltar depois para gravar a entrevista ;não quero importuná-lo na hora do jogo. Teatral, Nélson Rodrigues repousa a mão direita sobre o peito,como se sugerisse uma pontada no coração. Olha para a televisão,pede à mulher : “Tirem o som desse aparelho ! Tirem o som desse aparelho !.O Brasil me faz mal ! O Fluminense me faz mal !”. A mulher e a irmã de Nélson riem da cena teatral. Hiperbólico,épico,exagerado,o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de que acabo de me transformar em solitário e privilegiadíssimo espectador de um espetáculo teatral chamado Nélson Falcão Rodrigues,encenado pelo próprio autor.

A ordem de Nélson – “tirem o som desse aparelho ! “- é imediatamente atendida. O aparelho de TV fica mudo. A seleção entra em campo : Leão; Toninho,Oscar,Amaral e Edinho; Batista,Toninho Cerezo e Rivelino;Zé Sérgio,Nunes e Zico. Assim,este forasteiro se vê de repente na condição de coadjuvante de uma cena surrealista : diante de uma TV sem som que transmitia o jogo da seleção brasileira contra o Peru, o autor das mais brilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasileiro simplesmente tira os olhos do vídeo para responder ao interrogatório de um visitante que chegou em hora inconveniente,munido de um gravador e um bloco de anotações. Improvisado como fotógrafo,o também pernambucano Wilson Urquisa vai flagrando,com uma velha Olympus,as poses teatrais de Nélson Rodrigues.


Se houvesse justiça nesta República,uma lei deveria determinar que,depois de Nélson Rodrigues,ninguém deveria escrever sobre futebol no Brasil. Porque é extremamente improvável que um candidato a sucessor consiga igualar o brilho do texto deste pernambucano que passou quase toda a vida exilado no Rio de Janeiro.

A coleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia.Rui Castro organizou,para a Editora Companhia das Letras,um volume que reúne,sob o título de “Flor de Obsessão”,as “mil melhores frases” do homem.Se quisesse,reuniria três mil,como estas vinte :


“O brasileiro é um feriado “.

“O Brasil é um elefante geográfico.Falta-lhe,porém,um rajá,isto é,um líder que o monte”.

“Sou a maior velhice da América Latina.Já me confessei uma múmia,com todos os achaques das múmias”.

“Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes,ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf”.

“O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”

“Na vida,o importante é fracassar”

“A Europa é uma burrice aparelhada de museus”.

“Hoje,a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar.O repórter mente pouco,mente cada vez menos”.


“Daqui a duzentos anos,os historiadores vão chamar este final de século de “a mais cínica das épocas”.O cinismo escorre por toda parte,como a água das paredes infiltradas”.

“Sexo é para operário”.

“O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História”.

“A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”.

“Suddesenvolvimento não se improvisa.É obra de séculos”.

“As grandes convivências estão a um milímetro do tédio”.

“Todo tímido é candidato a um crime sexual”.

“Todas as vaias são boas,inclusive as más”.


“O presidente que deixa o poder passa a ser,automaticamente,um chato”

“Não gosto de minha voz.Eu a tenho sob protesto.Há,entre mim e minha voz,uma incompatibilidade irreversível”.

“Sou um suburbano.Acho que a vida é mais profunda depois da praça Saenz Peña.O único lugar onde ainda há o suicídio por amor,onde ainda se morre e se mata por amor,é na Zona Norte”.

“O adulto não existe.O homem é um menino perene”.



Fui testemunha ocular de uma verdade inapelável : Nélson Rodrigues era um cronista tão perfeito que nem precisava ver o jogo. O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores,os esquemas táticos,todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio. A Nélson Rodrigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de beques ou atacantes no retângulo verde. O relato dessas banalidades é tarefa que cabe aos “idiotas da objetividade” – estes pobres seres que só são capazes de enxergar a rala superfície dos fatos.

A missão que Nélson Rodrigues outorgou a si mesmo era outra : traduzir em palavras a dimensão épica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que,então,perder tempo com miudezas ? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV ? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru ? Para que saber se o meio-de-campo do Brasil estava ou não estava inspirado ?

-“Em futebol ,o pior cego é o que só vê a bola.A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana.Às vezes,num córner bem ou mal batido,há um toque evidentíssimo do sobrenatural”, ele escreveu uma vez.


Nélson Rodrigues preferia se ocupar de questões metafísicas – como,por exemplo,a inapetência de nossos escritores brasileiros em tratar do futebol.Numa de suas tiradas clássicas,reclamou :

- Nossa literatura ignora o futebol -e repito : nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral.

A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados em nossos jornais. Virou lugar-comum dizer que Nélson Rodrigues reclamava de que nossos escritores não sabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão. A implicância de Nélson era com literatos incapazes de cobrar um lateral. Mas, a bem da verdade, os que deturpam a queixa de Nélson não estão inteiramente errados : não apareceu ainda um escritor brasileiro capaz de bater um escanteio ou um lateral...

Alheio a esta fraqueza nacional,Nélson parece distante da disputa que se desenrola,ali,diante de nós,no vídeo da TV,entre a seleção brasileira e o escrete peruano. Faz ao repórter uma pergunta incrível : “Quem é o nosso adversário hoje ? “. Informo que é o Peru.

Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário.

Quando Zico faz um a zero,aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo,Nélson interrompe a entrevista para inaugurar,aos brados,uma nova expressão exclamativa :

- Que coisa beleza ! Que coisa beleza !

Depois,pede à família : “Pessoal,com licença dos nossos visitantes,vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso”. Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que “fechar a máquina” significa desligar a televisão – o que,aliás,não foi feito. Nélson dispara,então,um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho :

- Mas esses rapazes são uns gênios ! Uns gênios !

O repórter seria novamente surpreendido. Nélson já perguntara quem era “nosso adversário”. Agora,ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto : “Mas já houve dois gols ? “. Digo a ele que não : é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah,sim !”. Teria dois outros motivos para vibrar : o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes - faria dois gols,aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo,para fechar o placar : Brasil 3 x O Peru.

(Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nélson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver ? Eis :

- Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz.Mas não quero ter fantasias esplêndidas.O jogo Brasil x Peru,ontem,no Mário Filho,não assustou a gente.Diz o nosso João Saldanha : “O Brasil fez seu jogo,jogo brasileiro”. Vocês entendem ? Não há mistério.O brasileiro é assim.Quando um de nós se esquece da própria identidade,ganha de qualquer um.Outra coisa formidável : na semana passada,um craque nosso veio me dizer : “Nélson,é preciso que você não se esqueça : ao cretino fundamental,nem água”. O jogo foi lindo”.


Penso com meus botões que Nélson não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotas da objetividade” se encarregariam de registrar,nas páginas esportivas,o jogo real. Porque o jogo de Nélson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais ? Aos cretinos fundamentais, nem água.

A lista de surpresas nessa tarde no Leme não se esgotaria aí. Quando deu por encerrada a entrevista,Nélson pergunta ao repórter : “E então,você me achou muito reacionário ? “. Não,claro que não. Em seguida,pega o telefone,liga para a cozinha do Hotel Nacional,identifica-se e faz uma pergunta a um maitre provavelmente atônito :

- Companheiro,aqui é Nélson Rodrigues. Qual é o prato do dia ?

Ouve a resposta em silêncio,desliga o telefone. Recolhido ao sossego do lar,no fim de tarde de um feriado,já parcialmente debilitado por doenças que lhe encurtavam o fôlego, Nélson jamais se animaria a ir até o Hotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fez questão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê ?

As cenas que Nélson Rodrigues protagonizou nesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista. Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dispensa ao repórter um tratamento afetuoso : chama-me de “meu bem”. Alheio ao eventual cansaço de Nélson, estico a conversa até o limite máximo. Não quero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as tiradas do cronista inigualável. A irmã do gênio é que,delicadamente,interrompe o questionário no instante em que Nélson fez uma pausa para engolir uns comprimidos. Ao autografar o exemplar do livro de crônicas “O Reacionário” – consultado durante a entrevista – Nélson Rodrigues oferece-me uma dedicatória dúbia : “A Geneton,amigo doce e truculento – Nélson Falcão Rodrigues”.

Quase um quarto de século depois (a entrevista foi gravada no dia 1 de maio de 1978) ouço novamente a fita, releio a transcrição da entrevista. Confirmo que Nélson Rodrigues é um caso raríssimo de escritor que falava como escrevia. Só há outro caso : Gilberto Freyre. Transcritas,as entrevistas dos dois em certos momentos se assemelham aos textos que escreviam,o que é uma façanha : a linguagem falada normalmente é mais pobre que a linguagem escrita.Mas a regra – guardadas as naturais diferenças entre o que se fala e o que se escreve - nem sempre valia para os dois.

A entrevista foi embalada por citações ao livro “O Reacionário”, lançado por Nélson meses antes. Durante toda a entrevista, Nélson fez, repetidas vezes,citações a histórias e personagens descritos em “O Reacionário”. De vez em quando, entre uma resposta e outra, ele mudava repentinamente de assunto; parecia afogado em divagações. Chegou a reclamar : “Eu estou tendo lapsos lamentáveis....”. Assim, frases de “O Reacionário” complementam,nesta entrevista,as respostas gravadas por Nélson Rodrigues.

Os melhores momentos do diálogo improvável entre Nélson Rodrigues – o gênio que se intitulava “a flor da obsessão” – e o repórter intruso :

GMN : Quando foi que Nélson Rodrigues descobriu que nascera para escrever ?

Nélson : “A coisa é a seguinte : escrever para mim,muito mais do que uma decisão profissional,é um destino.Escrever é o meu destino ! Não é um caso de opção.Eu só tinha esta opção,uma vez que nasci assim”.

GMN : O senhor se considera um escritor por vocação ?

Nélson : “Digo que,no meu caso,eu nem precisava de vocação,porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante ! Eu tinha de ser aquilo. Se você chagasse junto de mim e pedisse para eu ter outra profissão,podia até dar dinheiro para que eu tivesse outro destino,não seria absolutamente possível”.

GMN : O início foi com ficção ou com jornalismo ?

Nélson : “Eu estava no quarto ano primário na Escola Prudente de Morais.Uma dia,a professora – que mandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estampa,para que nós,alunos,fizéssemos em torno da vaca toda uma história – disse : “Olhem aqui : Hoje,vocês vão ter de escrever da próprio cabeça.Agora não é mais sobre a vaca pintada”. E então deixou que cada um de nós fizesse o seu drama,o seu projeto dramático.
Duas histórias tiveram o primeiro lugar.A do meu adversário era um a história de um daqueles magnatas que davam passeios.Ele descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito.E pronto.A minha foi inteiramente diferente.Eu fiz a história de uma moça que era uma fera.Quase uma dama do lotação.Um dia,o marido chega em casa mais cedo e,quando empurra assim (imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta) . Entra em casa,segura o amigo traidor e enfia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empatamos.O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma concessão ao convencional.

Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista.Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobre adúltera que morreu de maneira tão melancólica.O traidor morreu também de maneira melancólica : direi,a bem da verdade,que a minha história causou um horror deliciado.Eu era,para todos os efeitos,um pequeno monstro.


Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter : esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça…”.

GMN : Para o senhor – que é considerado um mestre nesse ofício – o que é necessário para retratar, num texto teatral, o mundo desses personagens suburbanos das nossas cidades?
Nélson : “Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcionista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro chamamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Não é apenas uma facilidade, mas um destino” (pronuncia em tom dramático esta palavra)

GMN : A inspiração é uma entidade que existe para o senhor?

Nélson : “O negócio da inspiração é o seguinte : eu considero a inspiração,ao contrário de Valèrie, que só via a máquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisa que o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com a experiência”.

GMN :Dentre as peças que escreveu, qual a que o senhor considera como definitiva, como a obra acabada do dramaturgo Nélson Rodrigues?

Nélson : “O mais importante para mim,até o momento,é o dramaturgo. Volta e meia, me sinto muito perplexo diante de certas manifestações que me induzem ao teatro, embora o teatro tenha um defeito : tenho de vez em quando vontade de fazer certas experiências não teatrais dentro da área de literatura, mas sem ter nada de dramático”.

GMN : Dentre as peças já escritas,qual é a predileta?
Nélson : “ Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo que são todas as prediletas.Não tenho prediletas(ri). Todas são favoritas. Já pensei muito em querer discriminar qual a minha melhor peça, mas não sei”.

GMN : Que autores brasileiros de hoje o senhor considera como verdadeiros artistas do teatro?

Nélson : “Vou pular esta,porque tenho autores que são inimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Um autor que é um amigo tem todos os defeitos…”

GMN :O senhor diz sempre que “a admiração corrompe”. É o caso ?

Nélson :“É isso, é o caso. A admiração corrompe. O amigo que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa nenhuma, porque, ele próprio, não consegue se prender. Então,começa a fazer insinuações e etc…Como eu sinto, evidentemente, o nosso amigo, o inimigo, com a maior facilidade, então eu prefiro o inimigo” (ri).

GMN : Se o senhor fosse levado a fazer uma hipotética opção entre o teatro e o jornalismo, qual dos dois preferiria?

Nélson : “O teatro ! E não é um problema de qualidade intelectual não”.

GMN : O jornalismo brasileiro continua padecendo de objetividade? – que o senhor considera uma “doença grave”?

Nélson :“O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental”.

GMN : Quais foram as causas da ocorrência desse culto à objetividade que, no conceito do senhor, corresponde à falta de emoção?

Nélson : “Pois é, é esse o negócio (ri de novo). É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. Olhe aí (e mostra a crônica “A Desumanização da Manchete”):

O “Diário Carioca” não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy-desk, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do “Jornal do Brasil”. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o “Jornal do Brasil” e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete”.

GMN : A ausência de um ponto de exclamação numa manchete faz falta ao leitor comum?

Nélson : “Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância,havia primeiro o “Correio da Manhã”, um jornalaço. E havia “A Noite” – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. “A Noite” era um jornal amado (acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava “A Noite” disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: “Morreu cantando” (a essa altura, Nélson Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer.
A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira”.

GMN : Que fatos ou situações brasileiras o senhor contemplaria com um ponto de exclamação numa manchete de jornal?

Nélson : (pensativo, com olhar distante) – “Deixe-me ver… O negócio é o seguinte: houve num desastre uma coisa atroz que foi uma explosão. Morreram seiscentos sujeitos, segundo as manchetes da ocasião. Todo mundo fazia coro… E outro caso de repórter que não era idiota da objetividade: o sujeito foi fazer a cobertura de um desastre de trem. Geralmente, em desastre de trem, morria gente pra burro. Agora, morre muito menos, não sei porque.

Mas qual é o fato ? Deixe-me ver…Ah, o suicídio de Getúlio Vargas foi de uma brutalidade incrível. Uma coisa bonita é que foi uma coisa misteriosa, aí é que não entrou objetividade nenhuma. Morreu, então o cara passa a ser um deus. O que é que você pode fazer contra o cara? Deu um tiro no peito, ia ser deposto. E só porque ia ser deposto ele se mata.

Veja só: no princípio da minha infância havia o pacto de morte. Havia sujeitos que se amavam tanto que já não suportavam mais o próprio amor. Então, o que fazia ele? Propunha à pequena o suicídio, um pacto suicida. Rara era a pequena que duvidava. O lindo era a vontade, o encanto com que esse par de amorosos se matava e cumpria o seu destino. Esse é que é o caso”.

GMN : Quer dizer então que na história recente do Brasil o suicídio de Getúlio Vargas seria o último grande fato que mereceria um ponto de exclamação do senhor numa manchete de jornal?

Nélson – “Olhe: quando eu digo merecer a manchete de jornal… (interrompe, olha para a televisão, comenta a iminência de um gol da seleção brasileira, distrai-se, retoma a conversa de um ponto anterior). Você compreendeu como é o caso? Antes de certo tempo aí, achavam que era uma coisa gravíssima o sujeito se matar, era uma covardia. E nem ele nem a menina acreditavam que isso fosse um defeito, o defeito de se matar: alguém ter o direito de destruir o próprio amor e o amor do outro. Mas os dois se destruíram. O sujeito achava que era uma maneira de coroar o próprio amor.
Agora, a nossa realidade está realmente muito pobre, muito vazia, sem um certo apelo dramático. Ninguém hoje quer morrer, ninguém quer se suicidar ! . Ali o sujeito só queria destruir o amor. E aí a sogra ia cuspir na morte do sujeito que lhe matara a filha”.

GMN : O senhor lê a chamada imprensa alternativa?

Nélson – “Alternativa o quê?”

GMN : A imprensa alternativa, esses novos jornais que têm surgido, o senhor lê ?

Nélson : “Eu leio de vez em quando mas não faço questão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal não é o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leio um jornal que não seja rigorosamente o jornal da véspera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do próprio dia. São fatos da véspera , figuras da véspera. O fato do dia não existe e ou só existe para rádio e as TVs. No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal. E assim o marido que matava a mulher e a mulher que matava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o dramatismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia, entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ou privada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de moda do que charleston, do que o tango”.

GMN :Não há nenhum fato do dia…

Nélson – “Pelo menos a gente tem essa impressão. O que nós chamávamos antigamente de furo não existe mais. Todos hoje acham que podem viver sem o furo, ao passo que, no meu tempo, quando eu era garoto, um furo de reportagem era tudo. Era o grande momento da carreira.

Agora, para falar de manchete, outro fato formidável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São Francisco era o local próprio para o sujeito se manifestar. E quando havia muitos interessados em se manifestar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fizeram uma coisa qualquer com o chefe de polícia. E o chefe de polícia – que era um santo – assinou uma portaria proibindo os estudantes não sei de quê nem ninguém sabe. Tudo que houve foi por conta da falta de bossa, da falta de inteligência dos nossos queridos estudantes. E então os estudantes resolveram fazer um “enterro” do chefe de polícia – que era um velho general, sujeito que acreditava em honra, num tempo em que ninguém sabia o que era honra. O general era um santo homem e então achou que aquilo era brincadeira de estudante. E lá foi ele dizendo aos queridos investigadores que não queria machucar ninguém. Nada de bala, nada de punhal, dizia o nosso general. E no dia do “enterro”, os estudantes carregavam o caixão, todos levando uma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polícia, furiosos com a questão, simplesmente acharam de matar três estudantes. Aí foi aquela coisa tremenda. Houve então uma manchete, a manchete mortal da imprensa brasileira. Um jornal descobriu uma manchete fantástica (muda a flexão de voz, entusiasmado). A manchete quase derruba a presidência da República, a vice-presidência, o chefe de polícia imediatamente se demitiu, foi embora, não quis mais nada, achando-se culpado. Inventaram uma manchete que até hoje eu gosto de ouvir…”

GMN : Qual foi?

Nélson : “Era assim: “Primavera de Sangue” (pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quase derruba o presidente da República, o ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete. Quero dizer que, se você quiser, com uma frase bem trabalhada, você resolve o caso.”

GMN :De quando foi essa manchete?

Nélson : “Eu era garoto, tenho agora sessenta e cinco anos. E foi na altura dos meus dez anos. Agora, eu sei disso tudo pelas informações do pessoal. O cara que fez esta manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil réis. Só o Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião (ri)”.

GMN :O senhor se interessa por política partidária?
Nélson : “Eu não sou ninguém para dizer certas coisas, mas o bom no brasileiro é que ele, sem saber de nada, diz coisas horrendas”.

GMN : Quais são os políticos brasileiros que o fascinaram ou fascinam hoje? Existe algum nome que o senhor queira citar?

Nélson (Pausa de alguns minutos, ele está pensando) : “Num desses momentos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado, porque para achar um sujeito, poder dizer um político interessante… Eu acho que só Napoleão Bonaparte ! (ri)”.

GMN : O senhor já disse que um dos traços do caráter nacional é o fato de que o brasileiro adere a qualquer passeata. Quais seriam os principais traços do nosso caráter nacional?

Nélson : “O brasileiro é um tipo gozadíssimo. O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque, senão, cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério porque este negócio de viúva vocacional é um fato. Há realmente um repertório sensacional de casos. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Houve um tempo em que nem o Departamento de Pesquisa do “Jornal do Brasil” sabia quem era o brasileiro.Mas se um sujeito se apresentava como brasileiro, as pessoas de bem respondiam: “Não te conheço!”. E muitos duvidavam que o Pão de Açúcar ou o poente do Leblon fossem brasileiros.
Olhe: houve tempo em que a mulher mais séria do mundo, mais digna, mais respeitável se deixava envolver por um poeta, se abandonava por um soneto. Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorou da minha tia Yayá. E se você perguntar “Qual foi o maior homem que você viu no mundo?”, eu acho que esse tio está no segundo ou terceiro lugar, porque o desgraçado, ele amava a minha tia Yayá. Ele já não precisava mais beber para estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso, fazia uma considerável economia de dinheiro… Em minha família houve um bêbado indubitável, foi este meu tio Chico. Como sujeito que bebe muito, ele durou pra burro. Morreu com oitenta e tantos anos, sempre bêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigo o meu horror ao bêbado. Mas ele me ensinou também uma série de coisas lindas. Por exemplo: o amor. Meu tio Chico me ensinou a amar. Embriagou-se em cada minuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante e depois. Yayá costurava para o casal não morrer de fome. Mas eu, menino, queria amar e ser amado como esse alcoólatra enlouquecido. Era um amor que hoje não existiria. A minha tia Yayá deu graças a Deus que ele tivesse se apagado. Agora ninguém ama mais, eis o que comecei a descobrir desde os treze anos de batalha. Você ponha aí: o meu tio Chico e sua bem amada Yayá. Era um negócio impressionante.”

GMN : Por que é que o senhor diz, desse jeito, que hoje ninguém ama mais ?
Nélson : “Meu bem, se a evidência objetiva e espetacular vale alguma coisa, o homem não ama mais. E não ama mais porque o nosso cenário se povoa de sujeitos que são débeis mentais absolutos. O sujeito já não acredita em amor, pra começo de conversa. Não acredita em amor. O sujeito acha que todo mundo é a mesma coisa, e apesar disto, se diz marxista. É uma coisa esterilizante que há na vida brasileira, sobretudo carioca. O carioca é esse sujeito fascinante só na base dos defeitos que tem. Arranja logo casamento e é uma besta. E todo mundo diz: “Oh, que coisa, que amor!”.
E eu me lembro de uma menina grã-fina mesmo… Aliás, diga-se de passagem que eu não acredito na existência da grã-fina nem do grã-fino. Dou-lhes este nome. Mas é incrível esse negócio da mulher moderna (fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento). Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco feminina. Eu tive um cachorro, o nosso querido Boogie-Woogie, que ficava diante da minha casa amando sua querida cachorra. Ela ficava lá, digníssima, empinada, recebendo as homenagens. Os carros passavam e achavam o cachorro louco. E esse nosso amigo, o cachorro, era muito mais humano que a mulher dos nossos tempos. Elas se meteram a bestas”.

GMN : O brasileiro continua sendo um “Narciso às avessas que cospe na própria imagem”, como o senhor dizia?

Nélson – “Continua, continua !”.

GMN : Qual é o remédio para isso?

Nélson : “O remédio para isso? Nunca. Para isso não há remédio. Veja que o Brasil ganhou três vezes o campeonato mundial. Se ganhou três vezes, e se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo, tudo salvo. Ganhou três vezes no futebol, feito como esse ninguém teve e não se conhece isso.
O brasileiro tem virtudes. É bom fazer uma ressalva nesses defeitos que digo. Isso o torna extremamente simpático. Aquela volubilidade… O sujeito ora ama aqui, ora ama ali… Vai lá pra chegada do trem elétrico, vai arranjando os seus amores que, aliás, duram geralmente vinte e um dias, quando duram. Há pessoas que casam e lá na sacristia estão os convidados fazendo apostas sobre a duração daquele casamento. E você pode ficar sossegado porque aquele casamento está inteiramente liquidado antes do começo. Há amores, entendeu, que o sujeito traz consigo e realmente são sinceros. Mas evidentemente, não existe este amor, porque o nosso querido Brasil…

Olhe: em 1958, quando o nosso querido Brasil voltou campeão da Copa, foi o maior futebol que jamais se viu…”

Diga-se de passagem que eu considero o brasileiro o maior sujeito do mundo. O europeu já está esgotado. O europeu tem na casa dele pires de mil anos. Escadas de mil anos. Tudo é velho pra burro. Já com o brasileiro é inteiramente diferente. É como se ele estivesse sempre há quinze minutos do fato. Um negócio genial.
(Nélson tinha mudado de assunto;volta ao futebol)Basta o sujeito passar quinze minutos assistindo a um jogo importante desses camaradas. Esses rapazes são uns gênios. Mas o sujeito pensa que isso não é importante e sai, nem liga. Mas quando o negócio vai se transmitir em forma de gorjeta, aí então o brasileiro é um feroz…”

GMN : O senhor diz também que a paisagem dos países desenvolvidos é triste sem imaginação…

Nélson : “É. Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, costumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. É trágica a falta de imaginação da paisagem no país desenvolvido. O desenvolvimento é burro, ao passo que o subdesenvolvimento pode tentar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida.

O diabo é que o Burle Marx, no Brasil, faz o que nem o europeu faria lá. O nosso Burle Marx retira a flor da paisagem. Dizem que o Amazonas é a coisa mais gigantesca do mundo. O nosso Burle Marx só usa uma cor, a verde, e danem-se as outras cores. Fiz esta anotação e ele me disse numa entrevista dele que o teatrólogo Nélson Rodrigues, com certeza, não estava olhando para a paisagem, não viu outra cor, se não a verde. Fui espiar lá e, realmente, o único paisagista do Aterro do Flamengo é o Exército, porque acrescentou, ao Monumento dos Pracinhas, algumas flores, umas dezessete flores. O paisagista foi o ministro da Guerra. O nosso querido Burle Marx, a quem muito admiro, não pôs flores no Aterro, e com a maior tranqüilidade do mundo. Não precisa prestar atenção… O negócio das cores… (Nesta altura da conversa, ele ri e confessa: “Eu estou tendo lapsos lamentáveis…”).

Você sabe o que é o sujeito fazer uma bobagem e negar a verdade? Se ele aceitar o erro, está bem. Agora, quando o sujeito fica impune… A impunidade faz de um São Francisco de Assis um canalha. Ele comete um ato e ninguém o prende, ninguém o ameaça, sequer.

É este o caso de Burle Marx. Como ele está faturando cada vez mais, não liga por ter feito um jardim onde só existe uma cor e onde não tem uma violeta. Ele está cada vez faturando mais, e mais fiel aos seus erros, porque descobriu que o erro está muito mais perto do êxito. Já falei pra burro, agora você está satisfeito, não é? E vai querer continuar…”

GMN : Agora, uma explicação para as causas do rancor e da ironia feroz que o senhor cultiva diante de seus personagens, como por exemplo, “as verdadeiras grã-finas”…

Nélson : “O que eu acho é que a gente diz “grã-finas” sem achar que elas tenham obrigação de agir como grã-finas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonieta podia dizer: “Ah, eu sou grã-fina…”. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácio e ela disse: “Se não tem pão, comam brioche”. Então, a Maria Antonieta é que poderia bradar: “E, portanto, eu posso dizer que sou grã-fina”. Ela derrubou um erro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina do mundo é a Maria Antonieta. De então para cá nunca mais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina paulista que é gorducha, porque tem dinheiro à beça para comer. E come. Mas não existe. A nossa querida grã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro, e está furiosa porque não tem, então assume diversas atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: ”Na minha casa, só as criadas vêem televisão”. As grã-finas não existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.”

GMN : E as “estagiárias de calcanhar sujo”?

Nélson : “Já as estagiárias têm uma existência feroz…(ri, acentua o tom de voz). Sobre nossa querida estagiária, eu vou te dizer o seguinte: é incrível. Meninas que não serviriam para babá nem poderiam entrar num cinema para ver filme francês ou meu próprio filme, a “ A Dama do Lotação”, fazem atitudes que os bocós consideram geniais.

O que assombra na estagiária não é a sua graça pessoal, mais discutível, menos discutível, segundo cada caso. O que me assombra são as suas perguntas e repito: são as perguntas que tornam a estagiária um ser tão misterioso e absurdo como certas imagens de aquário. Uma dessas meninas irreais de redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster ou um santo ou, simplesmente, uma dessas velhas internacionais que embarcam em todos os aeroportos. E perguntar: “Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pílula?”

Você veja: uma delas foi incumbida de entrevistar um milionário. Ligou para a casa do milionário, disse: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. Do outro lado, uma voz responde: “Dr. Fulano não está passando bem”. E a menina insiste: “Então, pergunta a ele se…”. Desligam e a estagiária disca novamente, não com o dedo, mas com o lápis: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. A pessoa diz, desatinada: “Minha senhora, o Dr. Fulano acaba de ter um enfarte. Enfarte, minha senhora, enfarte. A senhora quer que eu diga mais do que estou dizendo?”. E a estagiária: “Vai lá e pergunta a ele o que é que ele acha da pílula. Eu espero”.

A família do enfartado toda se descabelando… o que, aliás, é raro, porque, no nosso tempo, a família chora muito pouco. O inimigo da morte – que é o clínico – dá logo um furioso calmante.
A estagiária então liga novamente. Dá sinal de ocupado. Continuou, com uma obstinação fatalista. E sempre ocupado. Uma hora depois, atendem. Era uma mulher que ou estava gripada ou chorando. A estagiária diz: “Por obséquio, eu queria falar com o Dr. Fulano”. Responde a voz feminina: “O Dr. Fulano acaba de falecer”. E a estagiária: “A senhora diz a ele que é só uma perguntinha”… e etc.

Agora, há um dado que me parece essencial. As entrevistas das estagiárias têm uma virtude rara: nunca saem. Falo por experiência própria. Quase todos os dias, uma estagiária me caça pelo telefone. E eu falo sobre todos os temas e personalidades. Opinei sobre os Kennedy, João XXIII, o Kaiser, Gandhi. No dia seguinte, abro o jornal e vejo que não saiu uma linha. Mas uma coisa curiosa: não só as estagiárias. Profissionais da melhor qualidade estão seguindo a mesma linha. Posso dizer que a nossa imprensa criou o novo gênero de entrevistas que não serão publicadas nem a tiro”.

GMN : O que é que o Recife significa para o senhor hoje?

Nélson : “Eu gosto do Recife pra burro. Vim de lá aos cinco anos de idade. Fiquei lá até o ano de 1929. Você veja: me dá pena estar pensando no Recife e nunca ir lá. Tenho, em minha memória profunda, um apelo de pernambucano pelo Recife”.

GMN : O senhor não pensa em voltar?

Nélson : “De vez em quando eu faço evocações......(Um dos textos de “O Reacionário” traz lembranças da cidade ) Toda a minha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir”.

GMN : O senhor não volta ao Recife porque tem medo de avião?

Nélson : “Acho chato viajar de avião, não quero voar, a não ser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil”.

GMN : Qual foi a última vez que o senhor esteve no Recife?

Nélson : “Em 1929. Tenho um sadio horror de avião”.

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Posted by geneton at 12:19 PM